Sumário:
I. Correndo termos a execução de que estes embargos são apenso num tribunal português e assistindo ao credor/exequente o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e executar o património do devedor/executado (artigo 817.º do Código Civil e artigo 10.º, n.º 4, do CPC,) o qual constitui a garantia geral do cumprimento das obrigações do devedor (artigo 601.º do Código Civil), detém o tribunal da execução competência internacional para ordenar a penhora de um crédito verificado, reconhecido e graduado numa sentença proferida por um tribunal português com vista a atingir o desiderato do processo executivo – a realização coativa da obrigação (artigo 10.º, n.º 4, do CPC).
II. A firma é um nome, um sinal distintivo do comércio, que pode ser usada por comerciantes, pessoas singulares ou coletivas, ou até por não comerciantes, e corresponde ao sinal que os individualiza ou identifica.
III. É uma realidade que não se confunde com a existência, direitos e obrigações de um determinado sujeito individual ou de um ente coletivo.
IV. A atribuição de um número de identificação fiscal pela administração fiscal portuguesa e outro pela administração fiscal espanhola, ao mesmo sujeito, não significa que existem duas pessoas jurídicas distintas.
Tribunal recorrido: TJ da Comarca de ..., Juízo de Execução de ... – J1
Apelante: AA
Apelado: Banco Comercial Português, S.A.
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO
Na execução ordinária para pagamento de quantia certa intentada, em 23-11-2021, em que é Exequente BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A. e Executado BB (NIF ...), por apenso à mesma foram deduzidos embargos de terceiro por AA, pedindo que seja considerada ilegal a penhora de créditos no valor de €10.412,16, efetuada à ordem da referida execução, e que, consequentemente, seja devolvido ao Embargante o valor penhorado.
Para o efeito, o Embargante alegou, em síntese apertada, que o crédito penhorado pertence a pessoa diferente do aqui Executado, mais concretamente a uma pessoa coletiva com a identificação fiscal espanhola ..., conforme certificado empresarial com código de atividade e nome comercial AA», que exerce atividade comercial em Espanha.
Contestou a Embargada pugnando pela improcedência dos embargos de terceiro, por o crédito penhorado pertencer ao Executado.
Em sede de despacho saneador foi proferida sentença que julgou os embargos improcedentes, mantendo a penhora.
Inconformado, apelou o Embargante defendendo a revogação da sentença e a procedência dos embargos, apresentando para o efeito as seguintes CONCLUSÕES:
«1 – BB, executado no âmbito dos presentes autos não pode ser confundido com, BB, reclamante no âmbito da insolvência melhor identificada, com o número de contribuinte espanhol.
2 – O tribunal a quo considerou tratar-se da mesma identidade e por isso decidiu pela improcedência dos embargos apresentados.
3 - Na opinião da recorrente, o tribunal português através desta decisão sobrepôs-se à jurisdição do tribunal de espanhol a quem pertence o comércio jurídico a que se reporta a fatura ou faturas reclamadas por BB, com NIF espanhol.
4 - Estas faturas foram tributadas em Espanha quer a nível de IVA, com a obrigatoriedade de pagamento trimestral bem como para efeitos de IRS .
5 - As faturas reclamadas na insolvência, foram tributadas em território espanhol, são bens ou melhor direitos que pertencem à jurisdição espanhola e não portuguesa.
6 - Desta forma, não poderão ser suscetíveis de ser penhorados no âmbito de uma execução em que BB, com o NIF português, seja executado.
7 - Numa ação executiva, o direito, deve entender-se referido ao lugar de cumprimento da obrigação.
8 - Deverá, considerar-se internacionalmente incompetente um Tribunal português para decretar a penhora de um direito
9 - O douto Tribunal a quo, confunde o direito com a localização do valor do saldo do crédito reclamado.
10 - Além de se tratar de duas entidades diferentes.
11 – Os Tribunais portugueses consideram-se exclusivamente competentes, por via da projeção interpretativa do artigo 63º, alínea e) do CPC, para execuções incidentes sobre direitos(alguns) situados em Portugal.
12 - O crédito da recorrente é um direito estrangeiro. a quem pertence a contabilização das faturas reclamadas na insolvência identificada.
13 - A douta decisão que se recorre implicaria, paradoxalmente, a tributação das facturas em Espanha de valores isentos de tributação em Portugal .
14 - Por esta razão a douta decisão que se recorre enferma num vício formal e material de equiparar e confundir duas entidades diferentes com identificações distintas.»
Na resposta ao recurso, a Embargada defendeu a confirmação do decidido.
II- FUNDAMENTAÇÃO
A. Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:
- Competência internacional do tribunal português para decretar a penhora;
- Se o Executado é pessoa jurídica distinta do Embargante.
B- De Facto
A 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:
«1. O exequente «Banco BPI, S. A» intentou em 11/11/2021 a execução contra o executado BB, a qual corre termos neste Juízo de Execução de ... do Tribunal Judicial da Comarca de ... sob o nº 2880/21.7T8LLE;
2. Nos autos de execução referidos em 1), o senhor Agente de Execução subscreveu a nota de notificação para penhora de crédito que faz fls. destes autos, no essencial com o seguinte teor “Notificação para penhora de crédito. Processo: 2880/21.7T8LLE. Tribunal Judicial da Comarca de .... ...-Juízo Execução- Juiz 1. Exmo Senhor. Administrador Judicial Dr. CC. ... Data: 23-02-2023. Fundamento da Notificação. Fica pela presente formalmente notificado que, nos termos do 773º do Código do Processo Civil (CPS), se considera penhorado o credito que o executado BB, NIF ..., presente ou futuro, vencido e a vencer, em consequência do crédito reclamado no Processo de Insolvência nº 3640/20.8..., a correr termos no Tribunal da Comarca de ...- Juízo de Comércio de ...- Juiz 1, ficando este à ordem do signatário, até ao montante de 25.634,15 euros (...) Data e Assinatura. 23-02-2023 (...)”;
3. O senhor Administrador da Insolvência nomeado nos autos nº 3640/20.8... no dia 13/03/2023 transferiu para a conta do senhor Agente de Execução nomeado nos presentes autos o montante de 10.412,16 €, lavrando o senhor Agente de Execução o auto de penhora datado de 16/03/2023, relativo a esse montante;
4. No dia 05 de Maio de 2023 o senhor Agente de Execução adjudicou ao Exequente a quantia de 8.397,14 €, proveniente da penhora de créditos referida em 2) e 3);
5. A Embargante AA» deduziu os presentes embargos de executado em 20/04/2023;
6. Foi endereçado ao senhor Administrador da Insolvência nomeado nos autos nº 3640/20.8..., o escrito (requerimento), que faz fls. no essencial com o seguinte teor “Exmo Senhor Dr. CC (...) Proc. 3640/20.8... Juízo de Comércio de ...-Juiz 1. Exmo Senhor Administrador de Insolvência. BB, contribuinte nº ..., com sede em ..., vem aos autos com processo à margem referenciado reclamar o seu crédito com os seguintes fundamentos- Do Fundamento da Reclamação e Crédito. 1º O reclamante é credor da Arrabidamel, Lda da quantia de 85.788,45 € - cfr. doc. 1 que se junta e dá por integralmente reproduzido para os efeitos legais. 2º Corresponde este valor à conta corrente contabilística da reclamante e da reclamada. Da origem e do título que fundamenta o crédito. 3º O crédito da reclamante emerge da fatura melhor discriminada na conta corrente (F2018/038, F2018/041, F2018/045, F2019/05, F19000021), conforme consta da contabilidade da insolvente, valor vencido, reclamado e não pago – vide doc. 1. 4º Sobre o capital da dívida reclamado, no montante de 85.788,45 €, acrescem juros vencidos, no montante de 10.496,75 €, num total de 96.285,20 €. Nestes termos e nos demais de direito que V. Exª doutamente suprirá, requer-se que, cumpridas as formalidades previstas na lei, seja o crédito reclamado, verificado e graduado no lugar que lhe competir (...)”;
7. O senhor Administrador da Insolvência nomeado nos autos nº 3640/20.8..., elaborou a Relação dos Créditos Reconhecidos (artº 129º do CIRE), a qual faz fls. dos autos, e na qual, além do mais, consta “...BB. Reclamado? X. NIF: .... Endereço: ... 3850 .... Fundamento Crédito: Fornecimento ou prestação de serviços: Natureza Crédito: Comum. Capital: 85.788,45. Juros: 9.754,36. Total: 95.542,81. Garantias Reais Pessoais: Inexistentes. Privilégios: Inexistentes (...)”;
8. O senhor Administrador da Insolvência nomeado nos autos nº 3640/20.8..., elaborou o escrito que faz fls. dos autos, no qual, além do mais, consta “Rateio Parcial- Artº 178º do CIRE- 80% do produto da liquidação (verba 1), limitado a 80% dos créditos garantidos e privilegiados (...) Credor: BB. Verificação-valor: 95.542,81. Graduação-lugar: 4º. Natureza: Comum. Valor ratear: 167.531,64. Rateio: 10.412,16 (...)”;
9. BB apresentou no Ministério da Economia e das Finanças de Espanha em 05/08/2014 declaração de recenseamento, cuja tradução para a língua portuguesa faz fls. destes autos, e na qual, além do mais, consta “Declaração de Recenseamento da abertura, alteração e cessação do Registo no Censo das Empresas, Empresários e Profissionais. 101 NIF: .... 102: Apelidos e Nome ou Nome da Empresa ou Denominação Social: BB 1. Razões da Submissão. A) Abertura de Actividade. 110- Pedido do Número de Identificação Fiscal (NIF). 111x Registo no Censo das Empresas, Empresários e Profissionais (...) Local, Data e Assinatura. Local: .... Data: 05/08/2014. Assina na qualidade de Interessado. Assinado: Sr/Srª BB. NIF: .... Apelidos e Nome da Empresa ou Denominação Social: BB. 2. Identificação. A) Pessoas Singulares. A1 Pessoa Singular residente em ... x (...) Identificação. A4 NIF: .... A5 Apelido 1: BB Apelido 2: BB Nome: BB Nome Comercial: AA Domicílio fiscal em ...: A11 Tipo de via: ... A12 Nome da via pública: .... A13 tipo nº NUM A14 Nº casa: 17 (...) A23 C. Postal: 30850. A24 Concelho: .... A25 Distrito: ... (...) 4. Declaração de Actividades Económicas Locais A) Actividade: Comércio Gross. Leite, produtos Lácteos, Mel Azeite 403. Tipo de actividade: 6125 1 (...) B) Local de desempenho da actividade A actividade desenrola-se fora de um determinado local. Motivo da submissão: 405 x Abertura 406 Data: 05/08/2014 (...) 6. Imposto sobre Valor Acrescentado A) Obrigações de informação 500. Está estabelecido no território de aplicação do Imposto sobre o Valor Acrescentado ou tem aí um estabelecimento permanente? S x. 501. Só efectua transacções não tributáveis ou isentas que não requerem autoliquidação periódica (art. 20 e 26 da Lei do IVA)? N x. B) Informação da Actividade. 502 x Notificação do início da actividade. Entrega de bens ou serviços antes ou simultaneamente à aquisição de bens ou serviços. Data: 503: 05/08/2014 (...) C) Regimes aplicáveis: Identifique a actividade ou actividades incluídas em cada regime: 510 x Abertura. Data 512: 05/08/2014 (...) 7. Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, Imposto sobre Pessoas Colectivas e Imposto sobre os não residentes A) Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares. Obrigação de efectuar pagamentos em prestações por conta do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares derivado do desenvolvimento de actividades próprias. Abertura 600 x. Data: 602: 05/08/2014 (...) Método de estimativa de IRPS: (...) Estimativa directa Simplificada. Inclusão: 609 x (...) Data: 05/08/2014 (...)”;».
C. Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso
1. Competência internacional do tribunal português para decretar a penhora
Vem o apelante defender que o tribunal português é internacionalmente incompetente para decretar a penhora.
Sustenta, para o efeito, que o tribunal português se sobrepôs à jurisdição do tribunal espanhol porque o crédito reclamado na insolvência da Arrábida Mel, Ld.ª pertence à jurisdição espanhola, por ter na sua base a faturação emitida por BB, com NIF espanhol, tributado em Espanha em termos de IVA e pagamento de IRS segundo as normas daquele país. Ademais, alega que o tribunal português deverá considerar-se internacionalmente incompetente para decretar a penhora de um direito cujo lugar de cumprimento da obrigação se situe em Espanha.
Vejamos.
A questão da competência internacional do tribunal português apenas foi arguida em sede de recurso.
Porém, a incompetência dos tribunais, incluindo a competência internacional, é uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, que sendo arguida após o despacho saneador, dela deve conhecer-se imediatamente (artigo 96.º, alínea a), e artigo 98.º do CPC).
Assim, ainda que a questão da competência internacional do tribunal português não tenha sido anteriormente arguida, impõe-se o seu imediato conhecimento em sede de recurso, nos termos que se seguem.
O crédito penhorado emerge de uma dívida de uma sociedade portuguesa (Arrábida Mel, Ld.ª, com sede em Portugal), titulada por faturas emitidas por BB, contribuinte n.º ..., com sede em ....
Como consta da faturação junta à reclamação de créditos no processo de insolvência (docs. juntos a estes autos em 04-01-2024), BB, contribuinte espanhol... (cfr. ponto 9 dos factos provados) forneceu (vendeu) produtos (laranjas e mel) à insolvente Arrábida Mel, Ld.ª, com sede em ..., que não os pagou.
Foi este sujeito (cfr. ponto 6 dos factos provados) quem reclamou o respetivo crédito no processo de insolvência da devedora, que corria termos num tribunal português e que, em parte, veio a ser penhorado à ordem do processo de execução onde foram deduzidos os presentes embargos de terceiro.
Para melhor se analisar a questão, dir-se-á, sinteticamente, que caso o credor tivesse pretendido obter o pagamento por via de uma ação declarativa, antes da instauração da insolvência da devedora, os tribunais internacionalmente competentes para a demanda seriam os tribunais portugueses, como se passa a explicar.
A competência de um tribunal é um pressuposto processual por via do qual se determina a medida de jurisdição atribuída a cada tribunal.
Na competência internacional está em causa a atribuição de poderes jurisdicionais ao conjunto dos tribunais de um Estado a respeito de situações transnacionais, ou seja, situações que apresentem contatos juridicamente relevantes com mais de um Estado.
Por essa razão, as normas de competência internacional utilizam critérios de conexão que indiciam a existência de um laço entre a situação a dirimir e o Estado do foro a quem é atribuída competência internacional.
A par da competência interna dos tribunais portugueses (em função da matéria, do valor, da hierarquia e do território – cfr. artigos 64.º a 84.º do CPC, com remissão para as leis de organização judiciária aplicável em cada momento) a lei portuguesa também estabelece regras de determinação da competência internacional dos tribunais portugueses, conforme se encontra regulado nos artigos 59.º a 63.º do CPC.
Nos termos do artigo 59.º do CPC, «Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos no artigo 62.º e 63.º ou quando as partes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º»
Estando em causa uma relação de natureza comercial com conexão com duas ordens jurídicas de Estados-Membros da União Europeia (Portugal e Espanha), aplica-se o Regulamento (CE) n.º1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (que entrou em vigor em 10 de Janeiro de 2015)1, aplicável em Portugal por força, além do mais, do disposto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP (cfr. artigo 66.º, n.º 1, do Regulamento e artigo 38.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto).
O critério-regra adotado pelo Regulamento (UE) n.º1215/2012 é o de que «as pessoas domiciliadas num Estado-membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro»(cfr. artigo 4.º, n.º1).
E o domicílio é determinado de acordo com o direito nacional do Estado-Membro no qual a ação tenha sido instaurada. No caso de pessoas coletivas ou empresas, o domicílio é definido segundo o país em que têm a sede social, administração central ou estabelecimento principal.
Todavia, o critério-regra comporta exceções. E entre elas, encontram-se as situações enunciadas nas secções 2 a 7 do capítulo II do referido Regulamento.
Releva, no caso em apreço, o artigo 7.º, n.º 1, ao prescrever:
“As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro:
1) a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;
b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:
-no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues» (sublinhado nosso).
Não havendo informação sobre o local onde os bens foram entregues, na falta desse elemento de conexão, sempre funciona a regra geral, ou seja, a pessoa coletiva (devedora) devia ser demandada no local da sua sede. No caso, situando-se a mesma em Portugal, os tribunais portugueses teriam competência internacional para julgar essa ação.
Por conseguinte, para fixação da competência internacional dos tribunais portugueses não elege o referido Regulamento como elemento de conexão o regime de tributação fiscal aplicável ao negócio jurídico, nem tão pouco se o direito em causa tem na sua génese uma relação comercial, como diz, o apelante, «pertencente» à jurisdição espanhola.
Porém, na situação que os autos nos oferecem, nenhuma ação declarativa foi instaurada em Portugal para determinação do incumprimento da devedora e condenação da mesma no cumprimento da obrigação.
O que se verificou foi algo diverso.
Decretada a insolvência da devedora por um tribunal português, o credor veio reclamar o seu crédito naquele processo, que ali veio a ser reconhecido e graduado por sentença transitada em julgado.
Essa sentença fez caso julgado (artigos 619.º e 620.º do CPC).
Ou seja, está definitivamente assente com trânsito em julgado, que o BB é credor da insolvente pelo valor reclamado e que, obtido o respetivo pagamento no processo de insolvência, o crédito integra-se a esfera jurídica patrimonial do mesmo.
Por conseguinte, a referência que o recorrente faz quando refere que «o crédito da recorrente é um direito estrangeiro» e que os tribunais portugueses têm competência exclusiva para execuções sobre alguns direitos situados em Portugal, remetendo para o artigo 63.º, alínea e), do CPC, salvo o devido respeito, não faz qualquer sentido, desde logo porque a norma referenciada apenas estabelece como elemento de conexão relevante para a atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses para as ações de insolvência, o domicílio das pessoas singulares ou a sede das pessoas coletivas ou sociedades, conforme os casos, alheando-se totalmente da natureza dos créditos em incumprimento, sejam os que estão na origem da declaração de insolvência, seja os que ali venham a ser reclamados.
Correndo termos a execução de que estes embargos são apenso num tribunal português, cuja competência interna e internacional decorre das normas previstas nos artigos 64.º a 65, 67.º, 88.º, 59.º, 62.º, alínea a), e 89.º, n.º 1, do CPC, e assistindo ao credor/exequente o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e executar o património do devedor/executado (artigo 817.º do Código Civil e artigo 10.º, n.º 4, do CPC,) o qual constitui a garantia geral do cumprimento das obrigações do devedor (artigo 601.º do Código Civil), detém o tribunal da execução competência internacional para ordenar a penhora de um crédito verificado, reconhecido e graduado numa sentença proferida por um tribunal português com vista a atingir o desiderato do processo executivo – a realização coativa da obrigação (artigo 10.º, n.º 4, do CPC).
Nestes termos, improcede a arguição da incompetência internacional do tribunal português onde corre termos o processo executivo para realizar a penhora de direitos ao abrigo do artigo 733.º do CPC.
2. Se o Executado é pessoa jurídica distinta do Embargante
AA apresentou embargos de terceiro onde defende, tal como vem agora defender no recurso, que o executado BB, com o NIF português ..., não pode ser confundido com BB, com a identificação fiscal espanhola ..., reclamante no processo de insolvência.
Na sentença recorrida, em face da análise da documentação apresentada na reclamação de créditos no processo de insolvência e nos presentes embargos, foi decidido que estão em causa os mesmos sujeitos de direitos, ainda que tenham números de contribuintes diferentes (um espanhol e outro português) e que o nome AA» corresponde tão só ao «nome comercial adotado por BB».
Adianta-se, desde já, que se concorda com o decidido.
Concretizando esta conclusão, começa-se por sublinhar que não ficou demonstrado nos autos que AA» fosse um ente coletivo. Como se refere na sentença recorrida tal referência corresponde a um nome comercial.
A firma, como decorre dos artigos 37.º, 38.º, 40.º do Decreto-Lei n.º 129/98, de 13-05 (RRNPC - Regime do Registo Comercial Nacional de Pessoas Coletivas), é um nome, um sinal distintivo do comércio, que pode ser usada por comerciantes, pessoas singulares ou coletivas, ou até por não comerciantes, e corresponde ao sinal que os individualiza ou identifica.2
Assim, a firma apenas permite, enquanto sinal distintivo de comércio, individualizar e identificar uma determinada entidade, em regra, comercial, em face de outras entidades de igual natureza.
Pelo que firma ou nome comercial é uma realidade que não se confunde com a existência, direitos e obrigações de um sujeito individual ou de um ente coletivo, ou seja, não é um sujeito de direitos ou obrigações.3
Só as pessoas singulares e as pessoas coletivas, e em relação a estas em consideração da prossecução de certos fins comuns, é atribuída a qualidade de pessoas jurídicas, ou seja, é-lhes atribuída a capacidade de serem sujeitos de direitos e obrigações (cfr. artigos 66.º a 68.º, 158.º e 160.º do Código Civil).
Deste modo, os Embargos de terceiro porque deduzidos por AA» estariam, ab initio, votados à improcedência, por não terem sido deduzidos por um sujeito dotado de personalidade e capacidade jurídica.
A sua dedução apenas pode ser entendida como pretendendo o Embargante demonstrar que «BB», pessoa singular e contribuinte espanhol, que gere o seu comércio utilizando a firma AA», é uma pessoa juridicamente distinta do executado «BB», pessoa singular e contribuinte português.
Mas tal entendimento não tem qualquer viabilidade jurídica.
Efetivamente, a atribuição de um número de identificação fiscal a um determinado cidadão resulta do registo do mesmo na base de dados da Administração Fiscal de determinado país e visa permitir de forma expedita e para efeitos fiscais, a sua identificação perante a autoridade fiscal.
No caso, BB tem um NIF (número de identificação fiscal) em Portugal e um NIE (número de identificacion de extranjero) em Espanha.
Mas trata-se da mesma pessoa jurídica, no caso, uma pessoa singular.
E sendo assim, e como se escreveu na sentença recorrida: «(…) porque os créditos reclamados nos autos de insolvência nº 3640/20.8... pertencem ao executado BB, a penhora dos mesmos à ordem dos autos de execução não ofende o direito de quem não seja parte na causa (execução), razão pela qual, deverá ser mantida, improcedendo os embargos de terceiro.»
Desta feita, os embargos de terceiro não podem deixar de ser julgados improcedentes e confirmada a sentença recorrida.
Dado o decaimento, as custas ficam a cargo do Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.
III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 13-02-2025
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Maria João Sousa e Faro (1.ª Adjunta)
Sónia Moura (2.ª Adjunta)
________________________________
1. Este Regulamento revogou o Regulamento (CE) n.º44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000 e que antes tinha vindo substituir a Convenção de Bruxelas de 1968.↩︎
2. Cfr. COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, Vol. I, Almedina, II.ª ed., pp. 164-165.↩︎
3. Independentemente da tutela jurídica do direito à firma ou denominação, que é uma vertente jurídica diferente daquela que está em causa nestes autos – cfr. COUTINHO DE ABREU, ob., cit., pp. 183-187.↩︎