Sumário elaborado pelo relator (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(i) o princípio do contraditório, com consagração constitucional, bem como no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, implica a possibilidade das partes participarem na tomada de decisão em relação a questões que lhe dizem respeito, assim se garantindo o direito de defesa e de serem ouvidos
(ii) A prolação da sentença após a produção de prova, e sem que às partes tenha sido dada a oportunidade de proferirem alegações, viola o princípio do contraditório, constituindo a sentença uma decisão surpresa.
(iii) Nessa situação, a omissão cometida – não facultar às partes a faculdade de proferir alegações – seguida da prolação da sentença, conduz à nulidade da própria sentença, podendo ser objeto de recurso e declarada pelo Tribunal da Relação.
(iv) Em conformidade, declarada a nulidade da sentença deve o processo baixar à 1.ª instância para que às partes seja facultado o exercício do contraditório, através de alegações, seguindo-se os ulteriores termos do processo, nomeadamente com prolação de (nova) sentença.
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora1:
I – Relatório
AA intentou, no Juízo do Trabalho de..., ação declarativa comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra BB, pedindo, a final:
«A) ser a ré condenada a reconhecer o direito do autor a auferir a quantia mensal bruta de Euros:1.750 (mil, setecentos e cinquenta euros), desde 1 de Maio de 2011 até 31 de Dezembro de 2021 e a quantia mensal bruta de Euros: 1.785 (mil, setecentos e oitenta e cinco euros), desde 1 de Janeiro de 2022 para diante;
B) ser a ré condenada a pagar, a título de salários e diferenças salariais, a quantia total de líquida de Euros: 51.348,97( cinquenta e um mil, trezentos e quarenta e oito euros e noventa e sete cêntimos) , a que acrescem as que se vierem a vencer até decisão final nos pressentes autos e juros de mora á taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento;
C) ser a ré condenada a proceder aos respectivos descontos para a Segurança Social;
D) a ré ser condenada a fazer incluir no respectivo “boletim de pagamento” a quantia mensal de Euros: 400 (quatrocentos euros) relativa á casa disponibilizada para o autor residir, localizada no ..., procedendo á competente quitação».
Alegou, para o efeito e muito em síntese, ter sido admitido ao serviço da ré em 1 de março de 2010, com a categoria de “Agente Funerária de 1ª”, mediante a retribuição de € 1.500,00, que incluía o valor correspondente à renda da casa que a ré lhe disponibilizou para residir, que desempenha trabalho em quantidade, natureza, dificuldade e responsabilidade idênticas à de outro trabalhador da ré (CC), pelo que tem direito a auferir idêntica retribuição.
Tendo-se procedido à audiência de partes, e não se tendo logrado obter o acordo das mesmas, contestou a ré, a pugnar pela improcedência da ação.
Para tanto alegou, também muito em síntese, que o autor foi admitido ao seu serviço em 1 de abril de 2010, para exercer as funções de “Empregado de Agência Funerária de 1ª”, (atualmente designado como agente funerário 1ª), mediante o pagamento da retribuição mensal, ilíquida, de € 1.098,00, acrescida de subsídio de alimentação, de Natal e de férias.
Em consequência, negou que o autor auferisse a retribuição que indicou na petição inicial, e acrescentou que à data do início da relação laboral os sócios da ré disponibilizaram uma casa ao autor para que este aí residisse gratuita, temporária e transitoriamente, até que “organizasse a sua vida”, devendo a casa ser devolvida logo que tal situação se verificasse ou quando os proprietários solicitassem a desocupação e devolução da casa, tendo os mesmos resolvido o contrato de comodato por notificação em 23 de junho de 2021, e celebrado um contrato de arrendamento (verbal) com o autor, referente à casa, em 1 de janeiro de 2022, mediante o pagamento por este da renda mensal de € 470,00.
Por fim, negou também que o autor desempenhasse as mesmas funções que o trabalhador com o qual se comparou.
Na sequência de solicitação do tribunal, o autor veio esclarecer alguns factos relacionados com o acordo relativo à renda da casa, bem como quanto às concretas funções que exercia, bem como o outro trabalhador com o qual se comparou.
No prosseguimento dos autos, no que ora releva, procedeu-se a audiência de julgamento e foi proferida sentença, que julgou a ação improcedente e absolveu a ré dos pedidos.
Inconformado com a sentença, o autor dela interpôs recurso.
E terminou as alegações com conclusões que se prolongam no respetivo articulado das páginas 78 a 138 (portanto, 60 páginas!) com 160 artigos – alguns cujo conteúdo abrange mais de uma página – e várias alíneas.
Ora, estatui o artigo 639.º do Código de Processo Civil [aplicável ex vi do artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho]:
1. O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2. Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entender do recorrente, devia ser aplicada.
3 – Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afectada».
Como decorre do referido preceito, em conjugação com o disposto no n.º 3 do artigo 635.º do mesmo compêndio legal, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva alegação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.
O n.º 1 do artigo 639.º, é expressivo ao dispor expressamente que a alegação deve concluir, «de forma sintética», pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
No recurso compreendem-se, pois, dois ónus: o de alegar e o de concluir.
Tal significa que o recorrente deve começar por expor (todas) as razões da impugnação da decisão de que recorre – ou seja, enunciar os fundamentos do recurso –, para de seguida, e de forma sintética, indicar essas razões, isto é, formular conclusões em que resume as razões do pedido.
Como ensinava Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, 1984, pág. 359), a propósito do artigo 690.º do Código de Processo Civil de 1939, mas que, mutatis mutandis, se pode transpor para os presentes autos: «Entendeu-se que, exercendo os recursos a função de impugnação das decisões judiciais (...), não fazia sentido que o recorrente não expusesse ao tribunal superior as razões da sua impugnação, a fim de que o tribunal aprecie se tais razões procedem ou não. E como pode dar-se o caso de a alegação ser extensa, prolixa ou confusa, importa que no fim, a título de conclusões, se indiquem resumidamente os fundamentos da impugnação (...).
A palavra conclusões é expressiva. No contexto da alegação o recorrente procura demonstrar esta tese: Que o despacho ou sentença deve ser revogado, no todo ou em parte. É claro que a demonstração desta tese implica a produção de razões ou fundamentos. Pois bem: essas razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusões, no final da minuta.
É claro que para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação».
No mesmo sentido aponta Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs-117), quando afirma:
«A lei exige que o recorrente condense em conclusões os fundamentos por que pede a revogação, a modificação ou anulação da decisão. Com as necessárias distâncias, tal como a motivação do recurso pode ser associada à causa de pedir, também as conclusões, como proposições sintéticas, encontram paralelo na formulação do pedido que deve integrar a petição inicial.
Rigorosamente, as conclusões devem corresponder a fundamentos que justifiquem a alteração ou a anulação da decisão recorrida. Fundamentos esses traduzidos na enunciação de verdadeiras questões de direito (ou de facto) cujas respostas interfiram com o teor da decisão recorrida e com o resultado pretendido, sem que jamais [s]e possam confundir com os argumentos de ordem jurisprudencial ou doutrinário que não devem ultrapassar o sector da motivação».
Importa não olvidar que o ónus de formular conclusões da alegação do recurso visa não só delimitar e sinalizar o campo interventivo do tribunal de recurso, como também proporcionar a este uma maior facilidade e rapidez na apreensão dos fundamentos daquele recurso (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-07-2006, disponível sob processo 06S698, em www.dgsi.pt). Para tanto, aquelas devem conter um resumo preciso e claro dos fundamentos de facto e de direito da tese ou teses defendidas na alegação, de tal modo que possibilite uma apreciação crítica ao tribunal de recurso.
No caso em apreço, como se disse, o recorrente apresentou “conclusões” que se prolongam por cerca de 60 páginas!
As mesmas apresentam-se repetitivas, confusas, prolixas e com constante e prolongada transcrição de depoimentos, sem uma clara e rápida perceção de todos os fundamentos do recurso.
Daí que se entenda que as conclusões estão longe, muito longe de cumprir o prescrito no artigo 639.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 635.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil.
Tal seria fundamento para, no mínimo, convidar o recorrente a clarificar e sintetizar as conclusões, sem as inúmeras e repetitivas transcrições de depoimentos, sendo que estas devem constar das alegações e não das conclusões.
Note-se que, porventura pela prolixidade e confusão das conclusões, na resposta ao parecer do Ministério Público o recorrente vem afirmar que esse parecer não respondeu a todas as questões por si (recorrente) suscitadas no recurso, identificando-as, agora, nessa resposta, de forma percetível.
Por isso, ou seja, porque na resposta ao parecer do Ministério Público o recorrente acaba por clarificar as questões objeto do recurso e, além disso, a fim de evitar delongas processuais, iremos proceder à sintetização das “conclusões” apresentadas pelo recorrente.
Não deixa, porém, de se enfatizar, e alertar, que é aos recorrentes que incumbe cumprir o ónus processual quanto à formulação de conclusões, sob pena de virem a sofrer as consequências do incumprimento.
Como afirma Abrantes Geraldes, a propósito da prática judiciária nesta matéria (obra citada, págs. 119-120), «(…) a experiência confirma que se entranhou na prática judiciária um verdadeiro circulo judicioso: em face do número de situações em que se mostra deficientemente cumprido o ónus de formulação de conclusões, os tribunais superiores acabam por deixá-las passar em claro, preferindo, por razões de celeridade (e também para que a parte recorrente não seja prejudicada), avançar para a decisão, fazendo nesta a triagem do que verdadeiramente interessa em face das alegações e da sentença recorrida.
Agindo deste modo, os tribunais superiores colocam os valores da justiça, da celeridade e da eficácia acima de aspectos de natureza formal».
Assim, sintetizando, são as seguintes as conclusões do recorrente:
1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida a fls. 86 e segts., que julgou totalmente improcedente a presente ação e, em consequência, absolveu a ré “ BB”, ora recorrida, do pedido formulado pelo autor, ora recorrente.
2. A realização da sessão da audiência de julgamento sem que, a final, os mandatários das partes proferissem as alegações finais – orais, ou escritas como foi requerido pelo recorrente, sem que sobre o requerimento houvesse pronúncia – constitui preterição de formalidade essencial que influi no exame ou na decisão da causa e conduz à nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil.
3. O recorrente considera incorretamente julgada a matéria de facto descrita nos pontos O, P, Q, R, S, T, V e W da matéria de facto dada como provada, indicando, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 640.º, n.º1, alínea b), do Código de Processo Civil, as concretas passagens da gravação de depoimentos em que funda a sua impugnação.
4. Os depoimentos de CC e DD não têm o alcance e o valor probatório propugnado pelo Tribunal recorrido, e em relação ao da testemunha EE é inócuo e desprovido de fonte de conhecimento dos factos.
5. Tais depoimentos mostram-se contraditados pelos depoimentos das testemunhas FF, GG e HH, estes, sim, com conhecimento direto dos factos e credíveis.
6. Com base nestes últimos depoimentos, referidos nas concretas passagens referidas nas alegações, os factos provados constantes das alíneas O) P), Q), R), S), T), V) e W) devem ser dados como não provados.
7. Também com base nos mesmos depoimentos, devem ser dados como provados os factos nº 1, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8 º constantes da conclusões (correspondentes aos factos 5º a 12º do requerimento de aperfeiçoamento), bem como os factos complementares ou instrumentais alinhados sob os n.ºs 7), 8) e 9), adquiridos pela instrução da causa.
8. Perante a alteração da matéria de facto, deve concluir-se que «(…) as funções desempenhadas pelo funcionário CC são ou foram idênticas em quantidade e natureza ao desempenhado pela sua pessoa [recorrente] ao serviço da recorrida, ou seja, ambos desempenham ou desempenharam exactamente as mesmas tarefas em prol da ré, com a mesma dificuldade e responsabilidade, em condições de igual natureza, subordinados nos mesmo termos e perante o mesmo e único superior hierárquico, o gerente II (…) ».
9. Deve também concluir-se que o “valor da renda” da habitação integra a retribuição.
10. E, em face disso, deve a recorrida ser condenada a pagar ao recorrente as quantias peticionadas na ação.
Contra-alegou a recorrida, a pugnar pela improcedência do recurso.
Admitido o recurso na 1.ª instância – como de apelação, com subida imediata, nos autos, e feito devolutivo, e subidos os autos a esta Relação, neles a exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no qual concluiu pela improcedência do recurso.
Respondeu o recorrente, a manifestar a sua discordância, e a reiterar que o recurso deve ser julgado procedente, face à nulidade da sentença por falta de alegações, ou, caso assim se não entenda, face às restantes questões suscitadas.
Elaborado projeto de acórdão, colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II – Objeto do recurso
Tendo em conta que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 87.º, n.º 1, ambos do Código de Processo do Trabalho), salvo as questões de conhecimento oficioso, que aqui não se colocam, são as seguintes as questões essenciais a decidir:
1. se foi cometida uma nulidade, decorrente de às partes não ter sido dada a oportunidade de apresentarem/proferirem alegações, e se devem anular-se os atos processuais posteriores ao cometimento dessa nulidade;
2. se existe fundamento para alterar a matéria de facto;
3. se o autor/recorrente exercia funções idênticas em natureza, qualidade e quantidade às que eram exercidas pelo trabalhador com o qual se compara (CC);
4. se são devidas ao autor/recorrente as peticionadas diferenças salariais, incluindo ao “valor da renda” da habitação.
III – Factos
1. A sentença recorrida deu como provada a seguinte factualidade:
A) A Ré é uma sociedade comercial unipessoal de responsabilidade limitada, com sede na ..., que se dedica á prestação de serviços fúnebres e atividades conexas na Região do Algarve;
B) O A. foi admitido ao serviço da Ré em 01 de Abril de 2010, para sob suas ordens, direção e fiscalização, desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de “Agente Funerária de 1ª ”, atividade que exerce de forma ininterrupta até á presente data, prestando os seus serviços nas instalações da Ré e nos locais que lhe forem indicados para o efeito;
C) O A. foi contratado pela Ré para exercer as funções de “Empregado de Agência Funerária de 1ª”, mediante o pagamento de vencimento mensal ilíquido de 1098,00 € (mil e noventa e oito euros);
D) Ao vencimento mensal acima indicado, acrescem os respetivos subsídios de alimentação, de férias e de Natal, ainda que sujeitos aos respetivos impostos;
E) Atualmente, o A. recebe o vencimento base de € 1.113,00 (mil cento e treze euros);
F) O pagamento da respetiva retribuição é efetuado por meio de transferência bancária, para a conta que o autor é titular no “Novo Banco, SA”, Balcão de ..., com o nº ...;
G) Ao Autor e ao colega de serviço CC incumbia organizar e realizar cerimónias fúnebres, obter informações sobre o defunto para efeito de publicitação do ato fúnebre, auxiliar na escolha da urna, sepultura e flores, na mesma área geográfica, primacialmente na Região do Algarve, conforme os interesses e as necessidades da ré, subordinados nos mesmos termos e perante o mesmo superior hierárquico, o gerente II, cumprindo o mesmo horário de trabalho (30 horas semanais), ou seja, de segunda a sexta-feira, das 9 horas as 12 horas e das 14 horas às 19 horas;
H) CC está há menos tempo ao serviço da ré, isto é, desde 01 de Maio de 2011, encontra-se categorizado como “Agente Funerária de 2ª”;
I) CC aufere desde o inicio do respetivo contrato a remuneração base de € 1.750,00 (mil, setecentos e cinquenta euros), dai resultando um vencimento líquido de € 1.554,93 (mil, quinhentos e cinquenta e quatro euros e noventa e três cêntimos), prémios, subsídio de férias e de natal incluído e, desde 1 de Janeiro de 2022, por força do citado aumento, a remuneração mensal base de € 1.785,00 (mil, setecentos e oitenta e cinco euros), dai resultando um vencimento líquido mensal de € 1.597,27 (mil e quinhentos e noventa e sete euros e vinte e sete cêntimos), prémios, subsídios de férias e de natal incluídos;
J) Os sócios da Ré, à data do início da relação laboral, disponibilizaram uma casa ao A. para que este residisse gratuita, temporária e transitoriamente, até que este organizasse a sua vida, mas tal casa deveria ser devolvida logo que o A. tivesse a sua vida organizada e/ou quando os proprietários solicitassem a desocupação e devolução do imóvel, nunca tendo ocorrido qualquer tipo de pagamento de renda até ao ano de 2021;
K) Perante a não desocupação da referida casa, os proprietários da casa declararam resolvido o contrato de comodato mediante uma Notificação Judicial Avulsa notificada ao A. em 23-06-2021;
L) Entretanto, foi celebrado verbalmente entre as partes, um contrato de arrendamento sobre a referida casa, com início a 01-01-2022 e foi acordado entre A. e Ré que o A. passaria a pagar uma renda no montante de € 470,00 (quatrocentos e setenta euros) pela fruição e arrendamento da casa e logradouro em que reside.
M) O pagamento das rendas e emissão de recibo ocorre mensalmente, desde janeiro de 2022;
N) O pagamento das rendas é efetuado, através de acordo que as partes estabeleceram entre si, ou seja, por desconto sobre o montante do vencimento a receber;
O) CC, para além de Agente Funerário de 1ª, é, e sempre foi, o Responsável pela Loja de Faro (a Ré tem loja e estabelecimentos em Loulé e tem uma Loja em Faro);
P) O trabalhador CC é o “braço direito” do Gerente e, como tal, é o responsável e gestor da Loja de Faro e tem poder de decisão sobre todas as matérias relacionadas com gestão de equipas, gestão de funerais, gestão de loja, para além de que é a pessoa que representa a Ré perante as instituições administrativas e judiciais no âmbito de pedidos e de obtenção de documentação quando é necessário tratar de funerais em Faro e quando é contratada a Loja de Faro para tratar e realizar funerais;
Q) E, é o trabalhador que, na falta/ausência do Gerente, tem poder de decisão sobre todas as matérias relacionadas com gestão de equipas, gestão de funerais, gestão da loja e estabelecimentos em Loulé, é o trabalhador que recebe as chamadas relativas a pedidos de funeral/ocorrência de óbito no período da noite e ao fim-de-semana, iniciando os procedimentos necessários para o(s) serviço(s), independentemente de tais serviços pertencerem loja de Faro ou à loja de Loulé;
R) O trabalhador CC, a par com a Gerência tem acesso a telemóvel e número de contacto da empresa, podendo receber diretamente contactos e pedidos para tratar de funerais, tendo poder e autonomia para fazer tudo o necessário para a prestação do serviço da Ré ao(s) respetivo(s) cliente(s);
S) O A. não foi contratado para atuar/agir como responsável de qualquer Loja, nunca foi nem é responsável de qualquer Loja, nunca atuou nem atua como braço direito do gerente da Ré, nunca atuou nem atua com gestor de equipas/de funerais/nem tão pouco intervém em representação da Ré junto de instituições administrativas ou judiciais como por exemplo Conservatória do Registo Civil ou o Ministério Público;
T) O A. não tem acesso à(s) agendas dos Senhores Padres (Igreja Católica);
U) O trabalhador CC tem acesso à agenda de Senhores Padres e como tal organiza o serviço de funeral de acordo com a(s) indicações dos familiares, da agenda do Senhor Padre e de acordo com os procedimentos da Ré e legais;
V) O trabalhador CC é quem organiza tudo o necessário para o funeral, é quem obtém as informações necessárias do defunto, é quem auxilia na escolha da urna e das flores e é quem organiza junto com os Senhores Padres (ou mediante o acesso à respetiva agenda) os serviços religiosos, é quem prepara (se necessário for) os cadáveres para colocação em urna, acompanha o serviço de funeral, podendo efetuar o transporte; é quem trata de efetuar/pedir autorização para efetuar cremação, trasladação ou expatriação de cadáveres, junto das autoridades competentes, designadamente junto do Ministério Público de Faro;
W) O A. não trata de pedidos de documentação, não auxilia na escolha de urna ou de flores e não agenda funerais com os Senhores Padres ou celebrantes;
X) Nem o A. nem o trabalhador CC ou a Ré escolhem a sepultura, uma vez que tal escolha pertence à Câmara Municipal ou à Junta de Freguesia e, eventualmente, aos familiares do defunto;
Y) O A. não sabe trabalhar com computadores e sistema informático, tendo-se sempre recusado a aprender como utilizar um computador, apesar de a Ré ter disponibilizado um equipamento e formador;
Z) Ocorreu a inserção errada dos dados do trabalhador CC como “agente funerário de 2ª”.
2. A 1.ª instância deu como não provada a seguinte factualidade:
A) O A. foi admitido ao serviço da Ré em 1 de março de 2010;
B) Como contrapartida do seu trabalho, o autor auferiu inicialmente a retribuição base mensal de € 1.500 (mil e quinhentos euros), surgindo apenas no recibo de vencimento a quantia de 1.098 (mil e noventa e oito euros), o que consubstancia uma retribuição mensal liquida de 1.046,65 (mil e quarenta e seis euros e sessenta e cinco cêntimos), com o proporcional do subsídio de férias e subsidio de alimentação incluídos, em virtude da ré não fazer constar no respetivo “boletim de pagamento”, o valor da renda referente à casa por si disponibilizada desde o inicio dessa relação contratual, para o A. residir, localizada no ..., no montante de € 400 (quatrocentos euros);
C) A partir de janeiro de 2022, a retribuição base mensal recebida pelo Autor sofreu um aumento de € 15 (quinze euros), passando a ser de € 1.515,00 (mil, quinhentos e quinze euros e quinze cêntimos.
IV – Fundamentação
Delimitadas supra, sob o n.º II, as questões essenciais a decidir, é o momento de analisar e decidir, de per se, cada uma delas.
1. Da (arguida) nulidade da sentença, por falta de alegações
Sobre esta questão, sustenta o recorrente que foi preterida uma nulidade essencial, que influi no exame ou decisão da causa, já que não foi dada oportunidade às partes de proferirem alegações, orais ou escritas, pelo que deve ser anulado todo o processado posterior ao encerramento da aludida audiência de julgamento, de modo a permitir às partes que profiram alegações finais.
Vejamos.
A audiência final realizou-se no dia 17 de abril de 2024 e da respetiva ata consta que «[f]inda a produção de prova e [nada] mais havendo a requerer, a Mmª Juiz de Direito proferiu o seguinte DESPACHO: Aguarde-se a junção da documentação pela Ré aos autos, após o que deverão os mesmos ser conclusos».
No prosseguimento dos autos, é possível constatar na tramitação eletrónica (Citius) que em 30 de abril de 2024 a ré/recorrida juntou documentos aos autos, que em 2 de maio seguinte foi remetida notificação ao autor/recorrente desses documentos, em 31 de maio foi aberta conclusão nos autos e, sequencialmente, em 30 de junho foi proferida sentença.
Ou seja, dos referidos atos processuais não se retira que às partes tenha sido dada oportunidade para alegarem.
No despacho que admitiu o recurso consta, sobre esta problemática: «Desde já se consigna que se entende não se verificar a nulidade invocada».
Tendo em vista um melhor esclarecimento da situação fática inerente à existência ou não de alegações finda a produção de prova, procedemos à audição da gravação após o depoimento da última testemunha e o que nela é claramente percetível é a indicação de que não vai ser dada a palavra para alegações naquele momento e, na sobreposição de intervenções diversas o que fica subjacente é que, na sequência de despacho do tribunal, a ré juntaria a documentação solicitada e, após, intui-se, haveria alegações.
Todavia, como resulta do referido, o que se verificou foi que posteriormente à junção dos documentos pela ré o autor foi notificado dos mesmos e, de seguida, foi proferida sentença.
Ora, como resulta do disposto no artigo 72.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho, bem como do disposto no artigo 604.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), do Código de Processo Civil, finda a produção de prova há lugar a alegações.
Está em causa a imposição de um dever processual que garante às partes que, no momento próprio, se pronunciem sobre a matéria de facto e de direito que consideram relevante.
Ou seja, e dito de outro modo: está em causa o princípio do contraditório, com consagração constitucional, decorrente de um processo equitativo, o que implica a possibilidade das partes participarem na tomada de decisão em relação a questões que lhe dizem respeito, assim se garantindo o direito de defesa e de serem ouvidos.
Como acentuam Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, passim a pág. 415), o direito de ação ou o direito de agir em juízo terá de se efetivar através de um processo equitativo: este processo equitativo materializa-se, além do mais, pelo «(…) direito de defesa e o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado destas provas».
Isso mesmo se encontra consagrado, de forma explícita, no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, ao nele se estabelecer que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo do processo, o princípio do contraditório e que não lhe é lícito decidir questões de direito ou de facto sem que previamente seja dada oportunidade às partes de sobre elas se pronunciarem.
Não se observando tal procedimento, verifica-se a prolação de decisões surpresa.
Neste enquadramento, tendo sido omitida a realização de uma diligência obrigatória, ao não se ter dado às partes a oportunidade de antes da prolação da sentença proferirem alegações verificou-se a omissão de uma formalidade essencial, pelo que, conclui-se, foi cometida uma nulidade (artigo 195.º do Código de Processo Civil).
Todavia, essa omissão, seguida da prolação da sentença, conduz à nulidade da própria sentença.
Como ensinava Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil”, Volume 2.º, Coimbra Editora, 1945, pág. 507), «[a] arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente.
Eis o que a jurisprudência consagrou nos postulados: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se».
Já Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, a página 183), afirmava que para arguir a nulidade basta um simples requerimento, denominado de reclamação, «[m]as se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho) que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão [] em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se; contra as nulidades reclama-se».
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-12-2021 (proc. n.º 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1) analisou-se de forma aprofundada a questão, com referência não só a doutrina como a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.
Relacionado com esta problemática, aí se escreveu:
«A omissão da realização de uma diligência obrigatória que deveria imperativamente ter tido lugar nos autos (…), constituindo de facto uma evidente violação das leis do processo que, sendo qualificada como nulidade processual nos termos do artigo 195º do Código de Processo Civil, é logicamente comunicável à decisão de mérito subsequente.
(…)
[O] vício, intrínseco ao acto de julgamento em que são exorbitados os poderes de cognição do julgador, surpreendendo as partes com o conhecimento que não poderia ter tido lugar antes de as mesmas exercerem o seu direito ao debate sobre a matéria de fundo, de facto e de direito, não se circunscreve ao limitado e estrito âmbito da mera irregularidade procedimental, invocável nos comuns termos do artigo 195º, do Código de Processo Civil.
(…)
Por isso mesmo é que a reacção da parte contra tal violação do seu direito ao contraditório – que é disso que substantivamente se trata – tem o seu lugar próprio perante o tribunal superior e não junto do juiz a quo que lhe deu causa, sob forma de mera reclamação.
O que efectivamente provocou a nulidade em apreço foi a pronúncia sobre o mérito da causa do juiz de 1ª instância, sem respeitar o contraditório (artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil) consubstanciado no debate a realizar em audiência prévia das partes, tendo decidido em momento no qual a lei não lhe permitia proferir sentença, culminando numa verdadeira e proibida decisão surpresa, e não qualquer outra – não formalmente assumida - passível da invocação de nulidade nos termos gerais».
E concluiu-se:
«Não é pois aceitável, nem compatível com um processo equitativo, marcado pela lealdade, respeito e cooperação entre todos os intervenientes, que, depois de ostensivamente desrespeitada pelo juiz a quo, sem arremedo de justificação alguma, a tramitação que o processo deveria imperativamente seguir (…), decidindo decidir de fundo sem o poder fazer e produzindo uma verdadeira decisão surpresa que prejudicou materialmente o direito ao contraditório que a lei concedeu às partes (…).
O respeito pelo princípio do contraditório, genericamente consagrado no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, não depende de um juízo subjectivo do juiz quanto à necessidade, segundo o seu entendimento pessoal, de ouvir ou não ouvir as partes, aquilatando se elas ainda têm algo a dizer-lhe que ache relevante para o que há a decidir, mas é, bem pelo contrário, substantivamente assegurado pela imposição do dever processual, que lhe especialmente incumbe, de garantir às partes o direito (que lhes assiste) de dizer aquilo que, no momento processualmente adequado (definido previamente pela lei), ainda entenderem ser, do seu ponto de vista, relevante».
Sufraga-se este entendimento.
Assim, no caso em apreço, tendo a 1.ª instância proferido sentença sem previamente dar às partes a oportunidade de alegarem, tal sentença é, em si mesma, nula, por inobservância do princípio do contraditório, pelo que se impõe declarar a nulidade da sentença, já que se pronunciou sobre a matéria controvertida no momento em que dela (ainda) não podia tomar conhecimento (cfr. artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte do Código de Processo Civil).
Face à declaração de nulidade da sentença, terá a ação que prosseguir na 1.ª instância para que às partes seja facultado o exercício do contraditório, através das alegações, seguindo-se os ulteriores termos do processo, nomeadamente com prolação de sentença.
Face à conclusão alcançada, quedam prejudicadas as restantes questões supra equacionadas (artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
V – Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e, em consequência, declarando-se a nulidade da sentença recorrida, determina-se que a ação prossiga para que às partes seja facultado o exercício do contraditório, através de alegações, seguindo-se os ulteriores termos do processo, nomeadamente com prolação de (nova) sentença.
Custas do recurso pela recorrida, por ter ficado vencida (artigo 527.º do Código de Processo Civil).
Évora, 13 de fevereiro de 2025
João Luís Nunes (relator)
Mário Branco Coelho
Paula do Paço
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1. Relator: João Nunes; Adjuntos: (1) Mário Branco Coelho, (2) Paula do Paço.↩︎