AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE PERFILHAÇÃO
AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
FILIAÇÃO CONSTANTE DO REGISTO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
PERFILHAÇÃO E REGISTO EM PAÍS ESTRANGEIRO
DEMANDANTE E DEMANDADO DE NACIONALIDADE ESTRANGEIRA
RESIDÊNCIA DO DEMANDANTE EM PORTUGAL
RESIDÊNCIA DO DEMANDADO NO ESTRANGEIRO
Sumário

I - Intentada, simultaneamente, pelo filho/registado, nos mesmos autos, ação de impugnação da perfilhação e de investigação da paternidade, quando se mantinha o registo da filiação decorrente da perfilhação (o perfilhante como pai no assento de nascimento), a norma do art.º 1848.º, n.º 1, do CCiv. veda a ação de investigação de paternidade, por o reconhecimento de paternidade, que se pretende através de sentença na ação investigatória, ser contrário à filiação constante do registo de nascimento, o qual não foi ainda retificado, invalidado ou cancelado.
II - Assim, para o efeito de determinação da competência internacional dos tribunais portugueses, não releva aquela ação de investigação de paternidade, que não é admitida legalmente, mas apenas a causa de pedir e o pedido da prioritária ação de impugnação da perfilhação.
III - Se a perfilhação e o registo ocorreram em país estrangeiro, de que são cidadãos nacionais o demandante e o demandado na ação de impugnação da perfilhação, residindo o autor em Portugal e o réu em Moçambique, sendo a mãe do autor também de nacionalidade estrangeira e tendo os factos tendentes a demonstrar a desconformidade com a verdade biológica ocorrido no estrangeiro, a circunstância de o autor residir em Portugal não permite, só por si, conferir aos tribunais portugueses competência internacional para tal ação impugnatória.
IV - Doutro modo, sempre os tribunais portugueses seriam competentes para qualquer ação de impugnação da perfilhação intentada por um residente em Portugal, ainda que tudo o mais fosse estranho à ordem jurídica portuguesa e a Portugal e o demandado residisse no estrangeiro.
V - Uma tal situação conferiria ao autor (apenas em atenção à sua residência) o benefício – injustificado – de poder demandar o réu nos tribunais portugueses, apesar de o demandado, vivendo no estrangeiro, nenhuma ligação ter a Portugal, mas ficando obrigado a exercer a sua defesa no foro do autor, e não no tribunal do seu próprio domicílio (ou do seu país), desvantagem significativa para que não se encontra respaldo.
VI - A interpretação normativa no sentido da incompetência internacional não viola, atentas as circunstâncias do caso, preceitos ou princípios de ordem constitucional.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

*

2.ª Secção – Cível


***
Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra

I - Por decisão proferida pelo relator ao abrigo do disposto no art.º 656.º do NCPCiv., foi decidido julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida, nos seguintes termos:

“I – Relatório

AA, com residência em ... e os demais sinais dos autos,

intentou ação declarativa comum (intitulada “ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE PERFILHAÇÃO E INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE”) contra

1.º - BB, residente em ... e com os demais sinais dos autos, e

2.º - CC, com domicílio profissional no ..., ..., Rua ..., ..., Moçambique,

pedindo, na procedência da ação, no sentido de:

«a) Declarar-se que o Autor não é filho do segundo Réu CC;

b) Anular-se a perfilhação do segundo Réu ao Autor, e que consta do seu assento de nascimento de São Tomé, devendo disso ser dado conhecimento aos registos daquele país para que procedam à sua anulação;

c) Reconhecer-se a paternidade jurídica do Primeiro Réu BB, relativamente ao Autor seu filho, AA, estabelecendo-se por decisão judicial, a filiação que ainda não foi estabelecida por perfilhação voluntário do mesmo e, por via disso,

d) Declarar-se que o Autor é filho do Primeiro Réu, ordenando-se que tal paternidade conste e fique averbada no assento do respectivo nascimento;

e) Condenar-se o Primeiro Réu a reconhecê-lo, e ainda, a pagar as custas e demais encargos devidos.».

Para tanto, alegou, em síntese:

- ter o A. nascido no dia ../../1970, na freguesia ..., concelho de São Tomé, em São Tomé e Príncipe, constando do seu assento de nascimento como sendo filho de DD (já falecida) e CC, aqui 2.º R.;

- este último disse ao A. que não é o seu pai e que apenas o tinha perfilhado aquando do seu nascimento e a pedido da sua mãe;

- o A., por vários elementos que recolheu, chegou à conclusão que o seu pai biológico é o 1.º R., ao qual se dirigiu, em Portugal, dizendo-lhe que “pretendia que essa paternidade fosse reconhecida e averbada no seu assento de nascimento de forma a conseguir adquirir nacionalidade portuguesa”;

- por falta de cooperação do 1.º R., o A. teve de recorrer aos meios legais “para ver reconhecido o seu direito pessoal da paternidade”, já que o demandante nasceu como fruto de relações sexuais mantidas entre a sua mãe e aquele 1.º R., com a consequência de a paternidade registral não corresponder à paternidade biológica.

Juntou documento comprovativo do seu assento de nascimento, do qual resulta constar como seu pai o 2.º R. e ter a sua mãe, DD, o estado civil de solteira.

O 1.º R. contestou, concluindo que:

«I. Deve ser julgada procedente a:

A) Exceção da Incompetência Internacional dos Tribunais Portugueses, com a consequente, absolvição do Réu da instância;

Sem prescindir,

B) Exceção perentória da Caducidade, com a consequente absolvição do Réu do pedido deduzido pelo Autor;

Quando assim se não entenda,

II. Deve a presente ação ser julgada não provada e improcedente, absolvendo-se o réu do pedido.».

O 2.º R., citado em Moçambique, não contestou.

O A., no exercício do contraditório, pugnou pela improcedência de toda a matéria de exceção deduzida, designadamente a exceção da incompetência internacional.

Em audiência prévia – uma vez tramitada a fase dos articulados e no ensejo do saneamento dos autos –, conheceu-se da matéria da “Da competência internacional”, âmbito em que foi proferida decisão com o seguinte teor dispositivo:

«(…) julgo este Juízo de Família e Menores internacionalmente incompetente e, consequentemente e ao abrigo do disposto nos artigos 96.º, al. a), e 99.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, absolvo os RR da instância.».

Inconformado, recorre o A., apresentando alegação, onde formula as seguintes

Conclusões ([1]):

«1. A Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, salvo devido respeito, não decidiu bem no processo em epígrafe, ao proferir o despacho saneador sentença julgando procedente a exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da presente ação de impugnação de perfilhação e investigação de paternidade.

2. Importa dizer que os presentes autos tiveram início com a interposição de ação de impugnação de perfilhação e investigação de paternidade.

3. Foram os Réus devidamente citados, tendo apenas o Réu BB, pretenso pai do Autor, apresentado contestação impugnando os factos e alegando a ilegitimidade dos tribunais portugueses para conhecerem da presente Demanda.

4. Após a apresentação dos articulados, e deferimento pelo Tribunal a quo, da realização de perícia médico-legal, para recolha ao Autor e ao Réu BB de amostras de ADN, para prova do alegado pelo Autor, com data já marcada para a devida recolha, foi agendada audiência prévia, onde a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, proferiu o despacho recorrido, no sentido de julgar procedente a exceção da incompetência internacional.

5. Ora, a competência internacional dos tribunais portugueses para os termos da presente acção depende, pois, como emana do art. 62º do CPC.

6. A análise deste preceito, como tem sido escrito em vários acórdãos, inculca que o propósito do legislador foi o de alargar o mais possível o âmbito da competência internacional aos tribunais portugueses.

7. Basta que um dos elementos da causa de pedir tenha conexão com o território português, para que se atribua competência internacional aos tribunais portugueses.

8. O que significa que cada um dos factores atributivos de competência tem valor autónomo, pelo que basta a verificação de um deles para que os tribunais portugueses sejam competentes.

9. Ora, existem três critérios para a definição da competência internacional dos tribunais portugueses. O primeiro critério previsto na alínea a) do referido art. 62.º, assenta no princípio da coincidência, isto é, a competência internacional dos tribunais portugueses resulta da circunstância de a ação dever ser proposta em Portugal, segundo as regras da competência interna territorial estabelecidas pela lei portuguesa e que constam dos arts. 70.º e ss do CPC.

10. Logo por aqui, pode dizer-se que, por força da coincidência entre a competência territorial e a competência internacional, os tribunais portugueses podem julgar quaisquer ações que devam ser propostas em Portugal, segundo a aplicação das regras daquela competência interna.

11. O segundo critério, o da alínea b) do mesmo art. 62.º do CPC, integra o princípio da causalidade, o que significa que os tribunais portugueses têm competência internacional sempre que o facto que serve de causa de pedir na ação tenha sido praticado em território nacional ou, tratando-se de uma causa de pedir complexa, algum dos factos tenha ocorrido em Portugal.

12. O terceiro critério o da alínea c) do mesmo artigo, que radica no princípio da necessidade, traduz-se em os tribunais portugueses terem competência internacional quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de uma ação proposta em tribunal português ou quando a sua propositura no estrangeiro constitua apreciável dificuldade para o autor, embora sempre se exija que entre a ação a propor e o território português exista um qualquer elemento ponderoso de conexão pessoal ou real.

13. Logo, nessa sequência, é claro e evidente que no caso concreto, se pode aplicar o previsto em qualquer alínea do art. 62.º do CPC.

14. Desde logo, no que concerne à al. a), e conforme consta dos autos, o Autor e o primeiro Réu (pretenso pai) têm residência em Portugal, apenas o segundo Réu, não reside em Portugal.

15. Assim, a competência territorial vem prevista nos arts. 70.º e seguintes do CPC, onde se estabelecem várias regras especiais e uma regra geral. Não estando a hipótese dos autos abrangida por nenhuma regra especial, o regime que se lhe aplica é o estabelecido no art. 80.º do CPC, cujo n.º 1 prevê que “Em todos os casos não previstos nos artigos anteriores ou em disposições especiais é competente para a acção o tribunal do domicílio do réu”.

16. Por força do princípio da coincidência, é este Tribunal competente para conhecer da presente demanda.

17. Havendo pluralidade de réus, deve aplicar-se a regra prevista no art. 82.º do CPC, pelo que, pode o Autor escolher o tribunal no qual instaura a ação.

18. Portanto, há clara competência do Tribunal português para dirimir a presente demanda. Ademais, ainda que assim não fosse, a verdade é que o Autor só descobriu que o segundo Réu CC não era o seu pai biológico, e que o mesmo seria o primeiro Réu BB, depois de já estar a residir em Portugal e há vários, onde de facto tem a sua morada fixa e onde trabalha.

19. Pelo que, também por esta razão temos um dos factos ocorridos em Portugal que justificam a apresentação da ação em Portugal, como refere a alínea b) do art. 62.º do CPC.

20. E note-se que a lei apenas exige que se verifique uma das situações elencadas nesse preceito.

21. Sem prescindir de que o Autor nem sequer tinha condições de instaurar a ação em ..., porquanto os parcos rendimentos que tem, são para sustento da sua família e nunca seriam suficientes para ter de ir com regularidade a outro país. Mais, nem sequer iria conseguir que o Réu BB ali fosse para discutir a presente demanda, muito menos eventualmente realizar exames. Aliás, a realidade é que a ação a ser proposta em ... não iria ter quaisquer efeitos, porquanto, o primeiro Réu não iria comparecer, e o Autor não iria conseguir obter a sua demanda, muito menos em tempo útil, e muito mesmo conseguiria o Autor assegurar a defesa do sue direito e/ou comparecer em audiências e fazer valer os seus direitos, o direito de personalidade e da verdade biológica neste país. Infelizmente, bem sabemos das dificuldades dos cidadãos para ali fazerem valer os seus direitos e garantias fundamentais, quanto mais para garantir estes direitos que embora fundamentais (naquele país estão bem longe de ser aqueles que os cidadãos mais necessitam defender) são vistos como secundários.

22. Acresce ainda que se verifica um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real, previsto na alínea c) do art. 62.º do CPC, pois o conhecimento da sua paternidade biológica adveio ao Autor em Portugal, quando o mesmo já residia e trabalhava em Portugal; o Autor tem residência em Portugal, tal como o primeiro Réu, logo verificam-se os referidos elementos de conexão.

23. Atento o exposto, verifica-se que os Tribunais portugueses são competentes para conhecer da presente ação, nomeadamente da impugnação da perfilhação e investigação da paternidade, porquanto verifica-se mais que uma das situações previstas no art. 62.º do CPC, sendo que apenas é exigível a verificação de uma das situações.

24. Mias, no caso concreto ter-se-á que ter igualmente em conta o disposto no art. 56.º do Código Civil que refere no seu n.º 1 que: “À constituição da filiação é aplicável a lei pessoal do progenitor à data do estabelecimento da relação.” (…).

25. Conforme é alegado na PI o Autor entende e demonstra factos de que o seu progenitor, é de facto o Réu BB, Réu este residente em Portugal, e ainda de nacionalidade exclusivamente portuguesa, nunca tendo tido outra.

26. Pelo que, ainda que não se tivesse em conta o supra exposto quanto às regras do art. 62.º do CPC, que como se disse apenas exige que se verifique uma das situações nele explanadas para os tribunais portugueses serem competentes para conhecer da ação, sempre teria o Tribunal a quo de ter tido em consideração a norma jurídica do art. 56.º do CC, o que não se verificou nos presentes autos.

27. O Réu BB é nacional português e reside em Portugal, não sendo conhecida outra morada para além da indicada nos autos, nem ter sido qualquer outra nacionalidade.

28. O pedido da investigação da paternidade é direcionado apenas e só para o primeiro Réu BB, do qual o Autor alega ser seu pai biológico. Nos termos da alínea a) do art. 63.º do CPC, e por força do princípio da coincidência é o tribunal português competente para conhecer da ação de investigação da paternidade.

29. Veja-se nesse sentido o Ac. do TRP de 11-07-2018 no âmbito do processo n.º 624/12.3TVPRT.P1, supra transcrito.

30. De facto, o primeiro réu BB, contra o qual é peticionada a investigação de paternidade, tem domicílio em território português, logo é este tribunal competente para conhecer da presente ação.

31. Excelências, conforme se pode verificar, existe não só uma, mas, várias situações, que preenchem os requisitos do art. 62.º do CPC, em que se enquadram os presentes autos, mais não nos podemos esquecer da norma do art. 56.º do CC, sobre a lei pessoal do progenitor.

32. Mais, a declaração da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer de ação de investigação de paternidade, de pretenso pai português e residente em Portugal, com filho residente também em Portugal, viola os princípios constitucionais básicos, o direito à identidade pessoal e ao conhecimento da ascendência biológica, previstos no art. 26.º da Constituição da República Portuguesa.

33. O conhecimento da ascendência é um direito fundamental de todo o ser humano, pois, todo o homem tem o direito de conhecer e investigar a verdade biológica da sua filiação, de modo a que assim se protejam os direitos fundamentais previstos na nossa Constituição, como o direito à identidade pessoal, o direito à integridade pessoal e o direito ao desenvolvimento da personalidade, direitos aos quais acresce o direito de constituir família, previsto no art. 36.º da CRP.

34. A Constituição proíbe a discriminação dos filhos nascidos fora do casamento – art. 36.º n.º 4 da CRP -, não admitindo assim que sejam desfavorecidos ao verem limitadas as possibilidades de estabelecimento da sua filiação mediante prova do vínculo biológico.

35. Ora, ao julgar-se a incompetência dos tribunais portugueses, apenas e só porque a conceção não ocorreu em Portugal, traduz-se numa restrição desproporcionada do direito à obtenção de identidade pessoal, ao direito à integridade moral e ao direito a constituir família, sendo por isso claramente inconstitucional a interpretação da aplicação da norma do artigo 62º do CPC nesse sentido.

36. Estando em causa um direito fundamental, relativamente à identidade pessoal, qualquer limitação que seja imposta para a sua descoberta e necessidade de petição da paternidade, deverá considerar-se inconstitucional, por violação direta de um princípio consagrado na nossa Constituição, não se devendo proibir ou prejudicar o direito a esse conhecimento, pois, ninguém deve ficar privado do direito à sua identidade pessoal e historicidade, por violação clara do previsto nos arts. 18.º, 26.º e 36.º da CRP.

37. É verdade que o princípio da segurança jurídica não está autonomamente previsto na Constituição, contudo, havendo um conflito entre o direito ao conhecimento da ascendência e verdade biológica e o direito à "tranquilidade" do suposto pai, sempre terá de prevalecer o primeiro, pois insere-se num direito de personalidade, e por isso socialmente mais relevante e importante.

38. A segurança jurídica do investigado e da sua família não tem peso suficiente para prevalecer sobre os direitos fundamentais pessoalíssimos do investigante. Pelo que, também este fundamento não poderá valer. A segurança do investigado não deve ser acautelada à custa do sacrifício de um bem pessoalíssimo da parte contrária.

39. Aliás tal tem sido o entendimento da nossa jurisprudência, veja-se o citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 488/2018 cujo sumário está acima transcrito.

40. O direito consagrado no art. 26.º n.º 1 da CRP, sendo um direito de identidade pessoal, consagra em si um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da maternidade e da paternidade.

41. Assim, entende o Recorrente, que não se verifica a exceção da incompetência internacional, e consequentemente que os Tribunais portugueses são competentes para apreciar a questão em apreço, uma vez que estão preenchidos, no caso concreto, todas as estatuições legais da norma do art. 62.º do CPC, e ainda que assim não fosse, sempre estaremos colocados perante uma situação que se enquadra na norma do art. 56.º do CC., que, forçosamente, obriga a que se reconheça que existe competência internacional do tribunal português.

42. Sem prescindir que sempre se deverá considerar inconstitucional a interpretação das estatuições da norma do art. 62.º do CPC, sempre que sejam alvo de interpretação no sentido de limitar direitos fundamentais, previstos na CRP, como os direitos à identidade pessoal e ao conhecimento da ascendência biológica, previstos no art. 26.º da Constituição da República Portuguesa.

43. Pelo que está o recorrente convencido, como espera que seja o vosso entendimento, que a decisão proferida pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo em que julgou procedente a exceção da incompetência internacional, está errada, devendo ser revogada por outra que julgue improcedente a referida exceção e consequentemente determine o prosseguimento dos autos com a prova pericial já agendada.

44. Espera assim o recorrente que Vªs Exªs julguem procedente a apelação e seja revogado o despacho recorrido, determinando-se, em consequência improcedente a exceção da incompetência internacional, e nesse sentido se remeta o processo para o prosseguimento dos autos.

45. Sem prescindir de que se deve declarar que a interpretação da norma do art. 62.º do CPC, sempre que seja no sentido de violar direitos fundamentais dos cidadãos, deve ser rejeitada por ser claramente inconstitucional.

46. E, por todos os fundamentos supra elencados, temos que a decisão proferida pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, não convenceu a recorrente, sendo uma decisão errada por violação entre outros do disposto nos arts. 62.º e seguintes do CPC, 56.º do Código Civil, arts. 18.º, 26.º e 26.º da CRP, sendo assim uma decisão errada e desconforme à jurisprudência dominante nos nossos Tribunais, esperando ter a douta retificação de Vªs Exªs nos termos supra sugeridos.

NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito e de Justiça e com o sempre Mui Douto Suprimento de Vªs Exªs, deverá conceder-se integral provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido, e substituindo-o por outro que julgue improcedente a exceção da incompetência internacional dos tribunais portugueses e consequentemente determine o prosseguimento dos autos.

Assim se fazendo a habitual e necessária JUSTIÇA!».

Contra-alegou o A., concluindo pela improcedência do recurso.

Tal recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo, pelo que o processo foi remetido a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime recursivo.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre, então, apreciar e decidir.

II – Âmbito recursivo

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado nos articulados das partes, está em causa na presente apelação saber, apenas, se cabe ao Tribunal recorrido a competência internacional para a tramitação e decisão da ação – na dupla vertente de interposta “ação de impugnação de perfilhação e investigação de paternidade” –, implicando a revogação da decisão de absolvição da instância.

III – Fundamentação

A) Matéria de facto

Ante os elementos documentais dos autos, os pressupostos fácticos, a considerar, são os que já antes se deixaram explicitados (cfr. relatório supra), aqui dados por reproduzidos, sendo o seguinte o teor da fundamentação da decisão recorrida:

«(…)

De acordo com o artº 59º do CPC, sem prejuízo do estabelecido em regulamentos da União Europeia ou em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artºs 62º e 63º do CPC.

Os factores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses encontram-se, assim, referidos nos artigos 62.º e 63.º do CPC, sem embargo do estabelecido nas normas de direito internacional, bem como nas convenções internacionais ratificadas pelo Estado Português – cf. artigo 8.º da CRP.

Nos termos destes artigos, a competência legal internacional depende da verificação de alguma das seguintes circunstâncias:

a) poder a ação ser proposta em Portugal, segundo as regras da competência territorial estabelecidas nas leis portuguesas;

b) ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;

c) não poder o direito invocado tornar-se objeto efetivo senão por meio de ação proposta em território português, ou não puder ser exigível ao autor a sua propositura no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica nacional haja algum elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.

Ora, de acordo com o alegado pelo próprio Autor, temos de ter em consideração o seguinte:

- O A. nasceu, em ../../1970, na freguesia ..., concelho de São Tomé, em São Tomé, constando do seu assento de nascimento, como sendo filho de DD e de CC, o 2º Réu;

- Este assento de nascimento foi lavrado com base em declarações diretas dos pais do registando depois de lido em voz alta perante todos e confirmado vai assinado pelo pai CC e testemunhas EE, FF e GG. Tanto a mãe como o pai, no estado de solteiros, ela natural de Guadalupe, residente em ..., e ele natural de Trindade, residente em ..., em São Tomé.

- O Réu CC, reside em Moçambique.

- Em 17 de agosto de 1970, mediante declaração voluntária e testemunhada, o 2º R. CC perfilhou o A., em São Tomé e Príncipe, perante oficial público, segundo ajudante da Conservatória de Registo Civil Conservador de São Tomé, de acordo com o Direito daquele País.

- O A., a sua falecida mãe, e o seu pai, 2º R., são cidadãos são-tomenses.

- Do que vem alegado na petição inicial a concepção do Autor resultou de relações de cópula entre a mãe do autor e o primeiro R, ocorridas em São Tomé, tendo aquele nascido naquele país.

Um dos elementos de conexão ou critérios determinativos da competência internacional dos tribunais portugueses é o critério da coincidência – art. 62º, al a), do CPC.

Importa também sublinhar que o princípio da coincidência da competência internacional com a competência territorial, segundo o qual os factos que, na órbita da competência interna, determinam a competência territorial do tribunal português, determinam, também, na esfera internacional, a competência da jurisdição portuguesa, em confronto com as jurisdições estrangeiras, estabelecido pela al. a) do art. 62.º, deve ser entendido como pressupondo a remissão para os arts. 70.º a 84.º, todos do CPC, de acordo com o princípio da dupla funcionalidade.

Quando de acordo com as regras da competência territorial previstas na ordem interna, a ação deva ser instaurada em Portugal, os tribunais portugueses terão competência internacional para julgar essa ação, mesmo que existam elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras. (…) Se o elemento de conexão utilizado na norma de competência territorial apontar para um lugar situado no território português os tribunais portugueses competentes são internacionalmente competentes - Luís Lima Pinheiro, DIP, vol. III, t. I, AAFDL Ed., 2019, p. 337.

Ora, face aos elementos juntos e alegados não é o caso, não sendo aplicável este critério.

De seguida temos o critério da causalidade previsto no artº 62º al. b) do CPC, de acordo com o qual a acção pode ser instaurada nos tribunais portugueses quando o facto que integra a causa de pedir foi praticado em território português e, se a causa de pedir for complexa, basta que tenha ocorrido em Portugal qualquer dos factos que a integram (Cf. entre outros, Teixeira de Sousa, anotação ao artº 62º do CPC, blog do IPPC, pág. 69, nota 3).

Quanto às acções relacionadas com o estabelecimento ou a cessação do vínculo de filiação, integra a causa de pedir a concepção biológica. Assim, por exemplo, numa acção de investigação de paternidade contra um domiciliado no estrangeiro, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes se é invocado que a concepção ocorreu em Portugal (Cf. Teixeira de Sousa, CPC anotado, Blog do IPPC, anotação ao artº 62º, nota 3).

Quanto à perfilhação, pode ser atacada em juízo, mediante acção de impugnação, com fundamento em não corresponder à verdade biológica. A procedência da acção de impugnação de perfilhação depende apenas da prova de que a declaração feita pelo perfilhante não corresponde à verdade biológica; ou seja, basta demonstrar a falta de conformidade entre a paternidade declarada e a paternidade biológica.

Para que funcione o critério da causalidade, não se exige “…que todo o conjunto de factos integrativos da causa de pedir surjam e se desenvolvam em Portugal. A ocorrência de algum ou alguns é quanto basta para atribuir competência internacional aos tribunais portugueses.

Ora, no caso em apreço, do que vem alegado na petição inicial a concepção do Autor resultou de relações de cópula entre a mãe do autor e o primeiro R, ocorridas em São Tomé, tendo aquele nascido naquele país.

Isso significa que analisada a petição inicial dela não resulta a alegação de que qualquer facto, relativo à procriação, integrador da causa de pedir – a paternidade por perfilhação não corresponder à paternidade biológica – tenha ocorrido em Portugal.

Dos elementos juntos aos auto resulta que o A nasceu em São Tomé e foi aí perfilhado pelo segundo Réu.

A lei que regula a matéria da perfilhação, no caso concreto é a lei de São Tomé. Foi aí que ocorreram os factos principais que servem de causa de pedir à acção.

Face ao exposto, temos de concluir que os tribunais portugueses são incompetentes internacionalmente para a presente ação.».

B) O Direito

Da (in)competência internacional para a ação

O Apelante defende a revogação da decisão de absolvição da instância, por considerar não se verificar a incompetência, em razão da nacionalidade, do Tribunal recorrido, ao contrário do entendimento adotado por este nos autos.

Considera, assim, o Apelante, contra o expendido pela 1.ª instância, que é de aplicar ao caso o sistema jurídico português, incluindo as normas reguladoras da competência dos tribunais. Por isso, convoca, reiteradamente, os art.ºs “62.º e seguintes do CPC, 56.º do Código Civil, arts. 18.º, 26.º e 26.º da CRP”, que considera violados.

Mesmo em matéria de direito – na sua petição e/ou no seu recurso –, sempre alude às normas e aos princípios da ordem jurídica portuguesa (sejam de natureza constitucional, civil ou processual civil).

É a essa luz normativa que pugna, no caso, pela competência internacional dos tribunais portugueses, mais precisamente o Tribunal recorrido, bem sabendo que apresenta pretensões correspondentes a duas ações diversas (embora apenas intente uma ação judicial, em que concentra as duas pretensões).

Com efeito, como o A. refere – corretamente – na sua conclusão 2.ª do recurso, os «autos tiveram início com a interposição de ação de impugnação de perfilhação e investigação de paternidade» (no fundo, duas ações cíveis em uma), sabido que na ação de impugnação de perfilhação é visado o R. perfilhante, ou seja, o 2.º R., de nacionalidade estrangeira (nacional de São Tomé e Príncipe e residente em Moçambique) e sem qualquer ligação com Portugal.

Enquanto o 1.º R. apenas é visado na outra ação, a sucedânea ação de investigação de paternidade.

Na verdade, existe registo da paternidade do A., figurando como pai o 2.º R.. Por isso, o A. começa por atacar a perfilhação, impugnando-a, já que a considera não correspondente à verdade biológica (considera ser seu pai biológico o 1.º R., contra ele deduzindo a ação de investigação).

Ora, os dois primeiros pedidos do A., tal como constantes do petitório da ação, repostam-se exclusivamente àquela ação de impugnação de perfilhação, com vista a afastar a paternidade registada: «a) Declarar-se que o Autor não é filho do segundo Réu CC; // b) Anular-se a perfilhação do segundo Réu ao Autor, e que consta do seu assento de nascimento de São Tomé, devendo disso ser dado conhecimento aos registos daquele país para que procedam à sua anulação».

Já os restantes pedidos são caraterísticos da sucedânea ação de investigação de paternidade: «c) Reconhecer-se a paternidade jurídica do Primeiro Réu BB, relativamente ao Autor seu filho, (…) estabelecendo-se por decisão judicial, a filiação que ainda não foi estabelecida por perfilhação voluntário do mesmo e, por via disso, // d) Declarar-se que o Autor é filho do Primeiro Réu, ordenando-se que tal paternidade conste e fique averbada no assento do respectivo nascimento; // e) Condenar-se o Primeiro Réu a reconhecê-lo (…)».

Quanto àquela primeira ação (a de impugnação da perfilhação), dispõe o art.º 1859.º, n.º 1, do CCiv. que a perfilhação que não corresponda à verdade é impugnável em juízo mesmo depois da morte do perfilhado.

Como esclarecido pela doutrina, “(…) a perfilhação é só um meio de estabelecer a paternidade e a impugnação dirige-se, precisamente, contra o resultado obtido, que se supõe falso. O que se impugna é a paternidade estabelecida por via da perfilhação, do mesmo modo que se impugna a maternidade estabelecida por declaração (art. 1807.º), ou a paternidade do marido fixada através da presunção pater is est… (arts. 1838.º e segs.). O acto que o perfilhante praticou, esse, torna-se inútil, incapaz de preencher o fim para que existe – o reconhecimento da paternidade biológica – e caduca. Neste sentido, enquanto a anulação visa destruir o próprio acto de perfilhação, a impugnação dirige-se contra o resultado desse acto – contra a paternidade.” ([2]).

Por isso se compreende que, quanto à prossecução e tramitação da ação de impugnação da perfilhação, sejam de «aplicar por analogia as regras estabelecidas para a impugnação da paternidade do marido, já que se trata da mesma questão fundamental: afastar uma paternidade que não corresponde à verdade biológica, como quer que ela tenha sido adquirida pelo registo civil.» ([3]).

Já, diversamente, na ação de investigação de paternidade – e quanto ao objeto do processo – o «(…) pedido que o autor faz ao tribunal é que declare a paternidade jurídica do réu, relativamente ao filho, estabelecendo por decisão judicial a filiação que não foi estabelecida por perfilhação», sendo a «causa de pedir (…) o vínculo biológico de progenitura que, pretensamente, liga o réu ao filho.» ([4]).

Parece ser compreensível, assim, a inviabilidade de uma pretensão de estabelecimento da filiação através de decisão judicial, no seio de ação de investigação de paternidade, sem que se mostre afastada – previamente – a paternidade estabelecida por via de perfilhação e, como tal, registada.

É que dispõe o art.º 1847.º do CCiv., quanto às formas de reconhecimento de paternidade, que o reconhecimento do filho nascido ou concebido fora do matrimónio efetua-se por perfilhação ou decisão judicial em ação de investigação.

Sendo estas as duas formas de reconhecimento, não é, porém, admitido o reconhecimento em contrário da filiação que conste do registo de nascimento enquanto este não for retificado, declarado nulo ou cancelado (cfr. art.º 1848.º, n.º 1, do CCiv.).

Ou seja, havendo paternidade registada, não pode haver reconhecimento conflituante, no caso por via de investigação de paternidade (através de sentença), enquanto o registo originário (o que consta do assento de nascimento) não for modificado (por retificação, declaração de nulidade ou cancelamento).

Assim, só pode obter viabilidade a ação de investigação de paternidade, se em contrário à filiação constante do registo de nascimento (do filho), depois de ter sido retificado, declarado nulo ou cancelado esse registo.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, estamos perante «(…) um simples corolário do princípio geral da prioridade dos actos primeiro levados a registo, desde que sujeitos a inscrição no registo civil, aproveitando por conseguinte tanto ao assento de nascimento» de filho nascido no casamento, «como ao registo de nascimento do filho nascido ou concebido fora do matrimónio, mas perfilhado perante o funcionário do registo civil (…)» ([5]).

E acrescentam os mesmos Autores: “Trata-se, de algum modo, de uma simples concretização do princípio hoje proclamado no artigo 4.º do Código de Registo Civil, segundo o qual «a prova resultante do registo civil quanto aos factos que a ele estão obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil correspondente não pode ser ilidida por qualquer outra, a não ser nas acções de estado e nas acções de registo»” ([6]). Ou seja, para que se admita no registo um reconhecimento contrário à filiação constante de assento já lavrado, exige-se que tal assento seja previamente retificado, declarado nulo ou cancelado (vide ps. 229 a 231 e 278 dos mesmos Autores e obra, esclarecendo que, se a perfilhação for anterior à proposição da ação de investigação, é obviamente a doutrina do n.º 1 do artigo 1848.º que deve aplicar-se).

Doutrina esta que implica a conclusão, para o caso dos autos – em que temos uma perfilhação (subsistente) anterior à ação de investigação de paternidade –, no sentido de, em aplicação do disposto no art.º 1848.º, n.º 1, do CCiv., não ser admitido o reconhecimento por decisão judicial em ação de investigação.

O registo da paternidade do perfilhante (2.º R.), de acordo com o que consta a respeito no registo de nascimento do A., não permite o reconhecimento de filiação em contrário, mediante sentença em ação de investigação, por conflituante, enquanto não for objeto de retificação, invalidação ou cancelamento.

Em suma, in casu a ação de impugnação da perfilhação é prioritária perante a ação de investigação de paternidade, não podendo esta ser admitida sem que ocorra (previamente) retificação, invalidação ou cancelamento do registo vigente (aquele que publicita a paternidade do aqui 2.º R.).

Do que resulta que, para o efeito da determinação da competência internacional – a questão de que se cuida –, o que importa é a causa de pedir e o pedido da ação (tal como configurados pelo A.) quanto, apenas, à pretensão de impugnação da perfilhação (deixando de lado a sucedânea investigação de paternidade).

Aqui chegados, cabe notar, salvo o devido respeito, que não se verifica, no caso – quanto à esfera da impugnação da perfilhação (a única que aqui importa) –, nenhum dos requisitos/fatores de atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses, à luz do disposto no invocado art.º 62.º, al.ªs a) a c), do NCPCiv. ([7]).

É que, como dito na decisão recorrida:

- o A. é cidadão nacional da República de São Tomé, tal como a sua falecida mãe o era;

- consta do assento de nascimento do A., lavrado naquele País, ser filho de DD e de CC, o aqui 2.º R.;

- tal assento de nascimento foi lavrado com base em declarações diretas dos pais do registando e, depois de lido em voz alta perante todos e confirmado, foi assinado pelo pai CC e testemunhas EE, FF e GG;

- tanto a mãe como o pai no estado de solteiros, ela natural de Guadalupe, residente em ..., e ele natural de Trindade, residente em ..., em São Tomé;

- o 2.º R., também cidadão são-tomense, reside atualmente em Moçambique;

- em 17/08/1970, mediante declaração voluntária e testemunhada, o 2.º R. perfilhou o A., perante oficial público, na Conservatória de Registo Civil de São Tomé, de acordo com o Direito daquele País;

- perante o alegado na petição inicial, a conceção do A. resultou de relações de cópula ocorridas em São Tomé, tendo aquele nascido nesse País.

Ou seja, vistos o pedido e a causa de pedir da ação de impugnação da perfilhação, nenhuma conexão existe com o território português, sendo irrelevante, neste âmbito, que o A. resida em Portugal, posto o demandado (aqui 2.º R.) residir no estrangeiro (cfr. art.º 80.º, n.º 1, do NCPCiv.).

Como referem, a respeito do denominado critério da coincidência [o da al.ª a) daquele art.º 62.º], José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre ([8]), «(…) o legislador considerou estar-se perante uma situação de competência internacional logo que determinada situação jurídica apresenta elementos de estraneidade», sendo que «uma coisa é a determinação (prévia) da competência dos tribunais duma ordem jurídica no seu conjunto e outra a determinação (ulterior) do tribunal concretamente competente dentro dessa ordem jurídica». Porém, para «apuramento da competência internacional dos tribunais portugueses não relevam os critérios residuais dos n.ºs 2 e 3 do art. 80, pois de outro modo os tribunais portugueses teriam competência internacional para todas as ações: o domicílio do autor, o lugar em que o réu se encontrasse em território português e, sobretudo, como critério último, o tribunal de Lisboa funcionariam, como fatores atributivos de competência, sempre que o réu não residisse em Portugal» ([9]).

Assim sendo, o que aqui releva é preceito do n.º 1 do dito art.º 80.º da lei adjetiva, que consagra o critério geral do domicílio do réu.

Ora, o 2.º R. – único demandado na ação de impugnação da perfilhação (que em nada respeita ao 1.º R.) – tem o seu domicílio em Moçambique, e não em Portugal, não sendo português.

Assim, quanto àquela ação de impugnação da perfilhação nenhum facto ou fator de ligação/conexão existe com referência a Portugal ou à nossa ordem jurídica, pelo que, a esta luz, não são os tribunais portugueses internacionalmente competentes ([10]).

Doutro modo, sempre os tribunais portugueses seriam competentes para qualquer ação de impugnação da perfilhação intentada por um residente em Portugal, ainda que tudo o mais fosse estranho à ordem jurídica portuguesa e a Portugal [todos os envolvidos fossem cidadãos estrangeiros, bem como residentes no estrangeiro (à exceção do autor), a perfilhação tivesse ocorrido no estrangeiro, assim como o registo respetivo, lavrado por autoridade estrangeira, com a sentença a ter de ser imposta a entidade de registo estrangeira].

Aliás, numa tal situação o autor teria o benefício – injustificado – de poder demandar o réu nos tribunais de Portugal (apenas por ter passado a residir aqui), apesar de este último (o demandado) viver no estrangeiro e nenhuma ligação ter a Portugal, e embora fossem ambos naturais de um mesmo país estrangeiro, onde foi efetuada a perfilhação e foi lavrado o registo, por autoridade competente desse País, e onde teriam ocorrido os factos demonstrativos da desconformidade da perfilhação com a verdade biológica, em termos, pois, de se obrigar o demandado (quem, afinal, tem de defender-se) a exercer a sua defesa no foro do autor (no estrangeiro), e não no tribunal do seu próprio domicílio (ou do seu País), desvantagem significativa, para a qual não se encontra respaldo.

E se assim é para o critério da coincidência, também o tem de ser para o critério da causalidade [al.ª b) do dito art.º 62.º]. Com efeito, no âmbito da ação de impugnação da perfilhação e respetiva causa de pedir, tal como configuradas pelo A., é fora de qualquer dúvida que nenhum facto integrante e relevante foi praticado em território português.

Resta o critério da necessidade [al.ª c) daquele art.º 62.º], o qual também não colhe aplicação ao caso.

Nada mostra que a ação de impugnação da perfilhação não possa ser intentada na República de São Tomé e Príncipe (ou na República de Moçambique, se se atender ao domicílio do respetivo demandado), País dotado, obviamente, de sistema jurídico e judicial, com legislação e tribunais próprios, designadamente com competência cível, em matéria de impugnação da perfilhação.

Também nada mostra que o aqui A. esteja impedido de se deslocar ao seu País, a República de São Tomé e Príncipe, com vista à instauração da ação, sabido que poderá até nem ter de ali se deslocar, tendo em conta a operância dos atuais meios de comunicação à distância, podendo outorgar e enviar procuração forense a advogado que lhe intente a ação na Justiça do seu País.

E a verdade é que nenhum elemento ponderoso de conexão há entre o objeto do litígio – matéria, apenas, de impugnação da perfilhação – e a ordem jurídica portuguesa, não bastando que o A. tenha vindo residir para Portugal, o que não justifica a imposição ao demandado (o aqui 2.º R.) do sacrifício de ter de se vir defender a país estranho e longínquo (uma vez que reside em Moçambique e é cidadão de São Tomé).

Também não pode proceder a argumentação do Recorrente referente a eventuais inconstitucionalidades.

A qual até se encontra prejudicada, por se reportar à incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer de ação de investigação de paternidade, “de pretenso pai português e residente em Portugal, com filho residente também em Portugal”, o que violaria “os princípios constitucionais básicos, o direito à identidade pessoal e ao conhecimento da ascendência biológica, previstos no art. 26.º da Constituição da República Portuguesa”.

Como se viu, é vedado, in casu, intentar a ação de investigação de paternidade sem antes ter obtido a modificação do registo da paternidade (por via da ocorrida perfilhação), fosse por retificação, invalidação ou cancelamento.

E o Recorrente não pôs em causa a constitucionalidade da norma nuclear do art.º 1848.º, n.º 1, do CCiv..

Assim, não pode colher a invocação de inconstitucionalidades, tanto mais que inexiste qualquer interpretação com conteúdo discriminatório ou julgamento de incompetência dos tribunais portugueses apenas por a conceção não ter ocorrido em Portugal, não se demonstrando, pois, qualquer restrição desproporcionada do direito à obtenção de identidade pessoal ou do direito à integridade moral e a constituir família.

Termos em que improcede a apelação, não se verificando qualquer imputada violação de lei e cabendo ao Recorrente – vencido – as custas respetivas (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.), sem prejuízo, porém, do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.

***

IV – Concluindo (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

(…).

***

V – Decisão

Pelo exposto e ao abrigo do disposto no art.º 656.º do NCPCiv., julgando-se improcedente a apelação, mantém-se a decisão recorrida.

Custas da apelação pelo A./Apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário..

II - Discordando do assim decidido, veio o A./Apelante reclamar para a Conferência, ao abrigo do disposto no art.º 652.º, n.º 3, do NCPCiv., para que sobre a matéria da decisão singular proferida recaia acórdão deste Tribunal da Relação, continuando a pugnar pela procedência do recurso interposto, pretendendo que seja proferida decisão colegial que lhe reconheça razão.

A contraparte pugna pela total improcedência da reclamação.

III - Apreciando

Não tem razão – salvo o devido respeito – a parte Recorrente/Reclamante.

A qual, desde logo, continua a afirmar a argumentação anteriormente expendida nas suas alegações e conclusões recursórias, matéria que foi objeto, em moldes pormenorizados e desenvolvidos, da decisão singular sob reclamação, cujos fundamentos aqui se confirmam.

Assim, entende o Reclamante que a decisão sumária se encontra “errada, limitando-se apenas e só a discordar com o que ali foi dito [no recurso], sem apresentar qualquer motivo/razão para tal discordância”.

Ora, é certo que o Reclamante discorda da decisão singular proferida, considerando-a errada, posição que, logicamente, se respeita, embora com ela se não possa concordar, mas não poderá dizer-se que a fundamentação da decisão sob reclamação se limita a não concordar com os argumentos do Recorrente e ora Reclamante ([11]).

Com efeito – e como enfatiza a contraparte, na resposta à reclamação –, a decisão singular em apreço, concorde-se ou não com o ali decidido, mostra-se adequada e cabalmente fundamentada, mostrando com transparência e desenvolvimento os motivos/fundamentos de se ter proferido um veredito confirmatório da decisão recorrida, a decisão de incompetência internacional dos Tribunais portugueses.

Assim, ao longo de mais de nove páginas de fundamentação jurídica, deixou-se explicitadas as razões pelas quais não pode proceder a argumentação do recorrente e é de manter a decisão impugnada.

No mais, o Reclamante, sem aduzir argumentos novos – e é certo que o objeto do recurso ficou definido/delimitado nas suas conclusões de apelação –, insiste no que verteu no seu recurso:

«7.º

É entendimento do recorrente, como já alegado no recurso apresentado, que se verifica preenchido mais do que um dos critérios previstos no referido art. 62.º do CPC, pelo que são os Tribunais portugueses internacionalmente competentes para conhecer da presente ação, contrariamente ao decidido na primeira instância.

8.º

Pois pode-se aplicar ao presente caso o previsto na alínea a) do art. 62.º do CPC, uma vez quem, conforme consta dos Autos, o Autor e o primeiro Réu (pretenso pai e com direito igual ao outro Réu, designadamente, a defender-se da pretensão do Autor no país de onde é natural e onde reside) têm residência em Portugal, apenas o segundo Réu é que não reside em Portugal.

9.º

Sem prejuízo de todas as normas aplicáveis e que também se verificam, conforme já alegado nas motivações de recurso, incluindo a inconstitucionalidade da interpretação do art. 62.º do CPC, quando limitadora do exercício dos direitos fundamentais, por violação dos Direitos Constitucionais, previstos nos arts. 18.º, 26.º e 36.º da CRP.».

Ora, sobre toda esta argumentação se pronunciou a decisão recorrida, onde se mostrou as razões pelas quais os Tribunais portugueses não são internacionalmente competentes, sem que com isso se incorra em qualquer invocada inconstitucionalidade.

Seria inútil, assim, reproduzir aqui toda a argumentação já expendida na decisão sumária reclamada, aliás, integralmente citada acima, pelo que se cairia em estéril repetição, que, de todo, deve ser evitada.

Em suma, remetidos os autos, na legal tramitação, à Conferência, impõe-se acordar, na improcedência da reclamação in totum, em confirmar, sem qualquer alteração, a decisão singular em apreço, cujas conclusões são de subscrever.

IV - Sumário (…)

V - Decisão

Termos em que se decide indeferir a reclamação e, confirmando a improcedência da apelação – nos moldes constantes da decisão singular em apreço –, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo Reclamante/Apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 11/02/2025

Vítor Amaral (relator)

Carlos Moreira

Fonte Ramos


   ([1]) Cujo teor se deixa transcrito.
   ([2]) Cfr. Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. II, tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 181, Autores que concluem, nesta senda, que “a impugnação visa afastar a paternidade biologicamente falsa”.
   ([3]) Assim, Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, op. cit., p. 187.
   ([4]) Cfr., op. cit., p. 216.
   ([5]) Cfr. Código Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 229.
   ([6]) Op. e loc. cits..
   ([7]) Com a seguinte amplitude: a) poder a ação ser proposta em tribunal português, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa; b) ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram; c) não poder o direito invocado tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português, ou não ser exigível ao autor (por “dificuldade apreciável”) a sua propositura no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica nacional haja algum elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.
   ([8]) Código de Processo Civil Anot., vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 155.
   ([9]) Sublinhado aditado (sendo que aqueles Autores citam, por sua vez, Teixeira de Sousa).
   ([10]) Como referem Abrantes Geraldes e outros, se – e apenas se (acrescentamos nós) –, de acordo com as regras da competência em razão do território, algum tribunal português for territorialmente competente, também lhe é atribuída a competência internacional por via do princípio da coincidência» (cfr. Código de Processo Civil Anot., vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 94). Ora, no caso, as regras da competência em razão do território previstas no NCPCiv. não atribuem competência aos tribunais nacionais para uma ação de impugnação de perfilhação em que o ato impugnado e o respetivo registo ocorreram no estrangeiro, praticados por sujeitos/entidades estrangeiros e os factos tendentes a demonstrar a desconformidade com a verdade biológica também ocorreram no estrangeiro.
   ([11]) Tratar-se-ia, nessa ótica, de uma simples/mera discordância ou negação, sem mais, perante a substância dos argumentos deduzidos contra a sentença impugnada, o que equivaleria a uma decisão recursiva vazia de consistência (que “passasse ao lado” dos fundamentos do Recorrente), como tal, inaceitável. Mas não é esse – de todo – o caso, mesmo que o Reclamante não se deixe convencer pelos argumentos/análise plasmados na decisão singular do Relator, o qual analisou detalhadamente a questão jurídica suscitada, a da incompetência internacional.