1. O tribunal superior tem de guiar-se pelas conclusões da alegação para determinar, com precisão, o objeto do recurso, sendo que, tudo o que conste das conclusões sem corresponder a matéria explanada nas alegações propriamente ditas, não pode ser considerado e não é possível tomar conhecimento de qualquer questão que não esteja contida nas conclusões das alegações, ainda que versada no respetivo corpo.
2. Feita a prova da posse boa para usucapião (facilitada pelo regime da acessão na posse) e da correspondente aquisição, provada fica a titularidade do direito.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I. Em 11.5.2022, AA, e mulher BB, intentaram a presente ação declarativa comum contra CC e mulher DD (1ºs Réus), EE (2º Réu), FF (3º Réu), GG (4ª Ré), HH e mulher II (5ºs Réus), JJ (6º Réu) e A..., Lda. (7ª Ré), pedindo:
A. I - Serem os 1.º, 2.º 3.º, 4.º e 5.º RR, condenados a reconhecerem e verem declarado que os 1.º RR quiseram vender aos 2.º, 3.º, 4.º e 5.º RR, e estes por sua vez vender aos AA. o prédio identificado de 5º a 9º da petição inicial (p. i.), pelas escrituras de 17.02.1992, aludida em 1º e 22º da p. i., respetivamente; II - Serem ainda os 1.º, 2.º, 3.º, 4.º e 5.º RR, condenados a reconhecerem e verem declarado que a identificação do prédio aludido de 5º a 9º da p. i. foi trocada naquelas mesmas escrituras pela identificação do aludido de 1º a 4º da p. i.; III - Em consequência, serem ainda os 1.º, 2.º, 3.º, 4.º e 5.º RR condenados a reconhecerem e verem declarada a retificação das referidas escrituras, de forma a que, na escritura aludida da em 1º da p. i., de em vez de “um prédio rústico constituído por terra de pinhal e mato, sito no Lugar ..., inscrito na respetiva Matriz rústica sob o artigo ...89, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...14, com aquisição registada a seu favor pela inscrição G – um” e na escritura aludida em 22º da p. i., em vez de “prédio rústico, composto terra de pinhal e mato, sito no Lugar ..., freguesia e concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...89, com o valor patrimonial de 10,27 euros, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número sob o número ...14, com aquisição registada a seu favor, pela inscrição G – um”, nelas passe a constar “Terra de Pinhal e mato sita em ..., freguesia e concelho ..., que confronta a Norte com KK, Sul, LL, Nascente, e poente com caminho, inscrito na matriz sob o artigo n.º ...10, com o valor patrimonial de 12,25 € descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...12, com aquisição registada a seu favor”; IV - E ainda em consequência de I a III supra, serem os 1.º RR e 6.º e 7.ª R condenados a reconhecerem e a verem declarada a nulidade da escritura pública de 10.9.2021 e melhor identificada em 47º da p. i.; V - E ainda em consequência de I a IV supra, serem os 1.º, 2.º, 3.º, 4.º e 5.º RR condenados a reconhecerem e verem declarada a nulidade e ORDENADO o cancelamento do registo de aquisição sobre o imóvel aludido de 1º a 4º da p. i. a favor dos 2.º, 3.º, 4.º e 5.º RR pela AP. 72 de 2002/04/10 da descrição ...14 da Freguesia ..., na Conservatória do Registo Predial (CRP); VI - E ainda em consequência de I a V supra, serem os 1.º, 6.º e 7.º RR condenados a reconhecerem e verem declarada a nulidade e ORDENADO o cancelamento do registo de aquisição sobre o imóvel aludido de 5º a 9º da p. i. a favor da 7.º R pela AP. 4712 de 2021/10/01 da descrição ...12 da Freguesia ..., na CRP.
B. E ainda, quando assim se não entenda, em alternativa, VII - Serem os 2.º, 3.º, 4.º e 5.º RR condenados a reconhecerem e verem declarada a nulidade e sem nenhum efeito a escritura de compra e venda melhor identificada em 22º da p. i.; VIII – E em consequência de VII supra, serem os 2.º, 3.º, 4.º e 5.º RR condenados a reconhecerem e verem declarada a nulidade e ORDENADO o cancelamento do registo de aquisição sobre o imóvel aludido de 1º a 4º da p. i. a favor dos AA. pela AP 2.º, 3.º, 4.º e 5.º RR pela AP. 72 de 2002/04/12 da descrição ...14 da Freguesia ..., na CRP; IX - E em consequência, serem os 2., 3.º, 4.º e 5.º RR condenados solidariamente a restituírem aos AA. a quantia de € 9 975 (nove mil novecentos e setenta e cinco euros) a título de restituição do preço recebido por este, dos AA., acrescida dos juros legais, desde a citação até integral pagamento da mesma.
C. XI - Sempre e independente do pedido em A. e B., supra, serem os 1.º RR, 6.º e 7.ª RR, condenados a reconhecerem e verem declarados os AA., como legítimos possuidores do imóvel identificado de 5º a 9º da p. i., quer pelo direito de propriedade que lhes assiste, quer por usucapião, quer por direito próprio que possuem, com efeitos a partir de 17.02.1992 e absterem-se de todos os atos incompatíveis com o exercício deste direito de propriedade; XII - E em consequência, serem os 1.º, 6.º e 7.º RR condenados a reconhecerem e a verem declarada a nulidade e ORDENADO o cancelamento da aquisição do prédio identificado de 5º a 9º da p. i. a favor da 7.º R pela AP. 4712 de 2021/10/01 da descrição ...12 da Freguesia ..., na CRP.
D. XIII - E sempre e independentemente de A., B. e C., supra, serem os 1.º, 6.º e 7.ª RR. condenados solidariamente a indemnizarem os AA. na quantia de € 6 036,10, a título de danos patrimoniais e de danos morais, acrescidas dos juros desde a citação até integral pagamento.
Alegaram, em síntese: ulteriormente à escritura pública e aos factos aludidos nos art.ºs 1º e seguintes da p. i., adquiriam, por escritura pública de compra e venda, em 11.3.2002, e registaram a aquisição, do prédio rústico aludido nos art.ºs 18º e seguintes da p. i., praticando, depois, os atos descritos nos art.ºs 24º e seguintes da p. i.; a partir de finais de dezembro de 2021, ocorreram os factos descritos nos art.ºs 38º e seguintes da p. i. e tomaram conhecimento da escritura pública celebrada em 10.9.2021 entre o 1º Réu e a 7ª Ré aludida no art.º 48º da p. i., com as consequências aí descritas.
Contestaram os 1ºs Réus, 7ª Ré e os 2º, 3º, 4º e 5º Réus - os primeiros, excecionando a ilegitimidade passiva para serem parte, invocando a ineptidão da p. i. e ainda erro na forma de processo, e alegaram, nomeadamente, que não podem os AA. passados mais de 30 anos sobre o negócio celebrado entre o 1º, 2º, 3º e 5º Réus retificar qualquer erro, pugnando pela improcedência dos pedidos apresentados contra estes e pedindo a condenação dos AA. como litigantes de má fé; a segunda, excecionando a sua ilegitimidade passiva e pugnando pela improcedência dos pedidos; os últimos, concluíram pela improcedência dos pedidos contra eles deduzidos e alegaram, designadamente, que adquiriram e possuíram os prédios em acusa, até que venderam aos AA., em 11.3.2002, tendo o 2º Réu se deslocado ao local, com o A., para lhe mostrar o prédio e as estremas, como previamente, anos antes ali se tinha deslocado com o 1º Réu, e bem assim que apenas no final do ano de 2021 os Réus começaram a ouvir rumores que afinal tinha havido uma troca de artigos, e que prédio que registaram a seu favor com o artigo 289, afinal correspondia ao artigo 110.
Observado o contraditório, foi julgado improcedente a matéria de exceção dilatória e todo o pedido apresentado em “A.” (cf. supra).[1]
Foi proferido despacho saneador que firmou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 08.6.2024, julgou a ação parcialmente procedente, e provada, e em consequência: a) não declarou a anulabilidade do negócio jurídico outorgado entre os AA. e os 2º, 3º, 4º e 5º Réus, por escritura pública de 11.3.2002 e absolveu os mesmos Réus dos pedidos de restituição da quantia de € 9 975 (nove mil novecentos e setenta e cinco euros); b) declarou que os AA., adquiriram o prédio rústico composto por pinhal e mato, sito no lugar ..., que confronta a Norte com KK, Sul com LL, Nascente e Poente com caminho, inscrito na matriz rústica sob o artigo ...10 e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º ...22, por usucapião; c) absolveu os 1ºs, 6º e 7º Réus do pedido de indemnização deduzido contra estes.
Dizendo-se inconformada, a 7ª Ré apelou formulando as seguintes conclusões:
1ª - A decisão do Tribunal a quo, não andou bem, revelando-se contraditória e conduzindo a que os autores passassem a beneficiar de dois prédios: o prédio situado no ... (art.º 110º) e o situado no ... (art.º 289º).
2ª - O prédio do ..., por ter decidido que os Autores adquiriram por Usucapião, e, mantendo, por outro lado, a propriedade do prédio do ..., por não declarar a nulidade da escritura outorgada em 11.3.2002.
3ª - Não obstante, os AA. não adquiriram o prédio inscrito no artigo ...10º por usucapião, por não se encontrarem preenchidos os requisitos deste instituto jurídico.
4ª - Deve, assim, a decisão ser substituída por outra que permita à Ré/recorrente, manter a aquisição do prédio comprado por escritura de 10.9.2021, e, consequentemente, o pedido de registo a seu favor sob a AP 4712 de 01/10/2021.
5ª - Quando assim, não se entenda, sempre se dirá, que a recorrente, como terceiro de boa fé, não pode ficar prejudicada, teria que ser sempre ressarcida da quantia de € 2 000, paga pelo prédio adquirido por escritura de 10.9.2021.
Remata dizendo que deve este Tribunal “apreciar as normas violadas e a requerida nulidade da sentença” e “substituir a decisão recorrida, por outra, nos termos expostos”.
Os AA. concluíram pela improcedência do recurso e ampliaram o seu âmbito, visando a reparação dos invocados (mas não provados) danos (patrimoniais e não patrimoniais) causados com o corte dos eucaliptos no imóvel identificado em 2) dos factos provados.[2]
Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa reapreciar a decisão de mérito, principalmente, se estão ou não reunidos os elementos da declarada usucapião e se a 7ª Ré/recorrente poderá, nesta ação, obter algum ressarcimento.
1) Por escritura de compra e venda outorgada no dia 17.02.1992, os 1º Réus declararam vender aos 2º, 3º, 4º e 5º Réus, que declararam comprar àqueles, pelo preço declarado de 180 000$00, o prédio rústico composto por pinhal e mato, confronta a Norte com MM, Sul com NN e outro, Nascente com OO e outro e a Poente com MM, sito em ..., inscrito na matriz rústica sob o artigo ...89, descrito na Conservatória de Registo Predial (CRP) da ..., na Freguesia ... sob o n.º ...22.
2) Foi ao local para mostrar o prédio, o 1º Réu e o 3º Réu, que posteriormente mostrou aos 2º, 4º e 5º Réus, identificando os acessos e as estremas do prédio próximo do Campo de Futebol do ..., ou “o Grupo Desportivo ...”, do lado direito da linha do comboio (Linha do Oeste), atento o sentido Marinha Grande/Leiria, e ao qual se acede, na parte superior do referido prédio, através de caminho de fazendas, com início no parque de estacionamento do referido Campo de Futebol, que vai desembocar diretamente na estrema superior do prédio sendo ainda possível aceder ao referido prédio, na parte inferior, através de caminho largo, bem delimitado, em terra batida, por onde transita um veículo automóvel, caminho com início na estrema entre as instalações do campo de futebol e o parque de estacionamento, que desce até ao caminho de ferro, acompanha a linha por alguns metros e após ramificação volta a subir, em perpendicular à linha, delimitando a parte inferior do referido prédio, por alguns metros.
3) No prédio identificado em 2), a partir de Fevereiro de 1992, os 2º, 3º e 5º Réus limparam o mato, procederam ao desbaste de árvores, venderam as árvores e receberam o respetivo preço, de forma pública, à vista de todos, de forma ininterrupta, sem a oposição de ninguém, como donos e na convicção de exercerem um direito próprio, ignorando lesar o direito de outrem.
4) Por escritura de compra e venda outorgada no dia 11.3.2002, os 2º, 3º, 4º e 5º Réus declararam vender aos Autores, que declararam comprar àqueles, pelo preço declarado de € 7 500, o prédio rústico constituído de pinhal e mato, sito no Lugar ..., inscrito na matriz rústica sob o artigo ...89, descrito na CRP ... sob o n.º ...14.
5) Os Autores registaram a seu favor a aquisição do prédio, pela ap. n.º 72 de 2002/04/10.
6) Foi ao local para mostrar o prédio, o 2º Réu e o Autor, que em data não concretamente apurada lhe mostrou o prédio identificado em 2), seus limites, estremas e acessos, nos exatos termos em que o referido prédio[3] lhe tinha sido previamente mostrado em 1992.
7) Sobre o prédio identificado em 2), os Autores limparam o mato, procederam ao desbaste das árvores nele existentes para consumo doméstico, o que fizeram desde, pelo menos, março de 2002, de forma pública, à vista de todos, de forma ininterrupta, sem a oposição de ninguém, como donos e na convicção de exercerem um direito próprio, ignorando lesar o direito de outrem.
8) Em data não concretamente apurada, em dezembro de 2021, os Autores foram informados que tinha havido um “engano”, com a troca do artigo matricial e descrição registral, do prédio que os 1ºs Réus declararam vender, por escritura pública de 17.02.1992 aos 2º, 3º, 4º e 5º Réus, e que estes posteriormente declararam vender, por escritura pública datada de 11.3.2002, aos Autores.
9) O prédio identificado em 2) não se encontra descrito na CRP ... como prédio rústico composto por pinhal e mato, sito em ..., que confronta a Norte com MM, Sul com NN e outro, Nascente com OO e outro e a Poente com MM, inscrito na matriz rústica sob o artigo ...89, descrito na CRP ..., na Freguesia ... sob o n.º ...22.
10) O prédio identificado em 2), encontra-se descrito na CRP ... como prédio rústico, composto por pinhal e mato, sito em ..., que confronta a Norte com KK, Sul com LL, Nascente e Poente com caminho, inscrito na matriz rústica sob o artigo ...10 e descrito sob o n.º ...22.
11) Por escritura pública outorgada pelos 1ºs Réus, em 10.9.2021, os 1ºs Réus declararam vender à 7ª Ré, representada pelo 6º Réu, que declarou comprar, pelo preço declarado de € 2 000, o prédio rústico composto por pinhal e mato, sito no lugar ..., que confronta a Norte com KK, Sul com LL, Nascente e Poente com caminho, inscrito na matriz rústica sob o artigo ...10 e descrito na CRP sob o n.º ...22.
12) A 7ª Ré registou a seu favor a aquisição, através da ap. n.º 4712 de 2021/10/01.
13) No dia 03.01.2022, o Autor, em deslocação ao prédio descrito em 2), viu que os eucaliptos existentes no prédio tinham sido cortados pela base e a sua madeira removida.
14) O corte dos eucaliptos causou no Autor preocupação.
15) A ação foi intentada em 11.5.2022.
2. E deu como não provado:
a) Que os Autores tivessem recebido uma proposta para aquisição da madeira sita no prédio identificado em 2), em 2021, pelo valor de € 3 000.
b) Que o prédio identificado em 2) tivesse cerca de 270 toras verdes de eucaliptos, em pé e em crescimento, com aproximadamente vinte e cinco anos de crescimento, após o último corte em meados dos anos 90, com um diâmetro entre 30 e 40 cm, médio aproximado de 35 cm da base e médio aproximado no topo de cada tora, com altura média de 7,5 metros por cada tora, com espaçamento regular entre si.
c) Que o 6º Réu, em meados de 2021 tenha abordado os Autores para lhe venderem a madeira do prédio identificado em 2).
d) Que as 270 toras valessem, pelo menos, € 4 286,85.
e) Que os 1ºs, 6º e 7ºs Réus, em setembro de 2021, tivessem conhecimento do erro na identificação do artigo do prédio declarado vender pelos 1ºs Réus aos 2º a 5º Réus em 1992.
f) Que os 1ºs, 6º e 7º Réus, em setembro de 2021, soubessem que o prédio com o artigo matricial ...10, situado no ..., identificado em 2), pertence aos Autores.
g) Que os 2º a 5º Réus soubessem em 2002, que os Autores apenas pretendiam adquirir o prédio identificado em 2), e nenhum outro.
h) Que os 2º a 5º Réus desde 1992 soubessem onde era o ... e o ....
i) Que há 6 anos, o 1º Réu tenha replantado com eucaliptos o prédio rústico com o artigo matricial ...89, sito no ....
j) Que o corte dos eucaliptos tenha provocado desgosto, tristeza, vergonha nos Autores.
3. Cumpre apreciar e decidir.
O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou a anulação da decisão (art.º 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil/CPC[4]), ou seja, ao ónus de alegar acresce o ónus de concluir, indicando quais os fundamentos do recurso – as razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusões, importando que a alegação feche pela indicação resumida das razões por que se pede o provimento do recurso (a alteração ou a anulação da decisão).
Ora, o tribunal superior tem de guiar-se pelas conclusões da alegação para determinar, com precisão, o objeto do recurso; só deve conhecer, pois, das questões ou pontos compreendidos nas conclusões, pouco importando a extensão objetiva que haja sido dada ao recurso, no corpo da alegação[5], sendo que tudo o que conste das conclusões sem corresponder a matéria explanada nas alegações propriamente ditas, não pode ser considerado e não é possível tomar conhecimento de qualquer questão que não esteja contida nas conclusões das alegações, ainda que versada no respetivo corpo.[6]
As conclusões servem assim para delimitar o objeto do recurso (art.º 635º), devendo corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do tribunal superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo, constando normalmente, na sua parte final, se se pretende obter a revogação, a anulação ou a modificação da decisão recorrida.
4. Pediram os AA., sob “C. XI”, a condenação dos 1ºs, 6º e 7º Réus «a reconhecerem e verem declarados os AA., como legítimos possuidores do imóvel identificado de 5º a 9º da p. i., quer pelo direito de propriedade que lhes assiste, quer por usucapião, quer por direito próprio que possuem, com efeitos a partir de 17.02.1992 e absterem-se de todos os atos incompatíveis com o exercício deste direito de propriedade», pedido que veio a ser atendido na medida em que se declarou que «os AA., adquiriram o prédio rústico composto por pinhal e mato, sito no lugar ..., que confronta a Norte com KK, Sul com LL, Nascente e Poente com caminho, inscrito na matriz rústica sob o artigo ...10 e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º ...22, por usucapião».
A 7ª Ré opõe-se ao assim decidido, por considerar “que não ficaram provados na audiência de julgamento, os requisitos da posse, muito menos a posse de boa fé”, conducentes à aquisição do dito prédio rústico por usucapião, tendo em conta o disposto nos art.ºs 1260º, 1261º, 1262º, 1296º e 1297º do Código Civil (CC). E conclui: “Deveria, assim, o Tribunal decidir pela improcedência do pedido dos Autores, descrito sob a letra ´C`, ponto XI. / É desta decisão que a Ré recorre”.
5. Salvo o devido respeito por entendimento contrário, verifica-se: a 7ª Ré/recorrente não fundamenta a conclusão a que chega; é irrecusável que os AA. demonstraram a factualidade necessária e suficiente à afirmação da aquisição a seu favor do referido imóvel, por usucapião.[7]
Na verdade, provou-se que os AA., por si e antepossuidores, praticaram os atos conducentes à aquisição originária do mencionado prédio (por usucapião), como lhes foi reconhecido na 1ª instância, não sobrevindo facto algum a interromper a continuidade da posse, sendo que feita a prova da posse boa para usucapião (facilitada pelo regime da acessão e da sucessão na posse) e da correspondente aquisição, provada fica a titularidade do direito[8] - cf., nomeadamente, os factos descritos em II. 1. 2), 3), 4), 5), 6), 7), 9) e 10), supra, dos quais decorre, além do mais, o exercício de poderes de facto ou empíricos (a disponibilidade fáctica ou empírica) sobre o prédio rústico em causa desde data não posterior a 1992; art.ºs 342º, n.º 1, 1251º, 1256º, 1260º, n.ºs 1 e 2, 1261º, n.º 1, 1262º, 1263º, alínea a), 1287º, 1288º, 1294º, 1296º, 1316º e 1317º, alínea c), do CC.[9]
6. Assim ficou expresso na sentença, mormente nos seguintes excertos:
«Verifica-se (...), desta forma, que em relação ao prédio descrito em 10., que gozam os Autores e não a Ré da presunção da posse consagrada no artigo 1268º, n.º 1 do CC, uma vez que os Autores se encontram na posse do prédio desde - pelo menos - março de 2002, e a Ré registou a seu favor o mesmo prédio no dia 01/10/2021 (factos julgados provados em 2., 7., 11., 12. e 13.), não tendo os Autores perdido a posse do prédio, por não verificado o prazo de um ano sobre o ato próprio para inverter o título da posse – o corte das árvores em 03.01.2022 (cf. artigos 1265º e 1267º, n.º 2, al. d) do CC e a ação intentada em 11/5/2022). / (...) os Autores carecem de título, sendo a posse exercida sobre o prédio identificado em 2., uma posse não titulada, presumindo-se posse de má fé. Contudo, os Autores lograram provar que, de março de 2002 a dezembro de 2021 (19 anos), todos os atos materiais que praticaram sobre o prédio, fizeram-no na ignorância de lesar o direito do proprietário registral, o 1º Réu, uma vez que atuavam crentes que a escritura pública e registo versava sobre aquele prédio e que eram os verdadeiros proprietários. / Verificado que a ação deu entrada em 11/5/2022, não tendo os Autores perdido a posse do prédio rústico, porque os atos turbativos da posse foram praticados em janeiro de 2022 (factos julgados provados em 13., cf. artigo 1267º, n.º 1, al. d) do CC), à data da entrada da petição inicial, o prazo de 15 anos necessário para a constituição do direito de propriedade por usucapião já se encontrava verificado[10] desde - pelo menos - março de 2017. / Em face dos factos julgados provados, provando-se que os atos materiais praticados sobre o prédio rústico se prolongaram e que a posse se encontrava consolidada na esfera jurídica dos Autores, há mais de 19 anos, considera-se adquirida a propriedade plena do prédio, por usucapião, livre de ónus e encargos. / Em consequência impõe-se julgar procedente este pedido e em consequência declarar que os Autores são titulares do direito pleno de propriedade sobre o prédio descrito em 10., com exclusão do direito de qualquer outro, livre de ónus e quaisquer encargos, ao abrigo do disposto nos artigos 1251º, 1287º, 1296º, 1260º, n.º 2, 1297º ´a contrario`, 1261º e 1262º, 1311º todos do Código Civil. / Nos termos do disposto no artigo 36º do CRP, tem legitimidade para promover o registo os sujeitos ativos e passivos da relação jurídica objeto do registo, i. e., impende sobre os Autores o registo a seu favor do direito de propriedade sobre o prédio descrito em 10., encontrando-se os Tribunais onerados com o registo da ação e decisão, nos termos do disposto no artigo 3º, n.º 1, al. a) e c), 8º-B, n.º 3, al. a) do CRP, razão pela qual improcede o pedido de cancelamento do registo realizado a favor da 7ª Ré.»
7. Reunidos todos os requisitos para a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre o prédio rústico melhor identificado em II. 1. 2) e 10, supra, e atendendo, ainda, ao preceituado nos art.ºs 1305º e 1311º do CC, dúvidas não restam quanto à procedência do questionado pedido formulado pelos AA., atendido pela Mm.ª Juíza do Tribunal a quo.[11]
8. Quanto a esta realidade e suas consequências, a alegação de recurso da 7ª Ré pouco ou nada concretiza e/ou é manifestamente insubsistente.
Ao invés, a decisão sob censura explicita, adequadamente, as razões que determinam a procedência da ação. O explanado supra, também sintetiza a factualidade e o enquadramento jurídico da solução (resposta correta) encontrada na 1ª instância.
9. Quanto ao mais do corpo da alegação de recurso (reproduzido nas “conclusões”), afigura-se evidente que não poderá ser atendido, desde logo, pela simples razão de que não se vê onde e quando foram alegados, nos autos, os factos donde a 7ª Ré/recorrente pretende ter derivado o pretenso direito a tutelar[12], e que o Tribunal não poderia reconhecer ou declarar sem a oportuna formulação do correspondente pedido dirigido contra a pessoa jurídica com interesse direto em contradizer (cf., nomeadamente, art.ºs 3º, n.º 1; 30º, n.ºs 1 e 2; 552º, n.º 1, alíneas d) e e) e 608º, n.º 2, do CPC).
10. De resto, não se poderá concluir que o Tribunal recorrido, “ao dar como provado a posse, por usucapião, aos Autores do identificado prédio [aludido em II. 1. 2) e 10), supra] e ao não declarar a nulidade da escritura de 11/3/2002, veio atribuir aos Autores a titularidade de mais um prédio, passando estes a beneficiar de dois prédios”.
11. É claro e evidente que tal não decorre do expendido e decidido na sentença sob censura[13], decisão que não padece de qualquer contradição ou incongruência.
12. Soçobrando, desta forma, todas as “conclusões” da alegação da 7ª Ré, o recurso improcede e fica prejudicado o conhecimento da ampliação do âmbito do recurso (deduzida pelos AA./recorridos, por via subsidiária - art.º 636º, n.º 1, do CPC).
Custas pela 7ª Ré/apelante.
11.02.2025
[1] Concluindo-se que o pedido era «legalmente inadmissível», porquanto «a anulabilidade do negócio jurídico celebrado» sempre teria de ser «invocada dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento, com a restituição de tudo o que tiver sido prestado, cf. artigo 289º do CPC».
[2] Tendo-se concluído:
Se a 7.ª R não se conforma com a sentença, também os AA. não se conformam, com:
A) Matéria de Facto - Relativamente aos factos provados e não provados, com a redação do ponto 14 dos factos provados nem com a resposta às alíneas a), b), c), d) e), f) e j) dos factos não provados, pedindo a reapreciação da matéria de facto e propugnando pelo aditamento dos seguintes pontos aos factos provados: “Os Autores receberam uma proposta de JJ para aquisição da madeira sita no prédio identificado em 2., em 2021”; “Os eucaliptos cortados no prédio identificado em 2) valiam 3.862,80 € “; “Os 1.ºs, 6.º e 7.º Réus, em setembro de 2021, sabiam que o prédio com o artigo matricial ...10, situado no ..., identificado em 2), pertence aos Autores;” “Os 1.ºs, 6.º e 7.ºs Réus, em setembro de 2021, tinham conhecimento do erro na identificação do artigo do prédio declarado vender pelos 1.ºs Réus aos 2.º a 5.º Réus em 1992;” “Os eucaliptos existentes em 2021 no prédio identificado em 2) foram cortados pelo 6.º R sócio e gerente da 7.ª R.. E modificando-se a redação do ponto 14 dos factos provados para: “14. O corte dos eucaliptos provocou desgosto, tristeza, nos Autores.”
B) Matéria de Direito - Alterando-se a matéria de facto, a consequência é a alteração da decisão quanto ao ponto D-XIII do Pedido e, assim, em vez de os absolver, a sentença deveria ter condenado os 1.ºs, 6.ºs e 7.ºs RR., nos termos conjugados dos art.ºs 483º, 484º e 486º do CC, solidariamente, a repararem os danos causados aos AA., com o corte dos eucaliptos no imóvel identificado em 2).
[3] Retificou-se lapso manifesto.
[4] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[5] Vide, entre outros, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V (reimpressão), Coimbra Editora, 1984, págs. 308 e seguintes e 358 e seguintes; J. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, Vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 33 e os acórdãos do STJ de 21.10.1993 e 12.01.1995, in CJ-STJ, I, 3, 84 e III, 1, 19, respetivamente.
[6] Cf. o citado acórdão do STJ de 12.01.1995.
[7] De resto, nenhuma das partes impugnou a factualidade dada como provada quanto à realidade predial e bem assim a motivação apesentada pela Mm.ª Juíza do Tribunal a quo na destrinça/individuação a que se procedeu, evidenciada no seguinte excerto da motivação relativa à matéria de facto: «(...) há duas referências que naquela zona apenas o artigo 110 reúne: a confrontação a Nascente e Poente com caminho – que coincide integralmente com as confrontações que o Tribunal teve ocasião de verificar, no local – cf. auto de inspeção ao local; e a situação do prédio no ..., o que foi determinante para a prova dos factos.»
[8] Vide L. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 6ª edição (reimpressão), 2010, pág. 277.
[9]Sobre os requisitos do instituto da usucapião e correspondentes caracteres da posse a ela conducente, vide ainda, nomeadamente, M. Henrique Mesquita, Direitos Reais - Sumários da Lições ao Curso de 1966-67, Coimbra. 1967, págs. 112 e seguinte e Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 1987, págs. 64 e seguintes.
Na jurisprudência, versando caso com alguma similitude, cf., por exemplo, acórdão do STJ de 19.9.2017-processo 120/14.4T8EPS.G1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[10] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[11] E poder-se-á dizer que, relativamente aos AA., a venda (do seu bem) dita em II. 1. 11) e 12), supra, volvidos mais de 25 anos após o início da reconhecida posse, sempre seria nula (art.º 892º, 1ª parte, do CC).
[12] Vejam-se, a propósito, o objeto do litígio - «(...) a reivindicação de parcela, importando saber: Confirmando-se o erro sobre o objeto do negócio, quais os efeitos jurídicos do erro; Saber se se encontram preenchidos os requisitos para a aquisição da parcela descrita em 5.º, da PI, pelos Autores, por usucapião; - (...).” - e os temas da prova - «1. Saber que prédio (se o prédio inscrito na matriz rústica sob o n.º ...89 e descrito na CRP ... sob o n.º ...14, ou o prédio inscrito na matriz rústica n.º ...10 e descrito na CRP ... sob o nº ...12) foi mostrado aos Autores (local, estremas e marcos) e por quem e qual a razão de ciência do conhecimento alegado, como sendo o prédio descrito na escritura de compra e venda celebrada em 17.02.1992; 2. Saber que atos foram praticados pelos Autores sobre o prédio inscrito na matriz rústica n.º ...10 e descrito na CRP ... sob o nº ...12; (...)» (cf. despacho de 27.5.2023).
[13] A 1ª instância «não declarou a anulabilidade do negócio jurídico outorgado entre os AA. e os 2º, 3º, 4º e 5º Réus, por escritura pública de 11.3.2002», conforme se deixou fundamentado a págs. 13 de 14 da sentença (fls. 174 dos autos), concluindo-se, designadamente: «Assim, por não verificados os pressupostos de que depende, impõe-se julgar improcedente todos os pedidos formulados sobre B), por dependentes da procedência da declaração de anulabilidade do negócio jurídico de compra e venda, outorgado entre os Autores e os 2.º, 3.º, 4.º e 5.º Réus, impondo-se, em consequência absolver os 2.º, 3.º, 4.º e 5.º Réus destes pedidos formulados contra estes.»