I - A censura da convicção do julgador sobre a decisão da matéria de facto apenas pode emergir se os meios probatórios invocados não apenas sugiram, mas antes imponham tal censura – artº 640ºdo CPC.
II - Existindo dúvida fundada sobre a realidade de um facto ele não pode ser dado como provado se aproveitar à parte que tem o ónus de o alegar e provar – artº 414º do CPC.
III - Em abono da verdade e da realização da justiça, apenas está vedado a desconsideração de expressões gramaticalmente tidas por conclusivas ou integrantes de previsões normativas se a interpretação do seu significado implicar o recurso a qualquer regra de direito, não sendo apreensível pelo homem comum, e/ou se tais expressões decidirem, só por si, o mérito da causa.
IV - Para o efeito da sua subsunção na previsão do artº 493º nº 2 do CC, uma atividade apenas pode considerar-se perigosa, se, de todo o processo do seu normal e correto desenvolvimento – e não apenas de um seu particularismo – resultar, liminarmente/a priori, que dela pode emergir um perigo especial, mais grave e mais frequente, do que aquele que pode verificar-se noutras atividades.
V - Destarte, a atividade aeronáutica, por não reunir tais pressupostos, não quadra na previsão de tal preceito legal, até por similitude e quiçá, maioria de razão, com o fixado para a atividade rodoviária pelo Assento n.º 1/80, de 29 de janeiro.
VI -O deferimento da pretensão no âmbito da responsabilidade aquiliana exige a prova, pelo autor, dos seus elementos constitutivos, vg. a atuação ilícita e culposa do agente – artºs 342º nº1, 483º e 487º do CC - , soçobrando ela perante a sua não prova.
(Sumário elaborado pelo Relator)
ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
1.
A..., Lda. instaurou contra AA e BB (esta representada por sua mãe, CC), todas com os sinais dos autos, ação declarativa, de condenação, com processo comum.
Pediu:
A condenação solidária das Rés no pagamento da quantia de 92.250,00€.
Para tanto alegou:
As rés são herdeiras, respetivamente, de DD e de EE, falecidos no dia 09/06/2019, na sequência de acidente ocorrido quando tripulavam a aeronave pertença da Autora, sem autorização desta, e que o mesmo ocorreu em consequência da imperícia, temeridade e por violação das normas de utilização dessa aeronave pelos respetivos pilotos, tendo ficado totalmente destruída, sendo o valor peticionado o correspondente ao valor de mercado que a mesma possuía.
As Rés contestaram.
A Ré AA alegou, no que ora releva, que desconhece como é que a A. obteve o valor reclamado e se o mesmo se reporta à data da sua aquisição ou à do acidente ocorrido; que tal valor não deve incluir o IVA; que jamais o DD utilizaria a aeronave sem o conhecimento e consentimento do seu proprietário; e que certamente não foi causado por aquele em consequência de qualquer manobra que realizou durante a sua utilização.
Concluiu pela improcedência da ação.
A Ré, BB impugnou a versão trazida aos autos pela A., quer quanto à falta de autorização dos tripulantes, quer quanto às causas do acidente, quer ainda quanto ao valor reclamado.
Concluiu pela improcedência da ação.
2.
Prosseguiu a ação os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:
«Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente, nos termos expostos, a presente ação e, em consequência, decide-se absolver as Rés do pedido formulado pela Autora. Custas: pela Autora (cfr. art. 527º, nºs 1 e 2 CPC)»
3.
Inconformada recorreu a autora.
Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1.ª- Pela douta sentença recorrida (ref.ª citius 107055588) foi a ação intentada pela autora, ora recorrente, julgada totalmente improcedente, por não provada, tendo as rés sido absolvidas do pedido formulado na p.i., em virtude de o Tribunal a quo ter considerado que os factos tidos por provados não preenchem os requisitos da responsabilidade civil extracontratual, estabelecidos no art. 483.º do Cód. Civil, inexistindo por isso obrigação de as rés indemnizarem a autora.
2.ª- Em face do alegado no art. 43.º da p.i., do teor do documento n.º 6 junto com esse articulado e da circunstância de a aeronave em causa ter ficado totalmente consumida pelas chamas em 9/6/2019 (factos 5 a 8), apenas por lapso poderá ter sido escrita, em 15 dos “factos provados” da douta sentença recorrida, a data de 11/12/2019, devendo a Relação determinar que se leia aí, não essa data, mas 11/2/2019.
3.ª- Dado que consubstancia uma conclusão, não um facto, e atento o disposto, designadamente, nos n.ºs 3 e 4 do art. 607.º do CPC, o segmento «e no seu interesse», constante do ponto 22 dos “factos provados” da douta sentença em crise, deve ser considerado não escrito, não devendo ser tido em conta.
4.ª- O facto constante do n.º vii dos “factos não provados” da douta sentença recorrida deve ser considerado provado, dado que é afirmado pelo RELATÓRIO FINAL DE INVESTIGAÇÃO DE SEGURANÇA DE ACIDENTE, relativo ao sinistro em causa, elaborado pelo GPIAAF – Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários, junto com o requerimento apresentado pela autora em 18/10/2024, ref.ª citius 10164097, e, no essencial, não foi desmentido ou descredibilizado por nenhuma outra prova, como decorre da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto vertida nessa sentença.
5.ª- A matéria constante do n.º viii dos “factos não provados” da douta sentença recorrida representa uma conclusão, não um facto, pelo que deve ser considerada não escrita, não devendo ser tida em conta.
6.ª- A matéria constante do n.º ix dos “factos não provados” da douta sentença recorrida é conclusiva, pelo que deve ser considerada não escrita, não devendo ser tida em conta.
7.ª- O segmento «fossem manobras acrobáticas», constante do n.º x dos “factos não provados” da douta sentença recorrida é conclusivo, pelo que, tanto esse segmento, como a afirmação, dele sequencial, «o que era do conhecimento quer do DD quer do EE», devem ser considerados não escritos, não devendo ser levados em consideração.
8.ª- A matéria constante do n.º xii dos “factos não provados” da douta sentença recorrida é conclusiva, pelo que deve ser considerada não escrita, não devendo ser tida em conta.
9.ª- Relativamente à decisão jurídica da causa, mostra-se desde logo incontornável que a pilotagem da aeronave da autora por parte dos pais das rés constituiu um facto humano voluntário.
10.ª- Para além disso, ao destruírem a referida aeronave no voo que com ela realizaram, os pais das rés ofenderam o direito subjetivo absoluto de propriedade da autora sobre tal bem, consagrado nos arts. 1302.º e segs. do Cód. Civil, direito esse que impõe um dever geral de abstenção de agressões, sendo este o exemplo paradigmático da primeira e principal variante das formas da ilicitude enquanto pressuposto da responsabilidade civil aquiliana.
11.ª- Acresce que, como tem sido entendimento recorrente do STJ, «quem tem o domínio de situações de perigo [como foi o caso da pilotagem da aeronave da autora pelos pais das rés] está adstrito a um “dever geral de prevenção de perigo”, cuja violação o faz incorrer na obrigação de indemnizar pelos danos sofridos por terceiros».
12.ª- Ora, a navegação aérea, a pilotagem de aeronaves, é incontornavelmente uma atividade de superlativa perigosidade.
13.ª- E se assim deve ser considerado em qualquer caso, por maioria de razão o deve ser a pilotagem dos pais das rés no caso dos presentes autos, atentas as suas circunstâncias e caraterísticas.
14.ª- Assim, in casu, sobre os pais das rés, dado que ambos dispunham dos comandos da aeronave em causa e os dois a pilotavam, detendo, portanto, um e outro, o domínio do facto, recaía um «dever geral de prevenção de perigo», ou se se preferir, «deveres de prevenção do perigo, deveres no tráfego ou deveres de segurança no tráfego».
15.ª- Ora, na douta sentença recorrida foi considerado assente, resumidamente, que, encontrando-se o aeródromo em obras, os pais das rés, ambos pilotando a aeronave da autora, descolaram desse aeródromo, e depois de cerca de 45 minutos de voo realizaram uma passagem baixa na pista 20 do mesmo (sentido norte/sul), subiram com um ângulo pronunciado e efetuaram uma volta de cerca de 45 graus pela esquerda (sentido sul/norte), após o que o motor da referida aeronave parou e aqueles perderam o controlo da mesma, a qual iniciou então uma descida até se imobilizar a cerca de 100 metros da pista 02 do aeródromo, tendo-se incendiado imediatamente após ter colidido com o solo e ficado totalmente consumida pelas chamas, ao que acresce que a aeronave em causa fora submetida a uma manutenção técnica cerca de 7 meses antes e encontrava-se em bom estado de conservação e funcionamento, sem quaisquer deficiências que afetassem a sua normal utilização, não suportando, no entanto, a realização de manobras acrobáticas, por virtude da sua categoria e modelo (factos 5 a 10, 15 e 30).
16.ª- Para além disso, reitere-se, deve ser considerado provado o facto constante do n.º vii dos “factos não provados” da douta sentença recorrida, ou seja, que:
«As manobras da aeronave realizadas com atitudes de voo pronunciadas a baixa altitude, associadas à falta de treino e qualificação em voo acrobático do piloto instrutor, demonstraram-se fatores chave para o desfecho do evento».
17.ª- Perante estes factos, impõe-se concluir que os pais das rés incumpriram o sobredito «dever geral de prevenção de perigo», ou se se preferir, os «deveres de prevenção do perigo, deveres no tráfego ou deveres de segurança no tráfego» que sobre eles recaíam.
18.ª- Inscrevendo-se o sinistro em causa – queda da aeronave – e o consequente dano – perecimento desse bem – justamente na esfera dos danos que se pretendem prevenir com os referidos deveres.
19.ª- Assim, ao menos por presunção judicial, cumpre que se considere provada a culpa efetiva dos pais das rés, bem como, adiante-se já, o nexo causal entre o facto ilícito e o dano.
20.ª- Porém, a não se entender que se encontra provada a culpa efetiva dos pais das rés, o que apenas por cautela se aventa, atento o disposto no art. 493.º, n.º 2, do Cód. Civil, e uma vez que, como já se deixou dito, a pilotagem da aeronave da autora pelos pais das rés representou uma atividade perigosa, querendo afastar a culpa dos seus pais, as rés teriam de provar que os mesmos empregaram todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenirem a queda, incêndio e perecimento da referida aeronave.
21.ª- Dado que tal prova não foi feita, presume-se a culpa dos pais das autoras.
22.ª- Por outro lado, como aliás já se adiantou, o dano causado à autora, consubstanciado na destruição da sua aeronave, compreendia-se no risco inerente à pilotagem dessa aeronave pelos pais das rés e foi direta e exclusivamente causado pela queda e colisão da mesma no decurso dessa pilotagem.
23.ª- Acresce que, perante os factos 5 a 10, 15 e 30, resumidos na conclusão 15.ª, designadamente atenta a perda de controlo da aeronave por parte dos pilotos, na sequência das manobras que com ela realizaram, impõe-se concluir que está também verificado o nexo causal entre o facto e o dano.
24.ª- Por fim, está igualmente provado o dano, que se consubstancia na destruição da aeronave da autora, no valor de, pelo menos, € 75.000,00, acrescido de IVA à taxa legal de 23%, totalizando 92.250,00€ (facto 16).
25.ª- Porém, importa aduzir que, como desde logo resulta da sua letra, o art. 493.º, n.º 2, do Cód. Civil estabelece não apenas uma presunção de culpa, mas também a presunção da ilicitude e do nexo causal entre o facto e o dano, consagrando o chamado modelo de faute.
26.ª- Segundo o STJ:
«II - Para se exonerar da sua responsabilidade, terá o exercente da actividade perigosa de demonstrar que foram adoptadas todas as providências exigidas pelas circunstâncias a fim de prevenir os danos, não sendo suficiente a prova de terem sido cumpridos os comuns deveres de cuidado que o vinculavam.
III - Não sendo possível provar directamente a observância de todas as cautelas necessárias, só por via indirecta se conseguirá satisfazer o ónus liberatório, demonstrando-se que a causa real do evento lesivo é alheia à esfera de risco do exercício da actividade perigosa».
27.ª- Ainda de acordo com o STJ:
«IV – Nos danos causados por actividades perigosas, ao presumir-se a culpa (pela inversão do ónus de prova em matéria dos procedimentos idóneos para evitar o dano) presume-se, ao mesmo tempo, a ilicitude.
V - A causalidade deriva da concretização do perigo típico da actividade levada a cabo pelo lesante e da não prova de que o lesante tenha posto em prática os deveres de prevenção do perigo ou de tráfego impostos pela actividade que levava a cabo»
28.ª- Ora, in casu, as rés não fizeram a prova de nenhuma dessas situações.
29.ª- Destarte, verificados que estão os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana, deve a douta sentença recorrida ser revogada e as rés condenadas no pedido formulado na p.i.
Contra alegou a ré BB pugnando pela improcedência do recurso e com a consequente manutenção da sentença.
4.
Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:
1ª - Alteração da decisão sobre a matéria de facto.
2ª- Procedência da ação.
5.
Apreciando.
5.1.
Primeira questão.
5.1.1.
No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5 do CPC.
Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação – cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.
O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente; mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed. III, p.245.
Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.
Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.
Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.
Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.
Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.
Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.
O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.
E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.
Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005 e de 23-04-2009 dgsi.pt., p.09P0114.
Nesta conformidade constitui jurisprudência sedimentada, que:
«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010,, p. 73/2002.S1. in dgsi.pt pt; e, ainda, Ac. STJ de 02-02-2022 - Revista n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1.
5.1.2.
Por outro lado, e como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genericamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.
A lei exige que os meios probatórios invocados imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida.
Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da sua, subjetiva, convicção sobre a prova.
Porque, afinal, quem tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz.
Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve o recorrente efetivar uma análise concreta, discriminada – por reporte de cada elemento probatório a cada facto probando - objetiva, crítica, logica e racional, do acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.
A qual, como é outrossim comummente aceite, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito probatório permitida e que lhe é concedida.
E só quando se concluir que a natureza e a força da prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção, se podem censurar as respostas dadas.– cfr. neste sentido, os Acs. da RC de 29-02-2012, p. nº1324/09.7TBMGR.C1, de 10-02-2015, p. 2466/11.4TBFIG.C1, de 03-03-2015, p. 1381/12.9TBGRD.C1 e de 17.05.2016, p. 339/13.1TBSRT.C1; e do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1., todos in dgsi.pt;
5.1.3.
In casu.
Desde logo, tal como alega a recorrente, aceita a recorrida, e resulta dos autos, a data de 11/12/2019 aposta no ponto 15 dos factos provados resulta de lapso material – o designado lapsus calami.
Pelo que, ele deve ser corrigido para a data correta, ou seja, 11/02/2019, nos termos dos artº 249º do CCivil e 614º nº1 do CPC.
O que se efetivará.
5.1.3.1.
Quanto aos factos considerados por conclusivos que a recorrente entende deverem ser considerados como não escritos.
Relativamente às expressões constantes nos factos não provados VIII IX, X e XII.
Os factos não provados – ao menos por via de regra de que o presente caso não constitui exceção – são um «nada jurídico», irrelevando pois para a decisão da causa.
Por conseguinte, é indiferente o teor da matéria – factual ou conclusiva – que nesse facto irrelevante conste.
Quedando assim até vedado, por virtude da proibição da prática de atos inúteis – artº130º do CPC - estar a dilucidar-se se a matéria ou as asserções constantes em tais pontos não provados, constituem, ou não, factualidade conclusiva.
Assim sendo, resta a análise para a matéria do facto provado 22.
Tem ele o seguinte teor:
22. O DD utilizava regularmente a aeronave propriedade da Autora e guardava consigo a chave da mesma para sua utilização, com conhecimento e anuência do legal representante da Autora e no seu interesse;
Nesta sede urge ter presente que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que, as mais das vezes, não tragam em si implicados juízos conclusivos sobre outros elementos de facto.
Assim, e sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger, tem-se entendido que não se deve ser demasiado rigoroso e ortodoxo nesta matéria.
Decorrentemente, e desde logo, importando verificar se o facto mesmo com uma componente conclusiva, não tem ainda um substrato relevante para o acervo dos factos que importam para uma decisão justa.
Até porque o significado e alcance de muitas e termos jurídicos já são apreensíveis pelo homem comum.
Destarte, tem-se entendido que um facto mesmo que conclusivo ou integrante de uma norma ou conceito jurídico, é de manter no rol do acervo factual e considerar em sede de exegese jurídica desde que estejam preenchidos dois requisitos essenciais, a saber:
i) Se a sua interpretação não implicar o recurso a qualquer regra de direito, sendo apreensível e compreensível pelos sentidos e pelo intelecto do homem comum e por este utilizado na sua linguagem corrente;
ii) Se ele, só por si, não contem, desde logo, um juízo sobre uma questão jurídica ou a decisão da própria causa, quer em termos de procedência quer de improcedência. – cfr. Acs. do STJ de 14-07-2021, proc.º 19035/17.8T8PRT.P1.S1; de 12-03-2014, proc.º n.º 590/12.5TTLRA.C1.S1; de 14.07.2021, proc.º 19035/17.8T8PRT.P1.S1; e Ac. TRP de 27.09.2023, p. 9028/21.6T8VNG.P1, todos in dgsi.pt.
No caso vertente estes requisitos encontram-se presentes.
Liminarmente a expressão «no seu interesse» é precedida de factualidade concreta.
Depois, tal expressão tem ínsita uma ideia de proveito, material ou moral.
Ora este significado é percetível pelo homem médio.
Finalmente, nem esta expressão, nem sequer este ponto de facto, decide, só por si, o mérito da causa.
Na verdade, este mérito é decido em função da prova, ou não prova, de outra factualidade, desde logo, a montante e essencialmente, a atinente à prova de factos relativos à atuação ilícita e culposa por banda dos progenitores das rés, a qual nem sequer integra o cerne deste ponto.
Por conseguinte, o seu teor é de manter im totum.
5.1.3.2.
Mais pretende a recorrente a prova do facto não provado VII, a saber:
vii. As manobras da aeronave realizadas com atitudes de voo pronunciadas a baixa altitude, associadas à falta de treino e qualificação em voo acrobático do piloto instrutor, demonstraram-se fatores chave para o desfecho do evento;
(Sublinhado nosso).
Aqui, e como dimana da expressão sublinhada, é que há teor conclusivo.
Pois que se estabelece uma inexorável relação entre as manobras e a ocorrência do sinistro, fixando-se, assim, a ilicitude - e até a culpa – na atuação dos falecidos.
Ora, se as manobras que se provaram, estavam, ou não estavam, vedadas praticar, e se, praticadas, foram, ou não foram, apropriadas/adequadas para a queda da aeronave, é conclusão a retirar de todos os factos concretos provados e não provados, e da subsunção destes factos à lei aplicável, na melhor interpretação que desta se possa operar.
Por conseguinte, este ponto, desde logo por isto, não poderia ser dado como provado, porque ele, só por si, decidia a causa, ou no mínimo, contribuía inelutável e essencialmente, para a sua decisão.
Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, tal facto não poderia ser dado como provado por razões mais substantivas.
A julgadora fundamentou a sua convicção nos seguintes termos:
«Os factos vii), viii), xix), xi) e xii) não se ajustam as manobras comprovadamente efetuadas na realização do voo nem em qualquer outra conduta que tivesse ficado demonstrada.»
Já a recorrente entende que ele deveria ser dado como provado com base no RELATÓRIO FINAL DE INVESTIGAÇÃO DE SEGURANÇA DE ACIDENTE, relativo ao sinistro em causa, elaborado pelo GPIAAF – Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários, que, no essencial, não foi desmentido ou descredibilizado por nenhuma outra prova.
Mas, sdr, por entendimento diverso, não é bem assim.
Certo é que no relatório se dá como plasmado o teor deste facto não provado.
Mas também nele se expende, adrede, que:
«Foram constatadas discrepâncias nas caraterísticas físicas da aeronave… relativamente aos dados fornecidos para a obtenção da autorização de voo, situação que não foi detetada pela autoridade de certificação nacional … o INAC».
Assim:
«…dados dos acidentes ocorridos nos últimos anos…sugerem que o modelo poderá não cumprir alguns dos parâmetros de certificação ASTM declarados pelo fabricante».
Destarte:
«Os danos das pás da hélice são consistentes com o motor em potência reduzida no momento do impacto com o solo, indiciando que o motor terá deixado de produzir potência …devido a uma condição de aceleração vertical negativa,(abaixo de 1g).
Sendo que, porém, foi expressado:
«Não se pode excluir a possibilidade de falha do motor por ausência de alimentação de combustível pelo sistema de carburador, diminuindo a efetividade dos comandos dos lemes e de profundidade e direção»
Daqui decorre que de tal relatório emerge que as causa da queda podem ter sido várias, sem que, em concreto, se tenha apurado qual, ou quais, efetivamente o foram.
Aliás, uma das causas possíveis, a saber, a paragem do motor, foi dada como provada no facto 7.
E contra essa prova a autora não se insurgindo.
Enfim, no mínimo tem de concluir-se que existe uma dúvida insanável quanto à causa da queda, pelo que, aproveitando o facto ora pretendido provar à autora, tal dúvida resolve-se contra ela, não podendo o mesmo ser dado como provado – artº 414º do CPC.
5.1.4.
Decorrentemente, e no indeferimento desta pretensão, os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber:
1. DD faleceu no dia 09/06/2019, no estado de divorciado, tendo deixado como única herdeira a sua filha, AA (1ª Ré) – doc. 1 pi;
2. EE faleceu no dia 09/06/2019, no estado de divorciado, tendo deixado como única herdeira a sua filha, BB (2ª Ré), nascida a ../../2015, também filha de CC – docs. 2 e 3 pi;
3. A Autora, “A..., Lda.” é dona do avião terrestre (aeronave ultraleve), marca BRM AERO s.r.o, modelo BRISTELL UL, com o nº de série de fabricante ...12, com as marcas de nacionalidade e de matrícula CS-..., equipado com motor marca Rotax, modelo 912ULS (100HP), com o nº de série ...84 e hélice marca Woodcomp s.r.o, tripá modelo Klassic 170/3/R, com o s/n ...83..., mostrando-se o mesmo registado no Registo Aeronáutico Nacional em nome da Autora desde 23/02/2012 – doc. 4 pi;
4. No dia 02/06/2019, o gerente da Autora, FF, realizou um voo com a referida aeronave, tendo aterrado no aeródromo de Leiria (LPJF), sito na Gândara dos Olivais, onde ficou (e por regra estava) estacionada no respetivo hangar;
5. No dia 09/06/2019, cerca das 15:10 horas, o DD e o EE deslocaram do mencionado aeródromo com a aeronave CS-..., tripulando ambos essa aeronave, indo o EE sentado à esquerda, e o DD sentado à direita;
6. Após cerca de 45 minutos de voo, a aeronave realizou uma passagem baixa na pista 20 do mencionado aeródromo (sentido norte/sul);
7. Em seguida, subiu com um ângulo pronunciado e efetuou uma volta de cerca de 45 graus pela esquerda (sentido sul/norte), após o que, tendo parado o motor, e perdido o controlo da aeronave, esta iniciou uma descida até se imobilizar a cerca de 100 metros da pista 02 do referido aeródromo, com as asas praticamente niveladas;
8. Imediatamente após a colisão com o solo, a aeronave incendiou-se, tendo sido totalmente consumida pelas chamas;
9. Em face da sua categoria e modelo – “Bristell UL” -, a aeronave CS-... não suportava a realização de manobras acrobáticas;
10. O aeródromo esteve em obras entre os dias 07/06/2019 e 14/06/2019;
11. Nas circunstâncias referidas em 5 a 7 o DD e o EE não fizeram um plano de voo para o sobredito voo (nem era obrigatório);
12. Uma aeronave nova com as características de marca, modelo e equipamento da CS-... custa 127.215,00€, mais IVA à taxa legal de 23%, o que totaliza 156.474,45€;
13. A aeronave descrita em 3 tinha 7 anos e 300 horas de voo;
14. Havia sido inspecionada pela Autoridade Nacional de Aviação Civil para revalidação do certificado de voo a 16/02/2017, cumprindo, de acordo com essa Autoridade, os requisitos da legislação em vigor;
15. Fora submetida a uma manutenção técnica em 11/02/2019 e encontrava-se em bom estado de conservação e funcionamento, sem quaisquer deficiências que afetassem a sua normal utilização;
16. Tendo no mercado do setor, pelo menos, o valor de 75.000,00 € mais IVA à taxa legal de 23% (totalizando 92.250,00€);
17. Após a colisão a aeronave ficou sem qualquer valor comercial.
18. A colisão foi causa direta da morte do DD e do GG, ocorridas nesse mesmo dia;
19. O falecido DD era instrutor, possuindo mais de 4.000 horas de voo de experiência, tendo servido durante 4 anos a Força Aérea
20. O DD foi o piloto instrutor do legal representante da Autor (FF, com quem “ia voar” na aeronave da Autora, existindo entre ambos uma relação de confiança;
21. E voava com o falecido EE, a pedido deste e do legal representante da Autora;
22. O DD utilizava regularmente a aeronave propriedade da Autora e guardava consigo a chave da mesma para sua utilização, com conhecimento e anuência do legal representante da Autora e no seu interesse;
23. EE efetuou cerca de 39 horas de voo naquela aeronave, sendo a grande maioria efetuadas na presença de DD, como piloto instrutor, e as outras na presença do legal representante da Autora;
24. O FF entregava a chave da aeronave ao DD, para que este a pudesse utilizar, mesmo quando aquele não se encontrava presente;
25. E o DD não necessitava de contatar FF para lhe pedir permissão todas as vezes que utilizasse a aeronave, pois tinha sido por ele autorizado a utilizá-la e a pilotá-la sempre que necessário;
26. Na data referida em 5, o falecido HH não efetuou qualquer manobra que não realizasse habitualmente e de que a Autora não tivesse conhecimento através do seu legal representante FF;
27. A Autora, entre os serviços que presta na sua atividade, promove “batismos de voo”, “voos panorâmicos”, “aluguer de aeronaves” – doc. 1 cont.;
28. E era nessa qualidade que EE, pai da Ré BB, utilizava com frequência a referida aeronave;
29. Por regra, o EE agendava com DD o dia e hora do voo, e comunicava ao representante legal da Autora, FF, solicitando a disponibilização da aeronave para a realização do voo
30. A aeronave estava dotada de comandos em ambos os assentos;
31. A aeronave pertença da Autora esteve segura na B... – Companhia de Seguros SA através de contrato de seguro titulado pela apólice ...98 até ao dia 19/06/2019, data em que foi anulado por perda total, não possuindo, no dia 09/06/2019, qualquer cobertura de seguro de CASCO – por perda ou dano da aeronave em consequência de acidente em voo, rolagem ou solo;
32. Por virtude da destruição da aeronave, a B...- Companhia de Seguros, SA não pagou qualquer indemnização à Autora
5.2
Segunda questão.
5.2.1.
A julgadora decidiu pela improcedência da ação no entendimento de que, perante os factos provados, não estavam presentes todos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual, vg. a ilicitude e a culpa – aduziu, para tanto, os artºs 483º e 487º do CCivil.
Já a recorrente entende que tais pressupostos se encontram provados e, ademais, considerando que o caso quadra na previsão do artº 493º nº2 do CCivil, sendo, assim, a ilicitude e a culpa dos falecidos presumida.
E porque competia às rés ilidir tal presunção, não o tendo feito, a ação deve proceder.
Perscrutemos.
Liminarmente há que dizer que a invocação do regime do artº 493º nº2 do CC não é de aceitar, quer por motivos formais, quer por razões substantivas.
Naquela vertente há que dizer que apenas agora, em sede recursiva, a autora vem invocar tal regime.
Na verdade, e em sede de pi, nem sequer invocou qualquer norma jurídica para sustentar a sua pretensão.
Confrontada pelas rés com tal atuação, veio, em sede de resposta, invocar o regime do artº 483º e sgs. do CCivil.
Porém, neste regime há normas gerais e normas especiais, vg. no que tange à atribuição de ónus probatórios.
Naquele regime geral o ónus da prova de tais elementos constitutivos impende sobre o demandante – artº 487º do CPC.
Já no regime exceção do artº 493º nº2 o autor não está onerado com tal ónus, pois que se presume que o agente de uma atividade perigosa atua com culpa.
E assim sobre este impendendo o ónus de ilidir tal presunção, o que apenas pode fazer se provar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir e evitar o dano.
Ora, à míngua de referência expressa pela autora ao regime exceção, tem de concluir-se que ela se referia ao regime regra ou geral.
Tanto assim que este foi o único perspetivado e acolhido na sentença.
As sucessivas reformas processuais, em abono de uma litigância breve, leal e escorreita, têm vindo a diminuir o número dos articulados, impondo que, por via de regra, todos os argumentos, jurídicos e factuais, sejam concentrados – princípio da concentração do atos processuais - na petição inicial e na contestação – cfr. vg., os artºs 552º nº1 al. d) e 573º do CPC.
Destarte, não tendo a autora invocado na petição, nem sequer em primeira instância, o regime excecional aludido, nem este regime tendo sido ventilado na sentença – sendo até duvidoso que o pudesse ser, pois que apesar do brocardo, de jure novit curia, o tribunal não pode alterar substancialmente, ex vi dos princípios do dispositivo, da substanciação e da autorresponsabilidade das partes, o módulo jurídico delineado pelas partes –, não pode agora a recorrente vir alegar tal regime excecional (o que, naturalmente, faz apenas porque não obteve ganho no regime geral da responsabilidade aquiliana que antes apenas invocou).
Até porque, destinando-se consabidamente o recurso apenas a reapreciar questões – de facto e de direito – antes decididas, e não já a julgar questões não decididas, e, assim, novas, a questão do regime do artº 493º - o qual, reitera-se, é excecional por reporte ao regime regra dos artºs 483º e 487º, devendo, pois, adrede antes ter sido invocado -, constitui uma questão nova que está fora dos poderes jurisdicionais deste tribunal ad quem.
5.2.2.
Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, o regime excecional do artº 493º nº2 do CCivil não teria aqui aplicação.
Estatui este segmento normativo:
«2. Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.»
Efetivamente tem-se entendido que:
«IV - A lei não indica, porém, um elenco de actividades que devam ser qualificadas como perigosas para efeitos dessa norma e também não fornece um critério em função da qual se deva afirmar a perigosidade da actividade, esclarecendo apenas que, para o efeito, tanto releva a natureza da própria actividade como a natureza dos meios utilizados.
V - A perigosidade é apurada caso a caso, em função das características casuísticas da actividade que gerou os danos, da forma e do contexto em que ela é exercida. Trata-se afinal de um conceito indeterminado e amplo a preencher pelo intérprete e aplicador da norma na solução do caso concreto, o que deve ser feito tendo por base a «directriz genérica» indicada pelo legislador.
VI – Deve ser considerada perigosa a actividade que possui uma especial aptidão produtora de danos, um perigo especial, uma maior susceptibilidade ou aptidão para provocar lesões de gravidade e mais frequentes.
VII - A actividade perigosa, geradora de culpa presumida, é todo o processo construtivo, globalmente levado a efeito com determinado meio dotado de elevada potencialidade para causar danos - escavações, abertura de vala, remoção de inertes, elevação e transporte de cargas (manilhas) – e não apenas cada uma dessas operações, isolada e atomisticamente considerada.» - Ac. STJ de 17.05.2017, p. 1506/11.1TBOAZ.P1.S1, in dgsi.pt, como os infra cits.
Noutra perspetiva, ou por outras palavras:
«2. O preenchimento de tal conceito («atividade perigosa»), pressupõe uma especial probabilidade de «aquela concreta atividade» causar um dano a terceiro, significando isto que é necessário que a concreta atividade desenvolvida pelo lesante acarrete um perigo que vá para além do que é normal noutras atividades, sendo expectável que dela possam resultar danos que, em termos de normalidade, não ocorreriam noutra atividade.
3. “Atividade perigosa” é, assim, aquela, cujo perigo, que objetivamente a encerra, acompanha o seu correto e adequado exercício, mesmo enquanto «tudo correr bem» e ainda que «tudo corra bem», e não aquela que apenas recebe tal qualitativo quando algo corre mal e o dano acontece, pois que a perigosidade é aferida a priori, residindo no próprio processo, e não no resultado danoso, muito embora a magnitude deste possa evidenciar o grau de perigosidade da atividade.» - Ac. TRL de 22.06.2021, p. 1694/18.6T8PDL.L1-7.
(realce e sublinhado nossos)
Ora a atividade de voar e o respetivo processo não são, em si mesmos ou pelos meios utilizados, atividade perigosa.
Pode até sê-lo em alguns dos seus aspetos ou particularismos.
Mas, como dimana dos aludidos arestos, tal não basta, pois que se exige a perigosidade da atividade na consideração do seu conjunto ou da globalidade de todos os seus aspetos e procedimentos tendentes à prossecução e consecução da sua finalidade precípua: a mobilidade célere e segura dos seus utentes.
Ademais, e como se viu, a perigosidade tem de existir liminarmente e desde logo em potência, e mesmo que tudo possa correr bem.
Assim sendo, reitera-se, não se antolha onde queda a perigosidade da presente atividade.
A atividade aeronáutica existe há mais de cem anos, sendo quase tão antiga como a atividade rodoviária.
Estatisticamente os acidentes aéreos são muito mais raros do que os rodoviários.
Largos meses ou até anos há em que, apesar das muitas centenas de milhar ou até de milhões de voos, e das largas dezenas de tipos de aviões que voam, inexistem quedas, ao menos com ocorrência de vítimas mortais.
Aliás, muitas quedas nem sequer têm origem em falhas mecânicas, mas antes em falhas humanas – involuntárias ou mesmo voluntárias: atentados -; mas estas falhas também podem ocorrer em outras atividades, como, vg. a rodoviária ou naval.
Ademais, como alega a autora, e é sagazmente notado pelas rés, tal atividade é fortemente regulamentada, obviamente no sentido e a tornar cada vez mais fiável e segura, o que efetivamente se tem vindo a verificar.
Decorrentemente, reitera-se, não se alcança que esta atividade seja de considerar perigosa, quer em si mesma, quer, principalmente, por reporte e comparação com outras atividades, como, vg., a rodoviária ou naval.
O que, como do supra expendido decorre, apenas poderia ser concluído se, quando se está a entrar num avião, haverá que contar com a, real e séria, possibilidade de vir a existir um qualquer acidente/incidente no voo.
Máxime, e no que ora interessa e releva, que possa haver uma queda do avião, com o decesso dos seus passageiros.
Se assim fosse, naturalmente que o trafego aéreo deixaria de existir ou diminuiria drásticamente, pois que o normal e prudente utente não arriscaria a sua utilização.
Como bem expendem as recorridas, há que chamar à colação também o Assento – Hoje AUJ – Assento n.º 1/80, de 29 de janeiro, publicado no Diário da República n.º 24/1980, Série I de 1980-01-29, no qual foi fixado que:
«O disposto no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre.»
Ora se assim é para atividade rodoviária, por igualdade de razão ou até, por maioria de razão – argumento a fortiori, e porque a atividade aeronáutica é ainda menos mortífera do que a rodoviária -, o deve ser para a atividade aeronáutica.
5.2.3.
Improcedente esta pretensão, resta a dilucidação perante o regime geral da responsabilidade aquiliana.
Como se diz na sentença e é consabido, esta responsabilidade apenas emerge quando o lesado prove os seus elementos constitutivos, a saber:
a) O facto (facto humano controlável ou dominável pela vontade); b) A ilicitude do facto (nas modalidades de violação de direitos subjetivos ou de disposições legais destinadas a tutelar interesses alheios); c) O nexo de imputação do facto ao agente (que abarca a imputabilidade e a culpa); d) O dano; e e) O nexo causal entre o facto e o dano.
No caso vertente a questão passa, desde logo e determinantemente, por apurar se os falecidos agiram ilicitamente e com culpa.
A Srª Juíza teorizou acertadamente nos seguintes termos:
«Quanto à ilicitude do facto, que se identifica com a violação de direitos subjetivos ou de normas legais destinadas a tutelar interesses alheios, no caso em apreço, temos que, na versão da Autora, os factos sobre os quais há-se recair um juízo de ilicitude se traduzem, quer na apropriação indevida da aeronave, quer pela falta de um plano de voo, quer por aquela concreta aeronave estar impedida de voar naquele local e naquela data, por ser uma aeronave particular, não estando associada ao Aeroclube de Leiria, não tendo nenhum deles ficado demonstrado.
O seguinte requisito constitutivo da obrigação de indemnizar é a culpa.
Esta – que pode revestir as modalidades de dolo ou negligência – exprime um juízo de reprovação pessoal em relação ao agente lesante. A conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo2
De acordo com o disposto no artigo 487º, nº 1, do C. Civil, é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.
A culpa é no nosso ordenamento jurídico, apreciada em abstrato pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso. Aponta-se, assim, para o critério tradicional da apreciação em abstrato segundo a diligência do homem médio – cfr. artigo 487º, nº 2, do C. Civil.
Este padrão (abstrato) na apreciação da culpa não deixa de exigir, no entanto, uma ponderação do circunstancialismo do caso concreto, mormente, dos condicionalismos da situação e do tipo de atividade em causa.»
Concluindo para o caso decidendo:
«No caso, a culpa traduz-se na utilização temerária, com imperícia e violação das normas de utilização dessa aeronave por parte dos pilotos, pela realização de manobras acrobáticas não suportadas.
Em face da matéria de facto provada, não se afigura que a atuação do DD e do EE mereça qualquer censura, não se podendo concluir que tenham tripulado aquela aeronave sem usar da perícia, conhecimentos, diligência, cuidado, ponderação e habilidade exigíveis, ou que tenham realizado qualquer tipo de manobra por ela não aprovada, sabendo ou podendo admitir que a aeronave as não suportaria.»
Já a recorrente defende que:
«…a navegação aérea, a pilotagem de aeronaves, é incontornavelmente uma atividade de superlativa perigosidade.
Assim, in casu, sobre os pais das rés, dado que ambos dispunham dos comandos da aeronave em causa e os dois a pilotavam, detendo, portanto, um e outro, o domínio do facto, recaía um «dever geral de prevenção de perigo», ou se se preferir, «deveres de prevenção do perigo, deveres no tráfego ou deveres de segurança no tráfego».
…encontrando-se o aeródromo em obras, os pais das rés, ambos pilotando a aeronave da autora, descolaram desse aeródromo, e depois de cerca de 45 minutos de voo realizaram uma passagem baixa na pista 20 do mesmo (sentido norte/sul), subiram com um ângulo pronunciado e efetuaram uma volta de cerca de 45 graus pela esquerda (sentido sul/norte), após o que o motor da referida aeronave parou e aqueles perderam o controlo da mesma, a qual iniciou então uma descida até se imobilizar a cerca de 100 metros da pista 02 do aeródromo, tendo-se incendiado imediatamente após ter colidido com o solo e ficado totalmente consumida pelas chamas, ao que acresce que a aeronave em causa fora submetida a uma manutenção técnica cerca de 7 meses antes e encontrava-se em bom estado de conservação e funcionamento, sem quaisquer deficiências que afetassem a sua normal utilização, não suportando, no entanto, a realização de manobras acrobáticas, por virtude da sua categoria e modelo (factos 5 a 10, 15 e 30).
«As manobras da aeronave realizadas com atitudes de voo pronunciadas a baixa altitude, associadas à falta de treino e qualificação em voo acrobático do piloto instrutor, demonstraram-se fatores chave para o desfecho do evento».
Perante estes factos, impõe-se concluir que os pais das rés incumpriram o sobredito «dever geral de prevenção de perigo», ou se se preferir, os «deveres de prevenção do perigo, deveres no tráfego ou deveres de segurança no tráfego» que sobre eles recaíam.».
A argumentação da recorrente assenta em dois pressupostos essenciais, a saber: i) que estamos perante uma atividade perigosa; ii) e que, perante a pretendida prova do facto não provado VII, se provou o nexo causal entre as manobras efetuadas e a queda do aparelho.
Porém, como se viu, tais pressupostos não foram acolhidos.
A questão tem, pois, de apreciar-se apenas à luz do acervo factual apurado e por reporte ao regime normal dos artºs 483º e 487º do CCivil.
Ora perante tal acervo e, vg., estes preceitos, o entendimento da Julgadora é de sufragar.
Isto porque, desde logo, não se provaram factos essenciais para atribuir um ato ilícito e culposo às vitimas.
Designadamente, não se apurou que:
a- tenham utilizado a aeronave sem conhecimento e consentimento da Autora, disso estando ambos conscientes,
b- Que a volta, após subida, fosse de 180 graus pela esquerda, iniciando nova passagem baixa, desta vez na pista 02 desse aeródromo, e tornando a subir pronunciadamente até cerca de 600 pés, com volta novamente à esquerda, antes da descida não controlada;
c- A trajetória de voo seguida pela aeronave evidencia a adoção de atos inseguros do piloto, complacência, pressão autoimposta, excesso de confiança e atitude mental de invulnerabilidade;
d- que tenha havido um erro de decisão do piloto;
e- Que elas sabiam que as manobras realizadas na aeronave, descritas em 6 e 7, eram manobras acrobáticas, e sabiam que a aeronave não estava preparada nem suportava manobras acrobáticas;
f- A colisão da aeronave CS-... ocorreu em virtude da falta de controlo da mesma pelos pilotos ao realizarem as sobreditas manobras não aprovadas a baixa altitude;
g- Sendo, portanto, consequência da temeridade, imperícia e violação das normas de utilização dessa aeronave por parte dos pilotos;
h- Que nas circunstâncias referidas em 5 a 7 o DD e o EE tivessem que ter um plano de voo por ser obrigatório;
i- Que a Autora não teria autorizado o voo naquelas características (mesmo que tivesse conhecimento);
j- Que as vitimas sabiam que não tinham autorização da Autora para realizar tal voo,
k- Como sabiam que aquela aeronave não estava autorizada a voar de e para tal aeródromo por ser particular e não estar associada ao Aeroclube de Leiria;
E quanto aos factos provados, apesar de se ter apurado que a avioneta «subiu com um ângulo pronunciado e efetuou uma volta de cerca de 45 graus pela esquerda» e que ela não suportava manobras acrobáticas, não se pode concluir que tal manobra deva ser classificada de acrobática.
Acrobática poderia ser taxada a alegada manobra de 180 graus; mas ela não foi provada – ponto b supra.
Por outro lado, provou-se que
«26. O HH não efetuou qualquer manobra que não realizasse habitualmente e de que a Autora não tivesse conhecimento».
Ademais, provou-se que o motor parou – ponto 7.
Este facto é determinante.
Pois que se o motor deixou de funcionar, a conclusão mais normal a retirar é que a causa normal da queda – e porque não foi provado que a avioneta, como pode acontecer com algumas aeronaves mais desenvolvidas tecnicamente, pudesse manter-se no ar, ao menos por algum tempo, planando, e dando ao piloto a possibilidade de, neste estado, poder aterrar, - foi esta paragem.
De qualquer modo, esta causa não pode ser imputada aos fenecidos.
Pois que não se apurou que a paragem tivesse resultado de qualquer manobra proibida por eles efetuada, ou de qualquer descuido na verificação técnica da aeronave que a eles cumprisse efetivar, e, assim, a eles, por este facto ou por qualquer outro, fosse imputável.
Antes a paragem podendo ter ocorrido por outras causas como seja a admitida no relatório, qual seja, o combustível ter deixado de chegar ao motor.
Enfim, tal como entendido na sentença, este é um caso em que as causas do sinistro não estão apuradas e fixadas, ao menos dentro da margem de álea em direito permitidas.
Antes existindo uma dúvida sobre as mesmas, as quais, como se viu, no domínio do abstrato e das hipóteses, podem ter sido várias.
Em todo o caso, e estando nós dentro do regime geral da atribuição do ónus da prova – artºs 342º nº1, e 487º do CC - impendia sobre a autora, o ónus de provar factos que convencessem sobre a identificação/fixação da(s) causa(s) da queda, e, bem assim, que as mesmas resultaram de os falecidos terem violado, ademais culposa ou ao menos com negligência censurável, normas legais, regulamentares ou técnicas da aviação.
Como se viu, e perante os factos apurados, tem de retirar-se que ela não cumpriu tal ónus.
Destarte, resta a final e inelutável conclusão que o recurso tem de ser julgado improcedente e a sentença mantida.
6.
Deliberação.
Termos em que se acorda julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmar a sentença.
Custas pela recorrente.
Coimbra, 2025.02.11.