I – A não indicação, nem nas conclusões, nem no corpo das alegações, das exatas passagens da gravação em que se funda o recurso da decisão sobre a matéria de facto, implica a imediata rejeição deste na parte afetada – artº 640º nº2 al. a) do CPC.
II – Considerando que, afinal, quem aprecia e julga é o juiz e não a parte, a censura sobre a convicção do julgador em sede de apreciação da prova, apenas pode ser concedida – máxime perante prova pessoal e considerando os benefícios da imediação e da oralidade – se tal convicção se revelar manifestamente desconforme à prova invocada.
III - A impenhorabilidade relativa do nº1 do artº 737º do CPC apenas emerge se as entidades aí referidas provarem – artº 342º nº2 do CCivil - que todo o bem penhorado está especial, direta, e exclusivamente, adstrito à realização de fins de utilidade pública, os quais, sem ele, serão de impossível ou de muito difícil consecução.
(Sumário elaborado pelo Relator)
ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
1.
AA instaurou contra o Município ..., ação executiva.
O executado deduziu oposição à penhora.
Pediu:
Se determine o levantamento da penhora incidente sobre o depósito bancário de que é titular e que se defira a “indicação de bens para penhora” por si requerida; ou, subsidiariamente, que os bens penhorados sejam substituídos pelos bens identificados no requerimento inicial.
Para tanto alegou:
As penhoras efetuadas em sede de ação executiva violam os princípios da proporcionalidade e da adequação, em virtude de todas as contas bancárias por si tituladas terem sido objeto de penhora, “todas elas pelo mesmo montante, que é o do valor da execução e demais despesas prováveis. Isto, em lugar de ser apenas penhorada uma que apresentasse um valor depositado igual ou superior àquele.
Acresce que, sendo uma pessoa coletiva de Direito Público, todo o seu acervo patrimonial “se destina ao cumprimento e à prossecução de fins públicos”, razão pela qual, em conformidade com o disposto no artigo 737º, n.º 1, do CPC, os depósitos bancários de que é titular são impenhoráveis.
Em concreto, a conta de depósitos à ordem por si titulada na Banco 1..., SA é movimentada diariamente para efetuar pagamentos relacionados com o “abastecimento de luz elétrica pública, de água potável aos domicílios, de gás (Repsol e Petropen), o apoio na alimentação e cuidados de saúde e higiene a pessoas carenciadas e idosas, o transporte escolar e de munícipes, a gestão de resíduos e outros”.
Por fim, em substituição da penhora já efetuada no âmbito da ação executiva, o Município executado vem indicar à penhora onze obras de arte criadas pela própria exequente.
A exequente contestou.
Disse que a verba destinada a uma eventual condenação do Município foi incluída no orçamento para o ano financeiro de 2024, encontrando-se cabimentada.
Assim, ela tem que estar em conta bancária e não podendo ter outro destino que não seja o de liquidar a dívida para com a Exequente.
Para além disso, a conta bancária titulada pelo Município executado “é uma conta destinada às mais diversas operações de tesouraria”, não se encontrando “especialmente afetada ao pagamento de realizações cujos fins são de utilidade pública”, o que significa que as quantias nela depositadas podem ser penhoradas.
Por último, alega que “não cabe ao executado oponente vir pedir ou invocar o direito a requerer ou promover qualquer indicação de bens à penhora ou a substituição dos bens penhorados”, tanto mais que algumas das obras de arte identificadas no requerimento inicial integram o acervo de bens culturais do Município, enquanto outras pertencem a obras que já foram pelo mesmo entregues à exequente.
2.
Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:
«Nos termos e com os fundamentos já indicados, julgo improcedente o incidente de oposição à penhora deduzido pelo executado Município ..., mantendo, em consequência, a penhora do depósito bancário a que houve lugar nos autos de execução e indeferindo o pedido de substituição de tal penhora.»
3.
Inconformado recorreu o executado.
Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª
No entender do recorrente, como supra-demonstrado, resultam das declarações prestadas em depoimento de parte e pela testemunha BB, a prova dos factos referidos em 1 e 2 da matéria de facto considerada não provada pelo tribunal a quo, alteração que deverá ser determinada por Vossas Excelências, com (entre as mais) consequente procedência do presente recurso.
2.ª Ainda que, sem prescindir do referido em 1.ª, Vossas Excelências entendam não ser de alterar a matéria de facto dada por provada e não provada pela douta sentença recorrida, no entender do ora recorrente os factos provados 8 e 9 da decisão sobre a matéria de facto da douta sentença recorrida deveriam ter conduzido à consideração de que a penhora do saldo ou depósito bancário em causa, por violação do art. 737/1 do CPCivil, era ilegal, por ser, em absoluto, bem não sujeito, ou isento, de penhora.
3.ª Ao caso, não deverá revelar senão o critério legal definidor da (im)penhorabilidade: estar ou não o saldo bancário existente na conta penhorada “especialmente afeto à realização de fins de utilidade pública”.,irrelevando pois se por via dessa conta porventura foi esporadicamente efetuado um pagamento que pudesse não ser enquadrável (e nem sequer se vislumbra qual pudesse assim ser, pois os Municípios estão vinculados, em exclusivo, à satisfação de fins de utilidade pública, embora municipal) naquele conceito de “especialmente afeto à satisfação de fins de utilidade publica”.
4.ª O certo é que aquele concreto depósito bancário que foi penhorado estava e está especialmente vocacionado para proceder a pagamentos que satisfazem as mais relevantes obrigações do ora recorrente, enquanto Município, para com os seus munícipes, tais como todos os elencados em 8 e 9 da decisão sobre a matéria de facto, quanto aos factos provados.
5.ª Note-se também que muitos outros bens municipais, mesmo do domínio privado do município, poderiam (poderão ?) ter sido (ser ?) penhorados, mas como referido a penhora deste concreto saldo bancário é ilegal pois evidente se demonstrou estar especialmente afeto a necessidades civilizacionais básicas indicadas em 8 e 9 da matéria de facto dada por provada na douta sentença recorrida.
6.ª Por outro lado, a impenhorabilidade prevista no art.º 731º do CPCivil não faz impender qualquer demonstração ou prova de eventuais incumprimentos financeiros ou prejuízos decorrentes da cativação das verbas penhoradas.
7.ª Logo, deve ser de qualquer forma revogada a douta sentença recorrida, sendo substituída por douto acórdão que assim determine, considerando ilegal a penhora em causa, o que requer a Vossas Excelências assim se dignem deliberar.
Contra alegou a exequente, pugnado pela manutenção do decidido, com os seguintes argumentos finais:
1 – A alteração da matéria de facto pretendida pelo Recorrente padece de todo e qualquer fundamento e, ainda, a sua fundamentação não é objectiva e não contém qualquer elemento que a sustente, inclusivamente, não se sabendo a que se refere.
2 – O Recorrente não alegou nem demonstrou que a quantia penhorada estivesse especialmente afecta a qualquer pagamento de despesa relativa a fim de interesse e utilidade pública.
3 – O Recorrente alega não sabendo distinguir “Interesse público” de “Interesse do público” tudo numa confusão tal que até parece que na sua prática essa destrinça não existe.
4 – Não há qualquer violação de interpretação e aplicação do direito na sentença alvo do recurso nos presentes autos e jamais foi alegado e provado que o depósito penhorado estivesse especialmente afectado a qualquer fim de utilidade pública.
5 - O Tribunal fez correcta interpretação e aplicação do disposto no Artº 737, nº 1 do C.P.C.
6 – A Recorrida não aceita a substituição da penhora do depósito bancário por qualquer outro bem tal como pretenderá o Recorrido.
4.
Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:
1ª - Alteração da decisão sobre a matéria de facto.
2ª- Impenhorabilidade do depósito bancário – artº 737º nº1 do CPC.
5.
Apreciando.
5.1.
Primeira questão.
5.1.1.
No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5 do CPC.
Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação – cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.
O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente; mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed. III, p.245.
Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.
Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.
Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.
Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.
Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.
Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.
O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.
E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.
Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005 e de 23-04-2009 dgsi.pt., p.09P0114.
Nesta conformidade constitui jurisprudência sedimentada, que:
«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010,, p. 73/2002.S1. in dgsi.pt pt; e, ainda, Ac. STJ de 02-02-2022 - Revista n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1.
5.1.2.
Por outro lado, e como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genericamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.
A lei exige que os meios probatórios invocados imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida.
Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da sua, subjetiva, convicção sobre a prova.
Porque, afinal, quem tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz.
Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve o recorrente efetivar uma análise concreta, discriminada – por reporte de cada elemento probatório a cada facto probando - objetiva, crítica, logica e racional, do acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.
A qual, como é outrossim comummente aceite, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito probatório permitida e que lhe é concedida.
E só quando se concluir que a natureza e a força da prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção, se podem censurar as respostas dadas.– cfr. neste sentido, os Acs. da RC de 29-02-2012, p. nº1324/09.7TBMGR.C1, de 10-02-2015, p. 2466/11.4TBFIG.C1, de 03-03-2015, p. 1381/12.9TBGRD.C1 e de 17.05.2016, p. 339/13.1TBSRT.C1; e do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1., todos in dgsi.pt;
5.1.3.
Finalmente urge ter presente os requisitos formais da impugnação.
Neste sentido, estatui o artº 640º do CPC:
«1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;»
Nesta vertente da al. a) do nº2, urge ter presente que não basta a indicação do inicio e fim do depoimento no respetivo suporte magnético.
É que:
«…A indicação precisa do início e termo das concretas (…) passagens da gravação destina-se a simplificar a tarefa da Relação na reapreciação da prova gravada, não só chamando a atenção para aquela parte do depoimento, como tornando mais fácil e célere a respetiva localização na gravação, sabido como é que, em regra, cada testemunha depõe sobre mais do que um facto. De outra forma bastaria que o recorrente impugnasse a decisão sobre a matéria de facto cumprindo todos os ónus estabelecidos no art. 640º do CPC, com exceção do determinado na al. a) do nº 2, e requeresse a audição e reapreciação integral de todos ou de alguns os depoimentos o que significaria a repetição do julgamento, desiderato que não foi visado pelo legislador”.» - Acs. do STJ de 26.1.2017, p. 599/15.7T8CLD.C1.S1, apud, Ac. do STJ de 18.09.2018, p. 108/13.2TBPNH.C1.S1; de 27.10.2016, p. 3176/11.8TBBCL.G1.S1; de 05.08.2018, p. 15787/15.8T8PRT.P1.S2. e de 14.06.2021, p. 65/18.9T8EPS.G1.S1.
Outrossim a transcrição dos depoimentos não exime ao cumprimento daquele dever – Cons. Henrique Antunes, in RECURSO DE APELAÇÃO E CONTROLO DA DECISÃO DA QUESTÃO DE FACTO, https://www.stj.pt › wp-content › uploads › 2015/07 e Ac. do STJ de 14.06.2021, p. 65/18.9T8EPS.G1.S1.
Certo é que o cumprimento destes requisitos formais deve ser avaliado em função de critérios de razoabilidade e proporcionalidade.
Pelo que, presentemente, é entendimento maioritário dos tribunais de recurso – Relações e STJ - que o não cumprimento, apenas nas conclusões, do requisito da al. a) do nº2 – indicação com exatidão das passagens da gravação dos depoimentos em que se estriba – não é motivo de indeferimento liminar se tal foi cumprido no corpo alegatório. – cfr. Ac. do STJ de 19.06.2019, p. 7439/16.8T8STB.E1.S1.
De notar que a falta de cumprimento destes requisitos formais não admite convite ao aperfeiçoamento das conclusões recursivas.
Na verdade, não pode aqui fazer-se uma equiparação com o estatuído no artº 639º nº3, pois que o caso não é de deficiência, mas antes de omissão de um requisito legal.
E, máxime quanto à não indicação das passagens precisas da gravação respeita, a lei é clara e imperativa; tal omissão implica a «imediata rejeição do recurso», não concedendo, pois, a lei mais tempo para o aperfeiçoamento - Neste sentido cfr. Ac. do STJ S 27.10.2016, p. 110/08.6TTGDM.P2.S1 e Henrique Antunes, ob. e loc. cits.
Assim, tais exigências que «devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.» - A . Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, ps. 126 /128.
(sublinhado nosso)
A ratio interpretativa é a seguinte:
«Esta solução é inteiramente compreensível e tem a sustentá-la a enorme pressão (geradora da correspondente responsabilidade) que durante décadas foi feita para que se modificasse o regime de impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliassem os poderes da Relação a esse respeito, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitiria corrigir. Além disso, pretendendo o recorrente a modificação da decisão da 1ª instância e dirigindo uma tal pretensão a um tribunal que nem sequer intermediou a produção da prova, é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos, regras muito precisas.» - A . Geraldes, ob. e loc. cits.
5.1.4.
In casu.
Pretende a autora a prova dos seguintes pontos de facto dados como não provados.
1. A penhora incidente sobre o depósito bancário a que se alude em 3. dos factos considerados provados impede o Município executado de efetuar o pagamento dos serviços e despesas a que se alude em 8. e 9. dos factos considerados provados.
2. Todas as verbas depositadas na conta bancária a que se alude em 3. dos factos considerados provados são utilizadas para assegurar o pagamento dos serviços e despesas indicados em 8. e 9. dos factos considerados provados.
A julgadora entendeu não dar tais factos como provados, aduzindo a seguinte fundamentação:
«Em primeiro lugar, não foi produzida qualquer prova da qual resultasse que a realização da penhora incidente sobre o depósito bancário …inviabilizou o pagamento de algum dos serviços ou das despesas suportadas pelo Município...
É certo que o representante legal do Município executado e a testemunha CC aludiram à existência de alguns constrangimentos ao nível da disponibilização de verbas, em consequência da realização da penhora…, enquanto as testemunhas DD e EE referiram ter notado alguma demora na realização dos pagamentos...
No entanto, nenhuma das testemunhas citadas confirmou a impossibilidade de o Município executado efetuar o pagamento de alguma das despesas atrás elencadas em virtude de as correspondentes verbas terem sido abrangidas pela penhora...
Nestes termos, em face da total ausência de produção de prova que o confirmasse, foi considerado não provado o facto indicado sob o número 1. do elenco dos factos não provados.
Como foi já mencionado, a testemunha BB …garantiu ao Tribunal que a conta bancária …é utilizada para a realização do pagamento da generalidade dos serviços e demais despesas elencados em 8. e 9. dos factos considerados provados.
…a mesma testemunha admitiu também que, pontualmente, tal conta bancária também foi movimentada, por exemplo, para efetuar o pagamento dos salários dos trabalhadores do Município...
Para além do mais, o representante legal do Município executado afirmou, …que qualquer uma das contas bancárias tituladas pelo executado pode ser utilizada para assegurar a realização do pagamento dos salários devidos aos seus trabalhadores.
De resto, sendo essa a principal conta do Município…, como foi referido quer pela testemunha a que se aludiu, quer pelo representante legal do Município executado, é natural que seja movimentada para fazer face à generalidade das respetivas despesas correntes.
Em face do exposto, não tendo sido produzida qualquer prova da qual decorresse que os fundos depositados na conta …são utilizados, exclusivamente, para fazer face aos pagamentos indicados em 8. e 9. Do elenco dos factos provados…»
Já o recorrente, em sede do corpo das suas alegações de recurso, invoca, relativamente ao facto não provado 1, que, por força do depoimento da testemunha EE, e do seguinte extrato:
«Mandatário: existe algum desses compromissos em atraso ? Isto é, o Município está a cumprir esses compromissos atempadamente ?
Testemunha: Neste momento nem sempre estamos a receber a horas …
Mandatário: Mas isso é uma novidade ou já acontecia antes ?
Testemunha: … ultimamente …»
deve pelo menos ser dado como provado que:
«a partir da penhora em causa, deixou de proceder aos pagamentos devidos da forma que antes o fazia: atempadamente ou de forma célere».
Porém, em sede conclusiva, ele não faz qualquer referência a este depoimento.
Antes, e apenas, se reportando às declarações por si prestadas em depoimento de parte e ao depoimento da testemunha BB, para a prova dos factos referidos em 1 e 2 da matéria de facto considerada não provada.
Verifica-se assim que existe uma incongruência/deficiência nas alegações recursivas.
Perante ela, há a considerar que as conclusões definem e fixam definitivamente o objeto do recurso, podendo nelas o recorrente restringi-lo face ao que invocou no corpo alegatório.
E sendo apenas ao que nelas consta que o tribunal ad quem deve atender.
Destarte, não identificando nelas a testemunha EE, o depoimento deste, no rigor dos princípios, não pode ser considerado.
Pois que não cumpre o ónus da al. b) do nº1 do aludido preceito.
Por outro lado, referindo-se o recorrente, aqui nas conclusões, às declarações de parte e ao depoimento da testemunha BB, em nenhuma parte do recurso – quer no corpo, quer nas conclusões, de todo em todo se reporta e analisa criticamente este depoimento.
E, no atinente às suas declarações de parte, apenas se refere a elas em termos genéricos e abstratos «Decorre do referido depoimento…», sem operar tal análise critica.
E, bem assim, sem cumprir o ónus de indicação das exatas passagens da gravação onde conste a verbalização que invoca.
Do que decorre que esta pretensão, desde logo por motivos formais, tem de ser liminarmente indeferida.
Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, e se tivessem de considerar os elementos de prova ora indicados pelo recorrente, a sua pretensão outrossim feneceria.
As suas declarações, porque ele tem interesse no desfecho favorável da causa, têm de ser apreciadas e valoradas, e como diziam os antigos, cum granno sallis, ie., cautelosa e comedidamente.
Sendo que, assim, em princípio, elas apenas poderiam relevar se fossem corroboradas por outros meios de prova.
O que não se verificou, atentos os meios probatórios indicados pelo recorrente.
Na verdade, o teor do ponto 1, devidamente interpretado o seu sentido e alcance, reporta-se a um impedimento, total e permanente, e desde a data da penhora, de fazer face a todas as despesas referidas nos pontos 8 e 9.
E o teor do ponto 2 atém-se a «todas» as verbas da conta bancária.
Ora tal amplitude e abrangência não emerge, desde logo, do depoimento da testemunha EE, o qual apenas verbalizou que os trabalhadores não estavam a receber os seus vencimentos a horas, ou seja, na data em que antes os recebiam, mas que tal acontece apenas «ultimamente», ou seja, sem se saber se desde a data da penhora e por causa dela.
Do que decorre, tal como sagazmente interpretou a julgadora, que pode haver algumas dificuldades e constrangimentos na solvência das despesas, e que algumas verbas da conta a elas sejam direcionadas.
Mas não se provou que há uma impossibilidade total no seu pagamento e que todo o saldo da conta seja, em exclusividade, a tais despesas adstrito.
Destarte, e considerando o supra aludido em 5.1.e 5.2., a final conclusão é que a prova indicada pelo recorrente não é a bastante para impor, como exige a lei, a censura da convicção da julgadora.
5.1.4.
Decorrentemente, e na improcedência desta pretensão, os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber:
1. A exequente AA instaurou, contra o executado Município ..., a ação executiva de que este incidente constitui apenso, tendo sido admitida, por decisão proferida a 2 de maio de 2023, a convolação da execução para entrega de coisa certa em execução para pagamento de quantia certa, com vista ao pagamento coercivo da quantia global de € 333.142,00, acrescida de juros de mora.
2. No dia 3 de abril de 2024 foi bloqueado o depósito bancário, no montante de € 3.753,25, da conta de depósitos à ordem titulada pelo Município executado no Banco 2..., SA.
3. No dia 3 de abril de 2024 foi bloqueado o depósito bancário, no montante de € 448.334,95, da conta de depósitos à ordem titulada pelo Município executado na Banco 1..., SA.
4. No dia 3 de abril de 2024 foi bloqueado o depósito bancário, no montante de € 280.726,08, da conta de depósitos à ordem titulada pelo Município executado na Banco 3....
5. No dia 3 de abril de 2024 foi bloqueado o depósito bancário, no montante de € 448.334,95, da conta de depósitos à ordem titulada pelo Município executado na Banco 4... (Sul).
6. No dia 4 de abril de 2024 o Ex.mo Senhor Agente de Execução providenciou pelo levantamento do bloqueio dos depósitos bancários indicados em 2., 4. e 5..
7. No dia 4 de abril de 2024 o Ex.mo Senhor Agente de Execução procedeu à penhora do depósito bancário indicado em 3..
8. As verbas depositadas na conta de depósitos à ordem a que se alude em 3. São movimentadas diariamente pelo Município executado para efetuar o pagamento do abastecimento de luz elétrica pública, de água potável aos domicílios, de gás, do apoio na alimentação e cuidados de saúde e higiene prestados a pessoas carenciadas e idosas, do transporte escolar e de munícipes e da gestão de resíduos.
9. As verbas depositadas na conta de depósitos à ordem a que se alude em 3. destinam-se ainda ao pagamento da generalidade das seguintes despesas:
montantes a transferir aos parceiros A..., B..., C... e D... no âmbito de projeto cofinanciado E... na Beira Baixa, no valor de € 91.892,80, € 71.915,19, € 46.630,64 e € 113.753,13, respetivamente;
aquisição de bens para as refeições escolares, no valor de € 66.385,99;
fornecimento de refeições escolares aos alunos, no valor de € 47.768,48;
pagamento de transportes escolares, no valor de € 49.197,22;
apoios sociais pagos diretamente a munícipes, no valor de € 6.139,90;
pagamento de propinas, no valor de € 7.963,82;
pagamento de bens alimentares, no valor de € 2.139,61;
pagamento de verbas aos Bombeiros Voluntários, no valor de € 123.943,35;
pagamento de verbas a IPSS, no valor de € 57.500,00;
pagamento de seguros de saúde, no valor de € 96.364,75;
pagamento de despesas suportadas com refugiados, no valor de € 7.804,53;
despesas correntes relacionadas com o fornecimento de água, no valor de € 407.664,04;
despesas correntes relacionadas com a recolha de resíduos, no valor de € 55.629,85;
despesas correntes relacionadas com o aluguer de veículos automóveis, no valor de € 20.673,87;
despesas correntes relacionadas com o fornecimento de gás, no valor de € 14.795,51;
despesas correntes relacionadas com o fornecimento de eletricidade, no valor de € 309.224,01;
compromissos assumidos no âmbito da Candidatura Radar Social ..., no valor de € 81.734,72, depositados pelo Instituto da Segurança Social, IP na conta bancária identificada em 3. a 1 de maço de 2024;
compromissos assumidos com o projeto denominado Candidatura CRO, no valor de € 219.740,00.
10. No dia 18 de dezembro de 2023 foi aprovada a proposta de orçamento e grandes opções do plano para o ano de 2024 do Município ....
5.2.
Segunda questão.
5.2.1.
A julgadora decidiu nos seguintes, sinóticos e essenciais, termos:
«…(provou-se) que parte dos fundos depositados na conta bancária titulada pelo Município executado …são, efetivamente, destinados a finalidades de utilidade pública, como sucede, desde logo, com a aquisição de bens alimentares e com o pagamento de refeições a alunos das escolas do concelho ..., com o pagamento dos transportes escolares disponibilizados pelo Município ... e com o pagamento dos apoios sociais que são disponibilizados aos cidadãos carenciados a quem são atribuídos.
Porém, a factualidade …provada …revela que os fundos depositados na referida conta bancária são também utilizados para prosseguir finalidades que não correspondem a “fins de utilidade pública”.
Com efeito, as verbas pagas pelo Município …aos Bombeiros Voluntários e a IPSS poderão ou não ser destinadas a “fins de utilidade pública” consoante a utilização que lhes venha a ser concedida, razão pela qual não poderia concluir-se, nesta sede, que todas as verbas disponibilizadas pelo Município executado a essas entidades tenham em vista a prossecução de fins de utilidade pública3
Do mesmo modo, também as despesas suportadas pelo Município executado com o fornecimento de água, eletricidade e gás nos edifícios de que é proprietário apenas estarão afetas aos denominados “fins de utilidade pública” se os edifícios em causa se destinarem, eles próprios, à prossecução desses fins, o que não sucede, por exemplo, com as instalações da Câmara Municipal e com os demais edifícios onde se encontrem instalados serviços administrativos.
Também no que concerne às despesas correntes relacionadas com o aluguer de veículos automóveis ficou por demonstrar a respetiva finalidade de utilidade pública, a qual sempre estaria dependente da verificação do propósito visado com as deslocações em causa.
Quer isto dizer que na conta bancária sobre a qual incidiu a penhora efetuada no âmbito dos autos de execução estão depositadas quantias destinadas à prossecução de fins de utilidade pública, mas também quantias destinadas à prossecução de outros fins.
Mas, para além disso, não poderá deixar de se acrescentar ainda que, independentemente dos fins visados com a movimentação da conta bancária em causa, não resulta da factualidade considerada provada …que o concreto depósito, no valor de € 448.334,95, penhorado em sede de ação executiva se encontrasse especialmente afetado “à realização de fins de utilidade pública”.
De facto…, “as situações de impenhorabilidade (relativa) previstas no citado art. 737º/1 dependem da prova cumulativa dos respetivos requisitos, sob pena de, assim não se entendendo e presumindo-se que os bens penhorados a qualquer pessoa coletiva pública se encontram especialmente afetados a fins de utilidade pública, se subverter a ratio legis (salvaguarda da prossecução do interesse público, mediante a impenhorabilidade dos bens especificamente afetos concretamente a utilidade e satisfação do interesse público), o que conduziria a uma impenhorabilidade (absoluta e subjetiva), ipso facto, de todo e qualquer bem pertencente àquelas pessoas coletivas. Ao invés do que sustenta a recorrente, a interpretação do art. 737º deve ser rigorosa e restrita, sob pena de violação de princípios fundamentais com assento na Constituição da República Portuguesa [v.g. princípio da proporcionalidade e proibição do excesso ínsitos no art. 18º/2 da CRP; e garantia constitucional do direito de propriedade privada prevista no artigo 62º, de onde se extrai a garantia (constitucional também) do direito do credor à satisfação do seu crédito (Acórdãos do Tribunal Constitucional 494/94, de 12/07/1994, da 2.ª secção e 770/2014, de 12/11/2014)]…».
É certo que o Município executado logrou demonstrar que algumas das quantias depositadas na conta bancária por si titulada na Banco 1..., SA estão destinadas à prossecução das finalidades de utilidade pública atrás indicadas.
Ainda assim, ficou por demonstrar que todas as quantias depositadas na referida conta bancária, cujo saldo nem sequer é conhecido nos presentes autos, visariam a prossecução de finalidades dessa natureza.
Em consequência, …o concreto depósito bancário penhorado …é penhorável.»
5.2.2.
Perscrutemos.
Estatui o artº Artigo 737.º do CPC:
Bens relativamente impenhoráveis
1 - Estão isentos de penhora, salvo tratando-se de execução para pagamento de dívida com garantia real, os bens do Estado e das restantes pessoas coletivas públicas, de entidades concessionárias de obras ou serviços públicos ou de pessoas coletivas de utilidade pública, que se encontrem especialmente afetados à realização de fins de utilidade pública.
Vemos, pois, que são dois os requisitos exigidos por este segmento normativo, a saber:
i) os bens dados à penhora pertencerem a pessoas coletivas públicas ou com funções de utilidade pública;
ii) que os bens se encontrem especialmente afetados à realização de fins de utilidade pública.
Conforme dimana da sentença, a doutrina e a jurisprudência têm sido unívocos no sentido de se impor uma interpretação rigorosa e restrita deste segmento normativo.
Isto para conciliar e operar o justo equilíbrio entre, por um lado, a necessidade de defender a prossecução do interesse e utilidade públicos e, por outro lado, o imperativo de permitir a satisfação, em termos razoáveis, quantitativa e temporalmente, do interesse do credor.
Fito este que não poderia ser atingido, ou muito dificilmente o poderia ser, se, liminarmente e à partida, e só porque o executado é um ente público ou desenvolve atividades de utilidade pública, se considerasse que o bem está, única e inelutavelmente, adstrito à realização das atividades deste jaez.
Do que decorre que o que releva
«Não é a afetação a um fim de utilidade pública qualquer (como serão praticamente todos aqueles a que procede uma Câmara Municipal), mas que tais bens se encontrem especialmente afetados a um desses fins.» - Ac. TRE de 05.06.2014, p. 58/11.7BORQ-B.E1, cit. na sentença, in dgsi.pt, como os infra cits.
Assim, reitera-se, do termo «especialmente» dimana que não basta que os bens, apenas por pertencerem a ente público, se considerem, de um modo apriorístico, presumido, geral e abstrato, afetados à realização de fins de utilidade pública.
Antes se exigindo que as entidades que constam em tal preceito, operem, como facto excetivo do direito à penhora por banda do exequente - artº 342º nº2 do CCivil - a prova sobre a sua efetiva, concreta e especial/específica afetação a tal interesse público – cfr. Acs. do Ac. TRE de 14.06.2018, p. 115/12.2TTBJA-C.E1; do TRP de 23.10.2023, p.1257/20.6T8MAI-B.P1; do TRL de 19.12.2023, p. 6311/19.4T8LRS-A.L1-7; cits. na sentença; e, ainda, o Ac. do TRP de 27.09.2022, p.1098/21.3T8PRT-A.P1.
Se assim não fosse, e se, à partida, se considerasse que todos os bens de tais entidades eram, apenas atenta a sua qualidade, afetados a tais finalidades públicas, a norma perderia todo o seu efeito útil e a consecução do aludido razoável equilíbrio entre o interesse público e o interesse privado sairia frustrada. – cfr. Acs. do TRL de 21.11.2013, p. 464/12.0TCFUN.L1-2; e de 19.12.2023, p. 6311/19.4T8LRS-A.L1-7, cits. na sentença.
Destarte, tem-se pacificamente operado a exegese de que, para o preenchimento do aludido segundo requisito - e, assim, para que a previsão de tal norma possa emergir e ser aplicada -, urge para o executado provar que todos os bens penhorados ou a totalidade do bem penhorado estão adstritos à prossecução de fins de utilidade pública.
E, bem assim, provar que a afetação dos bens à penhora, impossibilita, ou, ao menos, atrasa ou prejudica intoleravelmente, a realização de tais fins de utilidade pública.
Assim:
«I. –São penhoráveis os saldos das contas bancárias da executada, mesmo sendo esta uma pessoa colectiva de utilidade pública (associação de bombeiros).
II. –Só assim não será se a executada alegar e demonstrar que diversas verbas depositadas se destinam directa e exclusivamente a cobrir encargos que viabilizem actividades compreendidas no escopo da utilidade pública. Tal será, por exemplo, o caso de uma verba destinada a pagar a reparação de uma ambulância sem a qual a mesma não poderá circular.» - Ac. TRL de 12.04.2018, p. 2933/14.8YYLSB-A.L1-8.
Efetivamente:
«1. A impenhorabilidade relativa dos bens do Estado e das restantes pessoas coletivas públicas, de entidades concessionárias de obras ou serviços públicos ou de pessoas coletivas de utilidade públicas, que se encontrem especialmente afetos à realização de fins de utilidade pública, destina-se a evitar que esses bens sejam desviados de tais fins, a que se encontram destinados.
2. Estão afetos à realização aos fins de utilidade pública, os bens que se mostrem necessários ao funcionamento da entidade, isto é, aqueles sem os quais a mesma fica impossibilitada de prosseguir o seu escopo.» - Ac. TRL de 28.05.2013, p. 164183/11.7YIPRT-B.L1-7.
Na verdade:
«A impenhorabilidade relativa dos bens das Instituições particulares de Solidariedade Social destina-se a evitar que aqueles sejam desviados das funções a que se encontram destinados. Logo, se estiverem desafetados desses objetivos, nada obsta a que sejam penhorados e vendidos numa execução para satisfação dos credores da pessoa coletiva de utilidade pública.
No contexto do n.º 1 do artigo 737.º, alguns Autores explicitam que “o que interessa é a real afetação daquele bem em concreto e a impossibilidade da satisfação por outros meios das necessidades públicas a que o mesmo se destina” e “por isso, os imóveis, móveis, automóveis ou contas bancárias pertencentes a essas entidades, poderão ser penhorados, salvo se, em concreto, estiverem afetados a uma determinada finalidade de interesse público geral que não possa ser satisfeita de outro modo “(RIBEIRO, VIRGÍNIO DA COSTA/REBELO,SÉRGIO, A Ação executiva anotada e comentada, 2.ª Edição, Almedina, 2016, p.271).» - Maria José Capelo in A IMPENHORABILIDADE RELATIVA DOS BENS AFETOS AOS FINS DE UTILIDADE PÚBLICA: ANOTAÇÃO AO ACÓRDÃO do TRE DE 28 DE ABRIL DE 2016 - file:///C:/Users/Mj01096/Downloads/1370-Texto%20do%20artigo-2697-1-10-20190705%20(2).pdf.
(todas as citações com realce e sublinhado nosso).
5.2.3.
In casu.
Como se expende na sentença, o executado não logrou provar os requisitos factuais deste elemento excetivo.
Concede-se que as atividades do ponto 8 revestem todas elas o cariz de utilidade pública.
Mas já não assim para todas as do ponto 9.
Nestas, não se antolham com o jaez legal exigido, pelo menos as seguintes:
pagamento de bens alimentares, no valor de € 2.139,61, pois que não se sabe porquê tal pagamento e quem de tais bens beneficia.
pagamento de verbas aos Bombeiros Voluntários, no valor de € 123.943,35, pois que não se sabe para que fins ou atividades esta verba foi concedida, sendo certo que os Bombeiros a podem despender em atividades de interesse, ao menos essencialmente, de cariz privado.
pagamento de verbas a IPSS, no valor de € 57.500,00, valendo aqui o antes referido para os Bombeiros.
pagamento de seguros de saúde, no valor de € 96.364,75, sem se saber a quem, a que título e porque razão, tais seguros foram concedidos.
despesas correntes relacionadas com o aluguer de veículos automóveis, no valor de € 20.673,87, sem se saber a quem, por que razão e para que concretas viagens, foram atribuídas e feitas as despesas de aluguer.
compromissos assumidos com o projeto denominado Candidatura CRO, no valor de € 219.740,00, sem se concretizarem factos dos quais decorra a natureza de utilidade pública ou o interesse público das atividade do projeto.
Assim sendo, desde logo o recorrente não provou que todo o valor da conta fosse exclusivamente adstrito à realização de concretas atividades de índole pública.
Ademais, não provou que, se não puder dispor da verba da conta penhorada, as provadas atividades de utilidade pública não se podem realizar, ou, ao menos, muito dificilmente – dificuldade intolerável – elas se podem concretizar.
Aliás, a ideia que perpassa é que esta impossibilidade ou intolerável dificuldade não têm acontecido nem sobrevirão.
Pois que o executado tem outro património, vg. saldos positivos em outras contas bancárias, que até foram desbloqueadas, com o qual poderá solver – porventura menos atempadamente, mas, como se viu, tal não basta para obviar à presente penhora - os seus compromissos patrimoniais.
Improcede o recurso.
6.
Deliberação.
Termos em que se acorda julgar o recurso improcedente, e, consequentemente, confirmar a sentença.
Custas pelo recorrente.
Coimbra, 2025.02.11.