INDEFERIMENTO LIMINARMENTE A OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO.
LIVRANÇA EM BRANCO
AVAL
PROCESSO EXTRAORDINÁRIO DE VIABILIZAÇÃO DE EMPRESAS
PAGAMENTO
Sumário

I - O pagamento da dívida a que se refere uma livrança, total ou parcial, extingue a dívida, total ou parcialmente, e essa extinção aproveita ao avalista.
II - O avalista de livrança emitida em branco pode valer-se das vicissitudes da relação fundamental ocorridas no âmbito de um acordo alcançado em Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas – Lei n.º 75/2020, de 27 de novembro (PEVE) –, no qual interveio o credor, designadamente do pagamento parcial aí realizado, de modo a que a letra seja preenchida nos termos que valerem para o avalizado, na sequência desse acordo.
III – Existindo dúvidas sobre se o acordo alcançado no Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas contém algum pagamento da dívida, resulta prematuro indeferir liminarmente a oposição à execução.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra,


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Juiz relator…………....Alberto Augusto Vicente Ruço

1.º Juiz adjunto……… Luís Filipe Dias Cravo

2.º Juiz adjunto………. João Manuel Moreira do Carmo


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Recorrentes………………...AA e BB;

Recorrida……………………Banco 1... S.A.


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I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto do despacho liminar que indeferiu a oposição à presente execução.

O teor do despacho é este:

«Vieram os Executados/Embargantes AA e BB deduzir Oposição à Execução por Embargos de Executado.

Em nosso entender, e sempre salvo o devido respeito por diferente e melhor juízo, é a Oposição à Execução manifestamente improcedente.

Vejamos:

Os Executados/Embargantes são executados enquanto Avalistas de uma Livrança Subscrita/Emitida a favor da Exequente/Embargada pela sociedade comercial “A...,Lda.”

Trata-se de uma Livrança em branco Subscrita/Emitida para caucionar/garantir o cumprimento de um contrato de locação financeira mobiliária – celebrado entre a Exequente/Embargada e a sociedade Avalizada, a 21-10-2016, e com o prazo de 60 meses – e preenchida com data de emissão de 21-03-2024 e vencimento à vista.

A nosso ver, a Oposição à Execução deduzida pelos Executados/Embargantes, com fundamento nos procedimentos aos quais é aplicável o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, procura, erradamente, ver aplicado ao caso concreto um regime jurídico, o da fiança, e converter as suas obrigações cambiárias de Avalistas, independentes e autónomas, naquilo que elas não são, isto é, acessórias ou dependentes da relação fundamental causal extracambiária subjacente à Subscrição/Emissão da Livrança que Avalizaram.

Pelo contrário, o art.º 47.º da LULL é, neste ponto, cristalino, “Os sacadores aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador. O portador tem o direito de accionar todas essas pessoas, individualmente ou colectivamente, sem estar adstrito a observar a ordem por que elas se obrigaram.”

Por outro lado, também o art.º 217.º/4 do CIRE é claro: “As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência, designadamente os que votem favoravelmente o plano, contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação...”.

Também julgamos que a jurisprudência é pacífica nesta matéria.

A título de exemplo:

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-12-2023 (3865/21.9T8VNF-

A.G1.S1):

 “I. Para além da literalidade do artigo 217.º do CIRE, decorre expressamente do artigo 17.º-E do CIRE que a prolação do despacho de nomeação do administrador judicial provisório determina a suspensão das execuções e das ações de cobrança e a impossibilidade de instauração de ações com idêntica finalidade tão só contra o devedor. Assim, partindo do pressuposto de que onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir (cf. artigo 9.º do Código Civil), nada impede, nos termos da lei, que, em caso de aprovação de PER em relação ao devedor principal, prossigam as ações contra os condevedores ou terceiros garantes.

...

V. As medidas adotadas no PER não se estendem aos avalistas/garantes do devedor, pelo que, independentemente do que for negociado no plano, o credor mantém intocados os direitos de que dispõe contra os terceiros avalistas podendo exigir deles aquilo a que estavam obrigados, designadamente mediante o preenchimento das livranças que tinha na sua posse ...”.

O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-09-2022 (191/21.7T8ACB-A.C1):

“I - A norma do nº 4 do art. 217º do CIRE é aplicável, com as necessárias adaptações, ao PER.

II - O plano de recuperação (aprovado e homologado no PER) contém um conjunto de medidas que se aplicam apenas à sociedade a revitalizar, vinculando-a a ela e aos respectivos credores; mas não vincula os terceiros, sejam estes condevedores ou garantes, designadamente avalistas, pelo que quanto a estes a exigibilidade é imediata perante os credores.”.

Deste modo, é manifesto que qualquer que tenha sido o acordo estabelecimento no “PEVE” ou que venha a ser estabelecimento no “PER” entre a sociedade comercial “A..., Lda.” e os seus credores com impacto no passivo da sociedade comercial, nomeadamente com impacto na dívida com fonte no contrato de locação financeira mobiliária que constituiu a relação fundamental causal extracambiária subjacente à Subscrição/Emissão da Livrança, esses acordos em nada colidem com a existência, a validade, a exigibilidade e o montante da dívida que a Exequente/Embargada pode cobrar dos Executados/Embargantes enquanto Avalista da Livrança Subscrita/Emitida em garantia de cumprimento do contrato de locação financeira mobiliária. Em segundo lugar, quanto ao preenchimento abusivo da Livrança, em momento algum os Executados/Embargantes esclarecerem, em concreto, em que poderá ter consistido essa desconformidade à luz do pacto de preenchimento e da execução contratual – ónus de alegação e prova que apenas sobre si recaí [confrontar, a título de exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-11-2022 (5396/18.5T8STB-A.E1.S1)].

Com efeito, mais uma vez, limitam-se os Executados/Embargantes a pretender trazer para o preenchimento abusivo da Livrança a não aceitação pela Exequente/Embargada da repercussão na sua responsabilidade garantística dos acordos estabelecimentos nos procedimentos aos quais é aplicável o CIRE e vinculativos para os credores apenas em relação à sociedade Devedora; os quais, como já “supra” exposto, em nada colidem com a existência, a validade, a exigibilidade e o montante da dívida que a Exequente/Embargada pode cobrar dos garantes/avalistas da obrigação.

Considerando que os Embargos de Executado serão indeferidos liminarmente, não há lugar à suspensão do prosseguimento da Execução com fundamento no seu recebimento (art.º 733.º/1 CPC).

Pelo exposto, por se entender que a Oposição à Execução é manifestamente improcedente, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 732.º/1/c) CPC, o Tribunal

decide:

1) Indeferir liminarmente os Embargos de Executado.

2) Fixar o valor dos Embargos de Executado em €.100.917,36.

3) Condenar os Executados/Embargantes no pagamento das custas dos Embargos de Executado.»

b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte dos embargantes, cujas conclusões são as seguintes:

«Em conclusão:

a) – O aval prestado anteriormente, já tinha fenecido e era, portanto, à data do preenchimento da Livrança de Caução em Branco, inexistente, por consequência da extinção, por integral pagamento, da obrigação a que respeitava;

b) – Verificou-se sim um preenchimento indevido e abusivo da Livrança de Caução em Branco – que, sendo apenas um mero documento, já não era título, face à extinção da obrigação, que garantia, tendo sido dado despudoradamente e sem qualquer fundamento válido à execução;

c) - Os Embargantes demonstraram e provaram nos seus articulados o que nestes afirmaram, ao contrário do que vai dito na Douta Decisão, ora em crise, cumprindo o ónus de alegar e provar;

d) – Que, com a Douta Decisão do Tribunal a quo, ora recorrida, é posto em causa o Direito ao Contraditório, contido nos seus Embargos oferecidos aos autos, dado que a mesma põe em causa o prosseguimento da lide, impedindo de, em Juízo, e no tempo próprio, os Executados e Embargantes obterem a competente e necessária Justiça, obstando a uma situação que comporta uma evidente tentativa de locupletamento à conta dos (ex-)avalistas;

e) – Em consequência, a Douta Decisão está ferida de legalidade, não salvaguardando o princípio do contraditório e, por isso, é inconstitucional por violação dos Artigos 9º alínea b) e 20º da Constituição da República Portuguesa, impedindo que os Embargantes. defendam legitimamente os seus direitos, fazendo valer as suas razões em juízo;

Pelo que, nestes termos, e nos mais de Direito, Deve o presente Recurso ser admitido,

E reconhecido, por consequência, o mérito do exposto; Pelo que, se Requer e Pede:

a) Que seja revogada a Douta Sentença proferida e sejam admitidos os Embargos de Executados apresentados e requeridos nos presentes autos, seguindo-se os demais termos até final;

b) Que, por não terem sido admitidos os referidos Embargos, sejam reconhecidas a ilegalidade e a inconstitucionalidade, por violação do Princípio do Contraditório e dos Artigos 9º alínea b) e 20º da CRP, respectivamente, contidas na Douta Decisão proferida, de ora se recorre.

Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.»

c) Não foram produzidas contra-alegações.

II. Objeto do recurso.

O recurso coloca as seguintes questões:

1-  Em primeiro lugar, verificar se foi extinta no Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas (PEVE) a dívida a que se refere a livrança.

2 - Se existiu preenchimento abusivo da livrança devido ao facto da dívida estar extinta.

III. Fundamentação

a) Matéria processual a considerar

1 – A Exequente alegou o seguinte na petição executiva:

«I - A Banco 1..., S.A. é portadora e legítima possuidora de uma livrança no montante global de € 100.349,16 (cem mil, trezentos e quarenta e nove euros e dezasseis cêntimos) emitida em 21/03/2024 e com vencimento em à vista (cfr. doc. nº 1 e 1 A).

II - A Exequente é sucessora, por incorporação da B..., S. A, nos direitos e obrigações desta, conforme escritura de fusão celebrada em 28/12/2020, na Conservatória Comercial ....

(…)

V - A referida livrança foi subscrita por A..., LDA e avalizada por AA e BB (cfr. doc. nº 1, 1'A).

VI - A empresa subscritora encontra-se em PEVE (Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas) no âmbito do processo 2444/21.... (cfr. doc. 2).

VII - Apresentada tempestivamente a pagamento na data do seu vencimento, a referida livrança não foi paga, no todo ou em parte, nem então, nem posteriormente.»

2 – A recorrente alegou o seguinte na petição de embargos:

«C – Efectivamente, a A... LDA tem estado inserida no âmbito de um Plano PEVE, aprovado pelos seus credores, sendo importante trazer ao conhecimento deste Tribunal o que dele consta quanto à natureza dos créditos como os da natureza da Exequente, e que derroga o disposto no Contrato anteriormente assinado pelas Partes e apresentado pela Exequente nos presentes autos. Assim consta do PLANO PEVE:

“C) As partes afetadas e alterações propostas

Neste capítulo identificamos as partes afetadas, designadas a título individual e repartidas por categorias de dívida nos termos do CIRE, bem como os respetivos créditos ou interesses abrangidos pelo plano de Viabilização;

iv) Arrendamentos Leasings, Rentings e etc, …

Estes credores especialmente garantidos, com a propriedade dos equipamentos, recebem a totalidade do equipamento que financiaram, podem reter o que já foi pago até á data, que é mais do que os 20% admissíveis, e perdoam as indemnizações compensações parciais, e quaisquer outras penalizações nas letras do contrato de Leasing.”

D – Na sequência e concretização do disposto em C) – IV do referido Plano PEVE a empresa fez a entrega à Banco 1... dos equipamentos financiados e abrangidos pelo contrato de Leasing, a Banco 1... fez suas as importâncias pagas pela empresa na constância do referido contrato de Leasing, ficando a dívida totalmente saldada, nada mais havendo a pagar pela Devedora seja a que título for ou a reclamar pela Entidade credora».

2 - Consta do Plano PEVE o seguinte:

«iii) Créditos Garantidos afetados pelo plano

Aparentemente o único credor garantido com bens da empresa, é a Banco 1..., Indiretamente a C... por via das Garantias prestadas às instituições financeiras, e já executadas tornou-se credor garantido com bens da Empresa.

A estes credores garantidos com bens da empresa a dívida será paga da seguinte forma o Sem perdão de capital nem de juros normais.

- Juros compostos à taxa Euribor a 6 meses mais 1pp%

- Sem moratória, mas com prestações crescentes nos 5 primeiros anos.

- Pagamento de 75% do capital em 150 prestações iguais e sucessivas compostas de capital e juros,

- ficando uma prestação Bullet de 25% de para resolver no final.

- Prestações mensais nos 5 anos iniciais e anos seguintes:

Prest. mensal  2021  2022   2023   2024   2025  

Anos Segt.    Bullet

Banco1... 225€ 340€  450€  565€  680€  1.150€      42.500€

C...  200€   300€   400€   500€   600€   1.000€ 37.500€

Outros Grt.   1,33/1000 2/1000 2,66/1000 3,33/1000 4/1000        120 Prestações

Estimativa 25%

iv) Arrendamentos Leasings, Rentings, alugueres e etc, …

Estes credores especialmente garantidos, com a propriedade dos equipamentos, recebem a totalidade do equipamento que financiaram, podem reter o que já foi pago até à data, que é mais do que os 20% admissíveis, e perdoam as indemnizações compensações parciais, e quais quer outras penalizações nas letras do contrato de Leasing»

3 – O PEVE, com intervenção da exequente, foi homologado em 16 de julho de 2021, no processo n.º 2444/21.... (cfr. Doc. 2 junto com a petição executiva).

b) Apreciação das questões objeto do recurso

1-  Vejamos se a dívida a que se refere a livrança foi extinta (totalmente) no Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas, no âmbito do processo 2444/21.....

Os recorrentes dizem nas alegações de recurso que «1- (…) o contrato de ‘leasing’ celebrado pela Devedora Principal (A...) e a Banco 1..., ora Exequente, foi cumprido na sua integralidade, através de duas vias parcelares:

 a) – Por um lado, através das prestações mensais entregues e liquidadas   ao credor pela Devedora principal, que no seu todo somaram um valor superior a €120.000, acima dos 50% do seu montante [20% é fasquia mínima definida pela Directiva Europeia aplicável do contrato] num contrato de € 200.000;

b) – Por outro, e a final, com a entrega dos equipamentos ao credor, cujo valor comercial supera em muito o que seria o remanescente contratual devido»

Na petição da oposição os executados não referiram estes valores.

Vejamos se procede esta argumentação, no sentido da extinção da dívida.

● Cumpre começar por referir que o pagamento da dívida a que se refere a livrança, total ou parcial, extingue a dívida total ou parcialmente e essa extinção aproveita ao avalista.

Com efeito, muito embora a obrigação do avalista seja autónoma em relação à do avalisado, o pagamento da livrança

é um facto extintivo que se reflete nas relações jurídicas dos diversos obrigados cambiários.

Esta ideia resulta do disposto no artigo 50.º da LULL, onde se dispõe, «Qualquer co-obrigado, contra o qual se intentou ou pode ser intentada uma acção, pode exigir, desde que pague a letra, que ela lhe seja entregue com o protesto e um recibo.

Qualquer dos endossantes que tenha pago uma letra pode riscar o seu endosso e os dos endossantes subsequentes.»

Sendo também certo que o direito é contrário a situações de recebimento duplicado por parte do credor, pois, pago o credor, o direito deste fica extinto, carecendo de direito para voltar a receber o mesmo de outro obrigado.

Daí que estando a livrança paga, no todo ou em parte, o avalista possa invocar este facto extintivo a seu favor.

[Ver neste sentido, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-02-2013, no processo 597/11.0TBSSB-A (Azevedo Ramos), «I - O aval é uma garantia prestada à obrigação cartular do avalizado. II - O avalista não é sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas da relação subjacente à obrigação cambiária estabelecida entre ele e o avalizado. III - A razão de ser do art. 32.º da LULL é constituir o aval um acto cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma. IV - A obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade provier de um vício de forma. V - Por via dessa autonomia, o avalista não pode defender-se com as excepções que o seu avalizado pode opor ao portador do título, salvo a do pagamento».

Na doutrina, Carolina Cunha: «Quanto aos meios de defesa oriundos da relação subjacente avalizado/credor, a impossibilidade da sua invocação pelo avalista fundar-se-á no princípio geral res inter alios acta, também acolhido pelo art. 17.º LU. Como veremos, a única vicissitude invocável pelo avalista – não por ser avalista, e sim pela posição em que se insere na sequência cambiária (veja-se, desde logo, a regra contida no art. 50.º II LU – consiste no pagamento feito pelo avalizado ao credor» - Letras e Livranças: Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime. Coimbra: Almedina, 2102, pág. 112.]          

● Cumpre então verificar se existiu/existe pagamento.

Sem dúvida que as prestações já pagas em execução do contrato de leasing são pagamento.

E os equipamentos entregues, se de facto já foram entregues e se de facto a exequente os recebeu, são pagamento em espécie.

Porém, não é claro, por ora, qual o montante atingido por esse pagamento ou pagamentos, isto é, se o pagamento é/foi parcial ou total.

Vejamos.

Os embargantes afirmam na petição da oposição que «D – Na sequência e concretização do disposto em C) – IV do referido Plano PEVE a empresa fez a entrega à Banco 1... dos equipamentos financiados e abrangidos pelo contrato de Leasing, a Banco 1... fez suas as importâncias pagas pela empresa na constância do referido contrato de Leasing, ficando a dívida totalmente saldada, nada mais havendo a pagar pela Devedora seja a que título for ou a reclamar pela Entidade credora».

Porém, esta afirmação não corresponde exatamente ao que consta do plano.

Como se vê pelo «Plano PEVE» (junto com a petição de embargos), existe um escalonamento de pagamentos a fazer à aqui exequente Banco 1...: «Prestações mensais nos 5 anos iniciais e anos seguintes: …»; « Prest. mensal   2021   2022   2023   2024   2025   Anos Segt»

Por conseguinte, se existe, como existe, um plano de pagamentos, isso implica, logicamente, que a dívida não esteja extinta.

Sendo também certo que a «entrega à Banco 1... dos equipamentos financiados e abrangidos pelo contrato de Leasing», a sua apropriação das «importâncias pagas pela empresa na constância do referido contrato de Leasing» não autorizam a que se afirme que a dívida fica «totalmente saldada, nada mais havendo a pagar pela Devedora seja a que título for ou a reclamar pela Entidade credora».

Aquilo que extingue a dívida, como se tem vindo a dizer, é o pagamento e não é certo que esse pagamento esteja completo, pois estão previstas no plano pagamentos em prestações ao longo de vários anos.

Conclui-se esta parte no sentido de que não resulta do acordo alcançado no PEVE que a dívida esteja extinta (totalmente) pelo pagamento. E se a entrega dos equipamentos constitui pagamento, como se afigura, não se sabe qual o respetivo valor, montante.

● Cumpre ainda ter em consideração que a livrança dada à execução é uma livrança entregue em branco, sujeita, portanto, ao preenchimento. Como devia ter sido preenchida a livrança?

É sabido que o preenchimento tem de ser feito em conformidade com o acordo de preenchimento.

Coloca-se a questão:

O preenchimento da livrança foi feito de acordo com a dívida existente à data do incumprimento do contrato de leasing, ou o preenchimento foi efetuado de acordo com a dívida existente à data do incumprimento do acordo alcançado no PEVE, se tal incumprimento existiu?

Não se sabe.

No contrato de locação junto com a petição executiva, consta que o preço era constituído por uma prestação inicial de 50.000,00 euros, mais 59 rendas mensais de 2708,78 euros, mais IVA, mais o valor de «portes e da Comissão de Gestão».

Chegamos a um valor mínimo de  209 818, 02 euros (50.000 + 59 x 2708,78).

A livrança foi preenchida com o montante de 100.349,16 euros, à data de 21/03/2024, sendo certo que o PEVE, com intervenção da exequente, foi homologado em 16 de julho de 2021.

Nos termos do artigo 10.º da LULL, «Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave.»

Resulta desta norma que o preenchimento da livrança deve respeitar a situação real em que se encontrava a dívida no momento do preenchimento.

Sobre esta matéria, Carolina Cunha, refere que ao «…abrigo do art. 10º LU, o avalista pode prevalecer-se de certas vicissitudes de uma relação fundamental à qual é alheio. E pode fazê-lo porque a determinação do conteúdo a inserir na sua própria declaração cambiária é levada a cabo per relationem: depende da verificação do mesmo pressuposto do qual está dependente a responsabilidade cambiária do avalizado, e esse pressuposto emana dos desenvolvimentos ocorridos na relação fundamental que este mantém com o credor. (…) Ora, é incorrecto pretender que o avalista está a prevalercer-se de um meio de defesa alheio, pertencente ao avalizado. Ao invocar a inexistência de incumprimento por parte do contraente-avalizado, ou ao questionar o montante a que ascende a sua eventual responsabilidade, ou mesmo ao contestar a data inscrita no título, o avalista em branco não está a tentar paralisar o direito do credor cambiário invocando factos emergentes de relações alheias.

Está, isso sim, a colocar um problema prévio: o problema da divergência entre a vontade que ele próprio manifestou ao subscrever e entregar uma letra em branco (a saber: que venha a ser preenchida nos termos que valerem para o avalizado) e a declaração constante do título tal como veio a ser completado. Trata-se de um problema particular, ao qual o art. 10.º LU enquanto norma especial dá uma resposta específica, insusceptível de se diluir nos quadros gerais do art. 17.º da LU ou do princípio res inter alios acta. E a existência de uma norma especial afasta, como é sabido, o regime geral» -  Aval e Insolvência, Almedina, 2018 (reimpressão), pág. 25/26.

Por conseguinte, no caso dos autos, desconhecendo-se as vicissitudes do contrato de leasing, a livrança devia/deve ser preenchida de acordo com o montante que estivesse em dívida à data de 21/03/2024.

Que montante?

● A exequente ao apresentar a livrança à execução diz que a dívida era nessa data (21/3/2024) de 100.349,16 euros.

Os executados vêm dizer que a livrança nessa data estava paga.

Como se disse acima, admite-se que o pagamento seja efetuado em espécie, no caso, com a entrega dos equipamentos locados à exequente Banco 1....

Como se desconhece o valor dos equipamentos não se sabe se existiu efetivamente pagamento e existindo, em que medida.

Daí que o indeferimento liminar tenha sido prematuro.

● Vejamos se o PEVE é oponível pelos avalistas à exequente tendo em consideração que estamos face a uma livrança emitida em branco.

Se o PEVE contém pagamentos, o PEVE é oponível, como já se disse, na medida em que esses pagamentos sejam, causas extintivas da dívida, ainda que parciais.

Resta saber se o PEVE em questão nestes autos contém uma declaração extintiva da dívida tendo como causa o pagamento.

A resposta não se vislumbra clara face ao já referido acima.

Daí que o indeferimento liminar tenha sido prematuro.

● Cumpre agora tecer algumas considerações sobre a linha de argumentação que ditou o indeferimento liminar, isto é, que o acordo alcançado no PEVE não pode ser invocado pelo avalista.

O diploma que instituiu o Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas – Lei n.º 75/2020, de 27 de novembro – não contém qualquer norma que se refira à responsabilidade dos codevedores ou os terceiros garantes das dívidas da empresa.

Porém, o n.º 7, do artigo 6.º do PEVE, determina que «Ao processo extraordinário de viabilização de empresas aplica-se o disposto no CIRE, nas disposições que não sejam incompatíveis com a sua natureza, e, subsidiariamente, as disposições gerais do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, em tudo o que não contrarie as disposições da presente lei.»

Ora, o artigo 217.º, n.º 4 do CIRE dispõe que «As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência, designadamente os que votem favoravelmente o plano, contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação...».

No artigo 32.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, determina-se o seguinte:

«O dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.

A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.

Se o dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra.»

Verifica-se que a obrigação assumida pelo avalista se mantém, mesmo no caso da obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.

Trata-se, por conseguinte, de uma responsabilidade independente da responsabilidade assumida pela pessoa avalizada (salvo o vício de forma, porquanto neste caso o aval concedido numa livrança que não cumpre com as respetivas formalidades não pode suscitar qualquer confiança, tal como a livrança, e, por isso, tem de ser considerado também juridicamente irrelevante).

Por conseguinte, ressalvando a hipótese da obrigação se encontrar cumprida, tal como foi assumida, no todo ou em parte, a responsabilidade do avalista mantém-se, no todo ou em parte, independente da responsabilidade do avalizado.

Note-se, porém, que esta norma pode não valer para os casos em que a livrança não é entregue em branco.

Quando é entregue em branco, como no caso dos autos, o preenchimento da livrança tem de se conformar com esta circunstância.

Se a livrança em branco já se encontrava preenchida quando o plano alcançado no PEVE foi fechado, tal plano é insusceptível de ser invocado pelo avalista, porquanto a sua responsabilidade já estava definida antes do acordo no PEVE.

Mas se a livrança não se encontrava preenchida no momento em que foi alcançado o acordo no PEVE, a situação muda de figura, pois o avalista já pode invocar a seu favor, relativamente ao preenchimento da livrança, os acordos que no PEVE devam ser considerados como pagamento da dívida.

Nas palavras de Carolina Cunha: «Vamos supor que o plano implica o perdão parcial da quantia objeto da obrigação garantida, bem como uma moratória que remete o respectivo vencimento para lá da data originariamente fixada. Perante a (óbvia e natural) falta de pagamento do valor inicial (subsequentemente diminuído) da dívida pela empresa, alcançado que venha a ser o momento do primitivo (e alterado) vencimento, pode o credor alegar que há incumprimento e preencher o título para assim demandar o avalista?

Não me parece: tal equivaleria a uma ficção desprovida de sentido, que claramente “desvirtuaria a função de garantia” prestada. A verdade é que nunca chegou a ocorrer o facto que justificaria o preenchimento: a obrigação fundamental garantida não chegou a ser incumprida. O risco assegurado pelo avalista, na sua qualidade de subscritor do título em branco e de outorgante no (e/ou vinculado pelo) acordo de preenchimento, pura e simplesmente não se verificou.

Contrariamente ao que sucede com o plano de insolvência, a homologação de um plano de recuperação em PER permite-nos traçar um evidente paralelo com as vulgares situações de renegociação da dívida fundamental por acordo entre o credor e devedor. Como vimos, sempre que a alteração convencional do montante da dívida fundamental e/ou dos prazos do seu cumprimento conduza a suavizar a posição debitória, é correcto sustentar que se deu uma modificação tácita do acordo de preenchimento (art. 217.º CCiv) com efeitos sobre a posição jurídica do avalista em branco. Recorrendo à interpretação e, sobretudo, à integração do acordo de preenchimento (arts. 236.º e 239.º do CCiv), é de concluir que os novos termos da relação fundamental, tal como foi configurada, se vão substitui ao consenso originário enquanto parâmetro de aferição da existência de (in) cumprimento. Portanto, doravante o credor apenas fica legitimado a demandar o avalista, preenchendo o título caso venha a ocorrer um incumprimento nos (qualitativa e quantitativamente mitigados) termos da relação fundamental reconfigurada» - Carolina Cunha, Ob. Cit., Almedina, 2018 (reimpressão), págs. 168/169/170

● Resumindo.

O avalista de livrança emitida em branco pode valer-se das vicissitudes da relação fundamental ocorridas no âmbito de um acordo alcançado num procedimento PEVE, no qual interveio o credor, se porventura existiram pagamentos por conta da dívida, de modo a que a livrança deve ser preenchida nos termos que valerem para o avalizado na sequência desse acordo.

Em 2021 foi alcançado um acordo num processo PEVE, com intervenção da exequente, nos termos do qual se reconfigurou a dívida da empresa avalizada.

O credor e exequente Banco 1... executa uma livrança emitida em branco, preenchida em 2024, após o acordo alcançado no PEVE.

Não é claro nos autos que o acordo alcançado no PEVE contenha pagamentos extintivos (da dívida resultante do contrato de leasing) que cubram a totalidade da dívida, mas existem seguramente pagamentos parciais (prestações já pagas e valor do equipamento entregue).

Por conseguinte, afigura-se prematuro, o indeferimento da oposição, cumprindo averiguar se o acordo alcançado no PEVE terá extinto totalmente a dívida, como os embargantes afirmam, o que poderá ter ocorrido no caso do valor do equipamento e das prestações pagas superarem a dívida.

Procede, pois, o recurso.

2 – A segunda questão colocada tinha a ver com o preenchimento abusivo da livrança devido ao facto da dívida estar extinta.

Esta questão fica prejudicada pela resposta dada à questão anterior.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se a decisão recorrida devendo prosseguir a oposição.

Custas pela parte vencida no final.


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Coimbra, …