INVENTÁRIO JUDICIAL
ARTICULADO SUPERVENIENTE
RECLAMAÇÃO À RELAÇÃO DE BENS
Sumário

I - O novo regime jurídico do inventário judicial, aprovado pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, que entrou em vigor no dia 1/1/2020 - cfr. artigo 15º -, encontra-se consagrado nos artigos 1082º a 1135º, do CPC, sendo um processo especial (a regular-se, como decorre do nº1, do art. 549º, do referido código, pelas disposições que lhe são próprias e pelas disposições gerais e comuns e, em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, pelo que se encontra estabelecido para o processo comum), norteia-se, ex novo, com vista a potenciar a celeridade e a eficácia da tramitação, pelos princípios da concentração e da autorresponsabilidade das partes, comportando cominações e preclusões.
II - Com fases processuais relativamente estanques, configura, como na ação declarativa, uma fase dos articulados, a englobar a inicial (art. 1097º a 1102º), a da oposição (art. 1104º) e a da resposta (art. 1105º), recaindo sobre cada um dos interessados o ónus de suscitar, com efeitos preclusivos, as questões relevantes para a finalidade do inventário (art. 1104º), designadamente as referentes à sua admissibilidade, identificação e convocação dos interessados, relacionamento e identificação dos bens a partilhar, dividas e encargos da herança e outras questões atinentes à divisão do acervo patrimonial.
III - Após o decurso do prazo para apresentação do articulado próprio, só podem ser alegados os factos relevantes que sejam supervenientes (aqueles que a parte, atuando com a diligência devida, não estava em condições de suscitar nesta primeira fase, fazendo-o, então, em articulado superveniente – cfr. nº2 e 4, do art. 588º, do CPC) e, ainda, o que a lei expressamente admita que o possa ser passado esse momento (como sucede com a contestação do valor dos bens relacionados e o pedido da respetiva avaliação).
IV - Questões relativas ao acervo patrimonial a partilhar e a doações que possam influir na partilha (art. 2014º e segs, do CC) devem, por regra, ser suscitadas, com especificação dos factos a densificá-las, na fase dos articulados, em reclamação à relação de bens, sob pena de preclusão do direito, sendo excecional a admissibilidade de indicação de falta de bens, dívidas ou doações em momento ulterior.
V - Tendo os interessados, que apresentaram reclamação à relação de bens alegando doações naquela relação não inscritas, apresentado nova reclamação a solicitar o aditamento à Relação de bens de doações em falta, ultrapassado se mostrando o prazo, perentório, de que dispunham reclamar (cfr. nº1, do art. 1104º, do CPC), não pode tal novo articulado ser admitido por intempestivo.

Texto Integral

Processo nº 5053/22.8T8MTS-A.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Local Cível de Matosinhos – Juiz 4



Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto: Des. José Eusébio Almeida
2º Adjunto: Des. Anabela Morais




Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto



Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrentes: os interessados AA e outros

AA, BB e CC, requerentes no processo de inventário destinado à partilha por óbito de DD e EE, que deu entrada em juízo no dia 20/10/2022, em que é cabeça-de-casal FF, notificados do despacho que não admitiu o seu requerimento, apresentado em 11/09/2024, a solicitar notificação da cabeça de casal-de-casal para vir retificar e completar a relação de bens, indicando todas as doações recebidas por si e seus filhos, para serem conferidas nos termos dos arts. 2014º e ss do C. Civil, por extemporâneo, dele vêm interpor Recurso de apelação pretendendo a sua revogação e substituição por outro que admita o requerimento dos recorrentes e defira a prova por eles requerida, apresentando as seguintes
Conclusões:

“A - Vem o presente recurso interposto do douto despacho de fls … que se pronunciou sobre um requerimento apresentado pelos requerentes e condenou estes em custas.

B - Neste requerimento os recorrentes limitaram-se a apresentar documentos que permitissem quantificar as doações recebidas pela cabeça de casal em vida dos inventariados.

C - Os recorrentes reclamaram da relação de bens inicialmente apresentada pela cabeça de casal, alegando a falta de diversos bens e direitos, entre os quais as doações recebidas dos inventariados por ela e pelos seus filhos.

D - Alegação que mantiveram após a primeira tentativa da cabeça de casal de apresentar uma relação de bens em cumprimento das determinações judiciais.

E - O despacho de 05.05.2023 considerou assente que a cabeça de casal e os seus filhos haviam recebido doações dos inventariados.

F - O despacho de 30.11.2023 condenou novamente a cabeça de casal a indicar os montantes das doações recebidas, com discriminação de pessoas e valores e com os documentos comprovativos.

G - Estes despachos transitaram em julgado, por não terem sido objecto de recurso, formando assim caso julgado formal quanto ao activo da herança.

H - Ficando assente que a cabeça de casal recebeu doações em vida dos inventariados, embora sem se saber o seu valor.

I - Tendo sido indeferidos os meios de prova requeridos pelos recorrentes, estes tentaram obter os documentos que suportavam a sua alegação, justificando o motivo pelo qual só o faziam nesta fase processual.

J - O douto despacho em crise considera, erradamente, que este requerimento seria uma nova reclamação à relação de bens, quando na verdade os recorrentes apenas pretenderam juntar prova que permitisse quantificar o valor das doações já assentes nos autos.

L - Erro de apreciação este que deverá ser corrigido, sendo o requerimento apreciado e admitido no seu real âmbito e escopo.

M - Ainda que se entenda que não houve lapso, sempre tal despacho deverá ser revogado, por violação de caso julgado formal e do direito de apresentação de prova adquirida após o encerramento dos articulados, sendo igualmente admitido o depoimento de parte da cabeça de casal.

N - O douto despacho recorrido violou os arts. 620º, 1105º e 423º, nº 3, todos do CPCivil, devendo ser revogado e substituído por outro que admita o requerimento dos recorrentes e defira a prova por eles requerida”.


Tem o despacho recorrido, proferido em 12/9/2024 (que apreciou o requerimento apresentado pelos ora recorrentes em 11/9/2024) o seguinte teor:
“Com data de 11/09/2024 vem a requerente AA e outros apresentar articulado através do qual, para além de requerer a junção de documentos se alonga em diversas considerações quanto às declarações e documentos já juntos pela cabeça de casal, bem como vêm requerer que a cabeça de casal seja notificada para rectificar e completar a relação de bens apresentada.
Cumpre decidir.
Actualmente, o processo de inventário judicial está configurado como uma acção declarativa, sendo a primeira fase uma verdadeira fase de articulados (que engloba a fase inicial e da oposições e verificação do passivo), na qual recai sobre todos os interessados o ónus de suscitar nesta fase, com efeitos preclusivos, as questões pertinentes para o objectivo final do inventário (artigo 1104.º do Código Processo Civil), designadamente tudo quanto respeite à sua admissibilidade, identificação e convocação dos interessados, relacionamento e identificação dos bens a partilhar, dividas e encargos da herança e outras questões atinentes à divisão do acervo patrimonial.
Como se refere no Ac. Rel. Guimarães de 22/09/2022, proc. nº 044/20.3T8BRG, disponível em www.dgsi.pt, cujo entendimento este Tribunal subscreve, na sequência das alterações introduzidas pela Lei nº 117/2019, de 13/09, o processo de inventário judicial regulado nos artigos 1082º a 1135º do C.P.C. de 2013 alterou o paradigma a que obedecia o mesmo processo quando era regulado pelo C.P.C. de 1961, passando a vigorar o princípio da concentração, o princípio da preclusão dos actos respeitantes a cada fase processual, e o princípio de auto responsabilidade das partes na gestão do processo, tudo como forma de potenciar a celeridade e a eficácia da tramitação.
Da imposição deste modelo procedimental resulta que as reclamações contra a relação de bens tenham de ser necessariamente deduzidas, salvo demonstração de superveniência objectiva ou subjectiva, na fase da oposição, com indicação de toda a prova – cf. 1105.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.
O alegado pelos requerente/interessados no requerimento em epígrafe configura uma reclamação à relação de bens apresentada pela cabeça de casal.
Por despacho datado de 07/06/2024 (ref.ª 460657352) efectuou o Tribunal a condensação dos requerimentos anteriormente apresentados, consignando expressamente que, para o que agora importa, foi admitida por despacho datado de 07/02/2024 a relação de bens rectificada apresentada pela cabeça de casal a 17/12/2023; a reclamação de bens dos requerente/interessados foi apresentada a 13/07/2023 e que, face ao litígio suscitado pelos interessados foi determinada a produção de prova, cujo objecto foi nesse despacho circunscrito, balizando assim o objecto da instrução após os articulados admissíveis por lei.
Dito isto, a matéria de alegação do requerimento em epígrafe que consubstancia reclamação á relação de bens apresentada, nomeadamente 7- a 54-, se deve considerar como não escrita por configurar uma reclamação contra a relação de bens extemporânea.
Custas do incidente anómalo a cargo dos requerentes, em partes iguais, que se fixa em 2 UC.

Remanesce a requerida junção dos documentos que acompanham o requerimento em destaque, sobre a qual o Tribunal se pronunciará após o exercício do contraditório a realizar no início da diligência de prova agendada para o dia de amanhã, 13/09/2024.
Ref.ª 40034881
Vêm os requerente/interessados requerer o depoimento da cabeça de casal a toda a matéria alegada «quanto às doações recebidas».
A reclamação contra a relação de bens foi apresentada pelos requerentes a 13/07/2023, tendo nesse (e noutros) articulado sido indicada a prova.
Por força do disposto no artigo 1105.º, n.º 2, do CPC, havendo reclamação contra a relação de bens e resposta a essa reclamação as provas respectivas são indicadas juntamente com esses articulados.
Pelo que nenhuma justificação foi apresentada ou se prefigura como atendível, no sentido de admissibilidade do requerido depoimento de parte, decidindo-se, assim, pelo seu indeferimento”.

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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.
Assim, a questão a decidir é a seguinte:
- Da admissibilidade da nova reclamação à relação de bens.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos provados com relevância para a decisão, vicissitudes processuais, constam já do relatório que antecede, resultando a sua prova dos autos, acrescentando-se os seguintes, que dos autos resultam:
1. Tem a decisão proferida no dia 5/5/2023, transitada em julgado, que apreciou a reclamação deduzida pelos interessados ora recorrentes contra a relação de bens apresentada pela cabeça de casal, a seguinte parte dispositiva:
julgo parcialmente procedente a reclamação apresentada pelos interessados/reclamantes e, em consequência:
- condeno a cabeça-de-casal apresentar nova relação de bens onde inclua os (i) bens móveis existentes na casa de habitação dos inventariados, os (ii) saldos bancários das quatro contas existentes em nome dos inventariados e as (iii) doações feitas pelos inventariados a si e aos seus filhos; (…) Deverá a cabeça-de-casal indicar o valor a cada verba móvel e juntar todos os documentos necessários aos saldos bancários e doações.
Custas do incidente a cargo da cabeça-de-casal e dos interessados/reclamantes, fixando-se em 2 UC a respetiva taxa de justiça, na proporção de 5/6 para a cabeça-de-casal e 1/6 para os reclamantes[1].
2. No dia 7/6/2024 foi proferido o seguinte despacho:

“… Por despacho datado de 30/11/2023 foi a cabeça de casal notificada para, em obediência ao determinado pelo Tribunal a 05/05/2023 e em conformidade com o estatuído no artigo 1098.º do Código Processo Civil, proceder à junção de relação de bens devidamente corrigida/complementada.

Mais foi determinado que, recebida nova relação de bens apresentada pela cabeça de casal, poderiam os requerentes (interessados no presente inventário), de acordo com o disposto no artigo 1104º do Código de Processo Civil, manter a posição assumida no requerimento apresentado em 13/07/2023 (ref. 36222069) ou apresentar um novo articulado, em sua substituição ou complemento daquele.

Não tendo os interessados/requerentes apresentado qualquer requerimento quanto à manutenção, substituição ou complemento da reclamação apresentada a 13/07/2023, cumpre organizar os autos face à diversidade dos articulados produzidos pelas partes, isto porque e cronologicamente;

- Apresentada relação de bens pela cabeça de casal, a 12/01/2023, vieram os interessados requerentes, a 13/02/2023 reclamar contra a relação de bens apresentada.

- Tal reclamação essa que foi decidida por Despacho de 05/05/2023 e que condenou a cabeça de casal a apresentar nova relação de bens onde deveria incluir (i) os bens móveis existentes na casa de habitação dos inventariados, (ii) os saldos bancários das quatro contas existentes em nome dos inventariados, (iii) as doações feitas pelos inventariados a si e aos seus filhos e (iv) corrigir o valor que indica à verba da fracção B, em conformidade com o exposto, ou esclarecer se adere à perícia/avaliação, bem como indicar o valor a cada verba móvel e juntar todos os documentos necessários aos saldos bancários e doações requerida.

- Em obediência a esta decisão, veio a cabeça de casal, a 26/06/2023 apresentar requerimento, no qual, para além de juntar nova relação de bens, vem responder à reclamação contra a relação de bens deduzida pelos requerentes a 13/02/2023.

Em tal requerimento, veio a cabeça de casal, para o que ora interessa, alegar que:

- As contas bancárias se mantiveram abertas após a morte dos inventariados não foram encerradas à data dos óbitos com o intuito de serem recebidos valores e efectuados pagamentos respeitantes serviços de saúde contratados; a inventariada fez um mútuo ao anterior cabeça de casal (pais dos requerentes) um mútuo de € 29.927,00, que o veículo automóvel foi vendido pelo anterior cabeça de casal (pai dos ora requerentes) em vida da inventariada.

Mais, manteve inalterados os imóveis constantes da relação de bens inicialmente apresentada, e a indicação dos móveis relacionados e respectivos valores e indicou a inventariada doou aos seus filhos o valor de € 5.000,00.

- Após, vieram os requerentes, apresentar nova reclamação contra a relação de bens, a 13/07/2023, na qual respondem ao requerimento da cabeça de casal, e invocam:

(…) (iii) Quanto a doações

Acusam a falta de relacionação do valor de € 29.927,00 relativo a doação feita em vida dos inventariados à actual cabeça de casal.

- A 17/12/2023 a cabeça de casal apresenta a relação de bens rectificada, relacionando cinco saldos de contas bancárias e respectivos valores e mantendo os imóveis constantes da relação de bens inicialmente apresentada, e a indicação dos móveis relacionados e respectivos valores e manteve a indicação da doação feita pela inventariada aos seus filhos o valor de € 5.000,00.

- Por despacho datado de 07/02/2024 foi admitida a relação de bens rectificada apresentada pela cabeça de casal a 17/12/2023, consignando-se que,

i) a relação poderia ser alvo de rectificação após recepção da informação a prestar pelo Banco 1...;

ii) tomava o Tribunal conhecimento da doação efectuada pela inventariada a GG e HH – filhos da cabeça de casal –, no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros) em numerário.

- A 07/03/2024 foi junta aos autos declaração emitida pelo Banco 1... de inexistência de contas bancárias dos inventariados em tal instituição, mostrando-se, assim, estabilizada a relação de bens apresentada.

Cumpre apreciar e decidir.

Em primeiro lugar, nos presentes autos o que importa é apurar os bens existentes à data dos óbitos dos inventariados, sendo despiciendo apurar as despesas que estes tiveram em momento anterior a tais datas e, uma vez que se encontram relacionados os saldos à data do óbito, não se produzirá prova relativamente a saldos bancários anteriores à data do óbito dos inventariados.

Quanto aos valores despendidos e/ou recebidos após o óbito dos inventariados os mesmos deverão ingressar numa prestação de contas.

Seguidamente, advertem-se os interessados que a localização dos bens relacionados é irrelevante, reafirme-se que apenas interessa apurar da sua existência à data do óbito dos inventariados, pelo que também não se admitirá prova quanto ao seu paradeiro.

No que tange ao demais, e sem prejuízo do já decidido nos despachos de 05/05/2023 e 30/11/2023, importa produzir prova, face ao litígio suscitado pelos interessados e à posição assumida pela cabeça de casal.

Desde já se circunstanciando que o objecto do dissenso a apreciar incidirá, em síntese, sobre;

(i) Bens móveis

- alegada omissão de relacionação dos seguintes bens:

(…).

(ii) Doações

- Se o valor de € 29.927,00 entregue em vida da inventariada ao anterior cabeça de casal o foi a título de mútuo ou de doação.

Pelo que cumpre apreciar e determinar os meios de prova requeridos pelas partes.

- Admitem-se os documentos juntos pela cabeça de casal e pelos requerentes interessados nos seus articulados.

- Indefere-se a notificação da cabeça de casal para juntar aos autos documento comprovativo de emissão de apoio a terceiros pelo Instituto da Segurança Social e extractos bancários das contas dos inventariados entre os anos de 2012 e 2015, porque não ser objecto dos presentes autos aferir das despesas havidas com obras realizadas nos imóveis relacionados em vida dos inventariados.

- Indefere-se a requerida notificação da cabeça de casal para juntar aos autos extractos bancários das contas dos inventariados desde o internamento do inventariado em 2012 até ao óbito da inventariada, Outubro de 2017, face à junção dos extractos bancários das contas tituladas pelos inventariados à data dos respectivos óbitos.

- Indefere-se a requerida notificação da cabeça-de-casal para juntar aos autos extractos bancários dos anos de 1998, 1999, 2000, 2001 e 2002, 2007 e 2008, por falta de concretização e fundamento quanto ao alegado pelos requerentes.

- Prova testemunhal

Nos termos do artigo 294.º, n.º 1 do Código Processo Civil, ex vi 1091.º do mesmo diploma, a parte não pode produzir mais do que cinco testemunhas, verificando que os requerentes/interessados indicaram 8 (oito) testemunhas e a cabeça de casal 6 (seis), deverão as partes, em 10 dias, indicar quais as que pretendem sejam ouvidas, sem prejuízo do estabelecido no n.º 3 do artigo 511.º do Código Processo Civil.

Para produção da prova indicada, designa-se o dia 13/09/2024, às 09h00m, prevendo-se que a produção de prova tenha a duração de uma sessão que pode prolongar-se para a parte da tarde …”.

3. Acordaram as partes, cfr. ata da referida diligência, “… que o valor de €29.927 indicado na reclamação à relação de bens consiste numa doação … ao anterior cabeça de casal, II”.

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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
- Da admissibilidade da nova reclamação à relação de bens.

Tendo os presentes autos dado entrada em juízo no dia 20/10/2022 regem-se os mesmos pela Lei 117/2019, de 13.9[2], que se encontra em vigor desde 01/01/2020 (cfr. art.º 15.º da referida Lei), estando o processo de inventário regulado nos artigos 1082º a 1135º, do Código de Processo Civil, diploma a que nos reportamos na falta de outra referência.
A questão objeto do recurso é a de saber se é admissível o novo articulado (com proposição de prova) ou se bem decidiu o Tribunal a quo configurar o mesmo uma nova reclamação à relação de bens, extemporânea e não admissível, não o sendo, também, a prova nele requerida (o depoimento de parte da cabeça de casal).

Alegam os interessados, no novo articulado que apresentaram, que a cabeça-de-casal não prestou ao Tribunal todas as informações necessárias ao cálculo do valor da herança a partilhar, devendo ser notificada para apresentar a relação completa e integral de todas as quantias que foram doadas pelos inventariados a si e aos seus filhos para serem conferidas nestes autos (arts. 2104º e ss, do Código Civil) e pedem seja a cabeça de casal notificada para vir retificar e completar a relação de bens indicando todas as doações recebidas por si e seus filhos.

Resulta evidente estarmos perante uma nova reclamação à relação de bens, pretendendo os reclamantes seja a mesma acrescentada de outras alegadas doações que dela não figuram, oferecendo prova.
Ora, face ao regime aplicável, o vigente, não é admissível nova reclamação por a lei adjetiva o não permitir, como bem decidiu o Tribunal a quo, não sendo admissíveis sucessivas e prolixas reclamações à relação de bens, perturbadoras do regular andamento do processo, como a agora apresentada pelos interessados reclamantes.
Com efeito, apresentada uma reclamação contra a relação de bens, temos que mais outra reclamação contra tal relação, efetivamente fora do prazo perentório estabelecido no nº1, do art. 1104º, do Código de Processo Civil, não pode ser considerada admissível.
Vejamos.
O processo de inventário é um processo especial regulando-se, como decorre do nº1, do art. 549º, do CPC, pelas disposições que lhe são próprias e pelas disposições gerais e comuns e, em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, tem de ser observado o que se encontra estabelecido para o processo comum.
E cumpre deixar claro que o atual regime do processo de inventário judicial instituiu um novo paradigma, um novo modelo, de processo de inventário, com o objetivo de assegurar uma maior eficácia e celeridade processuais, definindo fases processuais relativamente estanques, em materialização de um princípio de concentração, impondo que determinado tipo de questões sejam necessariamente suscitadas em certa fase procedimental, com a inerente preclusão do direito da parte caso o não exercite no momento próprio, à semelhança do que sucede no processo comum.
Com efeito, afastou-se o “caráter arrastado, sinuoso e labiríntico da anterior tramitação”[3]. “O novo modelo do processo de inventário assenta em fases processuais relativamente estanques e consagra um princípio da concentração, dado que fixa para cada ato um momento próprio para a sua realização. Em consequência, o novo regime legal não pode deixar de comportar algumas cominações e preclusões”[4].
No modelo instituído o processo de inventário para fazer cessar a comunhão hereditária – processo de inventário “comum” - (cfr. nº2, do art. 1084º) distinguem-se três fases:
i) A fase dos articulados;
ii) A fase de saneamento;
iii) A fase da partilha,
abrangendo a primeira a subfase inicial (arts. 1097º a 1102º) e a subfase da oposição (arts. 1104º a 1107º), esta em que é atribuído aos interessados citados o direito ao exercício do contraditório, cabendo-lhes impugnar no articulado de oposição tudo o que respeite, designadamente, à delimitação do património hereditário, ativo e passivo (art. 1104º) e o que possa relevar para a partilha, para a divisão do acervo patrimonial.
A este articulado de oposição, impugnação e reclamação podem responder todos os interessados (art. 1105º), dispondo este artigo:
“1 - Se for deduzida oposição, impugnação ou reclamação, nos termos do artigo anterior, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada.
2 - As provas são indicadas com os requerimentos e respostas.
3 - A questão é decidida depois de efectuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º (…)”.
Explicitando com pormenor as várias fases, referidas, tendencialmente estanques, analisam Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro TorresA estruturação sequencial e compartimentada do processo de inventário envolve algumas cominações e preclusões, inexistentes no regime anterior e responsáveis, sob um ponto de vista económico, pela ineficiência do anterior modelo. O novo modelo tem implícito um reforço da auto-responsabilidade das partes … consagra um princípio de concentração na invocação dos meios de defesa que é em tudo idêntico ao que vigora no art. 573.º: toda a defesa (incluindo a contestação quanto à concreta composição do acervo hereditário, activo e passivo) deve ser deduzida no prazo de que os citados têm para deduzirem oposição (art. 1104º). Assim, por exemplo, é no articulado de contestação que os interessados devem suscitar todas as impugnações, reclamações e meios de defesa, quer respeitem à oposição ao inventário, à legitimidade dos citados ou à competência do cabeça de casal, quer se refiram à relação de bens ou aos créditos e dívidas da herança. Institui-se, assim, um efeito cominatório, já que a revelia conduz, em regra, ao reconhecimento das dívidas não impugnadas (art. 1106º, nº1)”[5].
“Os interessados diretos … têm o ónus de, no articulado de contestação previsto no art. 1104º, impugnar os elementos factuais e documentais constantes das alegações feitas pelo cabeça de casal ou pelo requerente do inventário (arts 1097º, 1099º e 1102º) com a cominação de não o fazendo no momento da oposição, tais elementos se consolidarem e sedimentarem no processo (arts. 566º, 567º e 574º). A falta de resposta a este articulado de oposição tem as consequências estabelecidas no art. 587º, nº1” e “cabe ao juiz dirimir definitivamente as questões controvertidas, salvo se a sua natureza ou complexidade impuserem a remessa dos interessados para os meios comuns (art. 1105º, nº3; cf. arts 1092 e 1093º)”[6].
Mais deixam os referidos autores claro que “Posteriormente, só podem ser invocados meios de defesa supervenientes (isto é, que a parte, mesmo atuando com a diligência devida, não estava em condições de suscitar no prazo da oposição) ou que a lei admita expressamente passado o momento da oposição (como sucede com a impugnação do valor atribuído aos bens relacionados e o pedido da respectiva avaliação: art. 1114º, nº1) ou que se prendam com questões que sejam de conhecimento oficioso (art. 573º, nº2)”[7].
Deste modo, “Sem embargo das exceções salvaguardadas por regras gerais de processo (v.g. meios de defesa supervenientes) ou por regras específicas do inventário que permitem o deferimento (v. g. avaliação dos bens, incidente de inoficiosidade), cada interessado tem o ónus de suscitar nesta ocasião, com efeitos preclusivos, as questões pertinentes para o objetivo final do inventário (art. 1104º), designadamente tudo quanto respeite à admissibilidade do inventário, identificação e convocação dos interessados, relacionamento e identificação dos bens a partilhar, dívidas e encargos da herança e outras questões atinentes à divisão do acervo patrimonial”[8]. “Uma vez citados, os interessados têm o ónus de invocar e de concentrar numa única peça todos os meios de defesa que considerem oportunos, em face dos factos alegados no requerimento inicial ou do que foi complementado pelo cabeça de casal, incluindo a pronúncia sobre as suas declarações e sobre os documentos apresentados. Tal corresponde a um verdadeiro ónus e não a uma mera faculdade, já que o decurso do prazo de 30 dias determina, por regra, efeitos preclusivos quanto a tais iniciativas. Este regime diverge do que estava consagrado no CPC de 1961 (art. 1348º) e integra-se, agora, no modelo geral sos processos de natureza contenciosa, sendo o efeito preclusivo justificado, além do mais, por razões de celeridade e de eficácia da resposta a um conflito de interesses, que importa resolver, em torno da partilha da herança.”[9]. Devem ser alegados os factos, especificadamente, e indicados os meios de prova, nos termos gerais, como impõe o nº2, do art. 1105º, seguindo-se uma fase de instrução.
Assim, no sistema atual, o momento das reclamações é necessariamente o previsto no nº1, do art. 1104º, sob pena de preclusão do direito de reclamar, sem prejuízo de situação de superveniência (cf. art. 588º, nº2) e na reclamação têm de ser alegados os concretos factos, não satisfazendo o ónus de alegação uma referência genérica e conclusiva a doações. Os factos alegados no articulado de contestação (art. 1104º) podem ser contestados no articulado de resposta (art. 1105º, nº1).
Deste modo, não sendo alegando especificadamente um determinado facto no articulado próprio, não é admissível, mais tarde, apresentar-se o interessado, num novo articulado, a suprir o ónus de alegação e oferecer novas provas, precludindo o direito.
No caso, não estamos perante um requerimento de quantificação de doações, certo sendo nunca poderem doações ser quantificadas pelo Tribunal. Como vimos, impendia sobre os interessados reclamantes, na reclamação que apresentaram no momento próprio (aquele a que alude o nº1, do art. 1104º), o ónus de alegar os factos, inclusive concreta importância de cada doação, e a não serem alegados, como a lei impõe, preclude o direito de o fazer.
Não tem a decisão proferida no processo, a que os apelantes aludem nas conclusões, a pretendida amplitude, não tendo a mesma a abrangência que os interessados lhe pretendem atribuir. E vêm os reclamantes, em nova reclamação, pretender carrear para o inventário outras doações à cabeça de casal e seus filhos, além das relacionadas, nenhum desrespeito revelando o despacho recorrido pelo caso julgado, pois nenhumas doações, além das relacionadas e da relativamente à qual as partes acordaram (cfr. f.p. nº3), foram discriminadas e, também, outras se não mostram acordadas e, por isso, mais nenhumas resulta dos autos terem de ser atendidas.
Destarte, não tendo na reclamação inicial havido especificação, apenas podem ser consideradas as doações que a cabeça de casal se apresentou a aditar à relação de bens, não podendo ser admitida a nova reclamação, para acrescento de outras. Cabendo aos interessados o ónus de alegação, especificada, tendo de densificar os factos e de oferecer as provas, não o fazendo no articulado próprio, previsto na lei, preclude o direito de o efetuarem, não sendo admissível requerimento posterior de alegação fáctica e de proposição de prova.
Exposto o regime aplicável ao caso que decorre da lei e a posição da Doutrina quanto ao mesmo, constata-se assim se orientar, também, a Jurisprudência.
Com efeito, no Ac. RP de 24/4/2024, proc. 604/23.3T8VLG.P1, entendeu-se que “No âmbito do novo regime jurídico do inventário judicial (decorrente da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro), o acervo patrimonial a partilhar (ativo e passivo) deve, por regra, ser indicado na fase dos articulados e só em situações excecionais se admite que seja acusada a falta de bens ou dívidas que o integrem, em momento ulterior”, “Entre essas situações, contam-se os casos de superveniência objetiva ou subjetiva de bens ou dívidas atinentes ao referido acervo”, “Tendo o cabeça de casal, na resposta à reclamação de bens, requerido o aditamento de dívida da herança, referente a benfeitorias por ele executadas, mas não tendo alegado qualquer fundamento para o eventual desconhecimento da sua existência aquando da apresentação da relação de bens, o pedido assim impetrado só pode ser considerado intempestivo”, aí se analisando:
“No passado, sempre foi entendimento dominante que havendo a possibilidade “de incluir na primeira partilha bens cujo conhecimento surge no decurso do próprio inventário, muito embora esse conhecimento aí advenha depois da fase da descrição–v.g. licitações-, devem procurar partilhar-se nesse inventário os aludidos bens, suspendendo-se, inclusive, as licitações ou os ulteriores termos do inventário para aí serem contemplados, estimados, licitados e partilhados conjuntamente com os restantes”.[10]
Todavia, isso hoje não se afigura com essa linearidade.
O acervo patrimonial a partilhar (ativo e passivo) deve, por regra, ser indicado na fase dos articulados (artigos 1097.º, 1102.º, 1104.º a 1107.º, do CPCivil) e só em situações excecionais se admite que seja acusada a falta de bens ou passivo que o integrem, em momento ulterior, casos, por exemplo, de superveniência objetiva ou subjetiva.[11]
Portanto, não há lugar, por regra, a relação adicional de bens ou dívidas noutras circunstâncias, a menos que, no limite, haja acordo de todos os interessados.
Porém, não sendo esse o caso, acusada a existência de novos bens ou dívidas fora do regime prescrito para os articulados supervenientes, os mesmos só podem ser levados em consideração em partilha adicional, nos termos prescritos no artigo 1129.º, n.º 1, do CPCivil, sob pena de, se assim não se entender, acabar por ficar completamente subvertida a reforma legislativa empreendida e já acima caracterizada nos seus traços essenciais.
Ora, um dos requisitos essenciais para ser admitido um articulado superveniente, quando seja alegado o conhecimento ulterior dívida é que seja alegada e provada essa superveniência (artigo 588.º, n.º 2, do CPCivil).
Se assim não for e o juiz concluir que a arguição da falta de relacionamento de dívida da herança foi feita fora de prazo, por culpa do arguente, deve rejeitar liminarmente essa arguição, é o que decorre do disposto no artigo 588.º, n.º 4, 1ª parte, do CPCiivl.”[12].
Também a Relação de Guimarães considerou: “I. Na sequência das alterações introduzidas pela Lei nº117/2019, de 13/09, o processo de inventário judicial regulado nos arts. 1082º a 1135º do C.P.Civil de 2013 alterou o paradigma a que obedecia o mesmo processo quando era regulado pelo C.P.Civil de 1961, passando a vigorar o princípio da concentração, o princípio da preclusão dos actos respeitantes a cada fase processual, e o princípio de auto-responsabilidade das partes na gestão do processo, tudo como forma de potenciar a celeridade e a eficácia da tramitação. II - Actualmente, o processo de inventário judicial está configurado como uma acção declarativa, sendo a primeira fase uma verdadeira fase de articulados (que engloba a fase inicial e da oposições e verificação do passivo), na qual recai sobre todos os interessados o ónus de suscitar nesta fase, com efeitos preclusivos, as questões pertinentes para o objetivo final do inventário (art. 1104º), designadamente tudo quanto respeite à sua admissibilidade, identificação e convocação dos interessados, relacionamento e identificação dos bens a partilhar, dividas e encargos da herança e outras questões atinentes à divisão do acervo patrimonial. III - Posteriormente, só podem ser deduzidas as excepções e meios de defesa que sejam supervenientes (isto é, que a parte, mesmo atuando com a diligência devida, não estava em condições de suscitar nesta primeira fase, dando origem à apresentação de um verdadeiro articulado superveniente) e/ou que a lei admita expressamente passado esse momento (como sucede com a contestação do valor dos bens relacionados e o pedido da respetiva avaliação, que, por razões pragmáticas, o legislador admitiu que pudesse ser deduzido até ao início das licitações)”[13].
No caso, como vimos, cabia aos interessados apelantes alegar as concretas doações e requerer as provas, constituídas ou constituendas, na reclamação que apresentaram e não o tendo feito no momento próprio sib imputet, vedada se encontrando a apresentação de nova reclamação a pedir aditamento à relação de bens, não se tratando de situação de superveniência dado, desde logo, o conhecimento, manifestado pelos interessados reclamantes, ab initio, das doações que os inventariados fizeram em vida.
Concluindo o Tribunal que a arguida falta de relacionamento de doações foi efetuada fora de prazo por facto imputável aos reclamantes, a quem cabia o ónus de invocar e de concentrar numa única peça todos os meios de defesa, com alegação de todos os factos e indicação dos meios de prova (cfr. nº1, do art. 1104º e nº2, do art. 1105º, da CPC e nº1, do art. 342º, do Código Civil), tendo de o efetuar no momento e articulado próprios, bem foi rejeitado, por intempestivo, o novo articulado apresentado (balizada estando a instrução pelos, normais, articulados previstos por lei).
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser integralmente mantida.

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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
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Custas pelos apelantes, pois que ficaram vencidos – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.






Porto, 10 de fevereiro de 2025

Assinado eletronicamente pelos Senhores Juízes Desembargadores


Eugénia Cunha
José Eusébio Almeida
Anabela Morais

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[1] Nela se analisa e fundamenta: “Ref. 34743185: vieram os requerentes AA, BB e CC apresentar reclamação contra a relação de bens. Alegaram, em síntese, (i) a omissão de relacionação de bens móveis, (ii) a omissão de relacionação de contas bancárias, (iii) a omissão de relacionação das doações em vida dos inventariados à cabeça-de-casal e seus filhos, (iv) impugnaram o valor atribuído aos bens imóveis e (v) requerem a inclusão do valor de rendas recebidas. Requerem a avaliação dos bens imóveis.

A cabeça-de-casal FF não respondeu à reclamação, nem indicou meios de prova.

Cumpre decidir.

Considerando que a cabeça-de-casal se remeteu ao silêncio, face às regras dos incidentes, previstas nos art. 292º a 295º, 1105º e 1091º do Código de Processo Civil, considero confessados os factos alegados, atento o efeito cominatório previsto no art. 293º nº 3.

Pelo que importa proferir decisão sobre o incidente.

Factos provados

1. À data do óbito dos inventariados existiam diversos bens móveis no seu domicílio.

2. Tais bens foram deixados em testamento, pela inventariada EE, à aqui cabeça-de-casal.

3. À data do óbito da inventariada EE existiam, pelo menos, quatro contas bancárias abertas, sendo três na Banco 2... e um no Banco 1..., cujos números os reclamantes desconhecem.

4. As contas bancárias foram sempre geridas pela cabeça-de-casal, que sempre esteve na posse dos extratos e cadernetas bancárias e nunca transmitiu ao outro herdeiro qualquer informação concreta sobre a sua movimentação.

5. Os inventariados fizeram várias doações em vida, em dinheiro, à cabeça-de-casal e aos seus filhos.

Factos não provados

Não existem factos não provados.

Relativamente ao demais alegado no articulado de reclamação contra a relação de bens, trata-se de matéria de direito, conclusiva ou irrelevante para a boa decisão da causa, pelo que o Tribunal se abstém de a transcrever.

Motivação

A decisão relativa à factualidade provada, como supra se referiu, assentou na aplicação do efeito cominatório, nos termos das disposições do Código de Processo Civil acima referidas (art. 292 a 295º, 1105º e 1091º), pelo que, tendo-se verificado a falta de resposta pela cabeça de casal, têm-se os referidos factos admitidos por confissão.

Do Direito

A reclamação contra a relação de bens é deduzida no prazo de 30 dias a contar da citação, nos termos do art. 1104º nº 1 al. d) do Código de Processo Civil.

Os fundamentos para a reclamação da relação de bens podem consistir: na alegação da existência de bens a partilhar que não foram contemplados na relação de bens – reclamação por insuficiência de bens; ou na alegação de que bens contemplados na relação de bens estão subtraídos à partilha – reclamação por excesso da relação de bens.

De igual modo pode ser arguida a inexatidão dos bens incluídos na relação de bens, bem como ser impugnado o valor atribuído a tais bens – neste sentido ver O Processo de Inventário Judicial e o Processo de Inventário Notarial - Carla Câmara, O Inventário Judicial Introduzido no Código de Processo Civil pela Lei nº 117/2019, de 13 de setembro; O Inventário Notarial Antes e Depois da Lei nº 117/2019, de 13 de setembro, pág. 68.

De tal requerimento de reclamação, são notificados os demais interessados, sendo permitido àquele que tenha legitimidade para se pronunciar sobre a questão, apresentar resposta no prazo de 30 dias – art. 1105º nº1 do Código de Processo Civil. Com a resposta, apresentará a prova respetiva – art. 1105º nº 2 do Código de Processo Civil.

Em sede de apreciação da reclamação da relação de bens valem as regras estabelecidas no art. 342º do Código Civil, pelo que o interessado que reclama contra a relacionação de determinado bem, ou a falta dela, tem o ónus da alegação e prova dos factos que demonstrem que o bem indevidamente relacionado lhe pertence, ou pertence a terceiro, e, na situação de omissão de relacionação de um bem, os factos dos quais procede a propriedade do de cujus sobre o bem em causa - factos constitutivos.

Ao cabeça-de-casal, (ou terceiro com interesse direto em contraditar, e que deve ser chamado ao Inventário para se pronunciar) cabe a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos.

Finalmente, refira-se que para determinação do ativo e passivo da herança, o momento relevante, isto é, o momento a ter em conta para determinar o espólio hereditário, é o momento da morte do de cujus, como se extrai do art. 2031º do Código Civil, onde se lê que «a sucessão abre-se no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele».

Não obstante, a relacionação de bens no inventário alcança não só os bens que o inventariado possuía à data da sua morte, quer estejam em poder da herança, quer em poder de quaisquer co-herdeiros que estivessem na posse deles à data da morte do de cujus, mas também, havendo herdeiros legitimários, os bens doados pelo autor da herança – veja-se, a propósito, João Lopes Cardoso, in “Partilhas Judiciais”, 4ª edição, volume I, Almedina pág. 429 e segs. e, entre outros, o Ac. do TRG de 28/06/2018, proc. n.º 5182/15.4T8VNF.G1, disponível em www.dgsi.pt.

Feita este enquadramento quanto ao objeto do processo de inventário, passemos então à apreciação do mérito da reclamação apresentada.

(…) secunda-se a posição adotada no aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. n.º 995/20.8T8FIG-A.C1, de 25-10-2022, onde se escreveu que, «os bens doados pelo autor da sucessão, ainda que com dispensa da colação, devem ser relacionados no inventário, com vista ao cálculo da legítima, pelo valor que tiverem ao tempo da abertura da sucessão.» E, ainda, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. n.º 2235/07.6YXLSB-A.L1-1, de 19-10-2010, onde se concluiu que, «os bens legados, ainda que com o seu regime próprio, devem constar do acervo dos bens relacionados.»

Na verdade, porque importa preservar a observância das quotas disponíveis e a igualação da partilha é necessário, no processo de inventário, organizar, igualmente, uma relação de bens doados, sendo caso disso, que, não fazendo já parte da herança, são relacionados, exclusivamente, com vista à eventual redução por inoficiosidade ou à mera igualação da partilha, aplicando-se, para o efeito, na falta de disposição específica quanto aos bens doados, as regras próprias da relação de bens da herança.

Apesar de poder haver dispensa de colação e não obstante verbas doadas não integrarem o acervo hereditário, a respetiva integração na relação de bens em inventário é necessária a fim de verificar a eventual inoficiosidade das doações e prevenir a ofensa do interessado não beneficiado.

«Não obstante as coisas doadas não integrarem o acervo hereditário devem, no processo de inventário, havendo herdeiros legitimários, ser objeto de relacionação, com o objetivo de lhes ser fixada a natureza, qualidades e valor, para efeitos de cálculo das legítimas e com vista à sua integralidade, com eventual redução, por inoficiosidade, ou à mera igualação da partilha.» - ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. n.º 156/07.1TBMDR.G1, de 14-06-2018.

…”.
[2] Lei que alterou o Código de Processo Civil, designadamente, em matéria de processo de inventário, revogando o regime jurídico do processo de inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de março.
[3] Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, “O Novo Regime do Processo de Inventário…”, Almedina, pág. 5
[4] Ibidem, pág. 5
[5] Ibidem, pág. 10.
[6] Ibidem, pág. 79.
[7] Ibidem, pág. 10.
[8] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 521 e seg.
[9] Ibidem, pág. 567 e seg.
[10] Cfr. João António Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. II, Livraria Almedina, pág. 583.
[11] Neste sentido parecem inclinar-se também Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, ob. cit., pág.79, quando referem que a subfase da oposição pode ser deslocada para um outro momento da tramitação do processo de inventário quando “é alegado um facto superveniente por algum interessado (cfr. art. 588.º, n.º 2), o que implica a possibilidade de exercício do contraditório por qualquer outro interessado (art. 588.º, n.º 4)”.
[12] Ac. RP de 24/4/2024, proc. 604/23.3T8VLG.P1, acessível in dgsi.pt
[13] Ac. TRG de 22/9/2022, proc. 5044/20.3T8BRG-B.G1, acessível in dgsi.pt