MEIOS DE PROVA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
NULIDADE PROCESSUAL
NULIDADE POR EXCESSO DE PRONÚNCIA
Sumário

I - Ao contrariar todo o processado anterior, sob o respetivo poder/dever de direção processual, e arredar na sentença do respetivo conhecimento determinados meios de prova já admitidos, por configurarem, no entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, meio de prova ilícita, sem prévia audição da Autora a esse respeito (uma vez que o Réu já tinha definido a sua posição em sede de resposta à petição inicial aperfeiçoada), o Tribunal de 1ª instância proferiu verdadeira decisão surpresa, porquanto respeita a prova que se relaciona com matéria fulcral da causa de pedir da Recorrente, e que foi dada como não provada, violando o princípio do contraditório.
II - Essa decisão não está de acordo com as consequências processuais a retirar da tramitação ocorrida até ao momento, tendo sido proferida sem que a Apelante tenha tido a oportunidade de expor os seus argumentos, de forma a convencer (ou não) o Julgador da sua decisão, num momento em que não era expectável a prolação da referida decisão.
III - Neste caso, a não observância do contraditório constitui uma nulidade processual, que é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia - artigo 615º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil -, dado que, sem a prévia audição das partes, o Tribunal não podia conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão.
IV - As circunstâncias que determinam a nulidade da sentença impedem que, no caso, o Tribunal ad quem faça uso da regra da substituição, prevista no artigo 665º Código de Processo Civil.

Texto Integral

Processo nº 279/23.0T8BAO.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este

Juízo de Competência Genérica de Baião

Recorrente: A... Unipessoal, Lda

Recorrido: AA

Relatora: Juíza Desembargadora Teresa Pinto da Silva

1ª Adjunta: Juíza Desembargadora Anabela Morais

2ª Adjunta: Juíza Desembargadora Eugénia Cunha


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Acordam as Juízas subscritoras deste Acórdão, da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO

Em 20 de setembro de 2023, A... Unipessoal, Lda intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA, pedindo a condenação do Réu no pagamento da quantia de €15.353,80€ (quinze mil, trezentos e cinquenta e três euros e oitenta cêntimos), acrescida de juros de mora, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Alegou, em síntese, que no exercício da sua atividade comercial de prestação de serviços de organização e gestão de processos de venda de direitos e bens, móveis ou imóveis, no âmbito judicial e extrajudicial, de acordo com qualquer modalidade de venda permitida por lei, por autorização expressa do Administrador Judicial BB, datada de 11 de março de 2022, foi a Autora incumbida de proceder às diligências necessárias referentes ao processo de insolvência que, sob o n.º 341/21.3 T8AMT, correu os seus termos no Juiz 2, do Juízo de Comércio de Amarante, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este.

Nesse processo de insolvência, por sentença datada de 8 de março de 2022, foram declarados insolventes CC e esposa DD, pais do ora Réu, e nomeado administrador judicial da insolvência o acima indicado BB.

A Autora iniciou as suas funções no referido processo de insolvência no próprio dia 11 de março de 2022, comunicando ao Administrador Judicial o resultado das primeiras buscas efetuadas aos bens que seriam propriedade dos insolventes, tendo identificado os seguintes imóveis: prédio urbano, sito na ..., freguesia ..., concelho de Baião, descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e prédio rústico, sito na ..., freguesia ..., concelho de Baião, descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião sob o n.º ... e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ....

Tais prédios foram apreendidos no âmbito do processo de insolvência, pelo Administrador Judicial, em 9 de maio de 2022, tendo por este sido solicitado à Autora que esta, no desempenho das suas funções, procedesse à avaliação dos prédios, diligenciasse pelo registo da apreensão dos imóveis, e efetuasse os procedimentos para avançar para a venda dos prédios através de leilão eletrónico na sua plataforma, o que esta fez.

No leilão, a melhor proposta foi apresentada por EE, no montante de €205.000,00, não tendo sido atingido o valor mínimo, que se cifrava na quantia de €271.000,00, facto que foi comunicado ao Administrador Judicial.

Tendo em conta que o insucesso de melhores propostas se deveu ao facto de os prédios ainda se encontrarem ocupados e de o valor mínimo da venda ser elevado, o Administrador Judicial e o credor hipotecário solicitaram a entrega dos imóveis apreendidos nos autos, solicitação essa que foi deferida por despacho datado de 1 de fevereiro de 2023, proferido no processo de insolvência.

Esgotado o prazo para a entrega dos imóveis, e desejando manter a casa de morada de família, o Réu apresentou uma proposta de aquisição, através do seu mandatário, na qual pretendia adquirir o prédio urbano por €237.150,00 (duzentos e trinta e sete mil, cento e cinquenta euros e o prédio rústico por €8.075,00 (oito mil e setenta e cinco euros), o que perfazia a quantia total de €245.225,00 (duzentos e quarenta e cinco mil, duzentos e vinte e cinco euros), proposta essa que foi notificada à Autora pelo Administrador Judicial, uma vez que esta era a responsável pela venda dos bens apreendidos.

No seguimento da adjudicação, que foi aceite pelos credores, e comunicado ao Réu, foi a este por diversas vezes solicitado, por intermédio do seu mandatário, o pagamento da comissão devida à Autora pela venda dos imóveis por ele adquiridos, e que é da sua responsabilidade, a qual ascende ao montante de €15.081,35 (quinze mil, oitenta e um euros e trinta e cinco cêntimos), o que o Réu não fez até à data.

Em 23 de setembro de 2023, o Réu apresentou contestação, impugnando parte dos factos alegados pela Autora na petição inicial, sustentando que nada acordou com a Autora, desconhecendo o que foi ou não contratado entre a Autora e o Administrador da Insolvência, se existia ou não uma comissão de venda ou uma retribuição fixa e, muito menos, se tal comissão era de 5% do preço oferecido.

Sustenta que as despesas ocasionadas pela intervenção da Autora na venda do imóvel apreendido devem ser pagas pela entidade contratante, isto é, pelo Administrador da Insolvência, em representação da massa, constituindo uma despesa ou encargo associado à liquidação, sendo uma dívida da massa insolvente.

Mais considera que o entendimento da Autora de que as despesas de promoção de venda devem correr por parte do Réu, viola expressamente o disposto no artigo 51º, nº 1, al. c), em articulação com o artigo 55º, n.º 3, ambos do CIRE, que as caracteriza como despesas de liquidação, da responsabilidade da Massa Insolvente, violando ainda o disposto no artigo 827º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 17º CIRE, na medida em que o “preço” aí definido é o “preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda”, sem menção a qualquer acréscimo decorrente da atividade da Autora, que não pode ser considerada um encargo da venda.

Por outro lado, exigir ao Réu que assuma o pagamento da peticionada comissão por meio de contrato em que, contrariamente ao esquema legalmente aprovado, não participou, mais não é que pretender obrigá-lo a participar em negócio contra ou sem a sua vontade, o que configura uma violação do princípio do Estado de Direito (artigo 2º da Constituição da República Portuguesa) na vertente da proteção do princípio da confiança e da autonomia individual.

Conclui pela improcedência, por não provada, da presente ação, com todas as legais consequências.

Em 10 de janeiro de 2024, o Tribunal a quo, antevendo a possibilidade de vir a declarar-se incompetente em razão do território e / ou da matéria, concedeu contraditório às partes, o qual as mesmas exerceram, pugnando pela sua competência.

Em 11 de fevereiro de 2024, o Tribunal de 1ª instância, a fim de evitar decisões surpresa, considerando que a Autora, na petição inicial, não concretizou os trabalhos que foram ajustados com o Réu, quando foram os mesmos solicitados à Autora por aquele, em que data foram os trabalhos prestados e qual o preço contratado entre ambos, proferiu despacho a convidar a Autora a apresentar, no prazo de 10 dias, novo articulado, no qual, respeitando os limites estabelecidos pelo artigo 265º do Código de Processo Civil em relação à causa de pedir e pedidos constantes da petição inicial, viesse suprir as referidas insuficiências.

Em 22 de fevereiro de 2024, a Autora, em cumprimento do despacho de convite ao aperfeiçoamento, apresentou petição inicial aperfeiçoada, tendo o Réu, em 7 de março de 2024, exercido contraditório em relação à petição corrigida.

Por decisão de 7 de maio de 2024, o Tribunal recorrido dispensou a audiência prévia, proferiu despacho saneador, identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova, admitiu os requerimentos probatórios e agendou a audiência de julgamento, que veio a realizar-se no dia 6 de junho de 2024.

Em 30 de junho de 2024 foi proferida sentença, da qual consta o seguinte dispositivo:

“Em face do exposto julga-se a acção totalmente improcedente, e em consequência, absolve-se o Réu AA dos pedidos formulados pela Autora A... Unipessoal, LDA.

Custas a cargo da Autora, nos termos do artigo 527.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Registe e notifique - artigo 153º, nº 4, e 253.º do Código de Processo Civil. “


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Inconformada com esta sentença, veio a Autora, em 4 de setembro de 2024, dela interpor o presente recurso, pretendendo a revogação da decisão proferida e a sua substituição por outra que condene a Recorrida no pedido, para o que apresentou alegações, culminando com as seguintes conclusões:

A. Vem o presente Recurso de Apelação interposto da douta sentença de fls., que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu o Recorrido dos pedidos formulados pela Recorrente.

B. Em síntese, cumpria nos presentes autos aferir se assistia à Recorrente o direito de receber do Recorrido a quantia peticionada de € 15.420,15 (quinze mil quatrocentos e vinte euros e quinze cêntimos) a título de comissão pelos serviços prestados na adjudicação do imóvel ao Recorrido.

C. Assim, com o presente recurso visa, a Recorrente, questionar a apreciação da prova feita do que resultará ser posta em crise a douta decisão na parte respeitante ao alegado desconhecimento do Recorrido das condições gerais de venda.

D. Ora, os factos que integram a relação material controvertida em crise encontram-se parcialmente elucidados na matéria de facto considerada como provada, a qual se dá aqui por reproduzida.

E. Porém, não consta da mesma todos os factos que deveriam ter sido considerados provados, pelo que, se impugna a sentença objeto do presente recurso.

F. Isto porque, o Tribunal a quo considerou, s.m.o., erradamente, como não provado, o facto de o Réu ter conhecimento das condições gerais de venda aludidas em 8) dos factos provados.

G. Sucede que, foi produzida prova em sentido diverso, tanto documental, como testemunhal, a qual nos parece suficiente para o referido facto integrar o acervo factual dado como provado.

H. Assim, estamos em crer que o Tribunal a quo não valorou corretamente a prova produzida, incorrendo em verdadeiro e manifesto erro de julgamento.

I. O Tribunal a quo decidiu não tomar em consideração o alegado nos artigos 27.º e 28.º da douta petição inicial aperfeiçoada e, bem assim, as comunicações eletrónicas juntas como documento n.º 29.

J. Quanto à não admissão das comunicações eletrónicas, convém referir que se trata de um e-mail enviado pelo Mandatário do Recorrido ao mesmo e que aquele reencaminhou, a posteriori, para o Senhor Administrador de Insolvência.

K. Ou seja, não está aqui em causa correspondência trocada entre Advogados ou entre estes e Solicitadores, mas sim correspondência trocada entre um Advogado e um Administrador de Insolvência, o qual, por sua vez, a revelou à Recorrente, parte nos presentes autos que pretendeu fazer uso da mesma.

L. S.m.o., entendemos que não está aqui em causa qualquer sigilo profissional só porque a correspondência foi remetida ao Senhor Administrador de Insolvência por um Advogado.

M. Não contendo o E.O.A. qualquer reserva de confidencialidade para a correspondência que seja trocada entre um Advogado e alguém que não o seja.

N. Neste sentido vai o processo de Dispensa de Segredo Profissional n.º 131/2008, disponível em www.oa.pt e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18.12.2023, relatado por Maria Domingas e disponível em www.dgsi.pt.

O. Se atendermos ao suposto aviso de confidencialidade que o Ilustre Mandatário do Recorrido fez constar dos e-mails enviados, concluímos que o mesmo consta indistintamente de todos os e-mails, quer estes contenham factos sigilosos, quer não, tendo sempre os mesmos dizeres, pelo que facilmente se percebe que se trata de um mero template.

P. Ora, a grande maioria da jurisprudência tem entendido que a mera aposição genérica, em letras miúdas, de uma menção de confidencialidade, fora do corpo da mensagem transmitida pelo advogado à contraparte e abaixo da assinatura do declarante, como é o caso, não satisfaz a exigência legal de que a intenção de atribuir caráter confidencial à correspondência trocada seja declarada de forma expressa e clara, conforme formula o artigo 113.º, n.º 1, do E.O.A., impondo-se concluir que não estamos perante correspondência que beneficie da proteção reforçada consagrada naquele preceito.

Q. Acresce que, o que consta do e-mail em causa é apenas uma comunicação do Ilustre Mandatário ao Recorrido no sentido de lhe dar conhecimento da comissão devida à Recorrente e dos demais pagamentos a efetuar para a outorga da escritura de compra e venda.

R. Tal e-mail não contém, em momento algum, qualquer facto sigiloso que esteja abrangido pelo artigo 92.º do E.O.A., até porque o mesmo foi revelado pelo Ilustre Mandatário do Recorrido ao Senhor Administrador de Insolvência, o qual não se encontra abrangido por qualquer sigilo profissional.

S. Aliás, também a Recorrente não se encontra abrangida pelo referido sigilo, pelo que pode utilizar tais comunicações enquanto parte de modo a exercer a sua defesa de forma cabal.

T. No caso em concreto, não temos o cliente a dar conhecimento de um qualquer facto ao seu Advogado, aliás nem se encontra junto qualquer e-mail do cliente para com o Advogado.

U. Ora, dar conhecimento ao seu constituinte dos montantes a liquidar para a celebração de uma escritura não cabe no conceito de facto sigiloso.

V. Se adotarmos a posição que o Tribunal a quo adotou estaremos a sujeitar qualquer e-mail em que o remetente seja um Advogado ao sigilo profissional.

W. Pelo que, atento o exposto, inexiste sigilo profissional impeditivo do conhecimento e valoração das comunicações constantes do documento n.º 29 junto com a douta petição inicial aperfeiçoada – prova essa que se afigura de máxima relevância, pois demonstra matéria fulcral da causa de pedir da Recorrente, e dada como não provada pelo Tribunal a quo, mormente a elencada na alínea a) da matéria de facto não provada como tal listada na sentença ora em crise.

X. Mais. Aquando do despacho saneador, a Mma. Juiz a quo admitiu as referidas comunicações eletrónicas, agora consideradas, também por si, como meios ilegais de prova.

Y. Portanto, até à prolação da sentença recorrida não houve qualquer recusa em aceitar os documentos, tendo, pelo contrário, os mesmos sido admitidos plenamente, criando a convicção de que seriam, de facto, considerados na decisão final, impedindo, por sua vez, que fossem, eventualmente, requeridos ou produzidos outros meios de prova.

Z. Ao contrariar, desse modo, todo o processado anterior, sob o respetivo poder/dever de direção processual e, do mesmo modo, ao posteriormente, arredar do respetivo conhecimento determinados meios de prova já produzidos, por suposta nulidade dos mesmos, sem prévia audição das partes a esse respeito, o Tribunal a quo proferiu verdadeira decisão surpresa e inquinada de nulidade, violando, assim, o artigo 3.º do C.P.C.

AA. Nulidade essa que expressamente se argui para todos os efeitos.

BB. Tal entendimento teve também o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 19.02.2024, relatado por Fernanda Almeida e disponível em www.dgsi.pt.

CC. Em suma, devem as aludidas comunicações serem admitidas e os factos vertidos nos artigos 27.º e 28.º da petição inicial aperfeiçoada considerados, e, nesse seguimento, ser dada como provada a matéria elencada na alínea a) dos factos não provados constantes da sentença recorrida e o ora Recorrido condenado no pagamento da comissão devida à Recorrente.

DD. Ainda que se entenda – o que desde já não se concebe nem se concede - que as referidas comunicações eletrónicas não devem ser admitidas como sendo meio legal de prova, o facto constante da al. a) da matéria de facto dada como não provada, sempre teria que ter sido dado como provado com base na prova testemunhal produzida.

EE. É referido na sentença ora em crise que “os depoimentos prestados pelas Testemunhas arroladas pela Autora, foram plausíveis e não contrariam a prova documental”.

FF. Ora, indo a prova documental em conjugação com a prova testemunhal no sentido de que o ora Recorrido teve conhecimento das condições gerais de venda, quanto mais não fosse através do seu Mandatário, a decisão que se impunha era a de considerar o facto constante da al. a) como provado.

GG. Atentemos no depoimento prestado pela testemunha FF, a qual depôs de forma séria e credível, em sede de audiência de discussão e julgamento, na sessão do dia 06 de junho de 2024, e que se dá aqui por integralmente reproduzido, transcrevendo-se as concretas passagens do minuto 00:10:01 ao minuto 00:15:17, onde a mesma esclarece que deu conhecimento das condições de venda, nomeadamente da comissão, ao Mandatário do Recorrido.

HH. Uma vez que foi o Mandatário do Recorrido, com poderes para o efeito, que contactou o Senhor Administrador de Insolvência, apresentando uma proposta em nome daquele, todas as comunicações passaram a ser dirigidas ao Mandatário, mas sempre ao cuidado do Recorrido.

II. Presume-se, s.m.o., que o Ilustre Mandatário, no exercício do seu mandato, transmitiu, como é sua obrigação, as informações que lhe iam sendo comunicadas ao seu cliente, in casu o Recorrido.

JJ. Resulta da prova documental, nomeadamente dos e-mails juntos como documento n.º 19 com a douta petição inicial aperfeiçoada, quando é dito que “Num prazo máximo de 2 dias, deverá proceder ao pagamento da comissão da A..., a qual é calculada em 5% sobre o valor de adjudicação + IVA à taxa legal (23%)”, e do depoimento da testemunha supratranscrito que o Ilustre Mandatário tinha conhecimento desta condição.

KK. Logo, pressupõe-se que o mesmo deu conhecimento ao seu cliente, mas ainda que assim não se entenda, e uma vez que o Ilustre Mandatário atua em representação do Recorrido, deve assumir-se que este teve conhecimento da referida condição na pessoa do seu Mandatário.

LL. Posto que, resultando provado que “Após a Autora dirigiu comunicações, a Causídico, ao cuidado do Réu, a solicitar o pagamento da quantia de 15.081.24€” – cfr. ponto 14) dos factos provados elencados na sentença ora em crise – deveria, consequentemente, constar da matéria de facto provada que o Réu tinha conhecimento das condições gerais de venda.

MM. Pelo que se impõe a revogação in totum da sentença objeto do presente recurso, devendo a Recorrida ser condenada a pagar à Recorrente a quantia peticionada na douta petição inicial, acrescida de juros de mora devidos desde a citação e até efetivo e integral pagamento.


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Não foi apresentada resposta às alegações de recurso.

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Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e com efeito devolutivo.

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Recebido o processo nesta Relação, emitiu-se despacho que teve o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


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Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões vertidas pela Recorrente nas suas alegações (artigos 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais prévias, destinando-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não à prolação de decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido.

Mercê do exposto, da análise das conclusões vertidas pela Recorrente nas suas alegações decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito, por ordem lógica, às seguintes questões:

1ª – Se a sentença proferida está inquinada de nulidade, por constituir decisão surpresa, violando o disposto no artigo 3º do Código de Processo Civil.

2ª – Se foi validamente deduzida e procede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da sentença quanto ao facto não provado sob a alínea a), e, em caso afirmativo,

3ª - Da repercussão dessa alteração da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso.

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II – FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
É o seguinte o teor da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida (transcrição):
Factos provados
1) A Autora é uma sociedade unipessoal que se dedica à prestação de serviços de organização e gestão de processos de venda de direitos e bens, móveis ou imóveis, no âmbito judicial e extrajudicial, de acordo com qualquer modalidade de venda permitida por lei, nomeadamente através da organização e realização de leilões ou negociação particular, praticando para o efeito todos os actos de identificação, inventariação, manuseamento, transporte, armazenagem, guarda, manutenção, avaliação, peritagem e promoção dos bens em processo de venda e bem assim de todas as relações com as entidades interessadas na respectiva aquisição.
2) Correu termos no Juiz 2 do Juízo de Comércio de Amarante do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este o processo n.º 341/21.3T8AMT, em que foram declarados Insolventes CC e esposa DD e nomeado Administrador da Insolvência BB, em 08.03.2022.
3) Mediante escrito, com menção ao processo n.º 341/21.3 T8AMT, datado de 11 de Março de 2022, o Sr. AI declarou autorizar a Autora a coadjuvar na inventariação, apreensão, remoção, registo fotográfico, mudança de fechadura e avaliação de bens móveis e imóveis pertencentes aos insolventes, bem como a consultar todos os elementos imprescindíveis junto dos organismos oficiais, nomeadamente Câmara Municipal, Serviço de Finanças e Conservatórias, e requerer todos os documentos que indispensáveis para o exercício das suas funções.
4) No exercício da sua actividade e da declaração supra, a Autora comunicou buscas ao Sr. AI..
5) Mediante escrito, datado de 09.05.2022, o Sr. AI declarou proceder à apreensão do prédio urbano, sito na ..., freguesia ..., concelho de Baião, descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e de um prédio rústico, sito na ..., freguesia ..., concelho de Baião, descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião sob o n.º ... e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ....
6) A solicitação do Sr. AI a Autora procedeu à avaliação dos prédios supra e diligenciou pelo registo da apreensão dos mesmos.
7) A solicitação do Sr. AI a Autora procedeu à publicação de denominado leilão em jornal nacional, bem como nas redes sociais.
8) No portal electrónico da Autora consta escrito denominado de Condições Gerais de Venda, com referência às comissões pelos serviços prestados, designadamente que o “pagamento é da responsabilidade do adquirente/comprador (seja ele, particular, pessoa coletiva/sociedade, credor hipotecário, entidade bancária ou financeira, entidade c/ direito de preferência ou de opção e de remição)”, bem como a percentagem da comissão de venda e as modalidades de pagamento.
9) O leilão referente ao prédio urbano, sito na ..., freguesia ..., concelho de Baião, descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e ao prédio rústico, sito na ..., freguesia ..., concelho de Baião, descrito na Conservatória do Registo Predial de baião sob o n.º ... e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ..., decorreu entre as 18:00:00 horas de 13 de Janeiro de 2023 e as 18:00:00 de 13 de Fevereiro de 2023.
10) A Autora comunicou ao Sr. AI que fora apresentada proposta de aquisição no montante de 205.000,00€, que não atingiu o valor mínimo de venda.
11) Mediante despacho judicial proferido em 01.02.2023 foi deferida a entrega do imóvel pelos Insolventes ao Sr. AI.
12) Em data não concretamente apurada, mas posterior a 01.02.2023, Causídico apresentou em nome do Réu nos autos do processo n.º 341/21.3T8AMT proposta de aquisição dos prédios descritos em 5), pelo montante global de 245.225,00€.
13) O Sr. AI comunicou a proposta à ora Autora.
14) Após a Autora dirigiu comunicações, a Causídico, ao cuidado do Réu, a solicitar o pagamento da quantia de 15.081,34€.
15) Causídico apresentou em nome do Réu em 19.07.2023, requerimento no processo 341/21.3T8AMT, enjeitando o pagamento que lhe havia sido pedido e dirigido pela Autora e pedindo que se determinasse que o Sr. AI procedesse a agendamento de escritura de aquisição dos imoveis referidos em 5).
16) O Sr. AI, solicitou à Autora agendamento de escritura.
17) Nessa sequência a Autora diligenciou nesse sentido.
18) Mediante requerimento datado de 24.07.2023, o Sr. AI em declarou no processo 341/21.3T8AMT que:
“1. Como é do conhecimento dos autos, o AI fixou em relatório em 31 de Outubro de 2022, os termos da liquidação dos bens apreendidos, para a massa insolvente, nomeadamente, que para agilizar o processo que iria contar com os serviços de uma leiloeira, sendo que, nem ao credor hipotecário ou eventual remidor, seria aplicada qualquer comissão de venda;
2. Do relatório e do seu conteúdo não vieram os credores ou os devedores a apresentar qualquer objecção ou outros argumentos que obstassem à liquidação nos termos anunciados.
3. No seguimento e com as diligências de liquidação em curso, veio o filho dos insolventes, a apresentar proposta para a aquisição dos bens apreendidos, contudo, ressalva-se que o fez, não no âmbito e exercício de um direito de remissão, sendo uma proposta à margem do mencionado direito.
4. Assim sendo, a proposta apresentada deverá submeter-se às condições atempadamente fixadas para as diligências de liquidação nos presentes autos e às quais todos os outros proponentes se submeteram, não devendo o Il. mandatário, o Dr. GG, alegar desconhecimento das mesmas, porquanto, este tem acesso ao processo e a toda a informação ai depositada, pelo que, qualquer questão quanto a estas, nesta fase, com o devido respeito, parece-nos uma não questão, tendo eventualmente como intuito o prolongar do processo de liquidação;
5. Acresce que o AI, voltou a notificar o proponente através da pessoa do seu mandatário, o Il. Dr. GG, para que este procedesse ao depósito da caução correspondente a 20% do preço apresentado para a aquisição dos bens apreendidos, sendo que este, em resposta (Doc.1), escusou-se ao pagamento da mesma, manifestando vontade em avançar para a escritura sem o pagamento de qualquer caução, o que contraria o regular funcionamento nos processos de venda judicial, contudo, admite-se que esta situação não seja um total impedimento à realização da escritura, pressupondo que as partes agem de boa-fé.
6. Assim foi o Ilustre mandatário, notificado do agendamento da escritura para o dia 07 de agosto, pelas 11:30 horas, no Cartório Notarial do Dr. HH, sito na Rua ... nº. ..., 1º Dto, ... Porto.
7. Acresce que por requerimento, ref.ª Citius n.º 8947651 de 21/07/2023, foi dado conhecimento aos autos e ao AI, de uma segunda proposta, (Doc.2), que concorre à adjudicação dos bens apreendidos e pelo mesmo valor da já aceite nos autos, sendo que nesta não são apresentadas objecções quanto a eventuais comissões a pagar à leiloeira que desenvolve esforços, a mando do AI, na promoção da venda judicial, contribuindo para o visionamento dos bens a liquidar e assim aumentando a probabilidade de sucesso na liquidação, em beneficio dos credores.
8. Por outro lado, não se pode ignorar as dificuldades apresentadas até à data, às regulares diligências de liquidação e sobre as quais este tribunal já se pronunciou, pelo que, parece-nos que não poderão os credores, nesta fase, vir a ser mais prejudicados, nomeadamente, pelo tempo decorrido sem verem os seus créditos ressarcidos, pelo que a nosso ver, salvo superior opinião diversa, a falsa questão, ora apresentada pelo proponente (filho dos insolvente) e quanto à comissão da leiloeira, não deverá ser relevada por este tribunal, solicitando-se respeitosamente, para que seja o proponente, oficiosamente, notificado para comparecer no dia e hora agendada para a realização da escritura.
9. No mais, desde já se requer, respeitosamente, douta decisão de V. Exa., para em caso de falta de comparecência ou de outras diligências dilatórias que obstem à realização da escritura, a autorizar o aqui signatário a proceder à adjudicação dos bens apreendidos nos presentes autos, ao segundo proponente, que ora é do conhecimento dos autos, o Sr. EE, cuja proposta, ao que nos parece, reveste as mesmas características da proposta primitiva apresentada pelo filho dos insolventes, minorando assim as eventuais perdas para os credores.
10. Por último informa-se V. Exa., para os devidos efeitos, nomeadamente, os previstos no art.º 161.º do CIRE, de que foram os credores notificados do presente requerimento.
Em face do exposto, e das conhecidas dificuldades na liquidação, salvo, douta melhor opinião, julgamos não ser de relevar a questão ora apresentada, quanto à comissão da leiloeira, porquanto, extemporânea, e por outro lado não obstar ao prosseguimento do processo de liquidação, devendo, em consequência o proponente primitivo (filho dos insolventes), ser notificado do dia e hora para a realização da escritura, com a advertência que na falta de comparecência ou de outras diligências.”
19) Em 26.07.2023 foi proferido despacho nos autos do processo 341/21.3T8AMT deferindo a proposta do Sr. AI, no sentido de aceitação de segunda proposta, no caso de se verificar a falta de cumprimento das condições fixadas para a liquidação, designadamente a apresentação do comprovativo do depósito da caução de 20% do preço para aquisição dos bens apreendidos e ainda a ausência do Réu na data e hora agendados para celebração de escritura, indeferindo-se por extemporânea a questão suscitada pelo Réu quanto a comissão de Leiloeira e advertindo-se o aqui Réu que em caso de não comparência na data e hora designados para celebração de escritura os bens seriam adjudicados a EE.
20) A Autora emitiu factura n.º ..., datada de 01.08.2023, em nome do Réu, no valor global de 15.081,34€, constando da sua descrição:
“COMISSÃO PELA VENDA DE IMÓVEIS - PROCESSO DE INSOLVÊNCIA: 341/21.3T8AMT
VERBA 1 - Prédio urbano, em propriedade total sem andares, nem divisões suscetíveis de utilização independente, destinado a habitação, composto por casa de rés do chão, andar e logradouro, sito na Rua ..., Lugar ..., da freguesia ..., do concelho de Baião, descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião sob o n.º ..., da freguesia ..., e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº ..., da referida freguesia e concelho.
VERBA 2 - Prédio rústico, composto por cultura, confrontado a Norte por Rua ...; a Sul por II; a Nascente por JJ e a Poente por CC, sito em ..., da freguesia ..., do concelho de Baião, descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião sob o n.º ..., da freguesia ..., e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo nº ..., da referida freguesia e concelho”.
21) No dia 07 de Agosto de 2023 no Cartório Notarial do Dr. HH foi outorgada escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca dos imóveis referidos em 5), intervindo o Sr. AI, nessa qualidade e o Réu, por si na qualidade de comprador, não tendo sido recebida a quantia de 15.081,34€ pela Autora.
Factos não provados
a) O Réu tinha conhecimento das condições gerais de venda aludidas em 8) dos factos provados.

*
Fundamentação de direito

1 – Se a sentença proferida está inquinada de nulidade, por constituir decisão surpresa, violando o disposto no artigo 3º do Código de Processo Civil

Sustenta a Recorrente, sob as conclusões Z e AA do recurso, que ao arredar do conhecimento determinados meios de prova já produzidos, por suposta “nulidade” dos mesmos, sem prévia audição das partes a esse respeito, o Tribunal a quo proferiu verdadeira decisão surpresa, inquinada de nulidade, violando assim o artigo 3º, do Código de Processo Civil.

Em concreto, está em causa a violação do nº3, do citado preceito, nos termos do qual “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

O citado artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, consagra expressamente o princípio do contraditório na vertente da proibição da decisão surpresa, isto é, nas palavras de José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[1], “a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes”. Segundo estes autores, “antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra (despacho-saneador, sentença, instância de recurso)” (ob. cit., pág. 32).

O princípio do contraditório materializa-se em todos os elementos do processo - factos, provas e questões de direito que se encontrem relacionadas com o objeto da causa - tendo as partes direito, em todos estes níveis, a participarem ativamente tendo em vista influenciar a decisão, tentando convencer o julgador, em cada momento e ao longo de todo o processo, do acerto da sua posição.

No plano das questões de direito, o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie, mesmo que de conhecimento oficioso, só estando o Tribunal dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade.

Essa manifesta desnecessidade de audição pode revelar-se quando:

“- as partes, embora não a tenham invocado expressamente nem referido o preceito legal aplicável, implicitamente a tiveram em conta sem sombra de dúvida, designadamente por ter sido apresentada uma versão fáctica, não contrariada, que manifestamente não consentia outra qualificação;

- quando a questão seja decidida favoravelmente à parte não ouvida; ou

- quando seja proferido despacho que convide uma das partes a sanar a irregularidade ou uma insuficiência expositiva[2].

Pretende-se, por esta via, evitar a formação de “decisões surpresa”, ou seja, decisões sobre questões de direito material ou de direito processual, de que o Tribunal pode conhecer oficiosamente, sem que tenham sido previamente consideradas pelas partes.

Por isso se entende que é ainda uma decorrência do princípio do contraditório a proibição de decisões surpresa, com as quais nos deparamos sempre que a solução dada pelo Tribunal a uma questão comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever que fosse proferida.

Na linha do entendimento perfilhado por LOPES DO REGO[3], com o qual concordamos, “[…]a audição excecional e complementar das partes, fora dos momentos processuais normalmente idóneos para produzir alegações de direito, só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas suscetíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela”.

O exercício do contraditório dependerá sempre da verificação de uma nova abordagem jurídica da questão, decisiva para a sorte do pleito, porque relativa a factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base da decisão, que não fosse perspetivada pelas partes, mesmo usando da diligência devida.

Com este princípio pretendeu o legislador, como já acima salientamos, impedir que as partes fossem surpreendidas com soluções de direito inesperadas, seja através do conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual.

Este entendimento amplo do princípio do contraditório, afirmado pelo nº3, do artigo 3º, do Código de Processo Civil, não afasta os poderes de subsunção ou de qualificação jurídica que o artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil confere ao juiz - tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. Trata-se, apenas, de impor ao julgador o dever de, previamente ao exercício de tais poderes, proceder à audição das partes, sempre que pretenda decidir uma determinada questão, seja relativa ao mérito da causa seja meramente adjetiva, com recurso a um fundamento jurídico diverso, até então omitido nos autos e não ponderado pelas partes, mesmo usando da diligência devida.

Revertendo ao caso concreto, e tendo presente as considerações que antecedem, importa decidir se assiste razão à Apelante quanto invoca a surpresa da decisão proferida pelo Tribunal a quo ao arredar do conhecimento determinados meios de prova.

Em causa está a parte da motivação da sentença que a seguir se transcreve:

Para a consignação da matéria de facto o Tribunal atentou nos factos alegados pelas partes, dado o ónus que sobre as mesmas impende.

Sucede que foi alegada matéria – artigos 27.º e 28.º da Petição Inicial aperfeiçoada - referente a questões que são susceptíveis de integrar as alíneas d) a f) do artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei n.º 145/2015, de 09 de Setembro). Mais, para prova do alegado foram juntas comunicações escritas.

Competindo a este Tribunal apreciar a legalidade dos meios de prova, diremos que todas as denominadas comunicações electrónicas juntas em sede de Petição Inicial e Petição Inicial aperfeiçoada, correspondem a documentos comunicados à Autora por co-interessado nos factos que aqui se dilucidam (o Sr. AI, visto que na origem dos mesmos está um acto por este praticado - pedido de coadjuvação da Autora). E do teor das aludidas comunicações se percebe que Causídico terá realizado intervenção no sentido de colocar termo ao presente litígio, tendo solicitado - não se sabe em que termos, ou porquê, mas tal tem a ver com o seu ofício - pagamento a prestações do valor reclamado pela Autora.

Em face do exposto não podem as aludidas comunicações ser admitidas como sendo meio legal de prova, e nessa senda os factos que se extrairiam dos mesmos (o teor da comunicação) não foram vertidos na matéria de facto, tanto mais que Ilustre Causídico nas aludidas comunicações, por várias vezes fez constar “Aviso: Esta mensagem é exclusivamente dirigida ao seu destinatário e contém informação confidencial e sujeita a segredo profissional, cuja divulgação não é permitida por lei. Se por erro não for o destinatário desta mensagem, agradecemos que, de forma imediata, dê conhecimento de tal facto por correio electrónico ou através de telefone (+351 ...) bem como proceda à eliminação desta mensagem e de eventuais ficheiros anexos. Sendo esse o caso, informamos ainda que a distribuição, cópia ou utilização desta mensagem, ou de qualquer ficheiro anexo, qualquer que seja a sua finalidade, são proibidas por lei”, e não autorizou (sem discutir se o poderia fazer, porquanto não releva) a divulgação de tais comunicações, e inexiste, nem foi requerida, dispensa de sigilo profissional, para utilização e consequente valoração das mesmas.

Donde, não se teve em conta o alegado em 27.º e 28.º da Petição Inicial aperfeiçoada e as comunicações (e-mail) por esta juntas com intervenção de Causídico em nome do Réu.

Sem prejuízo se dirá, que os efeitos pretendidos retirar pela Autora com tais comunicações (aceitação pelo Réu de pagamento de comissão) poderia ser conseguido por outro meio de prova, designadamente Testemunhal, ou depoimento de parte do Réu.

Prosseguindo, para a formação da sua convicção o Tribunal, quanto à factualidade provada e não provada, atentou na prova documental, legalmente admissível, e na prova Testemunhal apresentada e produzida, conjugadamente.

Cumpre referir que o depoimento de parte do legal representante da Autora, apresentou-se como inócuo, por vago, genérico e sumariamente se dirá que o Legal Representante da Autora não demonstrou conhecimento directo dos factos, com relevo na acção, donde o seu depoimento não assumiu qualquer relevância probatória.

Continuando, há que mencionar que não se suscitaram dificuldades de maior na apreciação dos restantes meios de prova referidos, ou seja, os depoimentos prestados pelas Testemunhas arroladas pela Autora, foram plausíveis e não contrariam a prova documental, sendo que as suas opiniões sobre o que se deve concluir não foi naturalmente valorado.

Objectivamente as Testemunhas e os documentos juntos, descrevem uma relação, que até se afigurou habitual, existente entre Autora e Sr. AI, em que aquela cobra as suas comissões, devidas pelo trabalho como o dos autos a adquirente de bens, ao invés de os cobrar ao Sr. AI ou ao processo.

Trabalhos estes que as Testemunhas FF e KK (que aos costumes disseram ser colaboradoras da Autora) descreveram de modo credível com pormenor, nos termos do referido acordo, que reconheceram existir.

Sucede que, descreveram as Testemunhas, esta é a primeira vez que adquirente de bem, se recusa a efectuar o pagamento da comissão da Autora.

Com relevância as Testemunhas reconheceram que não falaram com o Réu, que a Autora teve conhecimento da proposta de compra do Réu pelo Sr. AI.

Aludiram as Testemunhas que, com autorização do Sr. AI e no âmbito do acordo existente com este, após comunicação deste contactaram com o Causídico, em ordem a proceder a agendamento de escritura. Mencionaram as Testemunhas que o referido Causídico teve intervenção nos autos de Insolvência, por isso este tinha conhecimento da comissão, que além do mais consta de condições gerais que a Autora publicita com as promoções de vendas que realiza.

Mais manifestaram as Testemunhas conhecimento de que o Réu será filho dos Insolventes naquele processo.

Ora, do que se expôs não se conclui que o Réu tinha conhecimento das condições gerais de venda aludidas em 8) dos factos provados, facto do foro interno do Réu.

Trata-se de uma conclusão/hipótese plausível é certo, contudo nem o depoimento das Testemunhas (que não falaram directamente com o Réu no que respeita à comissão), nem os documentos (não se aferindo a existência de um documentos que seja da sua autoria directa) juntos aos autos (cuja valoração seja legalmente admitida) são suficientes e adequados à prova do facto a) que se consignou como não provado. Não é despiciendo considerar que da publicação em jornal, junta em sede de Petição Inicial, não consta referência a qualquer comissão, logo nem por via desta publicidade se poderia presumir conhecimento pelo Réu de existência de uma comissão. Sendo certo ainda que mesmo sendo cognoscível que a Autora promoveu uma venda, por determinado preço, tal não implica que os destinatários da oferta pública consultem o site ou outros elementos da Autora, por forma a terem conhecimento da existência de uma comissão.

Em suma da concatenação da prova produzida, designadamente prova Testemunhal, e outros meios de prova (prova documental junta aos autos em sede de articulados) cuja valoração é legalmente admitida (excluindo-se, pois e apenas, da valoração do Julgador as comunicações electrónicas – e-mail – trocadas por e com Causídico, com o fito de aquisição dos imóveis dos autos pelo Réu) resulta a matéria de facto (provada e não provada) supra elencada”.

Note-se que nos artigos 27.º e 28.º da petição inicial aperfeiçoada a Apelante alegou o seguinte:

27.º

Sendo que, pasme-se, o próprio advogado do Réu, na referida troca de emails (vide Doc. n.º 29) além de solicitar o pagamento das guias dos impostos, informa o mesmo do seguinte: «Para além disto, como já lhe transmiti, terá que pagar a comissão à leiloeira no valor de € 15.081,34 (IVA incluído).

Como é do S/ conhecimento solicitei à leiloeira o pagamento daquele valor em prestações, tendo a leiloeira solicitado o envio de um mail com a proposta de pagamento em prestações.

Nesse sentido, peço que me indique se podem entregar algum valor de entrada e quanto podem e propõem pagar por mês.»

28.º

Desde logo, facilmente se percebe que o Réu teria (e tem porque ainda não pagou) que pagar a comissão devida à Autora pela venda efetuada pela mesma.”

Mais sustenta a Apelante que o documento 29 respeita a um e-mail enviado pelo Ilustre Mandatário do Recorrido ao mesmo e que aquele, posteriormente, reencaminhou para o Administrador da Insolvência.

No contraditório àquela petição inicial aperfeiçoada o Réu, nos artigos 13º a 15º, invocou o seguinte:

13º

Cabendo salientar que é absolutamente ilícita, por violadora do dever de segredo profissional a que estão vinculados os Advogados o alegado em 27º PI assim como a junção do doc. 29, o qual deve ser desentranhado dos autos.

14.º

Trata-se de grosseira violação do segredo profissional e, como tal, de prova ilícita, que nada pode provar em juízo – cfr. Art. 92º E.O.A.

15.º

Consubstanciando ainda grave ilícito disciplinar e, como tal, devendo extrair-se certidão dos autos remetendo-se a mesma à Ordem dos Advogados, para os competentes fins disciplinares”.

Conforme se consignou no relatório deste acórdão, na decisão de 7 de maio de 2024, o Tribunal recorrido dispensou a audiência prévia, proferiu despacho saneador, identificou o objeto do litígio, enunciou os temas da prova, admitiu os requerimentos probatórios e agendou a audiência de julgamento.

Nesse despacho, quanto à prova documental, o Tribunal a quo decidiu nos seguintes termos:

Da produção de prova

> Da Prova documental

Ao abrigo do artigo 423.º do Código Processo Civil, por a sua junção se mostrar legal e tempestiva, não se revelarem impertinentes ou desnecessários e se afigurarem, em abstracto, úteis à descoberta da verdade admitem-se os documentos juntos com os articulados (iniciais e aperfeiçoados).”

Perante este despacho, sustenta a Apelante que o Tribunal recorrido, até à prolação da sentença apelada, em momento algum manifestou recusa em aceitar os documentos, admitindo-os plenamente.

É certo que a admissão de documentos não se confunde com a sua valoração.

No entanto, no caso concreto, perante o que havia sido alegado pelo Réu em sede de contraditório à petição inicial aperfeiçoada, não tendo o Tribunal de 1ª instância ordenado o desentranhamento do documento 29 nem tecido qualquer consideração relativamente à invocada violação do dever de segredo profissional que aquele documento (bem como as demais comunicações eletrónicas juntas aos autos) poderia configurar, afigura-se-nos legítimo concluir que tal despacho, ao admitir todos os documentos juntos com os articulados, tenha criado nas partes e, em particular, na Apelante, a convicção de que os mesmos seriam efetivamente considerados na decisão final e, nessa medida, acabou por conduzir a Recorrente a não requerer o que tivesse por conveniente, como seja, caso assim o entendesse, a dispensa de sigilo profissional para utilização e consequente valoração daquele documento (e das demais comunicações eletrónicas juntas aos autos), ou a produzir outros meios de prova.

Ao contrariar, desse modo, todo o processado anterior, sob o respetivo poder/dever de direção processual e, do mesmo modo, ao posteriormente, arredar do respetivo conhecimento determinados meios de prova já admitidos, por configurarem, no entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, meio de prova ilícita, sem prévia audição da Autora a esse respeito (uma vez que o Réu já tinha definido a sua posição em sede de resposta à petição inicial aperfeiçoada), o Tribunal de 1º instância proferiu verdadeira decisão surpresa, porquanto respeita a prova que se relaciona com matéria fulcral da causa de pedir da Recorrente, e que foi dada como não provada sob a alínea a), relativa ao conhecimento e aceitação por parte do Réu das condições gerais da venda dos imóveis que este adquiriu no âmbito da insolvência, em que foram declarados insolventes os seu pais.

Perante a prolação de tal decisão surpresa, é legítimo concluir que o Tribunal violou o princípio do contraditório.

Sustenta a Recorrente que essa omissão do exercício do contraditório por parte do Tribunal recorrido, ao arredar na sentença a valoração de determinados meios de prova já produzidos, por suposta nulidade dos mesmos, sem prévia audição das partes a esse respeito, sendo uma verdadeira decisão surpresa, inquina a sentença de nulidade, não concretizando se estamos perante uma nulidade processual ou uma nulidade da sentença.

É sabido que a nulidade processual consiste num desvio ao formalismo processual prescrito na lei.

Além das nulidades típicas previstas nos artigos 186º, 187º, 191º, 193º e 194º do Código de Processo Civil, outras irregularidades que se constatem na tramitação processual só constituirão nulidade se a lei assim o determinar ou quando o vício possa influir no exame ou decisão da causa, ou seja, quando se repercutem na sua instrução, discussão ou julgamento ou, em processo executivo, na realização da penhora, venda ou pagamento[4] .

Trata-se das nulidades secundárias, inominadas ou atípicas, que podem emergir da prática de um ato que a lei não admita, da omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva ou da prática de um ato admitido ou a sua omissão em violação da sequência processual fixada pelo juiz ao abrigo do disposto no artigo 547º do Código de Processo Civil – cf. artigo 195º, n.º 1 do citado diploma fundamental.

A nulidade do ato processual repercute-se nos atos subsequentes da sequência que dele dependam absolutamente. “Assim, sempre que a prática de um ato da sequência pressuponha a prática de um ato anterior, a invalidade deste tem como efeito, indirecto mas necessário, a invalidade do primeiro, se entretanto tiver sido praticado, pelo que a invalidade do ato processual é mais uma invalidade do ato enquanto elemento da sequência do que do ato em si mesmo considerado[5].

Por sua vez, as decisões judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razões:

- por erro de julgamento dos factos e do direito; ou

- por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação ou das que delimitam o respetivo conteúdo e limites, que determinam a sua nulidade, nos termos do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

Na lição cristalina de Miguel Teixeira de Sousa, tendo em vista distinguir uma nulidade processual das nulidades da sentença, dir-se-á que “Todo o processo comporta um procedimento, ou seja, um conjunto de actos do tribunal e das partes. Cada um destes actos pode ser visto por duas ópticas distintas:

- Como trâmite, isto é, como acto pertencente a uma tramitação processual;

- Como acto do tribunal ou da parte, ou seja, como expressão de uma decisão do tribunal ou de uma posição da parte.

No acto perspectivado como trâmite, considera-se não só a pertença do acto a uma certa tramitação processual, como o momento em que o acto deve ou pode ser praticado nesta tramitação.

Em contrapartida, no acto perspectivado como expressão de uma decisão do tribunal ou de uma posição da parte, o que se considera é o conteúdo que o acto tem de ter ou não pode ter.

Do disposto no art. 195.º, n.º 1, do CPC decorre que se verifica uma nulidade processual quando seja praticado um acto não previsto na tramitação legal ou judicialmente definida ou quando seja omitido um acto que é imposto por essa tramitação.

Isto demonstra que a nulidade processual se refere ao acto como trâmite, e não ao acto como expressão da decisão do tribunal ou da posição da parte. O acto até pode ter um conteúdo totalmente legal, mas se for praticado pelo tribunal ou pela parte numa tramitação que o não comporta ou fora do momento fixado nesta tramitação, o tribunal ou a parte comete uma nulidade processual.

Em suma: a nulidade processual tem a ver com o acto como trâmite de uma tramitação processual, não com o conteúdo do acto praticado pelo tribunal ou pela parte.

É, aliás, fácil comprovar, em função do direito positivo, o que acaba de se afirmar:

- A única nulidade processual nominada que decorre do conteúdo do acto é a ineptidão da petição inicial (cf. art. 186.º); mas não é certamente por acaso que esta nulidade é também a única que constitui uma excepção dilatória (cf. art. 186.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. b), e 577.º, al, b), CPC);

- As nulidades da sentença e dos acórdãos decorrem do conteúdo destes actos do tribunal, dado que estas decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não podem ter (cf. art. 615.º, 666.º, n.º 1, e 685.º CPC); também não é por acaso que estas nulidades não são reconduzidas às nulidades processuais reguladas nos art.ºs 186.º a 202.º CPC.” - O que é uma nulidade processual? In Blog do IPPC, 18-04-2018, disponível em https://blogippc.blogspot.com/search?q=nulidade+processual.

No caso concreto, como já supra se consignou, a Apelante dirige a sua impugnação ao conteúdo da sentença que não teve em consideração o alegado nos artigos 27º e 28º da petição inicial aperfeiçoada e não valorou as comunicações eletrónicas juntas como documento nº 29, por entender que não são meio de prova legal, pois que a sua valoração violaria o dever de segredo profissional, a que aludem as alíneas d) a f) do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de setembro, uma vez que não existe, nem foi requerida dispensa de sigilo profissional para a utilização e consequente valoração daquelas comunicações. Fê-lo sem prévia audição da Autora a esse respeito (uma vez que o Réu já tinha definido a sua posição em sede de resposta à petição inicial aperfeiçoada), e, nessa medida, ante o exposto, concluímos, como já acima se consignou, que tal decisão proferida constituiu uma decisão surpresa, em violação do disposto no artigo 3º, nº 3 do Código de Processo Civil.

Não é pacífica na jurisprudência a questão de saber se a prolação de uma decisão surpresa, com violação do princípio do contraditório, constitui uma nulidade processual, nos termos do artigo 195º, nº 1, do Código de Processo Civil, ou uma nulidade da própria decisão, por excesso de pronúncia, em conformidade com o disposto no artigo 615º, nº 1, d), do Código de Processo Civil.

Como diz António Abrantes Geraldes in Recurso em Processo Civil, 7ª ed., pág. 24, “a expressão usual segundo a qual «das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se» aparenta uma simplicidade que não condiz com o que a prática judiciária revela. Importa, pois distinguir as nulidades de procedimento das nulidades de julgamento, uma vez que, nos termos do art. 615º, nº 4, quando estas últimas decorram de qualquer dos vícios da sentença assinalados nas als. b) a e) do nº 1, a sua invocação deve ser feita em sede de recurso, restringindo-se a reclamação para o próprio tribunal quando se trate de decisão irrecorrível”.

Mas se para algumas situações a resposta se apresenta como pacífica, outras há em que a solução não se apresenta tão clara. É o caso, por exemplo, “quando é cometida alguma nulidade de conhecimento oficioso ou em que é o próprio juiz que, ao proferir a sentença, omite uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa (art. 3.º, nº 3). Nestes casos, em que a nulidade é revelada apenas através da prolação da decisão com que a parte é confrontada, a sujeição ao regime geral das nulidades processuais, nos termos dos arts. 195.º e 199.º, levaria a que a decisão que a deferisse se repercutiria na invalidação da sentença, com a vantagem adicional de tal ser determinado pelo próprio juiz, fora das exigências dos encargos (inclusive financeiros) inerentes à interposição de recurso. Porém, tal solução defronta-se com o enorme impedimento constituído pela regra, praticamente inultrapassável, ínsita no art, 613º, à qual presidem razões de certeza e de segurança jurídica que levam a que, uma vez proferida a sentença (ou qualquer decisão), fica esgotado o poder jurisdicional, de modo que, sendo admissível recurso, é exclusivamente por essa via que pode ser alcançada a revogação ou a modificação da decisão. Perante esta dificuldade, parece mais seguro assentar que, sempre que o juiz, ao proferir alguma decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, a parte interessada deve reagir através da interposição de recurso sustentado na nulidade da própria decisão, nos termos do art. 615.º, al. d). Afinal, designadamente quando a sentença traduza para a parte uma verdadeira decisão-surpresa (não precedida do contraditório imposto pelo art. 3.º, nº 3), a mesma nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual correspondente à omissão do ato, pelo que o recurso constitui a via ajustada a recompor a situação, integrando-se no seu objecto a arguição daquela nulidade[6].

No caso concreto, entendemos que ao prolatar aquela decisão surpresa, com violação do princípio do contraditório, o Tribunal a quo incorreu simultaneamente numa nulidade processual (prevista no artigo 195º, nº1, do Código de Processo Civil) e numa nulidade da sentença por excesso de pronuncia (prevista no artigo 615º, nº1, al. d), do Código de Processo Civil)[7]. Isto porque tal nulidade apenas se revelou com a prolação da sentença, pelo que a falta de contraditório, neste caso, constitui uma nulidade que se projeta na decisão, subsumível à previsão do art. 615º, nº 1, d) do Código de Processo Civil (nulidade da decisão por excesso de pronúncia).

É esta a posição assumida por Teixeira de Sousa quando, no comentário ao Ac. da Rel. de Évora, de 10-4-14 (www.dgsi.pt), observou que ainda que a falta de audição prévia constitua uma nulidade processual, por violação do princípio do contraditório, essa “nulidade processual é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, al. d), do NCPC), dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão” (em blogippc.blogspot.pt, escrito datado de 10-5-14).”

Tal sucederá em todas as situações em que tal nulidade apenas se revela com a prolação da sentença, como se verifica no caso em análise.

De salientar ainda que a omissão do exercício do contraditório não constitui uma nulidade principal, pois não consta do elenco das nulidades previstas nos artigos 186º a 194º e 196º a 198º do Código de Processo Civil.

Representa, pois, a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreve, que cai na previsão do artigo 195º Código de Processo Civil, e por isso, configura uma irregularidade que só determina a nulidade do processado subsequente àquela omissão se influir no exame e decisão da causa, estando o seu conhecimento dependente da arguição, nos termos previstos no artigo 199º Código de Processo Civil.

A lei não fornece uma definição do que se deve entender por “irregularidade que possa influir no exame e decisão da causa.” No sentido de interpretar o conceito o Professor Alberto dos Reis tecia as seguintes considerações:“[o]s atos de processo têm uma finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida, segue-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos de processo está satisfeito se as diligências, atos e formalidades que se praticaram garantem a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram atos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e portanto a instrução, a discussão ou o julgamento dela[8]

Daqui decorre que uma irregularidade pode influir no exame e decisão da causa, se comprometer o conhecimento da causa, a instrução, discussão e julgamento.

Ora, no caso concreto, como decorre dos considerandos que antecedem, a não observância do contraditório tendo em vista evitar decisões surpresa, no sentido de não se ter concedido à Autora a possibilidade de se pronunciar sobre a questão da ilicitude, enquanto meio de prova, das comunicações eletrónicas por ela juntas aos autos sob o documento 29, contrariando o processado anterior, comprometeu a discussão, instrução e julgamento da causa, constituindo, por isso uma nulidade processual, que é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia - artigo 615º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil -, dado que sem a prévia audição das partes o Tribunal não podia conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão. Na verdade, essa decisão não está de acordo com as consequências processuais a retirar da tramitação ocorrida até ao momento, tendo sido proferida sem que a Apelante tenha tido a oportunidade de expor os seus argumentos, de forma a convencer (ou não) o julgador da sua decisão, num momento em que não era expectável a prolação da referida decisão.

Diante do exposto tinha, pois, o Tribunal recorrido, antes de decidir, de ouvir os argumentos das partes sobre a questão da valoração ou não das comunicações eletrónicas já admitidas nos autos, que constituem o documento nº 29, junto com a petição inicial aperfeiçoada.

Ao não o ter feito, a sentença proferida mostra-se ferida de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, d) do Código de Processo Civil.

As circunstâncias que determinam a nulidade da sentença impedem que no caso o Tribunal ad quem faça uso da regra da substituição, prevista no artigo 665º Código de Processo Civil.

Declarando-se a nulidade da sentença, devem os autos baixar ao Tribunal de 1ª instância, para aí ser proferido despacho que faculte às partes a possibilidade de se pronunciarem em relação à concreta questão da valoração ou não das comunicações eletrónicas já admitidas nos autos sob o documento nº 29, junto com a petição inicial aperfeiçoada, por eventual violação do dever de segredo profissional, a que aludem as alíneas d) a f) do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de setembro.

Após, deverá decidir-se em conformidade, podendo ainda o Tribunal a quo, se o entender necessário, ordenar a repetição e produção de mais prova tendo em vista a prolação da sentença.

Face ao decidido mostra-se prejudicada a apreciação das restantes questões colocadas no recurso e que acima se deixaram equacionadas.

Pelo exposto, procederá a apelação, com o resultado anteriormente referido.


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De acordo com o disposto no artigo 527º, n.º 1 do Código de Processo Civil, a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.

No caso concreto, o Recorrido não apresentou resposta às alegações de recurso e, embora seja na sequência de questão suscitada pela Recorrente que a anulação da sentença é decretada, esta situação não se confunde com uma decisão de plena procedência da pretensão deduzida, tanto mais que a decisão final de mérito fica relegada para momento ulterior. Razões pelas quais se justifica determinar que a tributação seja a cargo da Recorrente, que da procedência parcial do recurso retira proveito.


Síntese conclusiva (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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III -DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas subscritores deste acórdão da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto, em julgar a apelação parcialmente procedente, anulando a sentença recorrida, devendo o processo voltar à primeira instância para que o Tribunal recorrido supra a nulidade identificada, determinando-se, para o efeito, que profira despacho que faculte às partes a possibilidade de se pronunciarem em relação à concreta questão da valoração ou não das comunicações eletrónicas já admitidas nos autos sob o documento nº29, junto com a petição inicial aperfeiçoada, por eventual violação do dever de segredo profissional, a que aludem as alíneas d) a f) do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de setembro.
Após, deverá o Tribunal de 1ª Instância decidir em conformidade, podendo ainda, se o entender necessário, ordenar a repetição e produção de mais prova tendo em vista a prolação da sentença.
Custas pela Recorrente.
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Porto, 10 de fevereiro de 2025
Teresa Pinto da Silva
Anabela Morais [Com declaração de voto:
Voto a decisão, mas com diversa fundamentação jurídica. Acompanho a orientação que a violação do princípio do contraditório constitui nulidade processual, nos termos do artigo 195º, nº 1, do CPC. O contraditório constitui um procedimento que deve ser adoptado antes da prolacção da decisão, consubstanciando violação da lei a sua inobservância. Assim, respeitando sempre entendimento diverso, entendo que a violação das normas processuais que impõem o contraditório, tornando a decisão ilegal, tem como consequência a sua revogação e substituição pela determinação do cumprimento do procedimento omitido, com prejuízo dos demais actos incompatíveis que tenham sido praticados em primeira instância.]
Eugénia Cunha [Com declaração de voto:
Acompanho a declaração de voto da Exma Sra Desembargadora 1ª adjunta.]
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[1] Cfr. “Código de Processo Civil Anotado”, volume I, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 31.
[2] Cfr. José Lebre de Freitas, Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado, ob. Cit., pág. 10.
[3] Cf. Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 1999, pág. 25.
[4] cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 235; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª Edição, pág. 381.
[5] cf. J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 381.
[6] Cf. ob. cit., pág. 25 e 26; no mesmo sentido Teixeira de Sousa, em https//blogipp.blogspot.com, citado na nota de rodapé de pág. 26.
[7] Neste sentido, cf. vd., entre outros os Acs. RP 15-12-2021, p. 2577/20.5T8AGD-A.P1; bem como e STJ 23-06-2016 (Abrantes Geraldes), p. 1937/15.8T8BCL.S1.
[8] José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, ob. cit., pag. 486.