I - O artigo 640.º, do Código de Processo Civil, impõe ao Recorrente, na impugnação da matéria de facto, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, que se desdobra:
- num ónus primário ou fundamental de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar –delimitar o objeto do recurso –, requisito do ónus impugnatório que deve figurar não apenas no corpo das alegações, mas também deve ser levado às conclusões, e
- num ónus secundário ou complementar de motivar o seu recurso – fundamentação – com indicação dos meios de prova e das passagens exatas da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados que, no seu entendimento, impõem decisão diversa sobre a matéria de facto impugnada e ainda indicação da solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação, sendo certo que esta fundamentação já não tem de constar na síntese conclusiva, posto que não tem por função delimitar o objeto do recurso, traduzindo-se antes em elementos de apoio à argumentação probatória.
II - Esta exigência de síntese final nas conclusões da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar tem por função delimitar o objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto, permitindo também confrontar o Recorrido com o ónus de contra-alegação, no exercício do contraditório, evitando a formação de dúvidas sobre o que realmente pretende o Recorrente.
III - O ónus imposto ao Recorrente na alínea a) do n.º 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil não se satisfaz com a simples afirmação de que a decisão devia ser diversa, antes exige que se afirme e especifique nas conclusões do recurso quais os concretos pontos de facto que se impugnam.
IV - Em matéria de cumprimento defeituoso do contrato de empreitada, importa considerar o seguinte regime específico:
- Se os defeitos da obra puderem ser suprimidos, o dono da obra tem o direito de exigir do empreiteiro a sua eliminação;
- Se não puderem ser eliminados, o dono da obra pode exigir nova construção (artigo 1221.º, n.º 1 do Código Civil).
- Não sendo eliminados os defeitos ou construída de novo a obra tem o dono da mesma, então, o direito de exigir a redução do preço ou a resolução do contrato, se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina (artigo 1222.º, n.º 1 do Código Civil).
- Tudo isto, sem prejuízo do direito do dono da obra de ser indemnizado nos termos gerais (artigo 1223.º do Código Civil).
V - O exercício destes direitos não é alternativo, pois que o empreiteiro tem, em face deles, a possibilidade de eliminar os defeitos ou construir de novo a obra e só na hipótese de o mesmo não fazer uma coisa ou outra é que o dono da obra terá a possibilidade de redução do preço ou de resolução do contrato.
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível da Maia – Juiz 2
Recorrente: AA
Recorrida: A..., S.A.
Relatora: Juíza Desembargadora Teresa Pinto da Silva
1ª Adjunta: Juíza Desembargadora Ana Olívia Loureiro
2º Adjunto: Juiz Desembargador Manuel Fernandes
I - RELATÓRIO
Em 14.02.2023, AA intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra A..., S.A. e B..., S.A., pedindo:
I) A condenação solidária das Rés a pagarem-lhe:
- a quantia de €3.916,94, a título de devolução do montante pago pelo Autor à 1ª Ré pela reparação da viatura daquele, atenta a deficiente reparação efetuada.
- a quantia de €8.300,00, respeitante ao montante diário de €100,00 pela privação do uso do veículo por parte do Autor por, pelo menos, 83 dias.
- a quantia de €1500,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais.
- todas as despesas tidas pelo Autor com a presente ação, nomeadamente custas de parte, peritagens efetuadas, honorários de mandatários, entre outras, a liquidar em “execução de sentença”.
II) A condenação da 1ª Ré a pagar-lhe a quantia de €1.217,70 relativa à pintura da viatura do Autor.
III) Tudo acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, até efetivo e integral pagamento.
Alegou, para tanto e em síntese, ser o proprietário do veículo de matrícula ..-JX-.., que, no dia 23 de Janeiro de 2022, sofreu uma avaria mecânica ao nível da caixa de velocidades, na sequência do que foi rebocado para a oficina C... Porto, pertencente à Ré A..., que veio a elaborar orçamento para reparação da avaria ao nível da caixa de velocidades, propondo também a substituição da bomba de água, tudo no montante de €3.916,94, o que foi aceite pelo Autor.
Após informação de que a viatura se encontrava reparada, efetuou o pagamento da reparação, tendo-se deslocado, no dia 25 de fevereiro de 2022, à oficina para proceder ao seu levantamento, onde constatou que a viatura estava com inúmeros danos visíveis ao nível da pintura.
Não obstante já ter liquidado a quantia referente à reparação, o Autor recusou-se a levantar a viatura, tendo a 1ª Ré, após várias interpelações, assumido a responsabilidade do pagamento da quantia de €225,00 acrescido de IVA, a título de danos na pintura do veículo automóvel.
Após o levantamento da viatura, voltou a mesma a avariar no dia 20/3/2022, tendo em conta que acendeu a luz da refrigeração do automóvel, objeto de parte da reparação efetuada.
No dia 21/3/2022 reencaminhou a viatura para a oficina da Ré A..., que confirmou a anomalia num tubo de refrigeração, alegadamente substituído aquando da primeira reparação.
Além dessa anomalia, constatou ainda a verificação de uma anomalia ao nível da transmissão automática do veículo, igualmente objeto da primeira reparação, nomeadamente trepidação na 6ª velocidade.
No dia 23/3/2022 recebeu uma comunicação por parte da Ré A..., informando que a viatura se encontrava pronta, mas que apresentava outras anomalias.
Nessas circunstâncias recusou o levantamento da viatura, propondo uma peritagem à mesma por uma empresa imparcial, a realizar no dia 8/4/2022, pelas 15.00 horas.
No dia agendado deslocou-se às instalações da Ré A..., na companhia de perito da empresa D..., tendo o diretor da oficina recusado a realização da peritagem no local.
Após tal recusa solicitou a ficha técnica do veículo, com a intervenção realizada da segunda vez, tendo igualmente sido negada a realização de teste de diagnóstico.
Face a tal recusa solicitou a presença de reboque para transporte da viatura sem circular, dando entrada noutra oficina autorizada Audi, onde foi efetuada uma perícia que concluiu que as anomalias reclamadas pelo Autor aquando da primeira intervenção efetuada no motor não se encontravam colmatadas.
Foi então realizada a reparação das anomalias existentes, despendendo para o efeito a quantia de €1.968,55.
Deverá ser indemnizado pelos danos não patrimoniais sofridos, em valor nunca inferior a 1.500,00.
Esteve sem a sua viatura automóvel pelo menos 19 dias, tendo de socorrer-se de outras viaturas emprestadas para efetuar as suas deslocações básicas e fulcrais do quotidiano.
Posteriormente, e tendo em conta a não assunção de responsabilidade por parte da Ré A... na segunda avaria do veículo, esteve sem a sua viatura desde 8/4/2022 até Julho de 2022.
Participou tais factos à Ré B..., que em nada contribuiu para a resolução extra judicial do assunto.
Conclui conforme supra aludido.
Na contestação, que apresentou em 17 de abril de 2023, a Ré A... excecionou a ineptidão da petição inicial, porquanto os pedidos formulados sob as alíneas A) e B) não têm qualquer causa de pedir a suportá-los.
No mais, impugnou parte dos factos alegados pelo Autor, sustentando que aquando da entrada inicial da viatura do Autor na sua oficina procedeu à reparação total da avaria, não tendo o tubo de refrigeração sido substituído porque não apresentava danos; que os problemas que o autor alega em nada se relacionam com a intervenção por si realizada; que a oferta do valor de €225,00, acrescida de IVA, deveu-se a cortesia comercial e não à assunção de qualquer responsabilidade e que o Autor não alega factualidade demonstrativa de ter sofrido qualquer dano decorrente da privação do uso do seu veículo.
Conclui, pedindo que a exceção invocada seja julgada procedente ou, caso assim não se entenda, que a presente ação seja julgada improcedente, com a sua consequente absolvição do pedido.
Em 24 de abril de 2023, a Ré B..., S.A., veio deduzir contestação, na qual começa por excecionar a sua ilegitimidade para a presente ação, uma vez que o veículo do Autor já não beneficiava de qualquer garantia de fábrica, que terminou em novembro de 2012, para além de não ser responsável pelas reparações efetuadas pelos seus concessionários.
Mais alegou a ineptidão da petição inicial, porquanto os pedidos formulados sob as alíneas A) e B) não têm qualquer causa de pedir a suportá-los.
Impugnou, por desconhecimento, os contratos celebrados entre o Autor e a 1ª Ré, bem como os danos por aquele invocados.
Conclui pela procedência das exceções invocadas e, caso assim se não entenda, pela improcedência, por não provada, da presente ação, com a consequente absolvição do pedido.
Em 15 de maio de 2023, o Autor apresentou resposta às contestações, pugnando pela improcedência das exceções invocadas e concluindo como na petição inicial.
Em 24 de novembro de 2023 realizou-se tentativa de conciliação, no decurso da qual o Autor declarou desistir da instância relativamente à Ré “B..., S.A.”, que declarou aceitar tal desistência, homologada por decisão proferida em 14 de fevereiro de 2024.
Em 4 de dezembro de 2023, o Autor veio requerer a redução do primeiro pedido formulado para a quantia de €1.968,55, tendo em conta que foi o valor por ele pago noutro concessionário da marca para a reparação da sua viatura, atenta a reparação deficiente efetuada pela 1ª Ré, redução que foi admitida por despacho proferido em 14 de fevereiro de 2024.
O Tribunal a quo dispensou a realização da audiência prévia, tendo, em 14 de fevereiro de 2024, proferido despacho saneador, no qual julgou improcedente e exceção dilatória da ineptidão da petição inicial, bem como enunciou os factos assentes e os temas da prova.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, que veio a ter início em 2 de abril de 2024 e se prolongou por mais duas sessões, uma no dia 29 de abril e outra no dia 20 de maio de 2024.
Em 1 de julho de 2024 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção improcedente e, em consequência, absolver a ré A..., S.A. do pedido contra si deduzido nestes autos pelo autor AA.
Custas pelo autor, nos termos do artigo 527º n.º 1 do CPC.”
Para tanto, apresentou alegações, culminando com as seguintes conclusões:
I) A decisão ora em crise teve por base uma errada apreciação dos elementos probatórios recolhidos, e por uma errada interpretação do direito e da lei, pelo que tem que se discordar da sentença proferida naqueles termos, que apreciou erradamente algumas das provas produzidas, mormente testemunhal e documental.
II) A sentença proferida pelo tribunal a quo apresenta-se como contraditória, inexplicável e injusta.
III) Apesar de aferir da deficiente reparação da segunda intervenção na viatura do autor, não condena a ré, atenta a sua culpa, no pagamento de qualquer indemnização ao autor, o que consubstancia igualmente errada interpretação de direito,
IV) Quando muito deveria ter condenado a ré pela redução do preço, o que não sucedeu.
V) Não pode a ré recorrente conformar-se com aquela decisão, por entender que a apreciação da prova produzida no processo, quer documental quer testemunhal impunha decisão distinta quanto à matéria de facto; assim também, quanto à aplicação dos preceitos legais aplicáveis, que culminou, consequentemente, numa decisão que, não sendo conforme ao direito, não permite a realização da justiça.
VI) O tribunal a quo não interpretou/analisou devidamente as provas carreadas para os autos, nomeadamente confronto entre faturas da A... aqui ré (documento 3 e 3.1) e fatura da E... (documento 11) por forma a constatar a duplicação de faturação existente a variadíssimas peças.
VII) Tal duplicação de faturação entre ambas as concessionárias apenas se deve ao facto de as peças faturadas e pagas pelo autor não terem sido, efetivamente, substituídas, tendo em conta prova bastante produzida em audiência de discussão e julgamento, e claramente não analisada pelo tribunal a quo.
VIII) Consequentemente terá a aqui ré de indemnizar o autor no pedido indemnizatório de €1.968,55 (mil novecentos e sessenta e oito euros e cinquenta e cinco cêntimos) respeitante ao valor pago pelo autor pelas intervenções deficientes/inexistentes perpetradas pela ré na viatura do autor na concessionária E....
IX) Se dúvidas não restam, pois, ao tribunal a quo da deficiente/inexistente intervenção no veículo do autor aquando da segunda reparação, o mesmo se terá de consubstanciar relativamente à primeira reparação.
X) No entanto, nem tão pouco o tribunal a quo percecionou que foi aquando da primeira intervenção que o sistema de refrigeração da viatura foi também substituído, com a anuência do autor, reparação esta também deficiente como se pode constatar da análise dos documentos supra mencionados.
XI) Tendo em conta igualmente a prova carreada para os autos relativamente aos danos da pintura, dúvidas não restam, pois, que analisando a prova documental, mormente documento 2.5 e documento 8, a viatura padecia de pequenos danos apenas na parte frontal e traseira mas nunca na lateral do veículo conforme se veio a constatar aquando do pedido de levantamento da viatura por parte da ré em 25/02/2022.
XII) Pelo que dúvidas não restam, pois, que os danos elencados no documento (4.1 dano mais facilmente percetível), 4.2, 4.3 e 4.4, foram danos perpetrados aquando a viatura se encontrava à guarda e sob responsabilidade da aqui ré.
XIII) Não se poderá descurar que o veículo, tendo em conta os documentos assinalados quer pelo rebocador quer pela aqui ré, não continha quaisquer danos na lateral do mesmo, pelo que terá a aqui ré de ser responsabilizada pelos mesmos.
XIV) Não obstante não se ter apurado a eventual origem de tais danos, certo é que incumbe à aqui ré a responsabilidade de reparação do veículo atinente aos danos na pintura e, como tal, terá de ser condenada a aqui ré ao pagamento da quantia de €1.271,70 (mil duzentos e setenta e um euros e setenta cêntimos), tal como documento junto a 15/03/2023 sob a referência 35631216, referente ao sanar de tais vícios/danos na pintura.
XV) Quanto à privação de uso da viatura, dúvidas não restam, pois, que tendo em conta as deficientes/inexistentes reparações do veículo por parte da aqui ré, se viu privado do uso, fruição e dispor do bem que foi privado, pelo que terá a aqui ré de ser condenada ao pagamento do valor diário de € 100/dia, pelo menos a título de privação de uso da viatura pelo período de 83 dias.
XVI) Por força de tal situação, dos danos na pintura sofridos, de todos os custos que teve de suportar com as reparações, bem como por culpa exclusivamente da ré viu-se o aqui autor obrigado a despender elevadas quantias para constantes reparações no veículo bem como pintura do mesmo,
XVII) Bem como gerir a sua vida familiar e profissional de forma diferente, reorganizando-se, o que o abalou gravemente, tendo em conta que sempre foi uma viatura desejada e adquirida com esforço do seu trabalho, vendo-se numa situação em que a mesma padecia de graves defeitos, causados única e exclusivamente pela aqui ré.
XVIII) Dúvidas não restam, pois, que deverá ser a aqui ré condenada ao pagamento da quantia de €1.500 (mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais aos quais a sentença ora em crise é completamente omissa.
XIX) Assim, a douta sentença não ponderou bem sobre as provas produzidas, mormente a testemunhal e documental, o que levou a um resultado errado e contrário à lei, que não deveria ter ocorrido.
XX) Consequentemente, deve a sentença proferida ser substituída por outra que declare:
A) A responsabilidade da ré no pagamento da quantia de €1.968,55 (mil novecentos e sessenta e oito euros e cinquenta e cinco cêntimos) referentes aos custos que o autor teve de suportar para sanar a reparação deficiente por parte da ré (perante outra concessionária autorizada – E...),
B) Condene a ré ao pagamento da quantia de €1.271,70 (mil duzentos e setenta e um euros e setenta cêntimos) a título de pintura da viatura com tratamento cerâmico, tendo em conta que foi a ré a perpetrar tais danos na pintura do veículo do autor;
C) Seja a ré condenada ao pagamento da quantia de 100€/dia tendo em conta a privação de uso da viatura por parte do autor pelo menos em 83 dias de privação;
D) Ser a ré condenada ao pagamento de €1.500,00 a título de danos não patrimoniais sofridos pelo autor.
I. É patente que o recurso interposto pelo Recorrente não tem qualquer fundamento, devendo, em consequência, ser julgado totalmente improcedente e mantida, na íntegra, a Douta Sentença proferida.
II. O recurso que impugna a matéria de facto, como é doutrinal e jurisprudencialmente pacífico, não pode ter como objectivo a realização de um segundo julgamento sobre a mesma matéria, uma reapreciação completa dos elementos de prova carreados para os autos e que serviram de base à decisão recorrida. Destina-se, outrossim, a corrigir erros manifestos de julgamento quanto aos concretos pontos de factos identificados pelo recorrente – cfr. Acordão do STJ, de 23/05/2007.
III. No caso dos autos, o Tribunal a quo fundamentou a sua Decisão, explicando o modo como formou a sua convicção. Sendo certo que, a prova produzida nem sequer autorizava uma outra interpretação à luz das regras de experiência comum.
IV. Deste modo, e logo por aqui, resulta evidente a absoluta falta de razão do Recorrente e a necessária improcedência do recurso, o que, neste momento, se requer a V/Exas., Venerandos Senhores Juízes Desembargadores.
Mais se diga que,
A – QUANTO AOS ALEGADOS DANOS NA PINTURA
V. No dia 02-04-2024, entre as 15:27 e as 15:47, prestou declarações BB, motorista do reboque, tendo o mesmo sido fundamental para demonstrar a falta de razão do Recorrente quanto aos alegados danos na pintura.
VI. Mais, se alguma dúvida existisse relativamente a esta matéria – e não existe, já que, a Sentença é exemplar a tal título –, sempre se teria que concluir pela absoluta impossibilidade de estabelecimento de qualquer nexo de causalidade entre os alegados danos existentes na pintura e qualquer hipotética – e não alegada, de resto – conduta da Recorrida que pudesse ter conduzido à verificação de quaisquer danos nas suas instalações.
VII. Deste modo, e sem necessidade de mais considerações a propósito dos alegados danos na pintura, resulta evidente não assistir a mais ténue razão ao Recorrente, devendo, em consequência, manter-se a Sentença na íntegra, o que se requer a V/Exas., Venerandos Senhores Juízes Desembargadores.
B – DA ALEGADA INTERVENÇÃO DEFICIENTE
VIII. Desconhece a Recorrida se o Recorrente não compreende ou não quer compreender o que se encontra vertido na Douta Sentença.
IX. É que, de forma absolutamente censurável, tenta o Recorrente – em vão, obviamente – fazer depender a procedência do seu recurso, no essencial, de uma frase constante da Sentença, retirando-a, consciente e, quiçá, até dolosamente, do contexto.
X. Efectivamente, repete o Recorrente ao longo das alegações, quase ad nauseam, a frase “Ora, tendo em consideração a factualidade que antecede, é manifesto que a ré executou a sua prestação de forma defeituosa”, pretendo com tal infirmar a Decisão exemplarmente proferida.
XI. Ora, sem prejuízo de discordar a Recorrida severamente do conteúdo de tal frase, a realidade é que, basta continuar a ler o texto e, duas frases abaixo, consta, de igual modo, a seguinte indicação: “No entanto, importa ter presente que a ré não cobrou qualquer quantia ao autor por essa deficiente intervenção, não se tendo igualmente comprovado que o autor tenha sofrido qualquer dano em consequência da conduta da ré, até porque o veículo não voltou a circular até ser reparada na oficina da E...”.
XII. Assim, é absolutamente clarividente que, o parágrafo que o Recorrente pretende elevar ao patamar da absoluta e incontestável certeza e que é, ao mesmo tempo, base para uma pretendida procedência do recurso interposto, não serve o propósito pretendido.
A acrescer,
E sem prescindir,
XIII. No dia 02-04-2024, prestou declarações a testemunha CC, inquirido entre as 15:47 e as 17:13, testemunha indicada pelo Recorrente e quem elaborou um relatório a pedido deste.
XIV. Tratou-se de uma testemunha que não assistiu à primeira reparação, nem viu a viatura após tal reparação, sendo o seu depoimento, necessariamente, condicionado pela falta de conhecimento directo dos factos.
XV. A análise do depoimento daquela testemunha permite concluir, de igual modo, pela inexistência de qualquer razão do Recorrente, devendo, em consequência, o recurso ser julgado totalmente improcedente, o que, mui respeitosamente, se requer a V/Exas.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões vertidas pelo Recorrente nas suas alegações (arts. 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais prévias, destinando-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não à prolação de decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido.
Mercê do exposto, da análise das conclusões vertidas pelo Recorrente nas suas alegações decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:
1ª – Se foi validamente deduzida e procede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da sentença.
2ª – Da repercussão da eventual alteração da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso e, independentemente disso,
3ª – Se ocorreu erro de julgamento do Tribunal a quo, fundamentando os factos provados e o direito decisão de procedência da ação.
1 – Se foi validamente deduzida e procede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante da sentença
Estipula o artigo 662.º do Código de Processo Civil, no seu nº 1, que: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Ao assim dispor pretendeu o legislador no citado preceito, como evidencia Abrantes Geraldes[1], deixar claro que“ (…) a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia(…) sem embargo das modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de regras imperativas, à Relação não é exigido, nem lhe é permitido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos a livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio foram valorados pelo Tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto, indicou nas respectivas alegações que circunscrevem o objecto de recurso”.
Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2018[2], que define bem o “quadro” em que funciona aquela atividade, “I. A apreciação da decisão de facto impugnada pelo Tribunal da Relação não visa um novo julgamento da causa, mas, antes, uma reapreciação do julgamento proferido pelo Tribunal de 1ª Instância com vista a corrigir eventuais erros da decisão. II. No âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em primeira instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir [ cfr. nº 2, als. a) e b) do artigo 662º do CPC], à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.”
Por sua vez, o artigo 640.º, do Código de Processo Civil, impõe ao Recorrente, na impugnação da matéria de facto, a obrigação de especificar, sob pena de rejeição:
a) “os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados” [tem que haver uma indicação clara e inequívoca dos segmentos da decisão que considera afetados por erro de julgamento; ou seja, essa indicação tem que ser de molde a não implicar uma atividade de interpretação e integração das alegações do recorrente, tendo o Tribunal que encontrar na matéria de facto provada e não provada a matéria que o mesmo pretenderia impugnar, o que, aliás, está vedado ao Tribunal, face ao princípio do dispositivo];
b) “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” [tem que fundamentar os motivos da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios de prova produzidos – constantes do processo ou da gravação – que, no seu entender, implicam uma decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto impugnada];
c)“quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”;
d) “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
O citado artigo 640.º impõe um ónus rigoroso ao Recorrente, cujo incumprimento implica a rejeição imediata do recurso. Como sustenta António Santos Abrantes Geraldes[3], será de rejeitar total ou parcialmente o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto em alguma das seguintes situações:
«a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b), do CPC));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc).
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento de impugnação». Quanto a esta situação importa, no entanto, ter presente que o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão nº 12/2023, de 17 de outubro de 2023[4], uniformizou a seguinte jurisprudência: «Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações».
À luz dos considerandos que antecedem, afere-se que, em quaisquer circunstâncias, o Recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões. Esta exigência de síntese final nas conclusões da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar tem por função delimitar o objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto, permitindo também confrontar o Recorrido com o ónus de contra-alegação, no exercício do contraditório, evitando a formação de dúvidas sobre o que realmente pretende o Recorrente[5].
Recai sobre o Apelante, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, que se desdobra:
- num ónus primário ou fundamental de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar –delimitar o objeto do recurso –, requisito do ónus impugnatório que deve figurar não apenas no corpo das alegações, mas também deve ser levado às conclusões, e
- num ónus secundário ou complementar de motivar o seu recurso – fundamentação – com indicação dos meios de prova e das passagens exatas da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados que, no seu entendimento, impõem decisão diversa sobre a matéria de facto impugnada e ainda indicação da solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação, sendo certo que esta fundamentação já não tem de constar na síntese conclusiva, posto que não tem por função delimitar o objeto do recurso, traduzindo-se antes em elementos de apoio à argumentação probatória.
Neste sentido, o acima citado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 12/2023 (DR 220, 1ª série, de 14 de novembro de 2023) não deixou de salientar que: “Da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso.
Quanto aos dois outros itens, caso da decisão alternativa proposta, não podendo deixar de ser vertida no corpo das alegações, se o for de forma inequívoca, isto é, de maneira a que não haja dúvidas quanto ao seu sentido, para não ser só exercido cabalmente o contraditório, mas também apreendidos em termos claros pelo julgador, chamando à colação os princípios da proporcionalidade e razoabilidade instrumentais em relação a cada situação concreta, a sua não inclusão nas conclusões não determina a rejeição do recurso, conforme o n.º 1, alínea c) do artigo 640.º[…]”.
Compreende-se que assim seja, porquanto o nº1, do artigo 639º, do Código de Processo Civil, consagra o ónus de alegar e formular conclusões, estabelecendo que “o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”, sendo as conclusões das alegações de recurso que balizam a pronúncia do Tribunal ad quem (artigo 635º do Código de Processo Civil), exercendo, nas palavras de Abrantes Geraldes[6], “uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ou à das exceções, na contestação”.
Revertendo ao caso dos autos, apreciadas as alegações de recurso à luz de um critério de rigor imposto pela decorrência dos princípios da autorresponsabilidade das partes e do dispositivo, que necessariamente têm de nortear o julgador na aplicação do artigo 640º, do Código de Processo Civil, e que impedem que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de indistinto e inconsequente inconformismo, determinando, ao invés, que seja rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, é patente que o Recorrente não deu cumprimento às referidas exigências legais, pelo que sempre será de rejeitar essa sua pretensão de impugnar a matéria de facto, por incumprimento do ónus previsto no artigo 640º, do Código de Processo Civil.
Concretizando, nas conclusões que apresenta o Recorrente não indica quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente provados, para o que deveria ter remetido para os únicos factos obrigatoriamente a considerar para esse efeito, quais sejam, os contidos na sentença recorrida, no elenco dos factos provados, aí identificados pelos números 1) a 32), e / ou dos factos não provados, identificados sob os nºs 33) a 46).
Embora na conclusão I) afirme que discorda da sentença proferida, entre o mais, porque apreciou erradamente algumas das provas produzidas, mormente testemunhal e documental, tais como as faturas identificadas nas conclusões VI e VII, bem como os documentos 2.5, 4.1, 4.2, 4.3, 4.4 e 8 aludidos nas conclusões XI e XII, o Recorrente, ao invés de indicar nas conclusões de recurso quais os concretos pontos que pretende impugnar por terem sido incorretamente julgados, passa de imediato a colocar em crise, não os próprios factos em si, mas antes a argumentação expendida pelo Tribunal a quo a propósito dos factos dados como provados e não provados, para afastar a conclusão final que o Tribunal recorrido veio a formular sobre a improcedência da ação. Ou seja, o Apelante, no acervo conclusivo, limita-se a retirar dos elementos probatórios ali indicados conclusões distintas das que entende que foram alcançadas na decisão recorrida pelo Tribunal a quo, mas não indica quais os pontos concretos da matéria de facto provada ou não provada que pretende ver reapreciados, sendo aquelas conclusões completamente omissas quanto a essa referência.
Tal significa que o Recorrente não cumpriu o ónus impugnatório que para si decorre do estatuído no artigo 640º do Código de Processo Civil, designadamente o vertido na alínea a) deste normativo legal, sendo as suas conclusões omissas quanto aos concretos pontos de facto que impugna, o que determina a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto.
Com efeito, não existe relativamente ao recurso da decisão da matéria de facto despacho de aperfeiçoamento, o que, mesmo considerando a necessidade de aplicação de um juízo de proporcionalidade na ponderação do equilíbrio entre as exigências legais quanto ao ónus impugnatório por contraponto à gravidade da falha verificada, no caso concreto, outra solução não permite que não seja a da rejeição da impugnação face ao evidente e clamoroso incumprimento de tal ónus[7].
O ónus imposto ao Recorrente na alínea a) do n.º 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil não se satisfaz com a simples afirmação de que a decisão devia ser diversa, antes exige que se afirme e especifique nas conclusões do recurso quais os concretos pontos de facto que se impugnam, o que o Apelante manifestamente não fez, razão pela qual se rejeita o recurso atinente à impugnação da matéria de facto tida como provada e não provada pelo Tribunal a quo.
Os factos a considerar são, por conseguinte, os acima indicámos e que aqui se dão como reproduzidos.
Em sede de enquadramento jurídico, confirmada a matéria de facto enunciada na sentença recorrida, afastado fica desde logo o conhecimento da questão da repercussão da alteração da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso.
Não obstante, nas conclusões II) e III), o Recorrente sustenta ainda que a sentença proferida se apresenta como contraditória, porquanto apesar de aferir da deficiente reparação da segunda intervenção na viatura do Autor não condena a Ré, atenta a sua culpa, no pagamento de qualquer indemnização ao Autor, o que consubstancia errada interpretação de direito, concluindo sob o ponto IV que, quando muito, deveria ter condenado a Ré pela redução do preço, o que não sucedeu.
Cumpre, por conseguinte, decidir se ocorreu erro de julgamento do Tribunal a quo ao decidir naqueles termos.
Não existe dissídio quanto à qualificação jurídica das relações contratuais havidas entre o Autor e a Ré como sendo de empreitada, nos termos previstos no artigo 1207º, do Código Civil.
Relembrando o quadro fáctico apurado, na sequência de uma avaria ocorrida no dia 23 de janeiro de 2022 no veículo de matrícula ..-JX-.., o Autor acordou com a Ré a reparação por parte desta de uma avaria na caixa de velocidades, bem como a substituição da bomba de água do identificado veículo. Tais serviços foram prestados pela Ré sem que o Autor tenha logrado provar terem sido defeituosamente prestados, pois que dos factos provados e não provados não resulta que os trabalhos que a Ré executou no veículo apresentassem defeitos. A única factualidade apurada relaciona-se com a recusa por parte do Autor em proceder ao levantamento da viatura, alegando que a mesma apresentava danos na pintura que não existiam quando o veículo foi deixado nas instalações da Ré. No entanto, conforme emerge dos pontos 33) e 34) dos factos não provados, não resultou demonstrado que no período compreendido entre 23 de fevereiro de 2022 e 25 de fevereiro de 2022, enquanto permaneceu nas instalações da Ré, tenham sido causados danos na pintura do veículo de matrícula ..-JX-.. que não existissem anteriormente à sua entrada na oficina, nem se provou que a Ré tenha assumido a responsabilidade pela produção dos danos aludidos em 33).
Consequentemente, nenhum reparo merece a sentença recorrida quando conclui que “De facto, no que concerne à primeira intervenção, resulta da matéria de facto, que a Ré reparou devidamente a anomalia existente, tendo o veículo sido entregue ao autor que passou a circular com o mesmo.
Relativamente a essa intervenção, nada se provou que permita questionar a eficácia da intervenção efectuada.
Por outro lado, importa ter presente que não se provou que nesse momento o veículo do autor já apresentasse qualquer avaria no circuito de refrigeração, que esse circuito tenha sido intervencionado, nem que durante a intervenção tenha sido causada a fissura no tubo que causou a perda de pressão posteriormente verificada.
Acresce que, incumbindo-lhe o respectivo ónus de prova, nos termos do artigo 342º do Cód. Civil, o autor também não logrou demonstrar que a ré tenha causado qualquer dano na pintura do veículo ou que não tenha aplicado todas as peças facturadas.
Nessa medida, improcede a pretensão formulada pelo autor com estes fundamentos, porquanto não se provou que a reparação tenha sido indevidamente realizada ou tivesse causado as anomalias subjacentes à segunda avaria.”
No que concerne à segunda intervenção no veículo, é certo que se provou que a Ré constatou a existência de uma anomalia num dos tubos do circuito de refrigeração, bem como ao nível da transmissão automática do veiculo, nomeadamente trepidação na sexta velocidade, tendo informado o Autor, num primeiro momento, que havia procedido à encomenda daquele tubo e que aguardava a sua entrega para intervencionar o veículo e, em 23 de março de 2022, comunicou ao Autor que a viatura se encontrava reparada da fuga de água.
Mais se provou, conforme resulta da factualidade vertida sob os pontos 25) a 27) que, não obstante essa intervenção da Ré ao nível do circuito de refrigeração, a viatura continuou com uma fuga nesse circuito.
No entanto, daqui não decorre a procedência da ação, mesmo que parcial.
Desde logo, cabia ao Autor alegar e provar os concretos trabalhos por concluir e/ou os concretos defeitos/mau funcionamento da obra e os factos de que pudesse decorrer a conclusão de que os mesmos tenham decorrido de má execução por banda da Ré, nos termos do previsto no artigo 342º, nº 1, do Código Civil, enquanto factos constitutivos do seu direito à reparação.
Por outro lado, não pode equiparar-se a realização da obra com vícios ao incumprimento do contrato de empreitada.
Segundo Pedro Romano Martinez [8] “Na empreitada, o cumprimento ter-se-á por defeituoso quando a obra tenha sido realizada com deformidades ou com vícios. As desconformidades são as discordâncias relativamente ao plano convencionado (por exemplo encomendou-se uma mesa com três metros de cumprimento e foi realizada uma mesa com dois metros e meio de cumprimento). Os vícios são as imperfeições que excluem ou reduzem o valor da obra ou a sua aptidão para o uso ordinário ou o previsto no contrato (…) Ao conjunto das deformidades e vícios, chamar-se-á, como faz o Código Civil, defeitos”.
No caso, atenta a factualidade assente, estamos perante a celebração de dois contratos distintos, pois que não logrou o Autor provar que se tratasse da mesma avaria ou que a primeira intervenção da Recorrida tenha, de algum modo, contribuído para a existência das anomalias verificadas posteriormente e que desencadearam a necessidade da segunda intervenção.
É certo que a Recorrida, na sequência da segunda reparação, não logrou reparar a anomalia de que esta padecia ao nível do sistema de refrigeração.
Adstrita que estava a Ré, nos termos contratados, a providenciar por essa reparação, enquanto ‘obrigação de resultado’, forçoso é concluir que, não o tendo conseguido, executou essa prestação de forma imperfeita ou defeituosa.
Ou seja, o empreiteiro deve, nos termos do artigo 1208º do Código Civil, executar a obra em conformidade com o que foi convencionado e sem vícios que excluam ou reduzam o seu valor ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto, mas daí não decorre que o legislador equipare a realização da obra com vícios ao incumprimento do contrato.
A execução da obra com defeitos apenas confere ao seu dono os direitos subsidiários que resultam dos artigos 1221º a 1223º do Código Civil, para a hipótese do direito de eliminação dos defeitos ou de construção de nova obra não terem sido satisfeitos, por qualquer motivo.
Por outras palavras, em matéria de cumprimento defeituoso do contrato de empreitada, importa considerar o seguinte regime específico:
- Se os defeitos da obra puderem ser suprimidos, o dono da obra tem o direito de exigir do empreiteiro a sua eliminação;
- Se não puderem ser eliminados, o dono da obra pode exigir nova construção (artigo 1221.º, n.º 1 do Código Civil).
- Não sendo eliminados os defeitos ou construída de novo a obra tem o dono da mesma, então, o direito de exigir a redução do preço ou a resolução do contrato, se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina (artigo 1222.º, n.º 1 do Código Civil).
- Tudo isto, sem prejuízo do direito do dono da obra de ser indemnizado nos termos gerais (artigo 1223.º do Código Civil).
Ora, o exercício destes direitos não é alternativo, pois que, como resulta da leitura dos normativos citados, o empreiteiro tem, em face deles, a possibilidade de eliminar os defeitos ou construir de novo a obra e só na hipótese de o mesmo não fazer uma coisa ou outra é que o dono da obra terá a possibilidade de redução do preço ou de resolução do contrato.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela a este propósito “[o]s direitos de redução do preço e de resolução do contrato não são atribuídos, em alternativa, com os de eliminação dos defeitos ou reconstrução da obra”; o art.º 1222.º “na verdade, torna o exercício daqueles dois direitos dependente do facto de não terem sido eliminados os defeitos ou construída de novo a obra”, dando-se, assim, “ao empreiteiro a possibilidade de, querendo, manter o contrato pelo preço estipulado, eliminando os defeitos da obra ou construindo outra de novo; só na hipótese de ele não fazer nem uma coisa nem outra, se abre a possibilidade de redução do preço ou de resolução do contrato” (in Código Civil Anotado, Volume II, Coimbra, 1986, p. 821).
Ou seja, em face de tal regime, e como também sustenta Pedro Romano Martinez, “o dono da obra não tem o direito de, por si, ou por intermédio de terceiro, eliminar os defeitos da obra à custa do empreiteiro - pois que tal representaria uma forma de auto-tutela não consentida pela lei - mas apenas o de requerer que o facto seja prestado por outrem em execução judicial (cfr. art.º 828.º do Código Civil), razão pela qual só após a condenação do empreiteiro à eliminação do defeito ou à realização de nova obra e perante a recusa deste é que o dono da obra poderá encarregar terceiro de proceder à realização dos trabalhos necessários para suprimir os defeitos a expensas do empreiteiro” (in “Contrato de Empreitada”, Coimbra, 1994, p. 206).
Em suma, os direitos conferidos nos normativos atrás mencionados têm de ser exercidos de forma sucessiva e pela ordem neles referida, e não de forma alternativa, de acordo com aquela que seja a vontade do dono da obra. Existe uma hierarquização dos meios de tutela legal conferidos ao dono de obra. O dono da obra deve em primeiro lugar exigir a eliminação dos defeitos. Se esta não for possível, pode pedir uma obra nova. Não sendo esta viável, pode então pedir a redução ou resolução do contrato.
A tal conclusão não obsta o disposto no citado artigo 1223º do Código Civil, que salvaguarda o direito de indemnização do dono da obra nos termos gerais, pois que tal direito de indemnização, coexistindo com os mencionados direitos, tem de ser algo de diferente deles e, por isso, de respeitar a danos não compensáveis com o simples exercício dos mesmos.
Pese embora o que acaba de ser dito, situações há em que entendemos que, pela sua natureza, justificam um desvio a este regime, de modo a que se considere legítima a conduta do dono da obra que, por si ou por intermédio de outrem, proceda à eliminação do defeito da obra e, como tal, se lhe reconheça o direito de exigir do empreiteiro o pagamento de tudo quanto teve de despender com tal conduta.
Uma tal solução pode ser obtida por duas vias:
- Se é certo que do regime legal traçado, acima indicado, é possível retirar a consagração de o direito do empreiteiro a eliminar os defeitos da obra que realizou esse direito é, em simultâneo, um dever e, como tal, deve o empreiteiro cumpri-lo em prazo razoável após a exigência do dono da obra. Como tal, se o empreiteiro não cumpriu esse dever, não parece que se possa dizer que mantenha o direito de eliminar os defeitos, porque já se viu que teve oportunidade para o fazer e não o fez.
Por conseguinte, sempre que o empreiteiro se coloca em mora quanto ao dever de eliminar os defeitos e sendo premente a sua eliminação, a atuação do dono da obra no sentido dessa eliminação encontra justificação no disposto no n.º 2 do art.º 335.º do código Civil .
Nestes casos, o direito do dono da obra a que esta seja realizada sem defeito prevalecerá, então, sobre o direito do empreiteiro a ser ele próprio a eliminá-los, já que, tratando-se de direito em risco de obliteração, deve considerar-se superior e, por conseguinte, prevalecente.
E se, nestas circunstâncias, os defeitos forem efetivamente reparados pelo dono da obra, pode ele demandar depois o empreiteiro pedindo o ressarcimento daquilo que despendeu, enquanto consequência do incumprimento culposo do mesmo.
- A outra via consiste na posição sustentada por Cura Mariano[9], nos termos da qual a resolução do contrato de empreitada fundada em cumprimento defeituoso da obra está legitimada “quando a gravidade dos defeitos que já se verificam em pleno processo de execução permite que se considere impossível a sua realização, ou quando as características desses defeitos ou a posição assumida pelo empreiteiro face à sua existência, numa perspetiva objetiva, justifiquem a quebra de confiança que o dono da obra depositava na pessoa do empreiteiro para proceder ao adimplemento perfeito da sua prestação”.
Nestes casos, como que se permite “de algum modo afastar a regra da hierarquização supra mencionada”.
Reportando-nos ao caso dos autos, e tendo presente os considerandos que antecedem, a questão que se coloca agora é a de saber se assiste ao Recorrente o direito que aqui pretende ver exercido de ser ressarcido dos prejuízos que, na sua ótica, sofreu devido ao comportamento faltoso da Apelada.
Apurado que está o cumprimento imperfeito da obrigação a que a Recorrida estava adstrita, pelo facto de esta não ter logrado reparar a anomalia do veículo no que se refere ao sistema de refrigeração, sobre o Recorrente recaía, em função do regime acima traçado, num primeiro momento, o ónus de exigir da Recorrida a eliminação do defeito, através de nova reparação.
E só no caso de esta se recusar a fazê-lo, depois de para tanto interpelada ou de evidenciar a total incapacidade para o efeito, é que ao Recorrente assistiria o direito de exigir a redução do preço ou a resolução do contrato.
Ora, não foi isso o que o Recorrente fez, já que, como se viu, perante a comunicação por parte da Recorrida a que se alude sob o facto provado 27), recorreu aos serviços de uma outra oficina para proceder à reparação do veículo.
Qualquer pretensão, designadamente de natureza indemnizatória, que lhe possa ser reconhecida sobre a Recorrida dependerá, por conseguinte, de se verificar alguma das situações excecionais a que acima se aludiu.
Não é esse, contudo, e manifestamente, o caso dos autos.
Na verdade, e desde logo, o Recorrente recorreu aos serviços de uma outra oficina para reparar o veículo sem interpelar a Recorrida para que esta o fizesse e, portanto, à sua total revelia.
Não há, por isso, como assacar à Recorrida uma atitude de recusa perentória de reparação do veículo, nem sequer está demonstrada a incapacidade da Recorrida para resolver o problema.
De resto, independentemente de qual possa ter sido a intervenção da oficina a que o Recorrente recorreu para reparar o veículo, fica por saber em que medida é que para o eventual sucesso da reparação efetuada contribuiu todo o trabalho desempenhado anteriormente pela Recorrida.
De referir, ainda, que não há qualquer facto que, em si mesmo, sugira urgência ou premência na reparação do veículo por parte do Recorrente.
O cenário com que nos deparamos não revela, assim, uma situação de recusa ou de incapacidade absoluta da Recorrida de reparar o veículo, ou de uma gravidade tal que justificasse a quebra de confiança do Recorrente na capacidade e disponibilidade da Recorrida para realizar a reparação, a ponto de legitimar o Recorrente a exercer, como exerceu, a autotutela do seu direito à reparação do veículo.
O recurso a uma outra oficina para a reparação do veículo constituiu, por conseguinte, um ato ilícito. que, em função de tudo quanto acima foi dito, lhe nega qualquer direito de ressarcimento sobre a Recorrida.
Impõe-se, pois, negar provimento ao presente recurso, com a consequente manutenção da sentença recorrida, ainda que, em parte, com fundamentação distinta.
Como a apelação foi julgada improcedente, mercê do princípio da causalidade, as custas serão da responsabilidade do Recorrente.
______________________________
[1] Cf. Recursos em Processo, Civil, Almedina, 7ª edição atualizada, p. 333, 334 e 340.
[2] Proc. nº588/12.3TBPVL.G2.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Obra já citada, pág. 200-201.
[4] Publicado no DR, Série I, n.º 220/2023, de 14-11-2023 – cujo sumário foi retificado pela Declaração de Retificação n.º 35/2023, de 28 de novembro, publicado no DR, Série I, de 28-11-2023.
[5] Cf. Neste sentido Abrantes Geraldes, ob. já citada, p. 201, nota 345.
[6] Cf. Ob. já citada, p. 135.
[7] Cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 770.
[8] Cf. Contrato de Empreitada, Almedina, página 189.
[9] Cf. (in “Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra”, 7.ª Ed., pág. 129).