DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
IMPULSO PROCESSUAL
Sumário

A falta de impulso processual gerador da deserção da instância pressupõe que o andamento do processo dependa em exclusivo de um comportamento das partes.

Texto Integral

Proc. n.º 1701/22.8T8VCD-B.P1 – Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Família e Menores de Vila do Conde – Juiz 1

Relatora: Carla Fraga Torres
1.º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2.º Adjunto: Eugénia Maria Moura Marinho da Cunha

Acordam os juízes subscritores deste acórdão da 5.ª Secção Judicial/3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório.
Recorrente: AA
Recorrida: BB

AA requereu contra BB inventário, na sequência do divórcio de ambos decretado por decisão transitada em julgado, para partilha dos bens comuns, arrolando no seu requerimento uma testemunha.
Indicando-se para o efeito, o requerente foi nomeado cabeça de casal, na sequência do que, a 2/05/2023, juntou relação de bens em que discriminou, como activo, duas contas bancários cujo saldo à data do divórcio disse desconhecer, o recheio da casa de morada de família, cujo valor não indicou, um veículo automóvel e um prédio urbano, e, como passivo, três créditos bancários (Banco 1..., S.A., Banco 2..., S.A. e A... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.), com o que juntou dois comprovativos de transferências bancárias, um requerimento de registo automóvel, uma caderneta predial e informações provenientes do Banco de Portugal.
Ordenada a citação:
- a 29/05/2023, a requerida apresentou reclamação à relação de bens em que, além de apontar um lapso na numeração da verba n.º 3, pugnou pela indicação dos saldos bancários, indicou o valor do recheio da casa de morada de família e impugnou os valores do veículo automóvel e do prédio urbano, e, como prova, arrolou duas testemunhas e requereu a avaliação pericial do prédio urbano, assim como a notificação do Banco de Portugal para indicar as contas bancárias tituladas ou co-tituladas pelo cabeça de casal, com informação sobre a data da respectiva abertura e encerramento, e identificar as entidades bancárias em que essas contas estejam abertas a fim de, notificadas, informarem do saldo e extrato bancário correspondente.
- a 7/06/2023, o Banco 1... reclamou do valor indicado para o seu crédito que foi relacionado e, além de um documento, como prova, arrolou uma testemunha.
- a 9/06/2023, A... – Instituição Financeira de Crédito, S.A. indicou o valor do seu crédito à data.
A 30/06/2023, o cabeça de casal juntou nova relação de bens.
Por despacho de 26/09/2023, o tribunal recorrido ordenou o desentranhamento, além do mais, da referida relação de bens apresentada a 30/06/2023 “uma vez que após a inquirição infra será determinada eventualmente a junção aos autos de relação de bens definitiva” e, de seguida, admitiu os róis de testemunhas apresentados com as reclamações, ordenou que se oficiasse à entidade bancária nos termos requeridos e ordenou a realização da requerida prova pericial, relegando para data posterior à obtenção de todas as informações e ao relatório pericial o agendamento da inquirição de testemunhas.
Obtida e fornecida autorização dos interessados, o Banco de Portugal a 16/11/2023 juntou a informação solicitada sobre a identificação das contas tituladas pelo cabeça de casal, respectiva instituição bancária, e respectivas datas de abertura e de encerramento.
A 20/11/2023, foi junta a avaliação do prédio urbano.
A 21/11/2023, a reclamante BB requereu que os Bancos com contas tituladas pelo cabeça de casal no período anterior ao divórcio informassem os autos dos saldos existentes à data do divórcio.
A 30/11/2023 foi proferido despacho a ordenar a notificação da requerida para especificar as concretas contas e entidades bancárias a que se reportava o seu requerimento de 21/11/2023, o que, na mesma data, foi notificado a ambas as partes.
A 16/01/2024, a requerida/reclamante requereu que o Banco 1..., S.A. informasse dos saldos existentes nas contas do cabeça de casal à data do divórcio, cujo número disse desconhecer.
A 19/02/2024, o Banco 1..., S.A. prestou a informação solicitada.
Na sequência da notificação desta informação, o cabeça de casal a 27/02/2024 reiterou que as contas existentes à data do divórcio são as contas bancárias já identificadas na relação de bens cuja titularidade pertence a si e à interessada e que era esta que movimentava as contas, bem sabendo a mesma quais os montantes depositados à data do divórcio.
A 9/03/2024, o tribunal a quo em face da posição assumida pelo cabeça de casal ordenou a notificação da reclamante para querendo requerer o que tivesse por conveniente sob pena dos autos aguardarem o seu impulso processual.
Este despacho foi notificado a ambas as partes a 11/03/2024.
A 27/09/2024, foi proferido o seguinte despacho:
“Os presentes autos encontram-se parados há mais de seis meses por inércia do requerente e cabeça de casal.
Notificados do despacho datado de 9/03/2024 com a refª 457876327 e com a cominação dos autos aguardarem o seu impulso processual nada veio dizer ou requerer (cfr. Ac. RP de 14/12/2022, in www.dgsi.pt).
Assim, ao abrigo do disposto no art. 281º, nº 4 do mesmo diploma em conjugação com o art. 138º, nº 1 do mesmo diploma (vide entre outros Acs. da Relação de Évora de 21/11/2019 e 17/06/2021, ambos in www.dgsi.pt), declara-se a instância deserta.
Custas pelo requerente e cabeça de casal porquanto o ónus do impulso foi imputado a si, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie”.
Deste despacho o cabeça de casal interpôs recurso pretendendo a sua revogação e a prolação de novo despacho que ordene a remessa dos autos à 1ª instância a fim de nele ser accionada a continuação da instância a partir do momento em que a mesma se encontrava aquando da sua suspensão formulando para o efeito as seguintes conclusões:
“I. A resolução do recurso passa, no essencial, pela interpretação e aplicação do preceituado no artigo 281º, nº 1, do CPC.
II. Defrontamo-nos, assim, com duas exigências cumulativas: uma de natureza objetiva (falta de impulso processual das partes, máxime do Cabeça de Casal, para o prosseguimento da instância) e outra de natureza subjetiva (inércia causada por negligência).
III. O primeiro pressuposto significa que apenas pode extrair-se o efeito extintivo da instância revelado pela deserção quando em algum ponto do seu percurso o processo estiver a aguardar o impulso processual por um período superior a 6 meses.
IV. O impulso básico do Cabeça de Casal satisfez-se com a propositura da ação, do mesmo modo que, relativamente ao incidente de reclamação à relação de bens, o impulso necessário ocorreu com a sua dedução de oposição à reclamação.
V. A partir de então, não dependendo o prosseguimento da instância de qualquer impulso processual, a mesma deveria percorrer cada uma das fases legalmente previstas até à decisão do incidente de reclamação à relação de bens.
VI. No caso, foi proferido despacho a 26/9/2023 que determinou: “Juntas todas as informações e o relatório pericial será agendado dia para a inquirição de testemunhas”. Mesmo tendo sido proferido tal despacho, a Meritíssima Juiz deu crédito a um propósito revelado pelas Reclamante e ordenou que o Banco 1... S.A. informasse quais os saldos existentes nas contas bancárias à data do divórcio.
VII. O Banco 1... juntou ofício a 19/2/2024 e o Cabeça de Casal esclareceu: “as contas bancárias existentes à data do divórcio são as contas bancárias já indicadas na relação de bens e cuja titularidade pertence ao Cabeça de Casal e à interessada. “
VIII. O que redundou, na notificação da Reclamante para: “Tendo em conta a posição assumida pelo cabeça de casal notifique a reclamante e interessada para querendo requerer o que tiver por conveniente sob pena dos autos aguardarem o seu impulso processual.” (sublinhado nosso)
IX. Face a ausência de resposta da reclamante, o que se impunha era a retoma nos autos da sua normal tramitação.
X. Certo é que, malgrado a indisponibilidade que a Reclamante revelou para clarificar o estado da situação, no momento em que o tribunal de 1ª instância a notificou para requerer o que tivesse por conveniente, em termos objetivos, nenhum impulso recaía sobre a mesma no que concerne à prossecução da instância, impondo-se ao tribunal o prosseguimento da instância com designação de dia para inquerição de testemunhas e decisão do incidente de reclamação.
XI. É verdade que, em despacho de 11-1-16, o Mº Juiz de 1ª instância determinou que: “Tendo em conta a posição assumida pelo cabeça de casal notifique a reclamante e interessada para querendo requerer o que tiver por conveniente sob pena dos autos aguardarem o seu impulso processual.”
XII. No entanto, de tal despacho não podem ser retirados os efeitos que a 1ª Instância declarou já que, como se disse, a instância não se encontrava parada a aguardar qualquer impulso que fosse legalmente necessário, antes se encontrava numa situação de stand by à espera que porventura a reclamante desse uma resposta. A partir do momento em que terminou o prazo de resposta, em termos objetivos a instância aguardava apenas que o Mº Juiz da 1ª Instância convocasse as partes para a realização da inquerição das testemunhas.
Caso assim se não entende,
XIII. Não releva, para efeitos de deserção da instância, que o processo esteja a aguardar o impulso processual da parte por um período superior a 6 meses, se sobre a parte não recair o ónus específico de promoção da atividade processual. E basta uma rápida leitura, para desde logo verificamos que certamente estamos perante um lapso, porquanto o ónus de impulso processual não era do Cabeça de Casal.
Isto porque,
XIV. No caso que nos ocupa, a o Recorrente/Cabeça de Casal pronunciou-se sobre os documentos juntos pela entidade bancária, tendo a Meritíssima Juiz a quo notificado a Interessada para, face à pronúncia do Cabeça de Casal, querendo, dizer o que tiver por conveniente, com advertência de que os autos estariam a aguardar o seu (da Interessada BB) impulso processual.
Por assim ser, não tinha o Cabeça de Casal que responder, mas sim a reclamante.
XV. Conforme se depreende da leitura do despacho proferido a Reclamante/Interessada foi notificada para querendo requerer o que tiver por conveniente sob pena dos autos aguardarem o seu (da Reclamante/Interessada) impulso processual. Declarar a instância deserta, é culpabilizar o aqui apelante pela ausência de pronuncia da Reclamante!!...;
Por outro lado,
XVI. O despacho proferido pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo de 9/3/2024 não advertiu o cabeça de casal de que os autos aguardavam o seu impulso processual.
XVII. Ora, “o despacho judicial que advirta a parte para a possibilidade da deserção da instância não é, pois, dispensável, quer se entenda que só a partir dele correm os seis meses do art.º 281.º-1, CPC, quer se entenda que basta que o juiz o profira, no decurso desse prazo ou depois dele concluído, desde que a parte tenha a possibilidade de praticar seguidamente o ato omitido” (assim, Lebre de Freitas; “Da nulidade da declaração de deserção da instância sem precedência de advertência à Parte”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 2018, I-II, p. 197). O que, como supra referido, para o Cabeça de Casal, in casu, nunca se verificou pois que este nunca foi advertido (como foi a Reclamante) de que o processo aguardava o seu impulso processual sob pena de deserdação da instancia”.

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A reclamante não apresentou contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Recebido o processo nesta Relação, proferiu-se despacho a considerar o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com o efeito e o modo de subida adequados.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca a este Tribunal é a de saber se a decisão apelada que declarou deserta a instância deve ser revogada e substituída por outra que determine a continuação da instância.
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III. Fundamentação de facto.
Os factos materiais relevantes para a decisão da causa são os que decorrem do relatório supra.
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IV. Fundamentação de direito.
Delimitada a questão essencial a decidir, nos termos sobreditos sob o ponto II, cumpre apreciá-la.
O art. 281.º, n.º 1 do CPC, dispõe que sem prejuízo do disposto no n.º 5 relativo ao processo de execução, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.
Por sua vez, de acordo com o n.º 4 do mesmo preceito legal, a deserção é julgada no tribunal onde se verifica a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.
Em anotação a este normativo, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, escrevem que “1. A deserção constitui uma das formas de extinção da instância (ou do recurso), não ficando agora dependente da sua prévia interrupção, como antes sucedia. Opera quando a instância (ou o incidente com efeito suspensivo da instância, como é o de habilitação de sucessores da parte falecida na pendência da causa) fique paralisada por mais de 6 meses, por negligência da parte. Ao mesmo prazo e condicionalismo obedece a deserção do recurso. 2. A conduta negligente conducente à deserção da instância consubstancia-se numa situação de inércia imputável à parte, ou seja, em que esteja em causa um ato ou atividade dependente da sua iniciativa, sendo o caso mais flagrante o da suspensão da instância por óbito de algumas das partes, a aguardar a habilitação dos sucessores. 3. Atenta a diversidade dos factos que colidem com o regular andamento da causa, na apreciação do condicionamento da deserção da instância é importante que se pondere globalmente as diversas circunstâncias, quer as de ordem legal, quer as que se ligam ao comportamento da parte onerada com a iniciativa de dinamizar a instância. 4. Daqui pode resultar que se mostre necessário, antes de declarar o efeito extintivo da instância decorrente da deserção, que o juiz sinalize, por despacho, ser aquela a consequência da omissão de algum ato processual, como defendem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anot., vol. I, 3.ª ed., pp. 555 a 557, e se decidiu em STJ 14-12-16, 105/14 e RL 20-12-16, 3422/15, em decorrência dos princípios da gestão e cooperação processual e do dever de prevenção deles emergentes” (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, págs. 328/9).
No caso dos autos, depois de o inventário ter sido requerido por quem veio a ser nomeado cabeça de casal, este, notificado para o efeito, apresentou uma primeira relação de bens, e, citados, tanto a requerida como um credor bancário reclamaram da mesma com o que cada um deles indicou prova, designadamente testemunhal, cuja inquirição não só foi diferida para momento posterior à conclusão das demais diligências de prova requeridas pelos reclamantes, como seja a obtenção de informações bancárias, como foi pelo tribunal sinalizada como sendo o momento após o qual se determinaria eventualmente a junção de relação de bens definitiva, e, por esta razão, foi, inclusive, ordenado o desentranhamento da relação de bens corrigida entretanto junta pelo cabeça de casal.
Em face do disposto nos arts. 1104.º, n.º 1, al. d) e 1105.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC, não surpreende que assim tenha procedido o tribunal recorrido. Na verdade, apresentada a reclamação à relação de bens nos termos do art. 1104.º, n.º 1, al. d) do CPC, os interessados são notificados, ao abrigo do art. 1105.º, n.º 1 do CPC, para responder, querendo, no prazo de 30 dias. Depois de produzidas as provas que tiverem sido indicadas, por força do n.º 2 deste artigo, com os requerimentos e respostas, a questão, de acordo com o n.º 3 do mesmo normativo, é decidida, sem prejuízo do disposto nos arts. 1092.º e 1093.º do CC.
A este respeito, Carla Câmara sublinha “Tratando-se de questão que deva ser decidida no processo de inventário e que não caiba na previsão dos arts. 1092.º e 1093.º do CPC, o juiz efetuará as diligências probatórias que tenham sido requeridas ou que o tribunal oficiosamente determine, após o que profere decisão” (in “O Processo de Inventário Judicial e o Processo de Inventário Notarial”, Almedina, pág. 72). Posteriormente, como parece ter sido o entendido também do tribunal a quo, o cabeça de casal poderá ser notificado para apresentar nova relação de bens em conformidade.
Porque assim é, tendo o cabeça de casal, notificado das informações bancárias obtidas, mantido as contas bancárias que havia indicado na relação de bens sem vir concretizar o respectivo saldo, que afirmou ser do conhecimento da reclamante, já não se compreende que o tribunal tivesse, em face disso, notificado a reclamante para, querendo, requerer o que tivesse por conveniente sob pena dos autos aguardarem o seu impulso processual. E menos se compreende se atentarmos no facto de a ordenada notificação da reclamante para requerer o que tivesse por conveniente ser, a um tempo, apresentada como uma faculdade para esta – “para querendo requerer” - e, a outro, cominada com a injunção do impulso processual - “sob pena dos autos aguardarem o seu impulso processual” - não se percebe bem se por parte da reclamante, se por parte do cabeça de casal.
Como quer que seja, a reclamação da interessada - com pretensão formulada, no que respeita às contas bancárias no sentido de o cabeça de casal indicar os respectivos saldos e com prova testemunhal por produzir - estava pendente e não carecia, ao menos à data, de qualquer outro acto da sua parte para ser apreciada. Com efeito, por força das disposições conjugadas dos arts. 341.º do CC, 1105.º e 292.º a 295.º ex vi do art. 1091.º, n.º 1 do CPC, como salienta a autora supra citada, “O interessado que se apresentar a deduzir qualquer dos incidentes tem o ónus de alegar os factos em que fundamenta oposição, impugnação, e/ou reclamação, bem como de apresentar a prova dos factos alegados” (in loc., pág. 70).
Outrossim, o tribunal de 1.ª Instância não diz qual o acto ou actividade processual que estivesse dependente da iniciativa do cabeça de casal nem adverte para as consequências da sua inacção processual.
É que, conforme foi sumariado no acórdão da RL de 24/10/2019 (Proc. 2165/17.3T8CSC.L1.L1-2; rel. Pedro Martins, com indicação de vasta jurisprudência): “I– Para além dos casos em que tal decorre por força de um despacho judicial, há casos, excepcionais, em que a lei impõe às partes o ónus de um impulso processual. Um desses, poucos, casos é o da habilitação dos sucessores da parte falecida. Se a parte onerada com a necessidade de requerer a habilitação não o fizer, por negligência, durante um período de 6 meses, a instância será declarada deserta (art. 281/1 do CPC).
II– Salvo casos excepcionais, o tribunal deverá alertar a parte para a consequência da deserção da instância por negligência no cumprimento daquele ónus durante aquele período de tempo, o que normalmente será feito com a referência expressa a essa possibilidade, ou com a menção de que o processo fica à espera da prática do acto sem prejuízo do decurso do prazo do art. 281/1 do CPC.
III– Se a parte onerada com esse ónus nada fizer nesse prazo, nem vier ao processo, no decurso do prazo, justificar o facto, tal será suficiente para se concluir pela sua negligência e, por isso, o tribunal poderá declarar a deserção sem ter que ouvir as partes sobre isso” (in www.dgsi.pt).
Seguro que o cabeça de casal tem deveres, mormente os que lhe cabem dentro do processo de inventário de arrolar e descrever os bens da herança (arts. 1097.º e 1012.º do CPC e 2086.º, n.º 1, al. c) do CC), cuja violação pode justificar a sua remoção, tendo qualquer interessado legitimidade para a pedir (arts. 2086.º, n.º 2 do CC e 1013.º do CPC).
Sucede que, não confessando expressamente o cabeça de casal a existência de bens, ao tribunal, como clarifica Domingos Silva Carvalho Sá, cabe proceder “à recolha da prova indicada pelos interessados nos seus requerimentos e…às diligências que julgue necessárias”, sem prejuízo, se arguida e procedente, da remoção do cabeça de casal, por negligência na falta de relacionação, ou, sendo caso disso, do disposto no art. 1093.º do CPC (in “Do Inventário”, 8.ª edição revista e actualizada, Almedina, pág. 142).
Todavia, estando a reclamação, inclusive quanto a saldos bancários, por apreciar, a reacção do cabeça de casal de 27/02/2024 às informações bancárias recolhidas no processo, por si – se essa era a ideia do tribunal recorrido -, não se mostra passível de impor à reclamante um pedido daquela natureza. É que ao próprio cabeça de casal, naquela mesma circunstância processual, pendência de reclamação à relação de bens inclusive com prova por produzir, não se exigia necessariamente, sem prévia decisão judicial nesse sentido, alterar a relação de bens que tinha apresentado. Isso mesmo se depreendia do despacho de 26/09/2023 que ordenou o desentranhamento de uma anterior relação de bens corrigida, com a indicação de que, após a inquirição das testemunhas então admitidas, a designar após conclusão de outras diligências probatória, seria determinada eventualmente a junção aos autos de relação de bens definitiva.
Convoca-se, cremos que com interesse, o acórdão da RE de 9/02/2023 (Proc. 2312/20.8T8PTM.E1; rel. José António Moita), em que se pode ler que: “o não cumprimento, ou cumprimento meramente parcial, do que for exigido legalmente ao cabeça-de casal apresentar no processo de inventário para o instruir adequadamente pode dar origem à aplicação de uma sanção e até à remoção do mesmo, se for requerida, ao abrigo do disposto no artigo 2086.º, n.º 1, do Código Civil, mas não à deserção da instância. Neste sentido se pronunciaram Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1.º, 4.ª edição, 2018, Almedina, pág. 573), na seguinte passagem: “A deserção da instância não tem lugar perante a omissão […], dum puro dever de colaboração (distinta da omissão da prática dum ato da parte destinado ao exercício dum seu direito).” Também seguindo essa linha orientadora se pronunciou o acórdão deste mesmo Tribunal da Relação de Évora de 24/01/2018, Proc.º 1393/12TBOLH.E1, relator Francisco Matos, acessível para consulta in www.dgsi.pt, citado por Lebre de Freitas e Isabel Alexandre na obra acima identificada, transcrevendo-se do mesmo a seguinte passagem: “[…] a negligência das partes em impulsionar o processo para efeitos de deserção da instância (artigo 281.º, n.º 1, do CPC) resulta do não cumprimento de procedimentos destinados ao exercício de um direito e, como tal, não se configura nos casos em que a falta de impulso processual comporta a omissão dum puro dever de colaboração processual imposto pelo juiz com observância da lei”. (in www.dgsi.pt).
Não se nos afigura, pois, que o regular andamento do presente processo dependesse em exclusivo de qualquer acto ou comportamento processual do cabeça de casal (ou da reclamante) e, como tal, inexistindo fundamento para a deserção da instância por falta de impulso processual das partes, julga-se procedente o recurso e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida e determina-se que os autos prossigam os seus normais termos conforme for de lei.
Custas do recurso nos termos que vierem a final a ser determinados no processo (art. 527.º, n.ºs 1 do CPC).
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em, julgando procedente o recurso, revogar a decisão recorrida e em determinar que os autos prossigam os seus normais termos conforme for de lei.
Custas do recurso nos termos que vierem a final a ser determinados no processo.
Notifique.

Porto, 10/2/2025
Carla Fraga Torres
Fernanda Almeida
Eugénia Cunha