Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ACEITAÇÃO DA HERANÇA
ACEITAÇÃO TÁCITA
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
INSOLVÊNCIA DOLOSA
REPÚDIO DA HERANÇA
Sumário
(Da responsabilidade da relatora (art. 663.º, nº7 do CPC)).
1. O exercício do direito de suceder concretiza-se quer por via do repúdio, quer da aceitação, configurados como negócios jurídicos unilaterais, consubstanciando atos singulares, pessoais, não recetícios e irrevogáveis: a aceitação da herança pode ser expressa ou tácita, devendo revestir a forma escrita se for expressa (art.º 2056.º do Cód. Civil).
2. A aceitação da herança está sujeita aos critérios de interpretação dos negócios jurídicos a que aludem os arts. 236.º a 238.º do Cód. Civil; sendo a declaração tácita, a mesma deve emergir de factos que com toda a probabilidade a revelem (art.º 217.º, n.º 1, parte final do Cód. Civil), ponderando o sentido normal da declaração (art.º 236.º, n.º 1 do mesmo diploma) ou seja, pressupõe uma ilação segundo a concludência concreta do comportamento.
3. Optando o apelante por aceitar a habilitação como herdeiro de sua mãe (proposta afetada), passando a intervir no incidente de qualificação da insolvência de forma ativa, aqui fazendo valer as suas posições, em ordem à proteção dos bens que compõem a herança – deduziu oposição e participou na audiência de julgamento, em que viu produzida a prova por si requerida – quis aceitar essa herança, agindo como titular da mesma e exteriorizando essa vontade por via da referida atuação processual, sendo essa a perceção que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, deduziria do seu comportamento, nomeadamente os demais intervenientes no processo de insolvência, mormente os credores sociais a favor de quem é fixada a indemnização.
4. Operando-se a aceitação tácita da herança, a irrevogabilidade desse ato (art.º 2061.º do Cód. Civil) torna ineficaz e juridicamente irrelevante o repúdio da herança feito posteriormente pelo mesmo herdeiro, por via da outorga da escritura pública 08-07-2024, isto é, já depois da prolação e comunicação da sentença proferida pelo tribunal de 1ª instância nestes autos de qualificação da insolvência, claramente para obviar aos efeitos desta.
Texto Integral
Acordam as Juízas da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa
I. RELATÓRIO
1. Nos presentes autos de qualificação da insolvência, veio o Administrador de Insolvência (AI) da sociedade devedora D…, Unipessoal, Lda., requerer a abertura do incidente de qualificação de insolvência, juntando as alegações e concluindo pela qualificação da insolvência como culposa; indica as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, a sua atual gerente, RA, nomeada em 7 de setembro de 2022, bem como a anterior gerente, MS, nomeada em 19 de março de 2015.
Por despacho proferido em 31-03-2023, o incidente de qualificação foi declarado aberto.
Em 04-04-2023 os autos foram com vista ao Ministério Público, que pugnou pela verificação dos pressupostos plasmados nas alíneas h) e i) do n.º 2 e a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE e, em consonância, pela qualificação da insolvência como culposa, sendo abrangidas por tal qualificação as gerentes RA e MS.
2. Em 12-04-2023 determinou-se a notificação da insolvente e a citação das qualificandas, RA e MS, para se oporem ao pedido, com a cominação de que a falta de oposição implicará a confissão dos factos que lhes são imputados pelo AI.
RA não deduziu oposição.
3. Demonstrado nos autos o óbito da qualificanda MS em 04 de junho de 2023, foi determinada a suspensão da instância por despacho proferido em 23-10-2023 e ao abrigo do disposto no artigo 269.º, n.ºs 1, alínea a) e 3, a contrario, do CPC.
Em 25-10-2023 o Ministério Público requereu a habilitação de LS e RS, ora apelante para, na qualidade de únicos herdeiros e sucessores da falecida MS, prosseguirem os termos da causa no lugar desta, o que deu origem ao apenso D.
Citados os requeridos, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 292.º, 293.º, 2, e 352.º, 1, do Código de Processo Civil, apenas LS contestou a ação, em 20-11- 2023, pedindo a sua absolvição do pedido por procedência da exceção da sua ilegitimidade passiva, alegando para tanto que, apesar de filho e herdeiro de MS, repudiou a herança através de escritura pública, documento que juntou.
Em 28-01-2024 foi proferida sentença, julgando a instância extinta por impossibilidade superveniente da lide quanto ao requerido LS, e julgando o incidente de habilitação procedente, por provado, quanto a RS, tendo o mesmo ficado habilitado a prosseguir nos autos de qualificação de insolvência no lugar de MS.
Decisão que foi notificada aos intervenientes processuais por comunicação de 30-01-2024, nomeadamente ao apelante.
4. Transitada em julgado a decisão proferida em 28-01-2024 no apenso D (habilitação de herdeiros), foi declarada nestes autos, em 04-03-2024, cessada a suspensão da instância e determinada a notificação do habilitado, RS para, querendo, se opor ao requerido, no prazo de 15 dias, com a cominação de que a falta de oposição implica a confissão dos factos.
Em 22-03-2024 o requerido, RS, deduziu oposição, pugnando pela improcedência do pedido, por ser manifestamente infundado em face da inexistência de situação de insolvência culposa.
Para tanto alegou o oponente em síntese:
1. Constituem factos indiciários que a sociedade não tem contabilidade organizada, uma vez que os IES de 2019 e 2021 não foram validados, sendo que a morada da sede não corresponde a instalações físicas, operando nesse local outra empresa;
2. Todavia, estes factos indiciários não correspondem integralmente à verdade e necessitam de ser contextualizados;
3. Até ao momento em que MS foi gerente da sociedade, esta possuía instalações físicas, que eram arrendadas;
4. Na sequência da cedência de quotas para a atual sócia e gerente, RA, aquelas instalações foram entregues ao senhorio;
5. Em 07 de setembro de 2022, a nova sócia e gerente, RA, decidiu mudar de instalações;
6. A sócia e gerente RA recebeu, com a transmissão de quotas, a carteira de clientes e todo o imobilizado da empresa, que consistia em mobiliário de escritório num valor estimado de 1.000,00€, e em máquinas de limpeza num valor estimado de cerca de 9.000,00€;
7. Não resulta do relatório emitido pelo Administrador de Insolvência que diligências foram efetuadas para contactar a sócia e gerente RA;
8. Desconhece que até ao momento da sua morte, MS tenha sido contactada pelo administrador de insolvência;
9. O administrador de insolvência não esclarece se tentou entrar em contacto com as gerentes registadas na sociedade para as moradas das suas residências;
10. Não é o simples facto de existir uma dívida a uma trabalhadora desde 2019, que significa que a insolvência da sociedade deva ser considerada culposa;
11. Até porque sempre créditos da ex-trabalhadora estariam salvaguardados, através da penhora de bens, tendo em conta que entre 2019 e 2022, ou seja, no âmbito da gerência de MS, a sociedade tinha atividade aberta e tinha imobilizado;
12. Ao contrário do que é dado a entender pelo Administrador de Insolvência, nunca houve falta de colaboração, até porque não resulta sequer demonstrado que tenha tentado contactar MS para a sua morada pessoal;
13. A área de atividade da empresa insolvente sempre foi caracterizada por ser irregular;
14. Em Portugal, se atentarmos ao critério da insolvência técnica, mais de 50% das sociedades preencherão tal requisito, não sendo este, por si só e sem mais elementos cabais e concretos, suficiente para aferir a qualificação de insolvência;
15. Em face do exposto, é notório que as premissas nas quais o Administrador de Insolvência se baseou para deduzir o presente incidente, pecam pela falta de pesquisa e de rigor na obtenção de elementos e informações, demonstrando a negligência grosseira com que atuou, não existindo elementos probatórios bastantes que indiquem que a insolvência da sociedade requerida é culposa.
Arrolou prova testemunhal e requereu as suas declarações de parte.
5. Em 05-05-2024 foi proferido despacho dispensando a realização de diligência com vista à realização de tentativa de conciliação, mais tendo sido proferido despacho saneador e despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Em 04-06-2024 realizou-se a audiência de julgamento, com a presença, nomeadamente, do apelante e do seu mandatário judicial, com produção de prova (prestação de declarações de parte pelo apelante, inquirição da testemunha arrolada pelo apelante e prestação de depoimento pelo administrador da insolvência).
Após o que, em 26-06-2024 foi proferida a decisão recorrida, com o seguinte segmento dispositivo:
“VI. Decisão
Pelas razões de facto e de direito supra exposta, julgo o presente incidente procedente e, em consequência:
1º Qualifico como culposa a insolvência de D…, Unipessoal, Lda., pessoa colectiva n.º …, com sede na … Almada.
2º Julgo afectados por esta qualificação:
a) A sócia-gerente da insolvente, RA, contribuinte fiscal n.º (…), com residência fixada na sentença que decretou a insolvência, na (…);
b) O habilitado, RS, contribuinte fiscal n.º (…) e residente na.
3º Decreto a inibição da afectada RA para administrar patrimónios de terceiros, pelo período de três anos a contar do trânsito em julgado desta sentença – cf. artigo 189.º, 2, b);
4º Decreto a inibição da afectada RA para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de três anos a contar do trânsito em julgado desta sentença – artigo 189.º, 2, c);
5º Determino a perda de quaisquer créditos que os afectados, RA e RS, detenham sobre a insolvente ou sobre a massa insolvente e, caso já tenham recebido esses créditos em pagamento, condeno-os a restituí-los – artigo 189.º, 2, d);
6º Condeno solidariamente os afectados, RA e RS, a indemnizarem os credores da devedora declarada insolvente, no montante dos créditos não satisfeitos e até à força dos respectivos patrimónios – artigo 189.º, 2, e).
*
Custas do incidente pelos afectados pela qualificação, nos termos do artigo 303.º, sendo 2/3 a cargo de RA e 1/3 a cargo de RS, fixando-se a taxa de justiça em três unidades de conta.
*
Notifique.
*
Proceda à comunicação a que alude o n.º 3 do artigo 188.º, nos termos e para os efeitos ali previstos”. Sentença notificada aos intervenientes processuais por comunicação de 27-06-2024.
6. Não se conformando, o habilitado RS apelou, formulando as seguintes conclusões: “1) O presente recurso é interposto da decisão que condena o aqui Recorrente ao pagamento solidário das dívidas até ao limite do que recebe da herança da sua mãe. 2) Todavia, o Recorrente ainda que primeiro momento não tenha contestado a sua posição como habilitado, tal não significa a aceitação expressa da herança e nessa medida, não poderá, face ao repúdio da herança, ser condenado nos presentes autos. 3) O Recorrente não aceitou a herança da sua mãe, tendo procedido ao repúdio da mesma, conforme escritura que se junta e se dá por integralmente reproduzida. 4) O acórdão de 11 de Maio de 2010 (Processo n.º 2431/07.6TBVIS-B.C1) Incidente da habilitação – Ausência de contestação – Posterior repúdio pelo habilitado “No incidente da habilitação apenas se averigua se o habilitando tem as condições legalmente exigidas para substituir uma pessoa no processo e, para com ele, a causa poder prosseguir. Nessa habilitação não se exige a aceitação da herança do habilitando e o facto deste ser habilitado não determina o reconhecimento da aceitação tácita da herança, permitindo que mesmo depois da habilitação o habilitado que a não contestou possa vir a repudiar a herança.” 5) Assim, deverá o Tribunal ad quem revogar parcialmente a sentença proferida, absolvendo o aqui Recorrente dos efeitos da declaração de insolvência culposa da sociedade insolvente. Termos em que deverá ser revogado o decidido pelo Tribunal a quo, por todos os motivos supra expostos, e o presente recurso deve ser julgado procedente com todas as devidas e legais consequências.”
Com as alegações de recurso junta um documento, alusivo a escritura pública outorgada em 08-07-2024.
O Ministério Público apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões: I - Até à prolação de sentenças e no decurso dos trâmites processuais do incidente de qualificação de insolvência e da apensa habilitação de herdeiros, nunca o habilitado e ora recorrente quis invocar ou demonstrar tacitamente o repúdio de herança da requerida MS. II – Tendo o habilitado e ora recorrente agido processualmente no incidente de qualificação de modo demonstrativo da aceitação tácita da referenciada herança (nº 2 do art.º 2056.º do Código Civil), e sendo essa aceitação irrevogável (art.º 2061º do Código Civil), mostra-se ineficaz o superveniente acto de repúdio da herança. III - Assim, efectuando um correcto enquadramento fáctico-jurídico e considerando verificados os pressupostos das alíneas h) do nº 2 e das alíneas a) e b) do n.º 3, do artigo 186º do CIRE, o Tribunal a quo ao qualificar como culposa a insolvência de D… Lda, e ao julgar afectados com tal qualificação a gerente RA e o habilitado, RS, fixando responsabilidade indemnizatória com equidade, não violou qualquer norma jurídica. Por tudo o exposto, a douta sentença recorrida, não merece qualquer reparo, pelo que, negando provimento ao recurso e mantendo a douta decisão recorrida, VOSSAS EXCELÊNCIAS FARÃO COMO DE COSTUME JUSTIÇA”.
Cumpre apreciar.
II. FUNDAMENTOS DE FACTO
Para além da factualidade dada por assente na sentença recorrida, que não foi objeto de impugnação pelos intervenientes processuais, não se justificando igualmente qualquer alteração, razão pela qual esta Relação remete para a mesma (art.º 663.º, n.º 6 do CPC), dá-se ainda como assente a seguinte factualidade:
1. Por escritura pública outorgada em oito de julho do ano de dois mil e vinte e quatro, no Cartório Notarial sito em Almada, e denominada de “REPÚDIO DE HERANÇA”, compareceu como outorgante RS divorciado. natural da freguesia de Funchal (Santa Luzia), concelho de Funchal, nascido a quinze de dezembro de mil novecentos e sessenta e dois, filho de FS e de MS, residente na Rua (…), portador do cartão de cidadão (…), válido até 02 de fevereiro de 2031, que declarou:
“- Que tem dois descendentes.
- Que, pela presente escritura, repudia a herança de sua mãe, MS que também usava MS, natural da freguesia de Funchal (Santa Maria Maior), concelho de Funchal, falecida em quatro de Junho de dois mil e vinte e três, na união das freguesias de Almada, Cova da Piedade, Pragal e Cacilhas, concelho de Almada, no estado de viúva de FS, a qual teve a sua última residência habitual na (…)”.
*
A factualidade indicada está provada pelo documento (autenticado) junto pelo apelante com as alegações de recurso, considerando que os apelados não questionaram a genuinidade do documento e ponderando o disposto no art.º 370.º do Cód. Civil. Pese embora o apelante nem sequer tenha cuidado de justificar a junção do documento apenas na fase do recurso, temos por evidente a sua superveniência objetiva e a sua relevância para a apreciação do recurso, atento o seu objeto, que passamos a identificar (arts. 423.º, 425.º e 651.º, n.º 1 do CPC, aplicáveis aos autos ex vi do disposto no art.º 17.º, nº1 do CIRE)
III. FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635.º e 639.º do CPC – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5.º, nº3 do mesmo diploma.
No caso, impõe-se apenas apreciar da eficácia do ato de repúdio da herança protagonizado pelo filho de uma das propostas afetadas pela qualificação da insolvência nas situações, como a que aqui se apresenta, em que esse ato foi praticado depois do habilitado ter tido intervenção no processo e de lhe ter sido comunicada a sentença proferida nos autos de qualificação.
2. Aberta a sucessão, no momento da morte do seu autor, são chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis (vocação) (arts. 2031.º e 2032.º do Cód. Civil, diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem); “[o] direito de suceder é um verdadeiro direito subjetivo”, “[a] aceitação ou o repúdio da sucessão extinguem-no, mas isso devido justamente ao seu exercício. O carácter instrumental em nada prejudica a sua qualificação como um direito subjectivo. // Que o direito de suceder é um elemento adquirido na esfera jurídica do chamado torna-se muito claro se analisarmos as variações subjectivas a que está sujeito” [ [1] ].
O exercício desse direito (de suceder) concretiza-se quer por via do repúdio, quer da aceitação, configurados como negócios jurídicos unilaterais, consubstanciando atos singulares, pessoais, não recetícios e irrevogáveis [ [2] ].
O repúdio da herança está sujeito à forma exigida para a alineação da herança (art.º 2063.º); a aceitação da herança pode ser expressa ou tácita (art.º 2056.º, n.º 1), devendo revestir a forma escrita se for expressa (n.º 2 do mesmo artigo).
Quanto à aceitação tácita, o legislador não delimitou conceptualmente essa noção, mas tipificou a relevância de alguns atos, quer no sentido negativo, quer positivo. Assim:
- Os atos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança (n.º 3 do art.º 2056.º);
- Não importa aceitação a alienação da herança, quando feita gratuitamente em benefício de todos aqueles a quem ela caberia se o alienante a repudiasse (n.º 1 do art.º 2057.º);
- Entende-se que aceita a herança e a aliena aquele que declara renunciar a ela, se o faz a favor apenas de algum ou alguns dos sucessíveis que seriam chamados na sua falta (n.º 2 do art.º 2057.º).
Constituindo a aceitação da herança um negócio jurídico (unilateral) como já se referiu, está sujeita aos critérios de interpretação dos negócios jurídicos a que aludem os arts. 236.º a 238.º. A aceitação expressa da herança não suscitará, em princípio, especial dificuldade, impondo-se que a mesma resulte claramente do documento que a corporiza (art.º 238.º). Sendo a declaração tácita, a mesma deve emergir de factos que com toda a probabilidade a revelem (art.º 217.º, n.º 1, parte final), ponderando o sentido normal da declaração (art.º 236.º, n.º 1) ou seja, pressupõe uma ilação segundo a concludência concreta do comportamento.
“Ora, “concludência” significa que se pode tirar uma conclusão a partir de algo. (…) Já referimos que a ilação é aqui realizada a partir dos chamados “factos concludentes”. Estes são aqueles factos a partir dos quais, de acordo com o critério interpretativo, se pode concluir uma declaração tácita – podem, portanto, ser todos os que se devem considerar do ponto de vista hermenêuticamente relevante, sejam eles positivos ou negativos, desde que sirvam para constituir uma “impressão do destinatário” no sentido da existência de uma declaração tácita e que não se trate de símbolos integrantes de uma linguagem (pois então a declaração seria expressa)” [ [3] ] [ [4] ]. Em todo o caso, como refere Menezes Cordeiro, “[a] presença, sempre viável, de declarações tácitas não deve conduzir a uma hipertrofia da vontade. Há, assim, de combater uma tendência sempre presente para explicar fenómenos jurídicos questionáveis com recurso a “declarações tácitas”: só é legítimo descobrir declarações negociais, ainda que tácitas, quando haja verdadeira vontade, dirigida aos efeitos e minimamente exteriorizada, ainda que de modo indirecto” [ [5] ].
Por último, estamos perante atos (aceitação e repúdio) que são irrevogáveis (arts. 2061.º e 2066.º).
Presente o regime legal e assentando-se que, no caso, nenhum interveniente processual invocou ter ocorrido qualquer ato consubstanciando uma aceitação expressa da herança de sua mãe, por parte do apelante, há que indagar se o quadro factual apontado suporta a afirmação de existência de elementos que, por um juízo de inferência, permitem concluir que o apelante aceitou tacitamente essa herança. Para o efeito, acentua-se a seguinte dinâmica que o processo evidencia:
- MS (proposta afetada) faleceu em 04-06-2023, ou seja, na pendência do processo – recorde-se que o despacho que declarou aberto o incidente de qualificação foi proferido em 31-03-2023;
- Foi tramitada a habilitação dos herdeiros desta, tendo sido citado o apelante para os termos do incidente respetivo; foi proferida decisão, em 28-01-2024, julgando o apelante como habilitado a prosseguir nos autos de qualificação de insolvência no lugar de sua mãe;
- Seguidamente, nos autos de qualificação, o apelante tem intervenção desde 22-03-2024, deduzindo oposição, nos moldes a que supra se aludiu, acompanhando a tramitação do processo, tendo sido notificado da sentença (condenatória) proferida, por comunicação de 27-06-2024.
Afigura-se-nos que o circunstancialismo aludido evidencia que o apelante, ao optar por aceitar a habilitação como herdeiro de sua mãe passando a intervir no incidente de qualificação da insolvência de forma ativa, aqui fazendo valer as suas posições, em ordem à proteção dos bens que compõem a herança – deduziu oposição e participou na audiência de julgamento, em que viu produzida a prova por si requerida –quis aceitar essa herança, agindo como titular da mesma e exteriorizando essa vontade por via da referida atuação processual, sendo essa a perceção que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, deduziria do seu comportamento (cfr. os arts. 217.º, n.º 1 e 236.º, n.º 1), nomeadamente os demais intervenientes no processo de insolvência, mormente os credores sociais, a favor de quem é fixada a indemnização. Salienta-se que, em face do óbito da proposta afetada, quanto a esta, o incidente de qualificação só seguiu termos, agora com o herdeiro habilitado, com vista a apreciar e decidir da fixação das medidas previstas no art.º 189.º, n.º 2, alíneas d) e e) do CIRE, isto é, medidas de cariz patrimonial, que apenas têm um reflexo direto no património do de cujus, composto pelos bens da herança, o que o apelante não desconhece.
Conclusão que ainda mais se evidencia no contexto do processo, pela particularidade do seu comportamento, face ao do seu irmão, que teve pronta intervenção no incidente de habilitação para invocar que repudiou essa herança, arguindo a sua falta de legitimidade, razão pela qual foi julgado habilitado como herdeiro da falecida exclusivamente o ora apelante, que foi notificado dessa decisão, tendo tido conhecimento do seu conteúdo passando, a partir daí, a ter intervenção direta no processo de qualificação, assumindo-se, pois, como o único herdeiro de sua mãe: o acento tónico deve centrar-se, pois, não no que sucedeu nesse incidente de habilitação em que o apelante, citado, omitiu intervenção, mas no que se passou na sequência do mesmo e depois de proferida a decisão de habilitação, pelo que não tem cabimento a argumentação exposta pelo apelante, mormente os arestos que convoca; esta Relação não põe em crise o entendimento jurisprudencial de que a mera habilitação de herdeiros, seja por escritura notarial, seja judicialmente, per se, não configura ato suficiente para incorporar a aceitação tácita da herança, exatamente porque não é esse o caso dos autos, não se cuidando aqui de aplicar esse parâmetro de avaliação [ [6] ] [ [7] ]. Ao invés, aceitamos que, como indicado no acórdão do TRL de 02-12-2021, “[a] habilitação incidental, sem oposição pelos habilitados, apenas terá relevância demonstrativa de aceitação da herança se for acompanhada de outras atuações que revelem, com toda a probabilidade, a aceitação da herança” [ [8] ].
Situação similar à dos autos é, sim, aquela que esteve em apreciação no acórdão do TRG de 01-03-2018, a cujo entendimento aderimos, como resulta do que se expôs, acórdão assim sumariado:
“1. Existindo declaração de aceitação de uma herança, mesmo que tácita, prévia à declaração de repúdio, esta segunda é ineficaz, por força da irrevogabilidade de que goza a declaração de aceitação da herança.
2. Existe aceitação tácita da herança quando o sucessível tem comportamentos que criam uma situação da qual se conclua que com toda a probabilidade aceitou a herança (artigo 217º do Código Civil), sendo esta aferida com os padrões que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento daquele (artigo 236º do Código Civil).
3. A simples não oposição ao incidente de habilitação de herdeiros (tão curto é o prazo para a sua oposição, menor que a concedida no processo próprio para a declaração de aceitação concedido pelo artigo 2049º do Código Civil, aplicável no procedimento a que se refere o artigo 1039º do Código de Processo Civil) não pode desde logo fazer presumir pela aceitação da herança.
4. No entanto, a intervenção ativa em diversos atos processuais na qualidade de herdeiro, a que não é totalmente alheio o tempo decorrido em que este nada faz para afastar a posição jurídica que lhe foi atribuída, por ser diversas vezes chamado nessa qualidade, traduzem para qualquer declaratário normal e de boa-fé a firme convicção que o sucessível aceitou a herança em causa, agindo como titular da mesma” [ [9] ] [ [10] ].
Em suma, ao contrário do que indica o apelante este aceitou, tacitamente, a herança, aceitação que, porque é irrevogável, torna ineficaz e juridicamente irrelevante o ato de repúdio da herança celebrado posteriormente, pela outorga da escritura pública 08-07-2024, isto é, já depois da prolação e comunicação da sentença proferida pelo tribunal de 1ª instância nestes autos de qualificação da insolvência, claramente para obviar aos efeitos desta.
Improcedem as conclusões de recurso.
*
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.
Lisboa, 11-02-2025
Isabel Maria Brás Fonseca
Elisabete Assunção
Renata Linhares de Castro
_______________________________________________________ [1] José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Sucessões, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 161-162. [2] José de Oliveira Ascensão, obr. cit. pp. 395 e 396. [3] Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, 1995, Coimbra, Almedina, p. 752 [4] Como refere Manuel de Andrade “na declaração tácita o comportamento declarativo não aparece como visando directamente – como que de modo frontal – a exteriorização da vontade que se considera declarada por essa forma. Apenas dele se infere que o declarante, em via mediata, oblíqua, lateral, quis também exteriorizar uma tal vontade – ou pelo menos teve consciência disso. Costuma falar-se, a este propósito, em procedimento concludente, em factos concludentes (facta concludentia; facta ex quibus voluntas concludi potest), acrescentando - se que tais factos devem ser inequívocos” (Teoria Geral da Relação Jurídica, 1987, Vol. II, Coimbra, Almedina, p. 132). [5]Tratado de Direito Civil Português, 2007, I, Parte Geral, Tomo 1, Coimbra, Almedina, p. 544. [6] O apelante alude aos seguintes arestos, ainda que, quanto ao segundo, não tenha indicado a Relação que o proferiu: acórdão do TRP de 02-02-2015, processo: 102048/12.7YIPRT.P1 (Relator: Manuel Domingos Fernandes) e o acórdão do TRC de 11-05-2020, processo 2431/07.6TBVIS-B.C1 (Relator: Manuel Capelo) acessíveis in www.dgsi.pt, como todos os demais a que aqui se aludir. [7] Cfr., a esse propósito, o acórdão do STJ de 30-05-2023, processo: 28471/17.9T8LSB.L1.S1 (Relator: Pedro Lima Gonçalves), em que se considerou como segue: “I - Não havendo uma noção clara do que é uma aceitação tácita (a que se refere o art.º 2056.º do CC), deve a mesma recolher-se a partir dos comportamentos do que se arroga a qualidade de herdeiro, a fim de apurar se deles resulta, com grande probabilidade, a evidência de aceitação, sem descurar que mesmo sem aceitação o suposto herdeiro pode praticar certos atos sem que daí decorra a consequência de os mesmos se terem por demonstrativos da aceitação. // II - A jurisprudência do STJ é unânime em considerar que a celebração da escritura de habilitação de herdeiros e participação às Finanças da ocorrência da morte, são atos insuficientes, como atos inequívocos, de aceitação tácita da herança”.
E ainda o acórdão do STJ de 18-04-2006, processo nº 06A719 (Relator: Sebastião Póvoas), em que se considerou como segue: “1) O instituto da aceitação da herança prende-se quer com uma postura íntima do sucessível para com a personalidade e relações com o "de cujus" e também, com mais frequência, com o conjunto de direitos e obrigações inerentes à herança; // 2) A aceitação, como manifestação de vontade positiva, pode ser expressa ou tácita, é irrevogável e, sendo expressa não está sujeita à forma exigida para a alienação da herança; // 3) Quer os actos de administração, quer o cumprimento de obrigações fiscais em sede de imposto sucessório não implicam aceitação tácita; // 4) A declaração do cabeça de casal num inventário em que se elenca como herdeiro traduz uma aceitação expressa ou, pelo menos, permite concluir com tal probabilidade o propósito de adquirir a herança, o que representa aceitação tácita; // 5) As noções de aceitação expressa e tácita devem retirar-se a partir das noções gerais do artigo 217º do Código Civil”. [8] Processo: 1872/18.8T8LRS-B. L1-2 (Relator: Jorge Leal). [9] Processo: 384/17.1.T8GMR-A. G1 (Relator: Sandra Melo). [10] Cfr. ainda o acórdão do TRL de 13-07-2021, processo: 2873/19.4T8SXL.L1-7 (Relator: José Capacete), assim sumariado:
“1. A figura da herança jacente designa o património da pessoa falecida durante o período de crise que decorre entre o chamamento do sucessível e a aceitação efectiva da herança ou legado, ou seja, entre o momento da vocação sucessória e a devolução efectiva dos bens e dos deveres que integram a herança.
2. A aceitação da herança jacente é um negócio jurídico unilateral, não receptício e singular, traduzido na vontade do sucessível adquirir, efectivamente, a herança, estando, por isso, sujeita aos critérios de interpretação dos negócios jurídicos (art.º 236.º, n.º 1, do CC);
3 (...) o que significa que os comportamentos do sucessível têm que criar uma situação que permita concluir, com grande probabilidade, que aceitou a herança, de acordo com o sentido que, segundo os ditames da boa fé e à luz das regras da experiência comum, da lógica das coisas, dos usos sociais, daquilo que é normal acontecer, deles inequivocamente retiraria o homem médio, o bom pai de família, medianamente inteligente e capaz.
4. Assim, deve considerar-se existir aceitação tácita da herança num caso em que, sucessivamente:
a) por morte da de cujus, foi realizada escritura de habilitação de herdeiros;
b) as herdeiras identificadas naquela escritura liquidaram a totalidade de um mútuo celebrado entre a de cujus e uma instituição bancária;
c) tendo a de cujus entregado à pessoa com quem mantinha uma relação amorosa, a quantia que lhe havia sido entregue pelo banco no âmbito do mútuo referido em b), para aquisição, por essa pessoa, de um veículo automóvel, é instaurada contra a dita pessoa acção na qual se pede a sua condenação na devolução de parte daquela quantia”.