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INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESSUPOSTOS
DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
INDEMNIZAÇÃO
Sumário
(Elaborado pela relatora, cfr. art.º 663º, nº 7 do CPC) I - Da verificação dos pressupostos normativos de qualquer um dos tipos qualificadores previstos pelo nº 2 do art.º 186º resulta adquirida, por presunção legal absoluta, a ilicitude do facto, a existência de culpa grave, e o nexo de causalidade entre o facto (ato ou omissão) e a criação ou o agravamento da insolvência, o que inexoravelmente conduz à qualificação da insolvência da devedora como culposa. II – O carácter ruinoso do contrato pressuposto pelo tipo qualificador previsto pela al. b) do nº 2 do art.º 186º é aferido, não por referência à posição dos credores relativamente à devedora e ao negócio por esta celebrado, mas por referência à posição da própria devedora no âmbito do negócio, nos termos em que o mesmo foi celebrado (designadamente, por referências às obrigações por ele geradas a cargo da insolvente em confronto com as obrigações geradas para a outra parte e o benefício que aquela delas retira). III - É por referência aos princípios da garantia patrimonial e do tratamento igualitário dos credores sociais que se impõe entender o alcance dos elementos normativos ‘disposto de bens’ e ‘proveito pessoal ou de terceiros’ que integram o tipo qualificador da insolvência previsto pela al. d) do nº 2 do art.º 186º. IV – Elementos que, perante a ausência de meios da devedora suficientes para proceder ao pagamento da totalidade do passivo vencido, são preenchidos pela celebração de contrato de dação em pagamento que, por natureza, apenas beneficia o credor que dele é parte em detrimento de todos os demais, que ficam afastados da possibilidade de, através do devido rateio e com respeito pela graduação legal de créditos, concorrerem ao produto do objeto da dação. V – A responsabilização patrimonial dos afetados, para além da sua dimensão punitiva intrínseca à moralização do sistema visada pelo incidente da qualificação, assume também uma dimensão de reparação dos credores através da condenação em indemnização cuja quantificação o legislador remeteu para os pressupostos gerais do instituto da responsabilidade civil. VI - A condenação em indemnização tem subjacente a coincidência entre os factos valorados como qualificadores da insolvência como culposa e os factos que fundamentam o quantum da responsabilização patrimonial dos afetados, ou seja, entre o perigo de dano presumido pela norma fundamento da qualificação e o dano concretamente produzido pela criação ou agravamento da situação patrimonial da devedora.
Texto Integral
Acordam as juízas da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa,
I – Relatório
1. No âmbito do processo de insolvência de “C…- Atividades Turísticas e Residenciais, S.A.” em 19.12.2019 o Sr. Administrador da Insolvência (AI) apresentou parecer a que alude o art.º 188º do CIRE, pronunciando-se pela qualificação da insolvência como culposa e indicando como pessoas a afetar A., NIF 12…, na qualidade de administradora de direito da insolvente, e L., NIF 14…, na qualidade de administrador de facto da insolvente.
Alegou, em síntese, que: i) apesar de notificados para o efeito e de terem respondido às notificações, a administradora da insolvente e o respetivo fiscal único não lhe remeteram os elementos contabilísticos da insolvente que permitissem apreender a contabilidade e aferir do seu estado; os únicos elementos de que dispôs foram-lhe fornecidos pelo contabilista certificado da insolvente, e desconhece se existem ativos não sujeitos a registo passíveis de serem inventariados; ii) a insolvente não procedeu ao depósito da prestação legal de contas desde 2013; iii) em 09.01.2015 a insolvente transmitiu um ativo sobre o qual existe penhora inscrita em 20.09.2013 realizada no processo nº 22568/10.3YYLSB do Juiz 9 do Juízo de Execução de Lisboa onde a insolvente aparece na qualidade de executada, transmissão que foi feita de forma simulada porque a compradora, “E… – Sociedade Imobiliária, SA”, e a insolvente, embora apresentem administradores de direito distintos, ao que o AI apurou, partilham o mesmo administrador de facto porque, “quem manda” é o administrador de facto L.; iv) a administradora de direito não respondeu ao solicitado pelo AI e o indicado administrador de facto respondeu nos termos de documento que junta. Concluiu que os indicados atuaram com culpa, agravando a situação patrimonial da insolvente, e dificultando a continuidade e evolução do processo de insolvência. Juntou documentos e indicou testemunhas.
2. Declarada e publicitada a abertura do incidente, o Ministério Publico apresentou parecer concluindo pela qualificação da insolvência como culposa com fundamento legal no art.º 186º, nº 1 e nº 2, als. h) e i) e nº 3, als. a) e b) do CIRE e, indicando como pessoa a afetar a administradora da insolvente, A..
Por parcial decalque do teor do relatório do AI a que alude o art.º 155º do CIRE, alegou, em síntese, que: i) por indicação da administração a insolvente não apresenta contas desde 2014; ii) desde 2014 que a insolvente não exerce qualquer atividade de venda ou de prestação de serviços; iii) todos os anos analisados pelo AI apresentam resultados líquidos do período nulos, exceto em 2014, que apresenta um resultado líquido negativo, nos últimos 3 anos contabilísticos o passivo da insolvente foi sempre superior ao seu ativo, sendo a rubrica “Outras contas a Pagar” responsável pela maior proporção do seu passivo, e verificou-se um gradual crescimento dos Capitais Próprios negativos, que consubstancia situação de falência técnica; iv) o passivo contabilístico da insolvente “encontrava-se desfasado do total das reclamações de créditos apresentadas ao Administrador de Insolvência.”; v) não foi prestada a colaboração necessária a que alude o art.º 83.º n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas porque, apesar de notificada para entregar elementos contabilísticos, a indicada A. não procedeu à entrega dos mesmos apesar de todo o suporte documental da contabilidade estar na posse da administração da sociedade; vi) apesar de a insolvente se encontrar em situação de falência técnica, aquela não a apresentou à insolvência. Remeteu para o relatório elaborado e apresentado nos autos principais pelo AI, e arrolou testemunhas.
3. Notificada a insolvente e citados os indicados nos pareceres do AI e do Ministério Público, não foi deduzida oposição.
4. Ordenada e cumprida a junção dos certificados de registo criminal dos requeridos, foi proferida sentença que decidiu pela qualificação da insolvência como culposa, declarou por ela afetados os indicados A. e L.,e declarou-os inibidos pelo período de três e dois anos, respetivamente, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, e condenou-os a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos até às forças do respetivo património.
5. Inconformado, o requerido L. recorreu da dita sentença, arguindo a sua nulidade por ausência de fundamentação de facto que suporte a sua afetação pela insolvência culposa, recurso que foi conhecido por acórdão deste coletivo de 05.04.2022 que, julgando-o procedente, declarou a nulidade da sentença recorrida no segmento objeto do recurso, correspondente à declaração de afetação do recorrente pela qualificação da insolvência como culposa e à sua condenação nos efeitos elencados sob as als. b), c) e d) do dispositivo, e ordenou a baixa dos autos à 1ª instância para ampliação da matéria de facto atinente com as questões da dação em cumprimento de direito da insolvente sobre imóvel e da imputação da qualidade de administrador de facto da insolvente ao recorrente.
6. Baixados os autos à primeira instância, notificado para o efeito o AI juntou certidão da dação em pagamento ali aludida e reiterou a imputação da qualidade de administrador da insolvente ao requerido L. e, após vicissitudes que não relevam para o presente recurso, o tribunal recorrido proferiu nova sentença que concluiu com o seguinte dispositivo: Pelo exposto, nos termos do disposto nos arts. 189/1 e 2 conjugados com o art.º 191/1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o tribunal qualifica como culposa a insolvência de “C…- ATIVIDADES TURÍSTICAS E RESIDENCIAIS, S.A.”, com os sinais dos autos. a) Declaro afectados pela qualificação os administradores identificados nos autos A. (de direito) e L. (de facto). b) Declaro-os inibidos pelo período de três anos (ela) e dois anos (ele), para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa. c) Determino a perda dos créditos sobre a insolvência e sobre a massa insolvente e condeno-os na restituição dos bens ou créditos já recebidos; d) condeno-o a indemnizar os credores da Devedora no montante dos créditos não satisfeitos até ás forças do respectivo património.
10. É desta sentença que vem interposto recurso pelo requerido L., requerendo a sua revogação e substituição por outra que qualifica a insolvência como fortuita ou, assim não se entendendo, por outra que reajuste o montante indemnizatório ao grau de culpa e responsabilidade do recorrente.
Apresentou conclusões que, não obstante como tal epigrafadas, longe de o serem, apresentam-se prolixas, não cumprindo minimamente o ónus de sintetização imposto pelo art.º 639º, nº 1 do CPC posto corresponderem à quase total reprodução da motivação do recurso, incluindo reprodução de excertos do dispositivo da sentença recorrida. Não obstante a referida deficiente prestação processual da recorrente, que agrava o exercício de depuramento das questões do recurso, é possível identificar as que por ele vêm submetidas a apreciação, razão pela qual não se proferiu despacho de convite ao aperfeiçoamento nos termos do art.º 639º, nº 3 do CPC na medida em que, nessa circunstância, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que o mesmo não tem efeito preclusivo para o recorrente[1].
Suprindo a referida deficiente prestação processual do recorrente para delimitação e identificação das questões objeto do recurso, sintetizam-se as conclusões das alegações de recurso nas seguintes:
i) ausência de elementos para aferir da verificação da situação de insolvência da insolvente pressuposta pela sentença ao concluir pela violação da obrigação de apresentação à insolvência pela afetada;
ii) ausência de prova sobre a capacidade e o conhecimento esclarecido da administradora de direito sobre o putativo estado de insolvência da sociedade;
iii) ausência de suporte factual para o agravamento da situação da insolvência considerado pela positiva pela sentença;
iv) ausência de nexo causal entre o não cumprimento da obrigação de elaborar, submeter à aprovação e depositar as contas anuais da sociedade e a criação ou agravamento “de eventual mas não verificada insolvência.”;
v) inexistência e ausência de suporte para concluir pelo incumprimento reiterado, ou tão só pelo incumprimento, pela administradora de direito, dos deveres de apresentação e de colaboração previstos no art.º 83º do CIRE;
vi) ausência de factos que permitam concluir pela ausência de contabilidade organizada, ou pela manutenção de contabilidade dupla ou fictícia ou com irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
vii) ausência de prejuízo para os credores da celebração da dação em cumprimento do imóvel porque, para além de terem sido impugnados, não perderam a garantia patrimonial existente à data da alienação (uma vez que foi transmitido com a penhora registada em beneficio dos credores C. e E., a credora Associação de Moradores da Quinta … dispõe de garantia ambulatória sobre o prédio que exercerá junto da sua atual proprietária, e o crédito de E…, Ldª não foi reconhecido pelo AI) e, ainda que admitindo a comunicabilidade entre as administrações de facto de ambas as sociedades – alienante e adquirente -, nenhuma prova foi feita de que configura negócio ruinoso, sendo que o valor venal do imóvel seria insuficiente para pagamento dos créditos reclamados que, no total, ascendem a €1.271.626,54;
viii) a condenação em indemnização faz-se de acordo com o grau de culpa e o contributo da conduta para a insolvência ou seu agravamento, e a fixada pela sentença viola o princípio da proporcionalidade posto que a participação do recorrente se resume ao contrato de alienação do ativo da insolvente e essa venda não subtraiu aos alegados credores a garantia dos seus créditos.
11. Foi apresentada resposta ao recurso pelo Ministério Público. Formulou conclusões pelas quais, no essencial, se limitou a enunciar os elementos documentais em que se baseou a decisão recorrida e o dispositivo da mesma.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 5º, nº 1 e 2, 608º, nº 2, 635º, nº 2 a 5 e 639º, nº 1 do Código de Processo Civil, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto do processo e pelas conclusões do recurso, tal qual como o mesmo surge configurado pelas partes de acordo com as questões por elas suscitadas, e destina-se a reapreciar e, se for o caso, a anular, revogar ou a modificar decisões proferidas, e não a criar soluções sobre temas de facto e/ou questões jurídicas que não foram sujeitas à apreciação do tribunal a quo e que, por isso, se apresentam como novas, ficando vedado em sede de recurso a apreciação de novos pedidos e/ou de novas causas de pedir em sustentação do pedido ou da defesa. Acresce que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações mas, conforme já referido, apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos essenciais da causa, e não estando cobertas pela força do caso julgado, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo o tribunal livre na determinação e interpretação das normas jurídicas aplicáveis.
Considerando que a requerida A. não recorreu da sentença e, por isso, não impugnou os factos que lhe são imputados nem censurou a valoração e efeitos jurídicos que dos mesmos foram extraídos pela decisão recorrida, sem prejuízo de outras questões que oficiosamente cumpra conhecer e das que resultem prejudicadas pelo resultado da apreciação de questão precedente, como infra se justifica pelo presente recurso cumpre apenas sindicar:
1. A verificação dos pressupostos legais da insolvência culposa por referência aos factos que fundamentam a decisão de declaração de afetação do recorrente.
2. A adequação da condenação em indemnização nos termos em que foi decretada.
III – Fundamentação de Facto
A) O tribunal recorrido proferiu a seguinte decisão de facto:
“Com interesse para a decisão do presente incidente resulta provado que: 1.A Insolvente “C…- ATIVIDADES TURÍSTICAS E RESIDENCIAIS, S.A.”, com o número de identificação fiscal …, sita em Avenida …. Lisboa, é uma sociedade anonima com o capital social de 1.200.000€, constituída em 19-9-2007, com os seguintes órgãos sociais: • CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO A., NIF: 12…; • FISCAL ÚNICO P… – SROC, NIPC: …; • SUPLENTE DO FISCAL ÚNICO R., NIF: 15…. Forma de obrigar: a) pelas assinaturas conjuntas de dois membros do Conselho de Administração, sendo um deles o presidente; b) pelas assinaturas conjuntas de três membros do Conselho de Administração; c) pela assinatura de um procurador, nos limites específicos da respectiva procuração; d) nos actos de financiamento bancário é obrigatório a assinatura do presidente do Conselho de Administração. Estrutura da administração: exercida por um Conselho de Administração, composto por um máximo de cinco membros ou por um Administrador Único. Estrutura da fiscalização: exercida por um Conselho Fiscal composto por três membros efectivos e um suplente ou por um Fiscal Único. 2.O Único Membro do Conselho de Administração A., exerce funções desde 2014/11/15. 3.A Insolvente foi constituída em 2007/09/19 pelos seguintes órgãos sociais: • L. (Administrador-Executivo), NIF: 14…; • E. (Administrador-Executivo), NIF: 20…; • JA. (Administrador-Executivo), NIF: 20…; • JS. (Administrador), NIF: 11…; • C. (Administrador) NIF: 20…; Por registo de 2012-09-05 mostra-se averbada a CESSAÇÃO DE FUNÇÕES DE MEMBRO(S) DO(S) ORGÃO(S) SOCIAL(AIS) (ONLINE) do membro do CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO L. do cargo de Administrador-Executivo. 4.A Insolvente “C…, S.A” tinha por objeto a promoção, construção, gestão hoteleira, promoção e gestão de residências assistidas simples e medicalizadas, comercialização e gestão de projectos imobiliários. 5.“C…, S.A.” procedeu, pela última vez, ao depósito da prestação legal de contas no ano de 2013. 6 A insolvência foi requerida em 14-12-2017 pelo credor da mesma R., advogado, que prestou serviços à Insolvente. E declarada por sentença de 21-9-2018 sem oposição. 7. No relatório do Administradora de Insolvência, a que se refere o art.º 155º, do CIRE, foram reconhecidos créditos no valor de 1.758.326,37€, nos seguintes termos: a) Associação de Moradores da Quinta …, no valor de 367.380,00 € b) Autoridade Tributária, no montante de 445,33 € c) C., na quantia de 425.123,27 € d) E., no montante de 425.123,27 € e) E…, S.A., no valor de 521.066,50 € f) P., na quantia de 19.188,00 € 8. À data do requerimento da insolvência os credores já haviam penhorado o único bem, património da Insolvente, não havia qualquer trabalhador ao serviço e já não tinha actividade comercial. 9. Nos últimos 3 anos contabilísticos o seu passivo foi sempre superior ao seu activo, sendo a rubrica “Outras contas a Pagar”, responsável pela maior proporção do seu passivo. 10. A actividade da “C… - ATIVIDADES TURÍSTICAS E RESIDENCIAIS, S.A.” encontrava-se paralisada, não sendo registada qualquer venda ou prestação de serviços, desde o ano de 2014. 11. Foram verificados resultados líquidos do período nulos em todos os anos de análise pelo Sr. Administrador de Insolvência, excepto em 2014, que apresenta um resultado de líquido negativo. Registou-se um gradual crescimento dos Capitais Próprios negativos. O activo global é representado apenas por activo corrente. A totalidade do passivo confere à rubrica de passivo corrente, evidenciados nas rubricas Fornecedores, Estado e Outros Entes Públicos, e outros passivos correntes. 12. Não foi possível ao Administrador de Insolvência apurar a cobrabilidade dos créditos sobre clientes e se os incobráveis se encontram devidamente contabilizados. Nem foi possível ao subscritor apurar se a contabilidade encontra-se devidamente organizada. 13. À data da elaboração do relatório a que alude o art.º 155 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas -19-11-2018- verifica-se a inexistência de qualquer actividade comercial da Insolvente, assim como não dispõe de qualquer trabalhador ao serviço. Tendo-se ali concluído que: resumidamente, assiste-se a não existência de condições que permitam antever a continuidade da empresa. 14. Em resultado das buscas efectuadas pelo Administrador de Insolvência signatário junto da Conservatória do Registo Predial, Automóvel e Comercial, não foram identificados como propriedade da insolvente quaisquer bens sujeitos a registo. 15. O activo melhor identificado no Doc. 10 foi transmitido pela Insolvente na data de 2015/01/09, sendo que sobre o mesmo existia a inscrição de uma penhora efectuada a 2013/09/20 no âmbito do processo executivo com o n.º22568/10.3YYLSB, que corre termos no Juiz 9 do Juízo de Execução de Lisboa onde a insolvente aparece na qualidade de executada. Tendo nesse processo executivo posteriormente a tal transmissão, sido efectuadas diversas tentativas de venda, (DOC.11, 12 e 13). 16. Aquando a elaboração do relatório a que alude o art.º 155 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o Administrador de Insolvência emitiu parecer no sentido de que “tal bem deverá integrar a Massa Insolvente com vista à sua liquidação e ao ressarcimento generalizado dos credores da Insolvente, havendo a necessidade para tal de interposição uma acção judicial com vista à anulação de tal negócio. Pelo que, se considera estarem reunidas as condições para que seja decidida a imediata liquidação do activo, nos termos dos artigos 161.º e 162.º do C.I.R.E.”. 17. Nessa ocasião emitiu parecer para qualificar a insolvência como culposa “Face ao incumprimento de não entrega dos elementos contabilísticos e ausência de esclarecimento ao solicitado pelo Administrador de Insolvência; face à realização de negócio Simulado/Indevido do único bem que fora propriedade da insolvente uma vez que o tal bem representava uma garantia patrimonial para os credores, onde os seus créditos já existiriam à data da alienação; sobre o referido bem existe a inscrição de uma penhora efectuada a 2013/09/20 no âmbito do processo executivo com o n.º 22568/10.3YYLSB, que corre termos no Juiz 9 do Juízo de Execução de Lisboa onde a insolvente aparece na qualidade de executada; simulado uma vez que, a compradora “E…– Sociedade Imobiliária, S.A.” e a insolvente “C…- Actividades Turísticas e Residenciais, S.A” partilham o mesmo Administrador de Facto; Isto é, ao que foi possível apurar pelo Administrador de Insolvência , embora ambas as sociedades apresentem Administradores Únicos de Direito distintos, “quem manda” é o Administrador de Facto, L.. NIF: 14…. Tendo já o mesmo Administrador de Facto, “L.”, assumido, funções de Administrador de Direito em ambas as sociedades (DOC. 14 e 15). 18. Tendo tal relação entre empresas, no processo de insolvência singular do Administrador de Facto, L., que corre os seus temos Juiz 18 da Secção Cível de Lisboa sob o número 2335/11.8YXLSB, feito prova, quer no relatório do Administrador de Insolvência (DOC.16), quer na própria sentença de qualificação de insolvência como culposa (DOC.17).” Nesses autos – principais - o ora requerido foi declarado insolvente em 11-6-2012. No apenso de qualificação considerou-se na sentença provado que: “No âmbito do crédito reclamado pelos ora requerentes, o insolvente L., a título pessoal e enquanto representante legal da sociedade “C…, SA” solicitou diversas prorrogações de prazo para o pagamento faseado inicialmente acordado, entre Nov.2009 e Março de 2010, não tendo chegado a pagar qualquer das quantias em dívida, justificando sempre tais impossibilidades de cumprimento atempado com base em severas dificuldades financeiras, conforme consta assente na sentença de declaração da insolvência proferida nos autos principais, nunca tendo ultrapassado tais dificuldades até ao momento da declaração de insolvência.” Mais se tendo ali decidido: “Em face do exposto, declaro culposa a insolvência e ao abrigo do art.º 189º do CIRE, decide-se: (…) 19. Após a prolação do acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 5-4-2022: -Por REFª: 42420590 datada de 30-5-2022, o Sr. Administrador de Insolvência informou que 1. O instrumento da celebração da dação em pagamento em benefício da E…, S.A. tendo como objeto o direito sobre o imóvel apreendido nos Autos (DOC.1). Do documento 1 junto pode ler-se: “Dação em cumprimento No dia 29 de Dezembro de 2014 no Cartório …compareceram a outorgar PRIMEIRO A. (…) outorga como administradora em representação da sociedade comercial anónima com a firma “C…- Actividades Turísticas e Residenciais, SA …SEGUNDO L. (…) outorga como procurador em representação da sociedade comercial anónima com a firma “E… – Sociedade Turística e Imobiliária SA” com sede na Rua …, Av. …, matriculada na CRC de Lisboa. Que foi verificada a identidade e a qualidade dos poderes do primeiro e segundo outorgantes. E pelos mesmos, foi declarado que no dia 30/07/2013 por contrato, promessa de compra e venda a sociedade representada pela primeira outorgante, prometeu vender a sociedade representada pelo ora, segundo outorgante 9147 de 14035 avos do prédio rústico localizado em Pinhal de Frades, freguesia da Arrentela, concelho do Seixal descrito na Conservatória do Registo Predial do Seixal. sob o número … daquela freguesia. Registados os mencionados avos a favor da sociedade, representada pela primeira outorgante conforme inscrição relativa à apresentação número 2310 de 8 de Julho de 2012 inscrito na respectiva matriz da freguesia de Fernão Ferro sob parte do número …, secção J, com valor patrimonial de 101.69 €, sendo o valor atribuído aos mencionados avos de 400.000 EUR. Que a escritura de compra e venda então prometida, devia ter sido celebrada até 20/10/2014. Contudo, por incumprimento de promitente vendedora a escritura não chegou a realizar. Que na data da celebração do referido contrato de promessa de compra e venda a sociedade representada pelo ora segundo outorgante entregou a sociedade representada pela primeira outorgante a quantia de 200.000 EUR como sinal e princípio de pagamento. Que nos termos do mencionado contrato promessa o incumprimento da promitente vendedora dá direito ao pagamento de uma cláusula penal de 400.000 EUR, ou seja, do sinal em dobro. Que para pagamento da referida cláusula penal a ora primeira outorgante em nome da sociedade sua representada dá á sociedade representada pelo segundo outorgante os supra mencionados avos do prédio rústico supra identificado. Que a sociedade representada pela primeira outorgante não possui mais avos no prédio rústico. Que sobre os mencionados avos incide uma penhora registada conforme uma inscrição relativa à apresentação número … de 20/09/2013. Pelo 2.º Outorgante foi declarado que para a sociedade sua representada aceita a presente dação em cumprimento e, em consequência, declara que a referida dívida extinta. E que se destina a presente aquisição a revenda “. Declarando o Administrador de Insolvência no relatório aludido no Ponto 16 supra que tal bem deverá integrar a Massa Insolvente com vista à sua liquidação e ao ressarcimento generalizado dos credores da Insolvente, havendo a necessidade para tal de interposição uma acção judicial com vista à anulação de tal negócio. 20. Os autos prosseguiram para liquidação, tendo sido apreendido o direito a 9147/14035 Avos do Prédio rústico sito na freguesia de Arrentela, concelho do Seixal, descrito na Conservatória …/20090407 N.º …, Livro Nº: … MATRIZ nº: … SECÇÃO Nº: J (PARTE) FREGUESIA: Fernão Ferro RÚSTICO SITUADO EM: Pinhal dos Frades ÁREA TOTAL: 14035 M2 ÁREA DESCOBERTA: 14035 M2 VALOR VENAL: 3.000.000,00 Escudos com a descrição seguinte: Terreno de mato e pinhal. Norte e Nascente – G... - Sul – Rua … - Poente Estrada Nacional nº …. Desanexado do nº…, fls 156, B-37, do Registo Predial do Seixal sob o nº … e inscrito na matriz sob o artigo …, secção J. Encontra-se em curso a acção de anulação da transmissão do prédio apreendido nos Autos, sob o número de processo 1875/21.5T8SXL. Em 22-1-2024 informa o Administrador de Insolvência que aguarda o prosseguimento da acção de anulação da transmissão do prédio apreendido nos Autos, sob o número de processo 1875/21.5T8SXL, a correr termos no Juiz 1 do Juízo Central Cível de Almada. 21. L. foi membro do Conselho de Administração da Insolvente no triénio de 2007 a 2010 e apenas renunciou ao cargo em 2012. 22. A., apesar de notificada para entregar os elementos contabilísticos passiveis de apurar o estado da contabilidade da Insolvente, não procedeu à entrega dos mesmos, apesar de todo o suporte documental da contabilidade estar na posse da administração da sociedade. Não foi possível ao Administrador de Insolvência proceder à análise dos elementos contabilísticos embora tenham sido notificados a Insolvente a Administradora da Insolvente assim como o seu Fiscal Único para lhe remeterem, os elementos contabilísticos passíveis de apurar o estado da contabilidade da Insolvente (DOC.1, 2 e 3). Apesar notificada no despacho de insolvência, a Administradora da insolvente não procedeu à entrega dos elementos contabilísticos que permitissem a efectiva apreensão da contabilidade. A Administradora da Insolvente como o seu Fiscal Único, responderam aos ofícios do subscritor, embora não tenham prestado uma única informação acerca do peticionado pelo Administrador de Insolvência (DOC. 4 e 5). A Administradora da Insolvente informou que era sua pretensão remeter a documentação no prazo de 15 dias, não tendo o Administrador de Insolvência até à data da elaboração ás alegações de qualificação que dá início ao presente incidente recepcionado quaisquer elementos. No caso do Fiscal Único o mesmo informou que nunca havia recepcionado quaisquer elementos contabilísticos para a emissão da correspondente Certificação Legal de Contas, e que não conseguia estabelecer contactos com a referida Sociedade. 23. A Insolvente não procede ao Depósito da Prestação Legal de Contas desde o ano de 2013 (DOC.6) Os únicos elementos contabilísticos fornecidos que o subscritor dispôs, foram fornecidos pelo Contabilista Certificado da Insolvente, Sr. Dr. P., o qual alertou o subscritor de que todo o suporte documental estaria na posse da Administração da Insolvente (DOC.7). 24. O Administrador de Insolvência, desconhecia a efectiva existência de activos não sujeitos a registo passiveis de serem inventariados, podendo ser imobilizado, inventários e/ou saldos de clientes. 25. Em 30-5-2022 o Sr. Administrador de Insolvência mais informa os presentes autos de que junta: Informação prestada pelos credores quanto à gerência de facto da Insolvente (DOC.2). Do teor do doc 2 - um e-email enviado por RR. e dirigido a geral…. datado de 13-11-2018 - consta o seguinte texto: “Exmo. Sr. Administrador da Insolvência, Dr. PP., espero que o presente email o encontre bem Após conferência com o seu colaborador, Sr. ricardo, o qual também contatou diretamente os meus constituintes, em concreto o Sr. C. e o seu pai, Sr. JA., foi-me solicitado que levasse ao seu conhecimento um conjunto de factos que poderão ajudá-lo a tomar decisões no presente processo de insolvência.//Ora, os meus constituintes, C. e E., há muito que conhecem a sociedade c..., como facilmente constatará pelo teor dos documentos juntos com as suas reclamações de créditos.//A pessoa por trás da C… é o Sr. L., o qual foi declarado insolvente e cuja insolvência de pessoa singular foi considerada culposa, este processo corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Cível de Lisboa - Juiz 18 sob o n.º 2335/11.8YXLSB.//O Administrador da insolvência é o Dr. B..//No que à C... diz respeito os meu constituintes tinham, até à declaração da insolvência, em curso uma ação executiva que se encontrava na fase de venda de bens.//Neste processo executivo houve desde embargos a recursos e tivemos sempre sucesso na causa.//O bem aqui em causa são os "avos" que se encontram a delimitar o hotel, propriedade do BCP, e que terão sido recentemente murados, desconhecendo-se por quem.//A penhora encontra-se há muito registada e posteriormente, a c... efetuou uma dação em cumprimento à E..., tendo a mesma ficado registada, mesmo após a nossa penhora.//Ora é de extrema importância que se proceda à resolução em benefício da massa insolvente deste negócio.//Conseguiremos provar os requisitos e estamos dentro do prazo dos dois anos.//Até para que saiba anteriormente à ação executiva houve inclusive uma impugnação pauliana sobre o mesmo bem, onde também tivemos sucesso. (sentença em anexo). Acredito que para iniciar as suas diligências já tem bastante informação, estando ao dispor para qualquer esclarecimento adicional que entenda necessário, //Melhores cumprimentos, Atenciosamente RR. Sócia| Partner”. 3. Mais informa que a insolvente não presta contas desde 2014 junto da Administração Tributária, conforme email do técnico de contas (DOC.3), não forneceu qualquer elemento ao ultimo Revisor Oficial de Contas nomeado para o quadriénio de 2012 a 2015, conforme email que se anexa (DOC.4), sendo o único ato concreto possível de apurar nos 3 anos que antecedem o inicio do processo de insolvência, a dação em pagamento referida no ponto 1, na qual o gerente de facto L. surge como procurador da de E…, S.A.”. 26. O ora Requerido, declarado insolvente nos autos aludidos sob o ponto 18 supra, L. assumiu para com os ali requerentes a obrigação de pagar num curto prazo a quantia de 500.000,00€ como contrapartida pela compra de acções da sociedade "C..., S.A.". Concluiu então o Administrador de Insolvência que 500.000,00€ é uma verba de valor bastante elevado e em regra pouco acessível mesmo para aqueles que lidam com muito capital alheio, e ali se considerou que na sociedade "C...- Actividades Turísticas e Residenciais, S.A., pessoa colectiva n.º … o insolvente L., é presidente do conselho de administração e segundo os elementos do processo é detentor da totalidade do capital social (Doc.7). 4.Motivação A convicção do Tribunal baseia-se quanto aos factos acima dados como provados, na análise conjunta e conjugada á luz das regras de experiência comum e bom senso dos seguintes elementos de prova: por falta de contestação no reconhecimento dos factos equivalente a confissão por força da previsão patente do art.º 136/1/1.ª parte, 5 e 6 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas por via do disposto no art.º 188/8 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas; com base nos documentos já juntos a este apenso e processo principal e elementos integrantes, mormente a sentença, as certidões de registo comercial e predial, os documentos do processo executivo mencionado supra, bem como no relatório elaborado pelo Administrador de Insolvência nos termos do art.º 155 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas junto em 19-11-2018 aos autos principais e respectivos anexos. Em concreto, os factos enunciados sob os n.1 a 5 e 21 emergem do teor da certidão comercial junta aos autos principais. Decorre do teor da petição inicial e da sentença proferida nos autos principais o facto 6. Os factos dados como provados sob os pontos 7 a 26 decorrem do teor do no relatório elaborado pelo Administrador de Insolvência nos termos do art.º 155 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas junto em 19-11-2018 aos autos principais e respectivos anexos, mormente da sentença de qualificação de insolvência do ora Requerido O art.º 20 decorre do teor dos apensos de apreensão e liquidação.
B) Ampliação oficiosa da decisão de facto
Anota-se que, não obstante o teor do acórdão proferido no âmbito destes autos em 22.05.2022, tirado por unanimidade do coletivo, o tribunal a quo ignorou a alteração por aquele expressamente determinada à decisão de facto (substituição do teor do ponto 15 por outro) e, a que integra a sentença ora sob recurso, mantém irregularidades da natureza das ali apontadas – para além da repetição de factos, a inclusão de dados processual e materialmente irrelevantes na apreciação de mérito, designadamente, a descrição do consignado pelo AI no relatório do art.º 155º do CIRE e no parecer sobre a qualificação da insolvência (pontos 16 e 17), a ‘cópia’[2] de pontos de facto e da decisão de sentença de qualificação da insolvência proferida no processo de insolvência singular do recorrente (ponto 18), a transcrição de comunicação escrita de credores endereçada ao AI com o propósito, ali declarado, de levar ao conhecimento deste “um conjunto de factos que poderão ajudá-lo a tomar decisões no presente processo de insolvência”, mais solicitando ao AI que proceda à resolução da dação do imóvel da insolvente em benefício da massa insolvente (ponto 25); e a inclusão de juízos conclusivos extraídos do relatório do AI previsto no art.º 155º do CIRE (segunda parte do ponto 26).
Sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, prevê o art.º 662º do CPC que, 1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.//2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…); c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; (…). Da conjugação dos arts. 662º nºs 1 e 2, al. c) e 663º, nº 2 do CPC resulta que os poderes cognitivos da Relação em matéria de julgamento de facto abrangem o poder-dever de proceder ex offício a ampliação da matéria de facto necessária ou pertinente à boa decisão do mérito da causa caso do processo constem elementos que o permitam ou, assim não sucedendo, anular a sentença para permitir a ampliação da matéria de facto que se revele indispensável à decisão da causa.
Neste desiderato prevê o art.º 412º, nº 2 do CPC que não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções, e mais dita o princípio da aquisição processual previsto pelo art.º 413º do CPC que todos os elementos de prova trazidos ao processo com relevo para a decisão devem ser tomados em linha de conta pelo julgador, independentemente de terem ou não emanado da parte que devia produzi-las. Regras que se repercutem na elaboração da sentença, na qual, em sede de fundamentação de facto se impõe ao juiz tomar em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos, ou por confissão reduzida a escrito, conforme prevê o art.º 607º, nº 4 ex vi art.º 663º, nº 2 do CPC.
Em conformidade, e nos termos do disposto nos artigos 662º nº 1, 663º nº 2 e 607º nº 3, do CPC, suprindo as deficiências descritivas dos factos com relevo para a apreciação do objeto do recurso, procede-se à sua modificação e ampliação com suporte no teor dos documentos considerados pela decisão recorrida (juntos com o parecer e o relatório do AI) e nas incidências processuais que relevam, com os fundamentos e nos termos que seguem:
i) Considerando que em 11.12.2018 o AI remeteu aos autos as listas definitivas de créditos reconhecidos e não reconhecidos que integram o apenso de reclamação de créditos (A), altera-se o teor do ponto 7 e adita-se o ponto 7.a), nos seguintes termos:
7. Das listas de créditos definitivas apresentadas pelo AI (nos termos do art.º 129º do CIRE) constam:
Créditos Reconhecidos:
Autoridade Tributária, no montante de €445,33;
C., no montante de €425.123,27;
E., no montante de €425.123,27;
P., na quantia de €19.188,00.
Créditos não reconhecidos:
Associação de Moradores da Quinta …, no montante de €367.380,00;
E..., S.A., no montante de €521.066,50.
7.a) A insolvente impugnou os créditos reconhecidos a C. e E., requerendo a fixação de cada um deles no montante de €150.000,00 sob condição do apuramento das quantias já pagas no âmbito do processo de execução nº 22568/10.3YYLSB e 2335/11.8YXLSB da Comarca de Lisboa, impugnação que foi objeto de resposta dos credores impugnados, que concluíram pedindo a verificação e graduação do seu crédito no montante de €425.123,27.
O credor E... impugnou a lista pedindo a verificação do seu crédito pelo montante reclamado de €521.066,50 com fundamento em incumprimento de contrato promessa de compra e venda datado de 30.07.2013 tendo por objeto 9147/14035 avos do prédio infra descrito em 15 e a título de restituição, em dobro, do sinal no montante de €200.000,00 ali declarado; impugnação que foi objeto de resposta pelos credores E. e C..
ii) Procede-se à eliminação do ponto 9 e à modificação do teor ponto 11, cujo teor se reúne e amplia para concretização dos elementos a que reporta, nos seguintes termos:
11. Do balanço referente aos exercícios de 2015, 2016 e 2017 da insolvente consta inscrito:
- ativo corrente nos valores totais de €534.692,51, €558.769,76 e €589.977,07, respetivamente, sendo €457.839,32 a título de saldo clientes, €8.273,00 a título de outras contas, e no remanescente a título de diferimentos;
- resultados transitados de €1.543.894,60 e capital próprio negativo de €343.894,60;
- passivo nos valores totais de € 878.587,11, €902.664,36 e €933.871,67, respetivamente, sendo €72.036,01, €73.512,01 e €80.988,01 a título de dividas a fornecedores, €250.088,41 a título de financiamentos, e €556.462,69, €579.063,94 e €742.795,25 a título de outras contas a pagar.
iii) Suprindo a omissão do já determinado pelo acórdão de 04.05.2022, procede-se à substituição da primeira parte do teor do ponto 15 pelo seguinte:
15. Sob a ficha nº 6579/20090407 da Conservatória do Registo Predial de Seixal, freguesia de Arrentela, consta descrito prédio rústico sito em Pinhal dos Frades composto de terreno de mato e pinhal com 14035m2 de área, a confrontar com EN nº 378, e constam inscritas:
- aquisições pela insolvente das: quota ideal de 480/14035 avos por compra a FR. e MF., inscrita no registo por ap. 3 de 07.11.2007; quotas ideais de 3920/14035 e 2625/14035 por ‘Entrada de capital’ a, respetivamente, E. e a C., inscritas no registo por ap. 4 e 5 de 07.11.2007; quota ideal de 792/1435 avos por compra a U… - Soc. Construções, Ldª, inscrita no registo por ap. 27 de 04.04.2008; quota ideal de 1330/14035 avos por compra a JR. e IP., inscrita no registo por ap. 10 de 11.09.2008;
- aquisição por Urbanização AS, Lotes .. e .., Ldª da quota de 9147/14035 avos por compra à insolvente, por ap. 438 de 18.01.2010;
- ação instaurada por C. e E. contra a insolvente e a adquirente Urbanização AS pedindo ‘seja declarada ineficaz em relação aos sujeitos ativos a compra do direito de 9147/14035 avos indivisos registada em 18.01.2010 e o direito a executarem o referido bem para satisfação integral dos seus créditos no valor de €500.000,00, acrescido de juros e despesas, e o cancelamento daquele registo, ação inscrita por ap. 3841 de 09.04.2010 e 3284 de 20.01.2010 (que foram oficiosamente cancelada/verificada a caducidade, cfr. averbamentos de 17.03.2014 e ;
- aquisição pela insolvente da quota de 9147/14035 avos por compra a Urbanização AS, por ap. 2310 de 08.06.2012, por dependência dos registos provisórios referentes às ap. 3841 de 09.04.2010 e 3284 de 20.01.2010;
- penhora para garantia da quantia de €308.975,34 em beneficio de C. e E., realizada no processo nº 22568/10.3YYLSB da Secretaria Geral de Execuções do Tribunal de Lisboa, 1º Juízo;
- aquisição em benefício de E..., SA de quota ideal de 9147/14035 da insolvente por dação em cumprimento, por ap. 561 de 09.01.2015 qualificada provisória por dúvidas e convertida em definitivo em 22.05.2015;
- aquisição da mesma quota em benefício de P.P.R.II – Residências Assistidas, SA por compra a E...…, SA, inscrita por ap. 3358 de 09.02.2017;
- declaração de insolvência de “C...…, SA” por sentença proferida nestes autos de insolvência, inscrita no registo por ap. 1363 de 29.04.2019, inscrição qualificada provisória por natureza com fundamento no art.º 92º, nº 2, al. a), constando como sujeito titular inscrito P.P.R.II (…), SA.
IV – Dos fundamentos do recurso
1. Da delimitação do objeto da apreciação
A sentença recorrida situou entre 14.12.2014 e 14.12.2017 o período relevante dos factos atendíveis para efeito de qualificação da insolvência, e passou à apreciação dos pressupostos da insolvência culposa por referência a cada um dos requeridos e aos factos que a cada um imputou.
Relativamente à requerida A. considerou o facto de esta ter obstado ao conhecimento e à compreensão da situação patrimonial e financeira da insolvente por não ter prestado ao AI as informações e esclarecimentos e não ter procedido à entrega de documentação (contabilística) da insolvente na sua posse e por aquele solicitados, e concluiu que aquela incumpriu intencionalmente os deveres de colaboração e informação a que está vinculada na qualidade de administradora da insolvente; mais considerou que a insolvente não exerce atividade desde o ano de 2014, que nesse ano e nos últimos 3 anos apresenta resultados líquidos negativos e gradual crescimento dos capitais próprios negativos da insolvente, que essa situação é de falência técnica e que, não obstante, a requerida A. não apresentou a sociedade à insolvência, que a requerida não procedeu a prestação e ao depósito das contas desde 2014, e que tanto levou à acumulação de resultados negativos e à criação e agravamento da insolvência.
Por referência a esses factos, que imputou apenas à requerida A., a sentença recorrida concluiu que os mesmos preenchem as qualificativas da insolvência culposa previstas pelas als. h) e i) do nº 2 e als. a) e b) do nº 3 do art.º 186º “e, assim, verificados os respectivos pressupostos, quanto à administradora de Direito, A. (…)
Relativamente ao recorrente a sentença recorrida considerou a transmissão do único ativo da insolvente operada pelo contrato de dação de imóvel em cumprimento celebrado em 29.12.2014 entre a insolvente, representada pela requerida A., e a sociedade E..., representada pelo recorrente, ao qual imputou a qualidade de administrador de facto da insolvente e concluiu que por esses factos o recorrente deve ser responsabilizado nos termos do art.º 186º, nº 2, al. b) do CIRE atento o enunciado no seu nº1 (administrador de facto ou de direito).
Do exposto resulta que o único facto fundamento da insolvência culposa que pela sentença recorrida foi imputado ao recorrente corresponde à celebração da dação em pagamento em benefício de sociedade representada pelo recorrente. Facto que, por sua vez, lhe foi subjetivamente imputado com fundamento na qualidade de administrador de facto da insolvente - conforme consta da decisão de facto, por ser o recorrente L. quem ‘manda’ na insolvente -, imputação que o recorrente não censurou e qualidade que não rejeitou nas suas alegações de recurso pelo que, como acima se delimitou, nesta parte – afetação do recorrente pela insolvência culposa – o objeto do presente recurso surge limitado pelo teor da sentença recorrida e pelas conclusões das alegações à valoração jurídica do contrato de dação em pagamento sob a égide dos elementos normativos dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa previstos pelo art.º 186º.
Os demais fundamentos da qualificação da insolvência como culposa que a sentença recorrida imputou exclusivamente à requerida A. e suportam a decisão da afetação desta pela insolvência extravasam dos limites do poder-dever de apreciação da Relação, por duas ordens de razão.
Desde logo porque a única parte negativamente afetada por essa decisão e respetivos fundamentos dela não recorreu e, nesse segmento decisório, falece legitimidade ao recorrente para pedir a sua modificação ou revogação na medida em que, para além de a declaração de afetação de A. não o afetar juridicamente, também não é abrangido pelos fundamentos que a suportam. Numa outra perspetiva porque, aliado ao regime do recurso vigente no nosso sistema processual - de reponderação do julgamento realizado pela decisão recorrida por referência aos elementos de facto por ela considerados - e ao alcance do caso julgado[3], o princípio da proibição da reformatio in pejus consagrada pelo art.º 635º, nº 5 do CPC[4] obsta à reponderação do julgamento de direito operado pelo tribunal recorrido sobre os factos que, não obstante tenha reconhecido como fundamento de qualificação da insolvência, não reconheceu como fundamento da imputação da insolvência culposa ao recorrente, nem por qualquer forma fundamentam a decisão da sua afetação - “Não pode ser modificadaex officio a decisão recorrida em termos que se revelem mais desfavoráveis para o recorrente.”[5]
O que vale por dizer que, por referência às conclusões das alegações de recurso supra sintetizadas sob os pontos i) a viii), o âmbito do conhecimento da Relação está limitado às questões para que remetem os fundamentos de recurso sintetizados sob os pontos vii) e viii), a saber:
(vii) valoração do contrato de dação em cumprimento do imóvel da insolvente como facto qualificador da insolvência culposa enquanto fundamento da afetação do recorrente pela insolvência culposa;
(viii) medida/quantificação da indemnização a cargo do afetado.
Limitação que, por força do princípio da livre indagação, interpretação e aplicação das regras de direito previsto pelo art.º 5º, nº 3 do CPC, não abrange a qualificação ou enquadramento jurídico dos factos fundamento da decisão recorrida e subsunção dos mesmos a qualquer um dos tipos qualificadores previstos no art.º 186º já que, na apreciação do objeto do recurso, o tribunal ad quem não está vinculado nem limitado pela apreciação de direito operada pelo tribunal a quo sobre os factos objeto do processo, pelo que não fica vedada à Relação a confirmação da decisão com outros fundamentos legais, substituindo-a por outra que, nas circunstâncias, o tribunal devia ter proferido. Neste sentido, citando, entre outros, Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes[6], acórdão da Relação de Lisboa de 10.03.2022[7]: I – O objecto do recurso não é definido pelas conclusões das alegações do recorrente. Estas apenas servem para, nesta parte, dizer quais, das decisões proferidas, são o objecto do recurso.//II – O afastamento do fundamento da decisão recorrida não impede que esta seja confirmada por outros fundamentos (se estes não tiverem sido julgados improcedentes pelo tribunal recorrido ou se, no caso de terem sido julgados improcedentes, eles forem de conhecimento oficioso ou a parte vencedora tiver requerido ampliação do âmbito do recurso).//III – Se estes diversos fundamentos possíveis estão discutidos pelas partes, que sobre eles já se pronunciaram, ou tiveram a possibilidade de os discutir, não há violação da proibição da decisão-surpresa ou do princípio do contraditório (art.º 3/3 do CPC).
2. Da afetação do recorrente pela qualificação da insolvência
2.1. O incidente de qualificação da insolvência foi introduzido pela reforma do regime da insolvência levada a cabo pelo Decreto Lei nº 53/2004 de 18.03 com o propósito, desde logo, de atalhar a insolvências fraudulentas ou dolosas, mas também para prevenir o agravamento de situações de insolvência criadas sem atuação culposa dos devedores ou dos respetivos representantes, tudo, em ultima linha, para tutela dos credores e do comércio jurídico no qual aqueles se movem, num circuito de interdependência de pagamentos. Lê-se no preâmbulo do citado diploma (que aprovou o CIRE), que (…) quem intervém no tráfego jurídico, e especialmente quem aí exerce uma actividade comercial, assume por esse motivo indeclináveis deveres, à cabeça deles o de honrar os compromissos assumidos. A vida económica e empresarial é vida de interdependência, pelo que o incumprimento por parte de certos agentes repercute-se necessariamente na situação económica e financeira dos demais. Concomitantemente, à liberdade de escolha de profissão e atividade, corresponde a responsabilização pelo respetivo exercício, com cumprimento das normas a que obedece e/ou condicionam.
Nos termos do art.º 185º a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita. O art.º 186º, nº 1 faz corresponder a insolvência culposa àquela que tenha sido criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Em síntese, e para além da janela temporal relevante para efeitos de qualificação (desde 3 anos antes do início do processo de insolvência e, cfr. arts. 4º, nº 2 e 186º, nº 2, al. i), até à declaração da insolvência e até à data da elaboração do parecer de qualificação pelo AI), são pressupostos da insolvência culposa: uma conduta do devedor ou do respetivo administrador, praticada com dolo ou com culpa grave, e em relação de causalidade com a criação da situação de insolvência ou com o seu agravamento. Quando culposa, a relevância desta qualificação respeita à situação jurídica do insolvente ou das pessoas por ela abrangidas e afetadas, nomeadamente, conforme prevê o art.º 189º, nº 2, al. a), administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas,(…) fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa. Culpa que, quer resulte legalmente presumida, quer resulte efetivamente demonstrada, deverá ser fixada ou a título de dolo ou a título de culpa grave, com repercussão na medida dos efeitos previstos pelo art.º 189º, desde logo na duração das inibições previstas pelas als. b) e c) do nº2.
No seguimento da definição e identificação dos pressupostos gerais da insolvência culposa, o legislador mais avançou com a tipificação de situações de facto às quais atribuiu valor de presunção inilidível de insolvência culposa. Assim, nos termos do nº 2 do art.º 186º Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor; b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzidos lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas; c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação; d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa; f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto; g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência; h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º
Tratam-se de factos/situações que, à laia de normas de proteção abstrata[8], importam presunção inilidível – júris et jure – da verificação dos pressupostos previstos no nº 1, levando as diversas situações ali contempladas, de forma inexorável, à atribuição de carácter culposo à insolvência. Isto é, da prova de qualquer um dos factos complexos ali descritos resulta adquirida, por presunção absoluta, a ilicitude do facto, a existência de culpa grave, e o nexo de causalidade entre o facto (ato ou omissão) e a criação ou o agravamento da insolvência[9]. Presunção que tem como pressuposto assumir que, em termos genéricos, todas as circunstâncias, factos ou comportamentos ali previstos, direta ou indiretamente, envolvem efeitos negativos para a situação patrimonial do devedor, geradores ou agravantes da situação de insolvência, ou seja, da impossibilidade de este cumprir as respetivas obrigações vencidas e/ou da impossibilidade, total ou parcial, de garantir o seu cumprimento[10]. O que permite tomar as previsões do nº 2 como valorações normativas do legislador em termos tais que, cada um dos factos complexos ali previstos, equivalem a enunciações legais de situações típicas de insolvência culposa[11]. Porém, e conforme anotado por Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[12], as várias alíneas do preceito exigem uma ponderação casuística, ou seja, na apreciação concreta de cada uma das situações ali previstas deve atender-se às circunstâncias próprias da situação de insolvência do devedor, e para o que aponta o recurso a conceitos indeterminados (tais como, em parte considerável, criado ou agravado artificialmente, incumprido em termos substanciais, reiterada, etc). Provados os factos constitutivos das presunções, por irrelevante “não lhe é admitido provar que esse ato não criou ou agravou a situação de insolvência”[13], nem que a ação (ou omissão) que a lei toma como ilícita foi praticado sem culpa.[14]
Subjacente à tutela legal visada pelo instituto da qualificação da insolvência[15] estão dois princípios estruturantes do processo falimentar - a garantia patrimonial e o tratamento igualitário dos credores sociais - por recurso aos quais se deverá alcançar a ratio dos factos qualificadores da insolvência e o alcance dos elementos normativos que os integram. Todas as qualificativas previstas pelo nº 2 assumem uma função de pré-proteção daqueles interesses, sancionando condutas suscetíveis de em abstrato lesar o património e prejudicar a solvabilidade do devedor independentemente da verificação do perigo concreto de conduzirem a essa situação. De um modo geral, nas als. a) a g) está em causa a preservação do direito dos credores à satisfação dos seus créditos através da preservação do património do devedor, entendido este no sentido lato, de bens e direitos que integram o seu ativo e em relação de balanço com o respetivo passivo. Mais concretamente, a al. a) pressupõe uma diminuição do ativo através de uma ação física ou material e voluntária sobre os bens[16] mas, para além do prejuízo patrimonial na esfera jurídica do devedor, não exige que da conduta resulte benefício para o administrador que a pratica ou para terceiro. Já as qualificativas das als. b), d), e), f) e f) exigem que de qualquer um dos atos ali previstos resulte benefício para o administrador que o praticou ou para terceiro[17], enquanto manifestação sintomática da violação do específico dever de fidelidade a que o administrador está vinculado na gestão do património que lhe está confiado e, assim, do perigo (abstrato) de lesão do património e da solvabilidade do respetivo titular, independentemente de este se verificar. Como se referiu, também não exige a verificação da intenção de prejudicar os credores; basta que o facto seja objetivamente apto a causá-lo.
Do nº 3 do preceito constam descritas condutas omissivas às quais a lei não faz corresponder presunção de insolvência culposa, mas tão só presunção juris tantum de culpa grave que, por isso, é suscetível de ser ilidida por prova em contrário (cfr. art.º 350º, nº 2, 1ª parte, do Código Civil), mais exigindo a alegação e demonstração dos demais requisitos previstos no nº 1: criação ou agravamento da situação de insolvência, causada por aquelas condutas.
Enquanto caracterizadores da insolvência culposa e fundamento da afetação dos administradores através da responsabilização que dela emerge, os factos típicos e complexos previstos pelos nºs 2 e 3 do art.º 186º concretizam específicos deveres a que os administradores estão vinculados e que enquadram nos deveres gerais de lealdade, de cuidado e diligência previstos pelo art.º 64º do Código das Sociedades Comerciais, aqui destinados à proteção de terceiros, dos interesses económicos dos credores sociais. Nas palavras de Carneiro da Frada[18], “o art.º 186 do CIRE corresponde a uma disposição de protecção cuja violação por parte dos administradores de uma sociedade desencadeia responsabilidade civil pela insolvência.”
2.2. Como se referiu, o facto fundamento da qualificação da insolvência como culposa que a sentença recorrida considerou como fundamento da afetação do recorrente pela qualificação restringe-se à transmissão do único ativo da insolvente, operada pelo contrato de dação de imóvel em cumprimento celebrado em 29.12.2014 entre a insolvente e a sociedade E..., a primeira formal e legalmente representada no ato pela requerida A., e a segunda pelo recorrente. Ato que a sentença recorrida valorou como prejudicial aos credores pela impossibilidade que dela resulta, de estes serem ressarcidos do valor dos seus créditos e que, sem outra justificação, enquadrou no art.º 186º, nº 2, al. b) do CIRE.
Opõe o recorrente que a dação (do direito sobre o imóvel da insolvente) não causou prejuízo aos credores porque não perderam a garantia patrimonial existente à data em que foi celebrada na medida em que foi transmitido com a penhora registada em beneficio dos credores C. e E. e a credora Associação de Moradores da Quinta das Laranjeiras dispõe de garantia ambulatória sobre o prédio que exercerá junto da sua atual proprietária. Mais alegou que os créditos daqueles foram impugnados e que o crédito de E..., Ldª não foi reconhecido pelo AI) e, ainda que admitindo a comunicabilidade entre as administrações de facto das sociedades alienante e adquirente, nenhuma prova foi feita de que configura negócio ruinoso e o valor venal do imóvel seria insuficiente para pagamento dos créditos reclamados que, no total, ascendem a €1.271.626,54.
Apreciando:
No que aqui releva, o tipo qualificador previsto pela al. b) do nº 2 do art.º 186º exige o caráter ruinoso do contrato em proveito do administrador da insolvente ou de pessoa com ele especialmente relacionada. O carácter ruinoso do contrato pressuposto pela norma é aferido, não por referência à posição dos credores relativamente à devedora e ao negócio por esta celebrado, mas por referência à posição da própria devedora no âmbito do negócio, nos termos em que o mesmo foi celebrado; designadamente, por referências às obrigações por ele geradas a cargo da insolvente em confronto com as obrigações geradas para a outra parte e o benefício que aquela delas retira. Assim, será ruinoso um negócio sem contrapartidas para a contraparte (doação), ou em que as obrigações assumidas pela devedora excedam manifestamente as obrigações da contraparte. A relação especial entre os administradores da insolvente e os beneficiários do negócio (ruinoso) é aferida nos termos do art.º 49º do CIRE.
No caso verifica-se este ultimo requisito, da relação especial entre o administrador de facto da insolvente e a beneficiária da dação na medida em que - como consta certificado na escritura de dação em pagamento, foi assumido pela decisão recorrida e não vem questionado pelo recorrente -, este é administrador comum a ambas as sociedades, de facto da insolvente, e de direito da adquirente E.... Verifica-se igualmente o caráter ruinoso do contrato na medida em que, de acordo com as declarações negociais que o integram, por vontade e ação dos seus administradores (de facto e de direito) a insolvente transferiu para outra sociedade o único imóvel e ativo de que era proprietária pelo preço declarado de €400.000,00 mas, como é característico da dação em pagamento, fizeram-no sem qualquer fluxo financeiro em beneficio da insolvente, sendo certo que o podia (e devia) gerar pelo montante de €200.000,00, correspondente à parte do preço em falta pagar nos termos do contrato promessa que na dação é invocado como causa do crédito fundamento da sua celebração. Com efeito, da mesma forma que, decorridos cerca de dois meses sobre o termo do prazo acordado para a celebração do contrato prometido, a insolvente celebrou a escritura de dação em beneficio da promitente compradora - que é inequívoca manifestação da manutenção do interesse desta na celebração do contrato de compra e venda prometido -, ainda que a partir de 20.10.2014 se encontrasse constituída em situação de mora no cumprimento desse mesmo contrato promessa, estava igualmente na disponibilidade da insolvente fazê-la cessar através da celebração da escritura de compra e venda por aquele contrato prometida celebrar e, com isso, gerar em seu benefício crédito de €200.000,00 correspondente à parte do preço acordado e em falta pagar, ao invés de reconhecer à promitente compradora o direito de crédito correspondente ao dobro do sinal alegadamente pago à insolvente que, além do mais, pressupõe uma situação de incumprimento definitivo que não se vislumbra verificada. Do exposto resulta que ao contrato de dação em pagamento celebrado pela insolvente falha qualquer lógica e racionalidade económico-empresarial e legitima presumir que foi celebrado como expediente formal para beneficiar a adquirente à custa e em prejuízo da esfera patrimonial da insolvente, no que sobressai a figura do recorrente na dupla qualidade de administrador de facto da insolvente (que, como não podia deixar de ser, consta formalmente representada no ato da escritura pela sua administradora de direito) e de administrador de facto e de direito da E....
Presunção – de expediente para beneficiar a adquirente à custa do empobrecimento ilegítimo da insolvente – que surge reforçada pelo facto de a dação em pagamento não ter sido resolvida pelo AI e, ainda assim, a adquirente E... ter vindo aos autos reclamar esse mesmo crédito de €400.000,00 (correspondente ao sinal em dobro alegadamente pago à insolvente no âmbito de contrato promessa de compra e venda desse mesmo imóvel que com esta celebrou em setembro de 2013) que as partes declararam extinto com a celebração da dação em pagamento.
Mas, ainda que assim não se entendesse, a dação em pagamento sempre enquadraria na al. d) do nº 2 do art.º 186º, nº 2 (…) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.
Como se disse, o processo de insolvência liquidatário é informado por dois princípios estruturantes: o da garantia patrimonial dos bens e direitos dos credores dada pelo património do devedor, e o da satisfação igualitária dos direitos dos credores, o princípio conditio par creditorium. Princípios que se manifestam na caracterização da insolvência liquidatária como processo de execução universal e concursal, que tem como finalidade primeira a satisfação dos interesses patrimoniais dos credores através da liquidação da totalidade do património do devedor para afetação do respetivo produto à satisfação dos direitos dos credores. Universal porque, conforme definição de massa insolvente que consta do art.º 46º do CIRE, com exceção dos bens isentos de penhora, abrange todo o património do devedor à data da declaração da insolvência e o que no âmbito da mesma seja recuperado/restituído à massa insolvente, bem como os bens e direitos adquiridos na pendência do processo. Concursal porque, conforme arts. 90º, 128º e 146º do CIRE, visando a liquidação do passivo global do devedor, procede-se para o efeito à citação de todos os credores do devedor para concorrerem ao produto que resulte da liquidação dos bens que integram o património do devedor, na medida das forças deste e em função da hierarquia/graduação dos créditos de acordo com a respetiva natureza. Para cumprimento desse fim a declaração da insolvência do devedor determina a apreensão material de todos os bens que integram a massa insolvente, incluindo o produto da venda desses bens, ainda que arrestados, penhorados, apreendidos ou por qualquer outra forma detidos (cfr. arts. 46º, 149º, 150º, 81º, nº 1, 55º, nº 1 e 158º do CIRE). A preocupação do legislador em salvaguardar a garantia patrimonial dos credores e o cumprimento da universalidade da insolvência liquidatária vai ao ponto de dotar o administrador da insolvência do poder-dever de proceder à resolução extrajudicial de negócios para recuperação das atribuições patrimoniais que, nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência foram concedidas com prejuízo para o património do devedor e, assim, com prejuízo das garantias patrimoniais dos respetivos credores (cfr. arts. 120º e ss. do CIRE). É também em benefício da preservação desta garantia patrimonial e da melhor e mais rápida satisfação dos direitos dos credores que o legislador previu a obrigação de o devedor se apresentar à insolvência nos 30 dias seguintes à data do seu conhecimento, presumindo-o de forma inilidível decorridos três meses sobre o incumprimento generalizado de créditos fiscais, contribuições sociais, créditos laborais, ou rendas de qualquer tipo de locação (cfr. arts. 18º e 20º, al. g) do CIRE).
É por referência a estes princípios – da garantia patrimonial e de tratamento igualitário dos credores sociais - que se impõe entender o alcance dos elementos normativos ‘disposto de bens’ e ‘proveito pessoal ou de terceiros’ que integram o facto qualificador da insolvência previsto pela al. d), e que se impõe considerar preenchidos pela dação em pagamento do único bem da devedora que, por natureza, beneficia apenas um só credor em detrimento de todos os demais credores que, conforme resulta da sua contabilidade, corresponde a passivo superior a €870.000,00, passivo que inclui dívidas a fornecedores e financiamentos e que se perpetua desde pelo menos 2014 posto que desde esse ano que a insolvente não exerce atividade (pontos 10 e 11). Nesse cenário – de ausência de atividade a par com a existência de dívidas -, e conforme resulta da conjugação do disposto nos arts. 146º, 141º, nº 1, al. e) e 142º, nº 1 e 3 do Código das Sociedades Comerciais e, expressamente, do art.º 18º, nº 1 do CIRE, estava legalmente vedado aos administradores da devedora beneficiar um credor em detrimento de todos os demais, incluindo, se fosse o caso, dos credores com direito de sequela sobre o imóvel (que dos autos não resulta), que não é prejudicado pelo facto de estes poderem executar o imóvel na esfera jurídica da adquirente. Antes se lhes impunha apresentar a sociedade à insolvência para cumprimento da liquidação do respetivo ativo e passivo através do procedimento e entidade legalmente previstos para o efeito, precisamente, para acautelar a satisfação igualitária dos credores pelo produto do seu ativo. Direito que não existia para apreensão aquando da declaração judicial da situação de insolvência da devedora, com consequente ablação do valor da massa insolvente constituída com a sua declaração de insolvência e consequente agravamento da possibilidade de satisfação do coletivo dos credores da insolvência na medida do valor daquele direito, que deixou de existir na esfera patrimonial da insolvente, arredando a possibilidade de os credores concorrerem ao produto do mesmo. O que tudo se traduz em diminuição das garantias patrimoniais dos credores da insolvente e da massa insolvente e na violação do objeto estruturante do processo falimentar - a satisfação dos direitos dos credores -, com a agravante da natureza subordinada do crédito da beneficiária da dação dada a relação especial entre esta e o administrador de facto da insolvente, o aqui recorrente. E disso o recorrente não podia deixar de ter perfeito conhecimento e consciência posto que já em 2010, quando ainda mantinha a qualidade de administrador de direito da insolvente, esta procedeu à venda do seu direito sobre o imóvel à sociedade Urbanização AS, …, Ldª, venda que foi objeto de impugnação pelos aqui credores C. e E., por efeito da qual aquele direito regressou à titularidade da insolvente e à inscrição no registo em seu benefício em junho de 2012 (cfr. ponto 15).
Em síntese, da dação em pagamento do único direito/bem da devedora resultou favorecimento de um credor em detrimento dos demais, prejudicando a característica concursal da liquidação falimentar através da distribuição dos recursos patrimoniais da devedora pelo universo dos respetivos credores em conformidade com o principio da igualdade de tratamento dos créditos da mesma natureza, afastando-os da possibilidade de, através do devido rateio e com respeito pela graduação legal de créditos, concorrerem ao produto daquele direito, sendo certo que no contexto falimentar as penhoras não são legalmente atendíveis para efeitos de graduação de créditos (cfr. art.º 140º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas). Como acima se expôs, da verificação dos pressupostos normativos de qualquer um dos tipos qualificadores previstos pelo nº2 do art.º 186º resulta adquirida, por presunção legal absoluta, a ilicitude do facto, a existência de culpa grave, e o nexo de causalidade entre o facto (ato ou omissão) e a criação ou o agravamento da insolvência, o que inexoravelmente conduz à qualificação da insolvência da devedora e, no caso, à afetação do recorrente na qualidade de seu administrador de facto.
Termos em que nesta parte se conclui pela improcedência do recurso.
3. Da condenação no pagamento da indemnização
Nesta matéria o dispositivo da sentença recorrida limitou-se a reproduzir a letra da lei, condenando os requeridos a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos até às forças dos respetivos patrimónios (art.º 189º, nº 2, al. e) do CIRE). Em sede de fundamentação de direito vislumbra-se apenas referência à impossibilidade de os credores serem ressarcidos do valor dos seus créditos como consequência da transmissão do único ativo da insolvente pelos requeridos.
O recorrente opõe que esta condenação viola o princípio da proporcionalidade na medida em que a indemnização deve ser fixada de acordo com o grau de culpa e o contributo da conduta para a insolvência ou seu agravamento e a participação do recorrente resume-se ao contrato de dação em pagamento do ativo da insolvente que, como alegou, não prejudicou os seus credores.
No que ora releva prevê o art.º 189º[19], nº 2 que “Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve: (..); e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados. Acrescenta o nº 4 que, “Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.”
Apesar de a alínea e) ter sido introduzida pela Lei nº 16/2012 de 20.04, permanece até hoje objeto de discussão doutrinária e jurisprudencial pelas várias interpretações dos pressupostos e âmbito da condenação na indemnização que prevê, dissenso que as alterações introduzidas pela Lei nº 9/2022 de 11.01 não auguraram sanar ainda que, em função da interpretação que fazemos da anterior redação, tendam para esse resultado.
A alteração que a Lei nº 9/2022 introduziu na redação da al. e) – para passar a constar “Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem (…) até ao montante dos créditos não satisfeitos” onde constava “Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem (…) no montante dos créditos não satisfeitos” – é de natureza interpretativa, por reclamada pela discussão gerada com a incompatibilidade da literalidade da sua anterior redação com as especificações previstas pelo nº 4 – “Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.” –, e no sentido de consagrar a fórmula e solução legal que em 2012 foi ab initio pretendida prever para a responsabilização insolvencial, enquanto modalidade específica de responsabilidade civil que, como tal, não prescinde da verificação dos respetivos pressupostos legais gerais. Com efeito, sendo o nº 4 uma especificação dos termos da aplicação do efeito previsto pela al. e) do nº 2, em nome da coerência e consistência paradigmática da terminologia do sistema jurídico como um todo e, em particular, dos institutos jurídicos de natureza eminentemente civil, essencial à sua teorização e compreensão geral e abstrata, a construção das referidas normas por recurso aos vocábulos e segmentos ‘indemnizarem’, ‘valor das indemnizações devidas’, ‘calcular o montante dos prejuízos sofridos’, e ‘critérios para a sua quantificação’, não permite imputar ao legislador de 2012 mais do que a intenção de consagrar a medida da responsabilização do afetado pela insolvência de acordo com os pressupostos gerais da responsabilidade civil, ainda que limitada pelo montante máximo dos créditos não satisfeitos por respeito processual ao objeto e funcionalidades práticas do processo de insolvência[20], mas com o aproveitamento, em benefício dos credores, da qualificação e declaração judicial da natureza ilícita e culposa das condutas dos afetados pela qualificação operada em sede de processo de insolvência e da facilitação, por essa via, da imputação dos danos por elas produzidos.[21][22]
Como é referido por Catarina Serra “A qualificação da insolvência como culposa pressupõe sempre a causalidade (provada ou presumida) entre a conduta e a criação ou o agravamento da insolvência (a “causalidade fundamentadora” da responsabilidade civil), mas esta não basta para responsabilizar os sujeitos afectados; deve ainda verificar-se a causalidade entre a conduta e os danos (a “causalidade preenchedora” da responsabilidade civil). (…) é preciso apurar a diferença entre a situação que existe e a situação que existiria se a conduta ilícita não tivesse tido lugar – apurar, mais precisamente, o dano diferencial. (…). Cumpre ao juiz discriminar, sobretudo, entre as condutas criadoras e as condutas agravadoras da situação de insolvência. Na prática, o dano causado pelas primeiras é susceptível de se aproximar do montante dos créditos não satisfeitos. Relativamente ao dano causado pelas segundas, esta proximidade nunca se verifica.”[23]
Assim, a responsabilização patrimonial dos afetados, para além da sua dimensão punitiva intrínseca à moralização do sistema visada pelo incidente da qualificação, assume também uma dimensão de reparação dos credores através da condenação em indemnização cuja quantificação o legislador remeteu para os pressupostos gerais do instituto da responsabilidade civil. É nesse sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.10.2021: “A qualificação como culposa duma insolvência – consistindo no escrutínio das condições em que eclodiu ou se agravou uma situação de insolvência – tem em vista aplicar certas medidas/sanções ao(s) culpado(s) por tal criação ou agravamento, ou seja, o propósito da qualificação duma insolvência como culposa é não permitir que, havendo culpado(s), o(s) mesmo(s) passe(m) “impune(s)” e, no fundo, “moralizar o sistema” (fazendo com que o direito/processo de insolvência proteja realmente os interesses públicos, relacionados com a economia, e os interesses privados, da satisfação dos credores). //Em todo o caso, tal não pode significar, como já referimos, que tais medidas/sanções/indemnizações, pese embora o seu objetivo moralizador, possam ser impostas sem quaisquer limites e fora de quaisquer exigências ou controlo de proporcionalidade (ou de não desproporcionalidade).//Tudo isto para dizer que não pode ser automaticamente, mas sim atendendo e apreciando as circunstâncias do caso (o que está provado no processo e o que levou à qualificação), que o juiz pode-deve fixar as indemnizações em que condenará as pessoas afetadas.//E entre as circunstâncias com significado para apreciar a proporcionalidade ou desproporcionalidade da indemnização a fixar encontram-se os elementos factuais que revelam o grau de culpa e a gravidade da ilicitude da pessoa afetada (da contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência): mais estes (os elementos respeitantes à gravidade da ilicitude) que aqueles (os elementos respeitantes ao grau de culpa), uma vez que, estando em causa uma insolvência culposa, o fator/grau de culpa da pessoa afetada não terá grande relevância como limitação do dever de indemnizar, sendo o fator/proporção em que o comportamento da pessoa afetada contribuiu para a insolvência que deve prevalecer na fixação da indemnização.”
De resto, por apelo a princípios de proporcionalidade ou de proibição de excessos, já na vigência da redação inicial da al. e) a jurisprudência maioritária rejeitava a condenação ‘automática’ dos afetados pelo montante dos créditos não satisfeitos, pugnando pela fixação da indemnização após prévia apreciação e por referência, no essencial, à conduta da pessoa afetada, ainda que na perspetiva do seu contributo para a criação ou agravamento da insolvência, que será o mesmo que dizer, por referência ao perigo abstrato tutelado pela norma fundamento da qualificação da insolvência preenchida pela conduta do afetado[24]. Por isso e pela natureza sancionatória que lhe está subjacente, a obrigação de indemnização determinada pela afetação da insolvência culposa não é prejudicada pela destruição – total ou parcial - dos atos fundamento da qualificação no âmbito do processo de insolvência através dos mecanismos legais para o efeito previstos, como ocorre suceder com a resolução extra-judicial de negócios pelo AI, com consequente destruição e restituição ou constituição da obrigação de restituição dos bens dele objeto à massa insolvente.
Do exposto resulta que a condenação em indemnização tem subjacente a coincidência entre os factos valorados como qualificadores da insolvência como culposa e os factos que fundamentam o quantum da responsabilização patrimonial dos afetados, ou seja, entre o perigo de dano presumido pela norma fundamento da qualificação e o dano concretamente produzido pela criação ou agravamento da situação patrimonial da devedora. No caso a gravidade do ilícito concentra-se na violação da proibição legal de proceder à liquidação dos ativos da insolvente à margem do procedimento legal, universal e concursal, legalmente imposto para o efeito, que impediu a apreensão do único bem de que era titular para a massa insolvente e a conversão do seu valor de mercado em dinheiro para distribuição rateada pelos credores da insolvente - agravada pela ausência de qualquer fluxo financeiro em beneficio da insolente -, mas que teria sempre como inevitável efeito a indisponibilidade do produto desse bem/direito para, no âmbito do processo de insolvência e através da sua liquidação, dar satisfação aos créditos reconhecidos que pelo respetivo produto houvessem de ser pagos. Coincidência que, no campo onde nos movemos - de responsabilização civil, perante os credores, dos responsáveis pela criação ou pelo agravamento da insolvência –, se traduz na correspondência de valores entre o valor do direito objeto de transmissão, o valor dos danos por esta produzidos, e o valor da indemnização devida fixar.
Assim, concedendo que a afetação pela qualificação da insolvência contém em si mesma a demonstração e verificação da ilicitude do facto fundamento da qualificação, do juízo de censurabilidade que pelo mesmo é passível de ser dirigido ao afetado, e do nexo de causalidade entre a concreta atuação que determinou e/ou fundamentou a qualificação da insolvência como culposa, o valor da indemnização aos credores deverá corresponder ao valor do direito da insolvente sobre o imóvel (descrito sob o ponto 15) por corresponde ao valor (de liquidação) com o qual os credores poderiam contar para satisfação dos seus créditos.
Sendo desconhecido nos autos o valor real/de mercado do imóvel, na ausência de outros valores a ponderar, o montante da indemnização deverá corresponder ao valor/preço declarado no contrato de dação em pagamento - €400.000,00 (quatrocentos mil euros) – ou, se superior, ao preço pelo qual a adquirente E... declarou vender e a atual adquirente, P.P.R.II – Residências Assistidas, SA, declarou comprar (cfr. ponto 15).
Com o que neste âmbito se conclui pela parcial procedência das alegações de recurso, com a alteração em conformidade do segmento do dispositivo da decisão correspondente à condenação em indemnização que, no demais, se mantém nos seus precisos termos.
Considerando a natureza solidária da obrigação de indemnização a cargo dos afetados pela qualificação da insolvência, a alteração da decisão recorrida em benefício do recorrente aproveita à requerida A. nos termos do art.º 634º, nº 2 do CPC, norma que que estabelece que Fora do caso de litisconsórcio necessário, o recurso interposto aproveita ainda aos outros: (…) c) Se tiverem sido condenados como devedores solidários, a não ser que o recurso, pelos seus fundamentos, respeite unicamente à pessoa do recorrente.
VI – Das custas
Nos termos do art.º 527º, nº 1 do CPC, considerando foram apresentadas contra-alegações apenas pelo Ministério Público, que está isento de custas, na ausência de outros vencidos as custas da apelação são a cargo do recorrente por parcialmente vencido e por ter sido a única parte no recurso que dele retirou proveito.
VII - Decisão
Por todo o exposto, acordam as juízas que integram a 1ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar a apelação parcialmente procedente através da revogação do segmento correspondente à al. d) do dispositivo da sentença recorrida, que se substitui por outro com o seguinte teor: d) condeno-os a indemnizar os credores da Devedora no montante dos créditos não satisfeitos até ao montante de €400.000,00 (quatrocentos mil euros) ou, se superior, até ao montante correspondente ao preço pelo qual a adquirente E... declarou vender e a atual adquirente, P.P.R.II – Residências Assistidas, SA declarou comprar.
Mantendo-se no demais a sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo do recorrente.
Lisboa, 11.02.2025
Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes
Paula Cardoso
_______________________________________________________ [1] Cfr. acórdão do STJ de 30.11.2023. [2] No sentido literal do termo, por recurso à funcionalidade informática ‘copy-paste’. [3] No sentido de que incide sobre a decisão enquanto conclusão de certos fundamentos, e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão (vd. comentário de Miguel Teixeira de Sousa ao acórdão de RE de 11.05.2017 em https://blogippc.blogspot.com) [4] Estabelece que Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo. [5] A. Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 6ª ed. atualizada, p. 139. [6] “[O] preceito [agora artigo 636 do CPC] só se aplica quando o tribunal recorrido tenha efectivamente conhecido o fundamento em causa, julgando-o improcedente: a parte vencedora há-de ter nele decaído. Se, ao invés, tal fundamento, invocado pela parte em 1.ª instância, não tiver chegado a ser apreciado (designadamente por ser subsidiário e proceder o pedido principal, ou por proceder um dos fundamentos em alternativa), o tribunal de recurso não deixará de o conhecer, sem necessidade de requerimento de ampliação, se julgar improcedente o pedido tido por procedente pelo tribunal recorrido: esse fundamento constitui já objecto do recurso.” [7] Disponível na página da dgsi. [8] Vd. Manuel Carneiro da Frada, A responsabilidade dos administradores na insolvência, ROA, Ano 66, Set. 2006. [9] Nesse sentido, entre outros, ac. STJ de 15.02.2018, proc. nº 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1, e ac. da RP de 21.02.2019, proc. n.º 1733/15.2T8STS-B.P1. [10] Sobre a conexão entre as causas de qualificação da insolvência previstas pelas als. h) e i) do nº 2 e al. b) do nº 3 do art.º 186º e a (potencial) criação ou agravamento da situação de insolvência, vd. Soveral Martins, Administração de Sociedades Anónimas e Responsabilidade dos Administradores, Almedina, p. 315-317. [11] Nas palavras do Tribunal Constitucional, acórdão nº 570/2008 de 26.11.2008, “Na verdade, o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal (não importa aqui averiguar se mediante enunciação taxativa ou concretizações exemplificativas) de situações típicas de insolvência culposa.//(…).// Ora, o estabelecimento da presunção em análise tem a vantagem de evitar a subjectividade inerente a um juízo de censura ético-jurídico, ao mesmo tempo que supera as dificuldades de apuramento de todo o circunstancialismo que envolveu a situação de insolvência. São objectivos perfeitamente legítimos, alicerçados não só em razões de segurança jurídica, mas também de justiça material, que justificam uma limitação ao âmbito de apreciação e, consequentemente, ao objecto de prova, mediante a imposição normativa (ex vi legis) de uma conclusão jurídica, perante a verificação de certos factos que o interessado pode discutir nos termos gerais.” [12] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Iuris, Vol. II, p. 15. [13] Carina Magalhães, Incidente de Qualificação da Insolvência. Uma Visão Geral, em Estudos de Direito da Insolvência, Coord. Maria do Rosário Epifânio, Almedina, 2015, p. 121. [14] A este respeito Carneiro da Frada justifica que “a inadmissibilidade dessa prova não é todavia (em geral) excessiva, enquanto puder justificar-se como forma enérgica de dissuadir insolvências e estão com elas intimamente ligadas. É isso que justifica a declaração da insolvência como culposa sem necessidade de mostrar a ligação entre a conduta censurada e a concreta insolvência ocorrida (vedando a prova em contrário ou aceitando que a superveniência de elementos fortuitos que codeterminaram a insolvência não exclui essa insolvência culposa.” (texto cit.) [15] Bem como com o instituto da resolução extrajudicial de atos de caráter patrimonial pelo administrador da insolvência, sendo que este produz efeito direto nos bens a integrar na massa insolvente. [16] Em sentido divergente, acórdão da RC de 28.05.2013 (proc. nº 102/12.0TBFAG-B.C1), e acórdãos da RG de 01.10.2013 (proc. 2127/12.7TBGMR-D.G1) e de 01.06.2017 (proc. nº 280/14.4TBPVL-E.G1), qualificando como ação de ocultação a alteração da situação jurídica do bem (como por exemplo, a venda do bem a terceiro) ou a celebração de ato negocial simulado. [17] A qualificativa prevista na al. b) mais exige que o terceiro beneficiado seja pessoa especialmente relacionado com o devedor, nos termos taxativamente previstos pelo art.º 49º. [18] Texto citado. [19] Com as alterações introduzidas ao teor dos nº 2, al. e) e nº 4 pela Lei nº 9/2022 de 11.01. [20] Que, de resto, bem se compreende, para obviar à tentação de os credores transformarem o incidente de qualificação em ações de responsabilização societária nos termos do art.º 78º do CSC que, além do mais, obliterava a exclusiva legitimidade que para o efeito e na pendência do processo o art.º 82º, nº 3, al. b) do CIRE atribui ao administrador da insolvência. [21] Entendimento que o Supremo Tribunal de Justiça acolheu no acórdão de 12.12.2023 [22] Nesta parte divergimos da restrição das especificações previstas pelo nº 4 ao plano das relações internas defendida por Henrique Sousa Antunes no caso de pluralidade de afetados para sustentar e manter que o montante dos créditos não satisfeitos é a medida da obrigação de indemnizar prevista pelo nº 2 (em “Natureza e funções da responsabilidade civil por insolvência culposa”, em V Congresso de Direito da Insolvência, Coordenação Catarina Serra, Almedina 2019, p. 135 e ss.). [23] Revista Julgar nº 48, setembro 2022, p. 26 a 31. [24] Nesse sentido, acórdãos da RL de 27.04.2021, proc. nº 540/19.8T8VFX-C.L1, do STJ de 22.06.2021 (proc. 439/15.78OLH-J.E1.S1), e de 06.09.2022 (proc. 291/18.0T8PRG-C.G2.S1)