Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
INSOLVÊNCIA
REQUISITOS
AUDIÊNCIA FINAL
LEGITIMIDADE
Sumário
I- Da leitura do consagrado no art.º 35.º n.º 1 do CIRE não se retira qualquer imposição de prosseguimento dos autos para audiência final, quando o juiz constatar que os mesmos reúnem as condições necessárias para proferir decisão, e a tanto não obsta a redação de tal normativo nem qualquer especificidade do direito da insolvência, pois que o mesmo não pode deixar de atender às regras do direito comum, tendo o ordenamento jurídico, no seu todo, uma lógica que deve ser respeitada; e, neste contexto, não pode ser ignorado que o art.º 130.º do CPC impede a realização no processo de atos inúteis, considerando-os ilícitos. II- Tem legitimidade processual para requerer o processo de insolvência aquele que se arroga de um direito de crédito sobre a requerida, ainda que tal crédito possa consubstanciar uma obrigação não vencida, sendo-lhe exigível apenas para o justificar a menção da sua origem, natureza e montante. III- A complexidade das questões atinentes com a apreciação desse invocado direito de crédito não constitui fundamento para a absolvição da demandada do pedido, pois que o processo de insolvência é autossuficiente para o discutir e apreciar. IV- Não exigindo a lei uma pluralidade de credores para um pedido de insolvência nem para a sua procedência, nada impedia a Recorrente de pedir a insolvência da Recorrida, alegando que, pelo menos, o seu crédito estava vencido e incumprido pela mesma. V- Não obstante, sendo o objeto imediato deste processo especial a obtenção de uma sentença judicial que declare a situação de insolvência da devedora, sustentando a Recorrente o seu pedido unicamente na al. b-) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE, a alegação do seu crédito único, e litigioso, por controvertida a data do seu vencimento, desacompanhada de outra factualidade, não permite a verificação de qualquer dos factos índice que a lei exige para se poder presumir a insolvência da devedora, nomeadamente o invocado. VI- A alegada existência do incumprimento de uma dívida (a da Requerente da insolvência), ainda que de valor elevado, estando as partes ainda a discutir a sua data de vencimento, não é suscetível de, por si, revelar a impossibilidade generalizada do cumprimento de outras obrigações, de que a apelada fosse sujeita passiva, para lá da correspondente ao alegado crédito único da Requerente.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I-/ Relatório:
Ikav Energy Spain, S.L., sociedade comercial constituída ao abrigo da Lei Espanhola, com sede em Madrid, Espanha, intentou a presente ação, com processo especial, pedindo a declaração de insolvência de Graciosa Parcela - Lda., com sede em Lisboa.
Para tanto, alegou, em síntese, que em 5 de março de 2021, na qualidade de mutuante, celebrou com a Requerida, enquanto mutuária, um contrato de mútuo, nos termos do qual se comprometeu a emprestar-lhe um montante máximo de €700.000,00, comprometendo-se a Requerida, por seu lado, a reembolsar os montantes mutuados, acrescidos dos respetivos juros remuneratórios, no máximo, até dia 31 de dezembro de 2023.
Na data de celebração do aludido contrato, a Requerente transferiu para a Requerida o montante de €200.000,00 e, em 16 de agosto de 2021, procedeu à segunda transferência, no montante de €250.000,00. A Requerida, porém, não efetuou o reembolso no prazo estipulado e, interpelada para pagar, enviou uma declaração nos termos da qual assumiu expressamente não ter condições para o fazer.
Em 13 de julho de 2024, a Requerente propôs então que fosse celebrado um aditamento ao aludido contrato, tendo a Requerida, em 18 de julho de 2024, apresentado uma contraproposta. Uma vez que as condições inclusas na proposta de aditamento ao contrato eram essenciais à sua celebração, em face da contraproposta apresentada, que não aceitava uma delas, o aditamento acabou por nunca ser celebrado.
Alegou ainda desconhecer os 5 maiores credores da Requerida e que, na data da interposição da presente ação, as contas anuais da mesma, relativas ao exercício de 2023, não se encontravam disponíveis para consulta, decorrendo, das demonstrações financeiras relativas aos exercícios de 2021 e 2022, que a mesma não tem possibilidade de pagar €508.680,00 (pelo menos), visto os seus ativos correntes serem significativamente menores do que o valor da dívida, apresentando um resultado líquido negativo em 2022.
Assim, conclui, propõe-se fazer prova da sua qualidade de credora (artigo 25.º do CIRE), bem como da situação de insolvência da Requerida, face ao disposto nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, alínea b) do CIRE.
Citada, a Requerida contestou, excecionando a incompetência dos tribunais portugueses para conhecer do mérito do crédito de que a Requerente se arroga titular e do seu vencimento e invocando a ilegitimidade substantiva da Requerente.
Para tanto, e em suma, argumentou que não tem quaisquer credores e o seu ativo ultrapassa os 8,5 milhões de euros, sendo muito superior ao montante reivindicado. Acrescentou ainda que o valor reclamado pela Requerente diz respeito a um contrato de mútuo que ainda não se venceu por, em 18/07/2024, ter sido objeto de prorrogação até 31/12/2025, mediante o aumento da taxa de juro de 5% para 7%. Com efeito, alega, por comunicação de 18/07/2024 (Doc. 12 junto com o requerimento inicial), a Requerida aceitou, sem reservas, a proposta da Requerente de prorrogação do prazo de vencimento do mútuo, após o que lhe enviou, em 23/07/2024, um aditamento por si assinado, confirmando as novas condições aplicáveis (Doc. n.º 5), onde se obrigava também, caso a Requerente o exigisse, a constituir hipoteca sobre os imóveis a título de garantia real do mútuo, o que não mereceu qualquer resposta da Requerente. Nesse contexto, alega, o único tema que permaneceu em aberto nas conversações foi a tentativa por parte da Requerente da aquisição gratuita de uma participação social e de atribuição de prerrogativas societárias, que a Requerida não aceitou, consubstanciando este processo um meio de pressão para que a Requerida aceite as condições apresentadas. Sabendo que o ativo da Requerida ascende a 8,6 milhões de euros, com um passivo reduzidíssimo de 510.030,80 € (correspondente a capital e juros do citado Mútuo), a situação líquida da Requerida é de 8 milhões de euros, o que, diz, significa que a Requerente tentou forçar a Requerida a transmitir-lhe, gratuitamente, uma participação social de 25% que tem um valor de mercado de 2 milhões de euros.
Relativamente à falta de legitimidade substantiva, arguiu que a tramitação expedita e célere do processo de insolvência não se compadece com discussões aprofundadas para prova do crédito, em particular quando a lei aplicável à controvérsia é a lei espanhola, razão pela qual o presente processo não é o adequado para discutir a existência do crédito, mas antes o foro comum. Concluiu então que a ilegitimidade que resulta para a Requerente da não adequação dos autos de insolvência para a aferência da existência daquele crédito (mais concretamente da data de vencimento) em função da complexidade da controvérsia que envolve a discussão em sede própria, com aplicação do direito estrangeiro, é claramente uma ilegitimidade processual implicante da absolvição da Requerida da instância.
No mais detalhou as circunstâncias em que o contrato de mútuo foi celebrado, o projeto a que se destinava o montante assim obtido e as negociações que culminaram na prorrogação do prazo até dezembro de 2025.
Terminou sustentando que não se verifica qualquer um dos requisitos de que depende o decretamento da insolvência e requerendo a condenação da Requerente como litigante de má fé no pagamento de multa e indemnização à Requerida.
Por despacho de 31/10/2024, o tribunal apreciou a questão da competência internacional dos tribunais portugueses, julgando improcedente a suscitada incompetência.
Por requerimento apresentado em 30/10/2024, a Requerida veio declarar que estava, naquela data, a submeter, via Citius, no Juízo Central Cível de Lisboa, ação judicial contra a Requerente visando, conforme respetivo petitório: “O reconhecimento e a declaração que a data de vencimento da obrigação de reembolso do montante mutuado pela Ré à Autora, incluindo juros vencidos e vincendos, é no dia 31-12-2025 e não antes; e a condenação da Ré a abster-se da prática de quaisquer atos visando a cobrança dos referidos montantes até à data do seu vencimento, a 31-12-2025, incluindo a propositura de qualquer ação, nos tribunais portugueses ou espanhóis ou outros, ou quaisquer procedimentos de execução ou atuações antagonistas, sem prejuízo de eventual pedido reconvencional que a Ré venha a fazer quanto ao vencimento do mútuo em momento anterior.”
Mais tarde, mas ainda na mesma data, comprovou a submissão de p.i. dirigida no Juízo Central Cível de Lisboa, mediante a qual instaurou contra a Requerente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum na qual, a final, peticionou “1. Ser reconhecido e declarado que a data de vencimento da obrigação de reembolso do montante mutuado pela Ré à Autora, incluindo juros vencidos e vincendos, é no dia 31-12-2025 e não antes; 2. Ser a Ré condenada a abster-se da prática de quaisquer atos visando a cobrança dos referidos montantes até à data do seu vencimento, a 31-12-2025, incluindo a propositura de qualquer ação, nos tribunais portugueses ou espanhóis ou outros, ou quaisquer procedimentos de execução ou atuações antagonistas, sem prejuízo de eventual pedido reconvencional que a Ré venha a fazer quanto ao vencimento do mútuo em momento anterior. 3. Ser a Ré condenada no pagamento à Autora dos danos não patrimoniais e patrimoniais conforme melhor detalhado supra, cuja liquidação se relega para momento oportuno, designadamente em sede de execução de sentença, por ainda não ser possível proceder à sua quantificação.”
Perante a junção de tal documento, a Requerente veio invocar a sua irrelevância para os presentes autos. No que toca à alegada ilegitimidade substantiva, pronunciou-se argumentando que “para requerer a declaração de insolvência, basta a existência de um crédito, sem necessidade de que este esteja vencido, muito menos que o credor possua um título executivo, devendo o credor especificar na petição inicial a natureza, origem e valor do crédito (conforme o artigo 25.º, n.º 1 do CIRE) e apresentar provas da existência do crédito” e ainda que “não se verifica um nível de complexidade que de facto impeça este Douto Tribunal de aferir a situação de insolvência da Requerida, quer do ponto de vista da matéria, quer do ponto de vista do volume e tipo de documentação que será necessário considerar”.
Concluiu pugnando pela improcedência da exceção.
Por despacho proferido em 01/12/2024, foi considerado que estavam já provados, por acordo e confissão, factos que permitiam que fosse proferida sentença, revelando-se assim inútil a realização do julgamento, após o que, de imediato, foi a mesma proferida, culminando com a seguinte decisão:
«Nestes termos e com estes fundamentos, julgando a presente ação intentada por Ikav Energy Spain, S.L. improcedente, absolvo a Requerida Graciosa Parcela - Lda., pessoa coletiva com sede em Lisboa (…), do pedido de declaração de insolvência.
Mais absolvo a Requerente do pedido de condenação como litigante de má fé.
Custas pela Requerente, com taxa de justiça reduzida a 1/4 (art.º 304º do CIRE).
Registe e notifique».
Não se conformando com a sentença assim proferida, dela apelou a Requerente que terminou com as conclusões que aqui se reproduzem:
a) Pretende a ora Recorrente reverter o sentido da decisão proferida pelo Tribunal a quo, a qual absolveu a Requerida Graciosa Parcela, Lda. do pedido de insolvência contra si apresentado, sem que tenha sido designada audiência de julgamento.
b) A decisão deve ser considerada nula, por não ter sido realizada audiência de discussão e julgamento, fase obrigatória não só por uma questão de necessidade de discussão e ponderação da prova junta aos autos, mas, principalmente, por força da letra do artigo 35.º do CIRE, que torna a audiência de discussão e julgamento obrigatória, não facultativa.
c) Neste sentido, é de considerar o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13 de setembro de 2022, proferido no âmbito do processo n.º 586/22-9T8ACB.C1, disponível em www.dgsi.pt.
d) Efetivamente, é entendimento da jurisprudência que a redação do número 1 do artigo 35.º do CIRE – em particular a expressão "é logo marcada audiência de discussão e julgamento para um dos cinco dias subsequentes" – indica que, na presença de oposição do devedor, é obrigatória a realização da audiência, sem exceções.
e) E nem se diga que, in casu, tal entendimento não se aplica por se poder considerar a audiência como um ato inútil. Muito pelo contrário, nos presentes autos a audiência de discussão e julgamento demonstra-se essencial para trazer à luz a falta de substância e, até, falsidade da prova apresentada pela Requerida.
f) Assim, é nula a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, por fazer tábua rasa da lei aplicável, e ignorar um passo (diga-se, audiência de discussão e julgamento) essencial à boa decisão da causa, devendo tal nulidade ser declarada com os devidos efeitos legais.
g) É ainda nula a Sentença por força da contradição entre a matéria de facto provada e a decisão proferida.
h) Em particular, relativamente aos factos 3 a 5 elencados na Sentença, não restam que as Partes aceitam que a ora Recorrente emprestou à Requerida a quantia de € 405.000,00, e que a primeira reclama nesta data a quantia de €508.680,00, valor que corresponde ao montante de capital e juros.
i) A própria existência do crédito não é posta em causa pelas Partes, como foi dado como provado pelo Tribunal, mas tão o vencimento.
j) O que resulta da matéria de facto constante da sentença não é a inexistência do crédito, mas sim a sua falta de vencimento.
k) O Tribunal a quo, apesar de considerar provada a existência do crédito, vem declarar na decisão proferida que o mesmo não existe, confundindo manifestamente os conceitos de existência e vencimento.
l) No caso em apreço, é manifesto que a discussão nos presentes autos assenta apenas no vencimento (ou não) do crédito reclamado pela Recorrente, pelo que o Tribunal a quo ao ter considerado na matéria de facto provado a existência do crédito e decidido, a final, que sua existência é contestada, retirando daí consequência para a decisão da causa, fere manifestamente a sentença de nulidade, por contradição entre os factos e o direito, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
m) Quanto à matéria de facto, a Recorrente alegou um conjunto de factos, juntando a devida prova documental, que não constam do acervo da matéria de facto provada ou não provada.
n) Ao juntar o Documento n.º 6, a Recorrente, vem fazer prova de que apesar do vencimento do crédito, em 11 de janeiro de 2024, a Recorrida assumiu, expressamente, não ter capacidade para cumprir as suas obrigações.
o) Isto numa data em que a Recorrida já se encontrava em circunstâncias em tudo semelhantes às atuais, não tendo agora apresentado quaisquer provas de melhoria da sua situação financeira.
p) Nestes termos, também deveria o Tribunal a quo ter considerado a seguinte factualidade: “A Requerida, em 11 de janeiro de 2024, já após data de vencimento do Contrato de Empréstimo, enviou à Requerente o documento n.º 6 junto com a PI cujo respetivo conteúdo dá por reproduzido”.
q) Quanto aos pontos 9 e 10 da fundamentação da sentença, o Tribunal dá os documentos n.º 3 e 4 juntos com a oposição como suficientes para considerar que a Requerida tem um ativo suficiente para liquidar o crédito que invoca.
r) Os documentos n.º 3 e 4, no entanto, foram impugnados pela Recorrente, não podendo ser considerado que existe acordo quanto aos mesmos.
s) Mais, a Recorrida não apresenta provas concretas que sustentem os números por si apresentados.
t) A Sentença deve ser revogada, com as devidas consequências legais, por ignorar factos devidamente provados, e basear-se em meras alegações infundadas.
u) Do ponto de vista dos requisitos para declaração de insolvência, antes de mais, a Recorrente tem legitimidade para apresentar o pedido, independentemente de saber se o crédito está vencido ou, até, se se tratar de um crédito litigioso.
v) O que releva para efeitos da presente ação é a manifesta incapacidade da Recorrida de cumprir as suas obrigações financeiras, e de demonstrar, fundamentadamente, uma boa situação de liquidez.
w) A posição da Recorrida assenta apenas num projeto imobiliário que, até à data, ainda não se iniciou.
x) Os próprios sócios da Requerida reconheceram não ter capacidade financeira para liquidar as suas dívidas.
y) A questão do vencimento do crédito é indiferente para a discussão dos autos, que se deve debruçar apenas sobre a situação financeira da Recorrida.
z) Mesmo que se considerasse relevante a questão do vencimento, os factos relevantes encontram-se devidamente esclarecidos e documentos.
aa) O Tribunal a quo não pode escudar-se numa falsa ideia de que há um tema em discussão “demasiado complexo” para ser abordado em sede de audiência e discussão e julgamento de um processo de insolvência quando (i) a questão do vencimento não é essencial à decisão sobre a situação de insolvência, e (ii) os factos relevantes encontram-se devidamente documentados e são de apreensão simples.
bb) Ademais, o Tribunal a quo justifica a sua posição com base na necessidade de confirmar a existência do crédito, no entanto, as partes não põem em causa a questão da existência, mas tão só do vencimento.
cc) Tanto assim é que, é manifesto que a instauração da ação cível por parte da Requerida não teve qualquer outro fim senão impedir que fosse conhecida a sua verdadeira situação de solvabilidade, o que resulta desde logo demonstrado pelo facto de o pedido por si formulado relativamente ao crédito da ora Recorrente diz apenas respeito ao seu vencimento!
dd) Ora, se efetivamente estivéssemos perante um crédito de natureza litigiosa e complexa o pedido formulado não se subsumiria apenas à questão do seu vencimento.
ee) Deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente, com consequente declaração de nulidade da sentença e respetivo agendamento de audiência para efeitos de discussão da prova junta aos autos.
ff) Alternativamente, e caso não se reconheça a sentença nula, o que apenas por dever de patrocínio se equaciona, sempre a sentença recorrida deve ser revogada, porquanto, não existem fundamentos válidos que impeçam que o crédito da Recorrente não seja perfunctoriamente reconhecido, bem como declarado o seu vencimento, e consequentemente, ser conhecida a verdadeira situação financeira da Recorrida.
A Requerida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida.
No despacho de admissão de recurso foi consignado que «Invoca a recorrente que a decisão recorrida é nula por a decisão ter sido proferida sem ter sido designada audiência de julgamento. No caso, o tribunal justificou o facto de não designar data para audiência final, concretamente, por a considerar inútil. Donde, não se vislumbra que tenha sido cometida a apontada nulidade».
Os autos subiram então a este Tribunal e, colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar a decidir.
*
II-/ Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, como decorre dos arts.º 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões essenciais que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em:
(i) Aferir da putativa nulidade de sentença (com agendamento de audiência para efeitos de discussão da prova junta aos autos - ponto ee-) das conclusões recursivas):
a-) por não realização do julgamento obrigatório, ao contrário do exigido pelo art.º 35.º n.º 2 do CIRE (ponto a-) a f-) das conclusões recursivas);
b-) por contradição entre a matéria de facto provada e a decisão tomada, à luz do art.º 615.º n.º 1 al. c) do CPC (ponto f-) a i) das conclusões recursivas);
(ii) Apreciar a impugnação da matéria de facto (ponto m-) a s-) das conclusões recursivas);
(iii) Apreciar, em caso de não se reconhecer a nulidade da sentença, se deve, ainda assim, a mesma ser revogada por inexistirem impedimentos legais que obstem à verificação dos requisitos da insolvência e prosseguimento dos autos (ponto t) a dd-) e ff-) das conclusões recursivas).
*
III-/ Fundamentação de facto:
Com interesse para a decisão foram dados por provados os seguintes factos:
1- Graciosa Parcela - Lda., pessoa coletiva, tem sede em Lisboa.
2- A Requerida tem como objeto social a exploração de empreendimentos turísticos em espaço rural, próprios ou alheios, com possibilidade de exercer atividades complementares, nomeadamente restauração e turismo, compra, venda e revenda de bens imobiliários e tem o capital social de €100.000,00.
3- A Requerida e a Requerente celebraram entre si um acordo denominado “Contrato de Empréstimo”, datado de 5 de março de 2021, ao abrigo do qual a Requerente declarou conceder à Requerida, que o aceitou, um empréstimo no montante máximo de €700.000,00, com vencimento a 31/12/2023.
4- Ao abrigo do acordo mencionado em 3) a Requerente transferiu para a Requerida €200.000,00 em março de 2021 e €250.000,00 em agosto de 2021.
5- Na sequência dos factos elencados em 3) e 4), a Requerente reclama da Requerida o pagamento da quantia de €508.680,00, valor de capital e juros.
6- Até à data da instauração da presente ação, a Requerida não entregou à Requerente a quantia referida em 5).
7- A Requerida juntou certidão emitida pela AT, datada de 12/09/2024, atestando que a mesma tem a sua situação tributária regularizada.
8- A Requerida juntou certidão emitida pela Segurança Social, datada de 12/09/2024, certificando que a mesma tem a sua situação contributiva regularizada.
9- A Requerida juntou balanço, por referência à data de 30/09/2024, do qual resulta o ativo de €1.252.380,38, o passivo de €510.030,80 e o capital próprio positivo de €742.349,58 (doc. 3).
10- A Requerida juntou outro balanço, por referência à data de 30/09/2024, no qual estará refletida a reavaliação dos imóveis, do qual resulta o ativo de €4.778,043,08, o passivo de €510.030,80 e o capital próprio positivo de €4.297.423,71 (doc. 4).
11- Em 30/10/2024 a Requerida instaurou contra a Requerente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, dirigida ao Juízo Central Cível de Lisboa na qual, a final, peticionou:
«1. Ser reconhecido e declarado que a data de vencimento da obrigação de reembolso do montante mutuado pela Ré à Autora, incluindo juros vencidos e vincendos, é no dia 31/12/2025 e não antes;
2. Ser a Ré condenada a abster-se da prática de quaisquer atos visando a cobrança dos referidos montantes até à data do seu vencimento, a 31/12/2025, incluindo a propositura de qualquer ação, nos tribunais portugueses ou espanhóis ou outros, ou quaisquer procedimentos de execução ou atuações antagonistas, sem prejuízo de eventual pedido reconvencional que a Ré venha a fazer quanto ao vencimento do mútuo em momento anterior.
3. Ser a Ré condenada no pagamento à Autora dos danos não patrimoniais e patrimoniais conforme melhor detalhado supra, cuja liquidação se relega para momento oportuno, designadamente em sede de execução de sentença, por ainda não ser possível proceder à sua quantificação». *
IV-/ Do mérito do recurso:
(i) Da nulidade da sentença e suas consequências (ponto ee-) das conclusões recursivas):
a-) Principia a recorrente por defender a nulidade da sentença objeto do presente recurso, o que, pede, seja declarado, com consequente agendamento de audiência para efeitos de discussão da prova junta aos autos. Defende, pois, a obrigatoriedade da realização do julgamento, na presença de oposição do devedor, o que, diz, resulta do n.º 1 do art.º 35.º do CIRE, pelo que, concluiu, é nula a sentença proferida pelo Tribunal a quo, por fazer tábua rasa da lei aplicável, e ignorar um passo (diga-se, audiência de discussão e julgamento) essencial à boa decisão da causa, devendo tal nulidade ser declarada com os devidos efeitos legais (ponto a-) a f-) das conclusões recursivas);
Vejamos então.
As causas de nulidade de uma sentença, que consubstanciam vícios intrínsecos à mesma, afetando a sua estrutura, estão taxativamente enunciadas no art.º 615.º do CPC, sendo que, no caso dos autos, a Recorrente não integra em nenhuma delas a alegada nulidade de que diz padecer a sentença recorrida.
Ora, todos sabemos que a omissão de um determinado ato, que a lei prescreva, encerra em si mesma uma nulidade processual, que obriga a que a parte tome posição nos autos perante o juiz da 1º instância, reclamando contra a omissão daquela essencial formalidade.
Na verdade, determina o art.º 195.º n.º 1 do CPC que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva” pode resultar numa nulidade processual, “quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.Tais nulidades, que respeitam a atos de tramitação ou sequência processual, salvo os casos de conhecimento oficioso, devem ser arguidas perante o juiz (arts.º 196.º e 197.º do CPC) e é a decisão que for proferida que poderá depois ser impugnada pela via recursória.
Não se tratando, no caso, de nulidade de conhecimento oficioso (art.º 196º do CPC), e não a tendo a Recorrente arguido perante o juiz da 1ª instância (art.º 197.º do CPC), estaria, em princípio, vedado a esta Relação apreciá-la, não podendo extrair-se dali, e sem mais, a conclusão visada pela Recorrente de que a sentença é nula por ter sido ignorado um passo essencial à boa decisão da causa. Considerando a velha máxima de que “dos despachos recorre-se e das nulidades reclama-se”, deveria a Recorrente, ao tomar conhecimento da sentença objeto do presente recurso, reclamar perante o tribunal a quo – arguindo a nulidade decorrente da omissão da realização do julgamento - suscitando então a prolação de despacho sobre tal nulidade, podendo posteriormente, e então aí, dependendo da decisão proferida, a mesma ser eventualmente impugnada por via de recurso (ver, neste sentido, o Acórdão da Relação de Évora de 13/09/2018, relatado por Vítor Sequinho, disponível na dgsi, assim sumariado «O meio processual próprio para a parte reagir contra uma omissão do tribunal que, no seu entendimento, constitua nulidade processual nos termos do artigo 195.º do CPC, é a reclamação para o mesmo tribunal e não o recurso da sentença proferida posteriormente ao momento em que a referida omissão ocorreu»).
Não foi esse o procedimento da Recorrente, que se limitou a atacar pelo recurso a sentença proferida por alegada nulidade, que, todavia, não cuidou de juridicamente enquadrar.
Não obstante, e ainda que pudéssemos equacionar, na linha de defesa desenvolvida por Abrantes Geraldes (em Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª Ed., págs. 23/24), que tal omissão poderia desembocar na nulidade da própria decisão, por dar cobertura àquele vício e nulidade processual, fundamentando a mesma em excesso de pronúncia, por ter sido proferida decisão sem que os autos se mostrassem processualmente preparados para o efeito, à luz do art.º 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, certo é que, também aí, e como vimos, não enquadrou a Recorrente a arguida nulidade.
Na verdade, limita-se a Recorrente a afirmar que a sentença é nula por ter sido proferida sem que tivesse sido realizada a necessária instrução probatória, obrigatória à luz do art.º 35.º do CIRE, para apurar a situação económica e financeira da sociedade requerida, impossibilitando assim uma apreciação justa e equitativa da matéria de facto relevante.
Temos consciência que a formulação do consagrado no aludido art.º 35.º n.º 1 do CIRE aponta para a obrigatoriedade da audiência sempre que tenha sido deduzida oposição ou tenha sido dispensada a audiência do requerido. Nesse sentido vai a esmagadora maioria das decisões dos nossos tribunais superiores, que se têm pronunciado no sentido da obrigatoriedade da realização da audiência e mesmo da inaplicabilidade do disposto no art.º 510.º, n.º 1, al. b) do CPC, que permite que o tribunal conheça imediatamente do mérito da causa sempre que o estado do processo o permitir sem necessidade de mais provas (ver, entre outros, os acórdãos: do TRP, de 09/10/2012, no proc. 361/12.9TJPRT-B.P1, relatado por Maria de Jesus Pereira e de 03/11/2014, no proc. n.º 1136/12.0TYVNG. P1, relatado por Manuel Fernandes; e deste TRL, de 16/03/2010, no proc. 1742/09.0TBBNV.L1-1, relatado por Manuel Ribeiro Marques, todos disponíveis na dgsi, e, mais recentemente, em 07/02/2023, no proc. 19048/22.8T8LSB.L1, relatado por Nuno Teixeira, ao que se julga não publicado).
Conscientes dos argumentos em defesa dessa posição cumpre-nos, todavia, questionar se assim é. Fará, por exemplo, algum sentido, estando os factos provados por acordo ou confissão, obrigar o tribunal a realizar uma audiência? E se estiver em causa um pressuposto meramente processual, ou falta dele, por exemplo, a ilegitimidade ativa do requerente para pedir a insolvência do requerido, ainda assim, em caso de procedência dela, tem o juiz que marcar julgamento? Se a mesma configurar um ato absolutamente inútil, logo, proibido por lei, ainda assim, o CIRE obriga à realização do julgamento?
Não cremos que assim seja. E a tanto não obsta, diremos ainda, qualquer especificidade do direito da insolvência, pois que o mesmo não pode deixar de atender às regras do direito comum, tendo o ordenamento jurídico, no seu todo, uma lógica que deve ser respeitada; e, neste contexto, não pode ser ignorado que o art.º 130.º do CPC impede a realização no processo de atos inúteis, considerando-os ilícitos.
E assim também foi já decidido nos acórdãos, cuja argumentação subscrevemos, deste TRL, em 02/11/2010, no proc. 1498/09.7TYLSB.L1-7, relatado por Maria João Areias, em 22/11/2011, no proc. 433/10.4TYLSB.L1-7, relatado por Luís Lameiras e, mais recentemente, em 17/10/2023, no proc. 13755/22.2T8SNT.L1-1, relatado por Isabel Fonseca, todos publicados na dgsi. Nesta linha de pensamento, também no processo n.º 7673/21.9T8SNT-L1, desta secção, relatado por Amélia Rebelo em 06/09/2022, onde a aqui Relatora e a 1ª Adjunta ali foram adjuntas, ao que se julga também não publicado, foi consignado que «Gestão – da resolução da questão de facto - que no processo de insolvência a preocupação do legislador com a tramitação célere dos autos relegou para a fase da audiência de julgamento, nos termos do art.º 35º, nº 5 do CIRE, mas sem que daí - ou do teor literal do art.º 35º, nº 1 do CIRE - resulte uma qualquer preclusão da possibilidade de prévio saneamento dos autos através do conhecimento de questões de direito que, independentemente do resultado da instrução dos factos alegados e/ou adquiridos nos autos, obstem à procedência da pretensão do requerente; ou, na perspetiva inversa, sem que daí resulte imposição de prosseguimento dos autos para audiência ainda que o juiz constate a verificação das referidas questões de direito e/ou que a apreciação a realizar se resume a questões desta natureza».
Temos, pois, por certo que a invocação de nulidade neste contexto não tem suporte legal. Não só a Requerente não a reclamou perante o juiz do processo, como, no despacho que admitiu o recurso interposto a Sra. Juiz justificou o facto de não ter designado data para audiência final, concretamente, por a considerar inútil, o que, em face da forma como configurou a sua decisão, nada temos a apontar, não se vislumbrando assim que tenha sido cometida qualquer nulidade que afete a sentença proferida nos autos.
Improcedem, pois, nesta parte, as conclusões de recurso.
b-) De seguida, invocada a Recorrente a nulidade da sentença por contradição entre a matéria de facto provada e decisão tomada, à luz do art.º 615.º n.º 1 al. c) do CPC (ponto f-) a i) das conclusões recursivas).
Esta alínea prescreve que é nula a sentença em que os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Sobre esta matéria, dizem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Filipe Pires de Sousa (no CPC anotado, Vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 763) que «11. A nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente.(…)».
Da leitura da sentença recorrida não detetamos o vício apontado, não resultando do texto da mesma qualquer contradição entre os seus termos, inexistindo qualquer contradição entre os fundamentos factuais e jurídicos ali expostos e a decisão depois tomada, revelando a sentença em crise uma sequência lógica de raciocínio que aponta depois, de forma coerente, para a decisão assumida. Do recurso interposto, resulta, isso sim, a insatisfação da Recorrente com o resultado final, apontando-lhe falhas no julgamento realizado, não tratáveis ao nível de qualquer hipotética nulidade.
Veja-se que na decisão recorrida é considerado não haver dúvidas que a Recorrente emprestou à Requerida a quantia de €405.000,00, e que a primeira reclama nesta data a quantia de €508.680,00, valor que corresponde ao montante de capital e juros, e que a Requerida não devolveu. E tal matéria foi julgada assente. Não obstante, ali se considera também que tal crédito é litigioso por não estar definida entre as partes a data do seu vencimento. E isso é claramente assumido na sentença em recurso ao consignar-se que «Portanto, do cenário que se nos apresenta emerge que as partes dissentem quanto à existência do crédito (vencimento), tendo a Requerida instaurado uma ação em que pede que esta questão seja apreciada e decidida definitivamente», para depois concluir que «… é também seguro que não há insolvência sem pelo menos uma obrigação vencida. Deixa de estar em causa uma simples legitimidade processual e deve passar a exigir-se legitimidade substantiva».
Independentemente da bondade do assim afirmado, tratável ao nível do enquadramento jurídico realizado, não se vislumbra, todavia, que a sentença padeça da patologia alegada, razão pela qual, e sem mais, julgamos improcedente a arguida nulidade de sentença.
*
(ii) Da impugnação da matéria de facto (ponto m-) a s-) das conclusões recursivas):
Sobre a impugnação da matéria de facto, analisada à luz das exigências do consagrado no art.º 640.º do CPC, importa ter presente que o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição do recurso, (i) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (ii) os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados e (iii) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Fazendo depois apelo ao Acórdão do STJ n.º 12/2023, de 14/11 (publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14), na interpretação do mesmo, teremos então que atentar que aquela primeira menção (i) deve constar das conclusões do recurso, já as (ii) e (iii) devem constar da sua motivação e assim do corpo das alegações.
Revertendo aos autos, verificamos que em sede de conclusões recursivas, defende a Recorrente que o Tribunal a quo julgou incorretamente de facto, nos termos seguintes:
a-) deveria ter considerado a seguinte factualidade, que deve ser aditada: “A Requerida, em 11 de janeiro de 2024, já após data de vencimento do Contrato de Empréstimo, enviou à Requerente o documento n.º 6 junto com a PI cujo respetivo conteúdo dá por reproduzido”;
B-) No que concerne aos factos julgados provados sob os pontos 9 e 10, diz que os documentos que os atestem, 3 e 4, foram por si impugnados, não podendo assim ser julgados provados “por acordo e confissão”, não apresentando a Recorrida provas concretas que sustentem os números por si apresentados.
Vejamos então.
No que concerne ao pedido de aditamento, alega a Requerente que ao juntar o Documento n.º 6 com a p.i., fez prova de que apesar do vencimento do crédito, em 11 de janeiro de 2024, a Recorrida assumiu, expressamente, não ter capacidade para cumprir as suas obrigações.
Ora, tal questão - vencimento do crédito - está em discussão nos autos, pelo que tal documento não seria suficiente para assentar que após o vencimento da dívida (objeto de litígio) a Requerida confessou que não tinha capacidade para cumprir (declaração que, no quadro do relacionamento comercial entre as partes, em negociações, com propostas e contrapropostas, não poderia sustentar uma confissão com a amplitude que a Requerente pretende). Assim, servindo os documentos para atestar e comprovar factualidade alegada com interesse para a decisão da causa, o aludido documento não suporta o facto alegado, pois que dos autos resulta apenas que a Requerida, em 11 de janeiro de 2024, enviou à Requerente o documento n.º 6 junto com a PI, com o conteúdo nele inserto, o que se revela algo inócuo para a decisão da causa, atento o enquadramento jurídico dado na sentença em crise e mesmo na configuração dada ao litígio pela própria Recorrente. Com efeito, ainda que fosse assente que a Recorrida, em 11 de janeiro de 2024, transmitiu à Recorrente que não tinha “atualmente capacidade para reembolsar o montante do empréstimo em dívida”, estando em discussão a data do vencimento daquele empréstimo, tal declaração, por si só, em nada alteraria a decisão tomada nos autos, tanto mais que o simples facto de a apelada se ter manifestado incapacitada de suportar aquele concreto encargo, naquela data, não significa que a mesma existisse à data da presente ação ou que aquela declaração não servisse apenas para renegociar um prazo mais alargado de pagamento por questões meramente comerciais ou que a requerida não tivesse património e/ou liquidez para a suportar. Por essa razão, e dado que controvertido está o vencimento do crédito da Requerente, não só não vemos utilidade nesse aditamento.
No que concerne aos pontos 9 (A Requerida juntou balanço, por referência à data de 30.9.2024, do qual resulta o ativo de €1.252.380,38, o passivo de €510.030,80 e o capital próprio positivo de €742.349,58 (doc.3)) e 10 (A Requerida juntou outro balanço, por referência à data de 30.9.2024, no qual estará refletida a reavaliação dos imóveis, do qual resulta o ativo de €4.778,043,08, o passivo de €510.030,80 e o capital próprio positivo de €4.297.423,71 (doc.4)) os mesmos tiveram por base, não a confissão ou o acordo das partes, mas sim e apenas o que resulta inserto nos aludidos documentos, pois que, na sentença em crise foi consignado que “Com relevo para a decisão, com apoio no acordo das partes nos articulados e nos documentos juntos aos autos, há que considerar a seguinte factualidade (…)».
Seja como for, diremos também, o facto de a Requerente ter impugnado o teor dos documentos 3 e 4, nos termos da impugnação realizada, não impediam que aqueles factos fossem dados por assentes, nos moldes restritos em que o foram, ou seja, que a Requerida juntou aos autos dois balanços de onde resulta que (….). Veja-se que ao impugnar tais documentos, no requerimento de 08/10/2024, a Recorrente alegou apenas que «No que se refere aos Documentos n.º 3 e 4, deverá recordar-se que na sua Petição Inicial a Requerente já referiu que a Requerida incumpriu a sua obrigação legal de apresentação das contas, o que, como se sabe, não só é indício de uma má condição financeira da empresa como constitui uma presunção de insolvência culposa…. Sendo que muito se estranha que a Requerida nem sequer se pronuncie quanto a tal demora, limitando-se a juntar aos autos balanços a 30 de setembro de 2024, no qual é atribuído ao ativo um valor cuja racionalidade se desconhece».
Como vemos, a impugnação deduzida está limitada ao alegado desconhecimento da racionalidade referente ao valor atribuído ao ativo da empresa, único que ali é questionado, sendo certo que, quer nas suas alegações de recurso quer nas conclusões do mesmo, nenhuma ilação retira a Recorrente do assim alegado, não pedindo que tais factos sejam julgados não provados ou restritivamente provados, não vendo este tribunal razão para, sem mais, proceder à alteração da aludida matéria de facto, que se restringe a assentar a junção dos dois balanços aos autos e o que neles foi consignado.
Julgamos, pois, e sem mais, improcedente a impugnação da matéria de facto, que se mantém assim inalterada nos termos julgados na sentença em recurso.
*
(iii) Da alegada verificação dos requisitos da insolvência e prosseguimento dos autos (ponto t) a dd-) e ff-) das conclusões recursivas):
De acordo com a alegação e no enquadramento jurídico feita pela Requerente, na petição inicial, reiterada em apelação, a Requerida está em estado de insolvência, o que cumpre declarar, à luz do disposto nos arts.º 3.º n.º 1 e 20.º n.º 1, alínea b) do CIRE.
Argumenta a Apelante que estando provado o seu crédito e apenas em discussão a data do vencimento do mesmo, deveriam os autos prosseguir, pois que não é objeto da presente ação o mérito de tal crédito, nem sequer o eventual cumprimento e/ou validade do contrato de mútuo celebrado entre as partes, pois que o que se discutirá em julgamento será apenas e só a situação de insolvência da Recorrida, revelando-se assim, conclui, absolutamente indiferente a discussão sobre o vencimento, ou não, do seu crédito.
A Requerida, por seu lado, afirma em suma, que o contrato celebrado entre as partes não foi incumprido, pois que foi prorrogado o prazo para cumprimento da sua prestação, que ainda se não venceu, pelo que, não tendo quaisquer credores, tendo património de valor muito superior ao montante reclamado e tendo capital próprio positivo, inexiste qualquer facto que possa caber numa das alíneas do art.º 20.º n.º 1 do CIRE.
Vejamos então.
Nos termos do art.º 3.º nº. 1 do CIRE é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, acrescentado o seu n.º 2 que no caso de o devedor ser uma pessoa coletiva, é também considerado insolvente quando o seu passivo seja manifestamente superior ao seu ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis; sendo que, para se poder afirmar essa situação de insolvência, a lei determina a verificação de qualquer dos factos-índices ou presuntivos tipificados nas diversas alíneas do n.º 1 do art.º 20.º do mesmo código.
Carvalho Fernandes e João Labareda (no CIRE, 3ª Edição, Quid Juris, na pág. 200, ponto 12), ensinam, nesta matéria, que «(…) O estabelecimento de factos presuntivos da insolvência tem por principal objetivo permitir aos legitimados o desencadeamento do processo, fundados na ocorrência de alguns deles, sem haver necessidade, a partir daí, fazer a demonstração efetiva de situação de penúria traduzida na insusceptibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, nos termos em que ela é assumida como característica nuclear da situação de insolvência (vd. art.º 3.º, n.º 1).
Caberá então ao devedor, se nisso estiver interessado e, naturalmente, o puder fazer, trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, pese embora a ocorrência do facto que corporiza a causa de pedir. Por outras palavras, cabe-lhe ilidir a presunção emergente do facto-índice (cf. ac. da Relação de Évora de 25/10/2007, in CJ, 2007, IV, pág. 259).
Esta solução está, de resto, hoje claramente consagrada no nº 3 do art.º 30º».
Do regime legal convocado resulta então que o devedor demandado poderá deduzir oposição, impugnando a existência do facto em que se funda a pretensão deduzida, podendo também invocar a inexistência de qualquer situação de insolvência, alegando outros factos concretos de onde se possa firmar que é solvente, como decorre do disposto no n.º 3 do art.º 30.º do CIRE.
Donde, e em conclusão, verificamos que a situação de insolvência deve decorrer da impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas, pelo que, para contrariar essa impossibilidade, na demonstração da sua solvência, tem o devedor que comprovar que, pelo contrário, tem liquidez, ou tem crédito, que lhe permite fazer face a esse incumprimento.
Não obstante, ainda que a lei faça referência a “obrigações vencidas”, resulta também do art.º 20.º n.º 1 do CIRE, que a declaração de insolvência pode ser requerida por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito. Por ser assim, a doutrina e jurisprudência têm vindo a, pacificamente, sustentar que quem se arrogue credor, ainda que o seu crédito seja litigioso, esteja sujeito a condição ou não esteja vencido, pode intentar uma ação pedindo a declaração de insolvência da sua devedora. Neste enquadramento, tem legitimidade processual para requerer a insolvência qualquer credor que se arrogue titular de um crédito, ainda que esse crédito se revele controvertido e litigioso (ver, nesse sentido, o acórdão do nosso STJ, de 29/03/2012, proferido no proc. 1024/10.5TYVNG.P1.S1, e relatado por Fernandes do Vale, disponível na dgsi, assim sumariado «I- O titular de crédito litigioso encontra-se legitimado, ao abrigo do preceituado no art.º 20.º, n.º 1, do CIRE, para requerer a declaração de insolvência do respetivo devedor. II- Trata-se, in casu, de legitimidade processual ou ad causam, não contendente com o mérito da causa a que diz respeito a existência ou inexistência do controvertido crédito»).
Revertendo então aos autos, adquirido fica que o facto de o crédito invocado pela Recorrente ser litigioso - na medida em que é questionada a data do seu vencimento por parte da Recorrida - não é impeditivo do pedido de declaração de insolvência, assistindo assim legitimidade processual à Recorrente para lançar mão do presente processo. Acresce que, e como se verifica também, a Requerida não nega a existência do crédito da Requerente, não diz não ser devedora da mesma, questiona, isso sim e apenas, a data do vencimento do aludido crédito. O crédito invocado pela Requerente é assim controvertido na medida em que as partes não se entendem sobre o seu vencimento, isto é, sobre a data em que o mesmo se venceu, sobre o momento a partir do qual a devedora se encontra na necessidade de cumprir com a sua obrigação.
E foi neste enquadramento que o tribunal recorrido decidiu, reconhecendo legitimidade ativa ao titular de crédito litigioso para o pedido de declaração de insolvência, assim reconhecendo à Recorrente legitimidade processual para o pedido de insolvência que deduziu, concluiu, no entanto, e depois, pela sua ilegitimidade substantiva, sustentando a sua decisão no facto de «… nas situações como as dos autos, em que o credor requerente da insolvência se apresenta como titular de um crédito litigioso e constitui o único credor (conhecido) do devedor, não há fundamento de facto, nem de Direito para prosseguir a presente ação», e, mais adiante «E se é certo que a insolvência pode decorrer do incumprimento de uma única obrigação, é também seguro que não há insolvência sem pelo menos uma obrigação vencida. Deixa de estar em causa uma simples legitimidade processual e deve passar a exigir-se legitimidade substantiva», argumentando ainda que «Acresce que a verificação do crédito terá de passar pela apreciação de um acordo ao qual é aplicável a lei espanhola, factor que irá dificultar a sua definição e perante ao circunstancialismo exposto, cremos que a jurisprudência citada nos permite concluir que não deve ser em sede de processo de insolvência que se vai apurar da responsabilidade da Requerida. A questão terá de ser apreciada noutra ação, já pendente, na qual se irá apreciar a questão fundamental da qual depende a existência do crédito evocado nestes autos. Sendo a ação improcedente, a Requerida é responsável pelo pagamento. Sendo procedente, ficará definitivamente determinado o vencimento e exigibilidade do crédito. É neste contexto que devemos admitir que o processo de insolvência possa não configurar o adequado para apurar da existência do crédito».
Não concordamos nem subscrevemos a totalidade do assim afirmado.
Com efeito, e desde logo, não acompanhamos a decisão quando admite que a “complexidade” da apreciação do crédito implica que o processo de insolvência possa não configurar o adequado para apurar da existência do mesmo. Como já concordamos em decisão anterior, no processo acima referido, n.º 7673/21.9T8SNT-L1, desta secção, relatado por Amélia Rebelo em 06/09/2022, em que tivemos intervenção, temos por assente que o processo de insolvência é autossuficiente e, por isso, o próprio para, independentemente da natureza e complexidade do litígio, apurar da legitimidade substantiva do credor requerente que invoca um crédito litigioso, ali se apelando às palavras de Soveral Martins (em “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2015, p. 52) quando diz que “… o tribunal pode decidir que não está provada a existência do crédito. Mas isso é coisa diferente de afirmar que não decide porque a questão… é complicada. Quantas questões complicadas e complicadíssimas eram apreciadas e (bem) decididas em processos sumários e sumaríssimos».
Aliás, diga-se, nem vemos sequer que a discussão do alegado crédito, reconhecido pela Requerida, e limitado à apreciação da data do seu vencimento, com base na troca de correspondência entre as partes e na interpretação das declarações negociais estabelecidas entre elas, assuma dificuldade ou complexidade tal que justifique ser discutida em ação própria, movida certamente pela Recorrida também como uma forma de obstar ao andamento dos presentes autos.
Tal afirmação da autossuficiência não nos impede, ainda assim, de acolher o juízo inserto na sentença recorrida quando interpretada no sentido de que a factualidade alegada pela Recorrente não é suficiente para integrar os pressupostos invocados para a declaração da insolvência da Recorrida. Como ali se entendeu, dada a forma como a Requerente configurou o presente processo de insolvência «não há fundamento de facto, nem de Direito para prosseguir a presente ação».
Vejamos porquê.
Considerou a 1ª instância, e bem, que o crédito (litigioso) da Requerente se perfila nos autos como sendo o único crédito alegadamente em incumprimento, e se é certo que a insolvência pode decorrer do incumprimento de uma única obrigação, é também seguro que não há insolvência sem pelo menos uma obrigação vencida.
Donde, não consubstanciando a ação de insolvência uma ação de cobrança de dívida, pois que nela se visa apenas apreciar o pedido de declaração de insolvência, tem o credor requerente o ónus de alegar a existência de, pelo menos, uma obrigação vencida, como também os demais factos suscetíveis de concretizar um ou mais factores índice de insolvência previstos no aludido n.º 1 do art.º 20º do CIRE, que permitam depois concluir pela impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas.
Tal não significa que tenham que existir mais credores e que o crédito da Requerente não baste. Recorrendo às palavras de Catarina Serra (na obra “Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2019” págs. 43 e 57) com interesse para a decisão aqui em causa, diz a mesma que «… a pluralidade de credores não é um requisito [para a abertura] do processo de insolvência nem uma condição para a sua procedência» e mais adiante «… a única exigência legal para que se verifique a insolvência é que haja uma ou mais obrigações vencidas», razão pela qual, reportando tais ensinamentos aos autos, nada impedia a Recorrente de pedir a insolvência da Recorrida, alegando que, pelo menos, o seu crédito estava vencido e incumprido pela mesma.
Não obstante, e ainda assim, tal alegação, por si só, desacompanhada de outra factualidade, não permite concluir pela verificação de qualquer dos factos índice que a lei exige para se poder presumir a insolvência da devedora, só então podendo a mesma infirmar essa factualidade ou provar a sua solvência.
Veja-se que para sustentar o pedido de insolvência, a Recorrente apela apenas ao disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 20º. do CIRE, onde se consigna que «1 - A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos seguintes factos: (…) b) «falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade do devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.».
Da norma em causa podemos, desde logo, inferir que não basta para fundamentar uma insolvência o facto de estarmos perante uma dívida elevada que não se encontre satisfeita. O montante e as circunstâncias do crédito invocado como fundamento para o pedido de insolvência deverão revelar que a devedora se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, na linha do estabelecido no art.º 3º do CIRE.
A falta de cumprimento de uma ou mais obrigações, como se menciona no preceito em análise, terá de ser complementada pela comprovação de um quadro factual concreto, que se funda no montante da obrigação incumprida ou nas circunstâncias do incumprimento de tal obrigação, de forma a que se possa concluir pela incapacidade financeira generalizada do devedor, isto é, pela impossibilidade de o mesmo satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
Sobre a temática aqui em causa, Catarina Serra (na obra citada, pág. 58), diz-nos que “(…) para a insolvência não releva nem o número nem o valor pecuniário das obrigações vencidas. (…) Como bem se compreende, tanto está insolvente quem está impossibilitado de cumprir uma ou mais obrigações de montante elevado (o montante em causa é demasiado elevado para que o devedor consiga cumprir) como quem está impossibilitado de cumprir uma ou mais obrigações de pequeno montante ou de montante insignificante (o montante em causa é insignificante e ainda assim ele não consegue cumprir)».
Donde, concluímos então, à luz daquela alínea b), do art.º 20.º n.º 1 do CIRE, não é a circunstância de o inadimplemento se reportar a uma única obrigação que lhe tira a virtualidade de poder constituir o facto-índice ali consignado, pois que, no essencial, é que aquele incumprimento indicie a incapacidade de satisfação pontual da generalidade das obrigações do devedor.
Na linha do assim afirmado, no que concerne ao alcance do aludido normativo, pode ler-se no acórdão do STJ de 29/01/2014, relatado por Orlando Afonso, no proc. 1/07.8TBVNO-P.E1.S1, referido no acórdão do STJ, de 24/05/2022, relatado por Maria Olinda Garcia, no proc. 1631/20.8T8BRR.L1.S1, em jurisrudência.pt, que «(…) III - O art.º 20.º, n.º 1, al. b), do CIRE não se basta com a “falta de cumprimento de uma ou mais obrigações”; exige ainda que esta falta “pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento”, revele impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.»
Não obstante, apreciando a questão quando está em causa um único crédito, o acórdão do TRC de 24/01/2017, relatado por Jorge Loureiro, no processo n.º 5408/16.7T8CBR-C.C1., também ali referido, consignou que:
«(…) importa não perder de vista que para efeitos do art.º 20º/1/b do CIRE, devem diferenciar-se dois grupos distintos de obrigações, a saber: i) por um lado, a obrigação ou obrigações que não foram cumpridas; ii) por outro lado, a generalidade das obrigações do devedor que a falta de cumprimento daquela(s) revela, pelo seu montante ou pelas circunstâncias que rodeiam o incumprimento, a impossibilidade de as satisfazer.
Sendo assim, como é, aquele crédito único a que supra se aludiu apenas pode relevar para efeitos do primeiro grupo de obrigações supra referenciadas - obrigação ou obrigações que não foram cumpridas – sendo insuscetíveis de ser consideradas para efeitos de integração nas outras obrigações cuja impossibilidade generalizada de cumprimento seja revelada pelo inadimplemento das primeiras.
Partindo deste princípio, os factos provados são absolutamente omissos relativamente a outras obrigações de que a apelante fosse sujeita passiva, para lá da correspondente àquele crédito único e cuja impossibilidade generalizada de cumprimento seja revelado pelo inadimplemento daquela obrigação única emergente do contrato de mútuo e da sua resolução.
Nesses factos não se identifica uma qualquer outra obrigação para lá daquela que corresponde ao dito crédito único.
Assim sendo, não pode concluir-se que o incumprimento desse débito único revela a incapacidade da apelante satisfazer generalizadamente outra ou outras obrigações de que seja sujeito passivo».
Consequentemente, não pode ter-se por preenchido o facto índice que está em apreço, único com base no qual foi declarada a insolvência da apelante.»
No enquadramento assim entendido, e retomando ao caso dos autos, também nos mesmos a situação de incumprimento contratual em que sustenta a Apelante o pedido de insolvência não é suficiente para concluir que a Requerida está numa situação de impossibilidade de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, em face do elevado valor do crédito da Requerente ou das circunstâncias envolventes do alegado incumprimento.
Veja-se que foi opção da Recorrente alegar apenas o seu crédito e a al. b) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE para sustentar o pedido de insolvência, sendo que, dentro dessa mesma alínea, o que alegou para justificar tal pedido foi o incumprimento da devedora do seu invocado crédito único, num quadro de incumprimento que teve por base o facto de as partes andarem a discutir a data de vencimento do aludido crédito (aliás, veja-se, a Recorrida defende mesmo nos autos que a Recorrente pediu a declaração de insolvência com o único objetivo de a pressionar a aceitar a cedência, a título gratuito, de uma participação de 25% do seu capital social e do controlo efetivo da empresa, o que espelha bem que a mesma não está insolvente).
Mais nenhum fundamento foi invocado pela Recorrente, não estando assim explicitado em que medida as alegadas circunstâncias de incumprimento, ou mesmo o elevado valor do crédito, conduziriam à necessária conclusão de a Requerida se encontrar, efetivamente, impossibilitada de satisfazer, não apenas o crédito da Requerente, mas também a generalidade dos seus compromissos, tanto mais que, dos autos, também não se infere qualquer outra obrigação que sobre esta recaia.
Acrescenta a Recorrente em recurso, que o que releva para efeitos da presente ação é a manifesta incapacidade da Recorrida de cumprir as suas obrigações financeiras, e de demonstrar, fundamentadamente, uma boa situação de liquidez, sendo indiferente para a discussão dos autos a questão do vencimento do crédito da Recorrente, quando a posição da Recorrida assenta apenas num projeto imobiliário que ainda não iniciou, tendo os próprios sócios da Requerida reconhecido não ter capacidade financeira para liquidar as suas dívidas.
Ainda que tais afirmações sejam algo conclusivas e algumas não estejam corretas, certo é que, reitera-se, para que uma insolvência seja declarada, assiste a quem a pede o ónus de demonstrar os pressupostos constitutivos desse pedido de insolvência, alegando, pelo menos, um dos factos indiciadores enunciados nas diversas alíneas do art.º 20º do CIRE, como, de resto, resulta também do art.º 342.º do CC.
Centrando a alegação da Recorrente nos autos o invocado incumprimento do contrato de mútuo que outorgou com a apelada, não se confundindo tal incumprimento com uma situação de insolvência, num quadro circunstancial em que as partes estão a discutir o vencimento do aludido crédito (como refere Catarina Serra (obra citada, pág. 56), «… existem casos de incumprimento sem impossibilidade de cumprimento (o devedor não cumpre porque não quer ou porque discorda da exigibilidade da dívida)», a pretensão recursória da Recorrente sempre estaria votada ao infortúnio, pois que, para que em julgamento fosse apreciada a liquidez da Requerida, como insiste a Recorrente, necessário se tornaria primeiro que a mesma tivesse demonstrado um fundamento válido para o pedido da insolvência.
Mesmo que em julgamento fosse demonstrado o vencimento da obrigação e o seu incumprimento, tal não determinaria, sem mais, a insolvência da Requerida, em face da inexistência de outra factualidade (não se bastando para presumir a insolvência o facto de, no âmbito da discussão entre as partes, com vista à prorrogação do prazo de vencimento do crédito, a Requerida ter declarado que, naquela concreta altura, não tinha então capacidade para reembolsar o montante do empréstimo em dívida, tanto mais que estava a renegociar um prazo mais alargado de pagamento por questões meramente comerciais), pois, como resulta do acórdão de 31/05/2011 deste Tribunal, relatado por Ana Resende, no proc. 614/10.0TBPTS.L1-7, e igualmente disponível na dgsi, «Divisando-se que a requerida é, tão só, devedora da requerente de determinados montantes, consubstancia-se, assim, uma simples situação de incumprimento, manifestamente insuficiente para caracterizar uma situação de penúria, exigível para constituir um facto presuntivo, desencadeante do processo de insolvência».
Veja-se também, a propósito, e para finalizar, o acórdão da RC de 03/03/2020, proferido no proc. 3422/19.0T8VIS.C1, relatado por Maria João Areias, e disponível na dgsi, onde se discutia a procedência do pedido de declaração da insolvência deduzido por credor titular de crédito ilíquido e controvertido e único conhecido nos autos, onde, em fundamentação, considerou que “Exigindo o artigo 3º, nº 1 do CIRE que a impossibilidade de cumprir se reporte às obrigações vencidas e não sendo necessário que tenha havido algum incumprimento, necessário se torna a existência de, pelo menos, uma obrigação vencida.//Contudo, essa referência não significa que, para haver insolvência, deva estar vencida a obrigação que o devedor tem para com o credor requerente, bastando estarem vencidas algumas obrigações, podendo dessa forma evitar que a situação do devedor sofra um agravamento até à data de vencimento do seu crédito”, para depois ali concluir que «Quanto ao estado de insolvência, embora tenhamos um único crédito, vencido e não cumprido (o da requerente), temos por verificado, desde logo, o factor índice da situação de insolvência previsto na al. e) do nº 1 do artigo 20º CIRE – Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o credor».
Do exposto resulta assim a insuficiência da alegação da Requerente para o preenchimento dos pressupostos exigidos para a declaração de insolvência: a alegada existência do incumprimento de uma dívida (a da Requerente da insolvência), não é suscetível de, sem outra factualidade, revelar a impossibilidade generalizada do cumprimento de outras obrigações, de que a apelada fosse sujeita passiva, para lá da correspondente ao alegado crédito único da Requerente.
O factor índice previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 20º do CIRE, único convocado pela Requerente da insolvência, não se encontra preenchido pelo que, em face dos fundamentos do pedido e do quadro da legislação aplicável, não se podendo assim concluir como sendo inequívoca a existência dos pressupostos para declarar a insolvência da Requerida, com todas as consequências legais que de tal situação emergem.
Em conclusão, na linha do aqui exposto, não podemos deixar de confirmar o acerto do juízo formado pela decisão recorrida, impondo-se a confirmação da mesma ainda que não exatamente com a mesma fundamentação. *
V-/ Decisão:
Perante o exposto, acordam as Juízas desta Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente a presente apelação, mantendo assim a sentença recorrida, ainda que não exatamente com a mesma fundamentação.
As custas serão a cargo da apelante.
Registe e notifique.
Lisboa, 11/02/2025
Paula Cardoso
Manuela Espadaneira Lopes
Renata Linhares de Castro