Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
NULIDADE DA SENTENÇA
OPOSIÇÃO ENTRE FUNDAMENTOS E DECISÃO
DIREITO A FÉRIAS
ÓNUS DA PROVA
Sumário
I. A nulidade da sentença, por oposição entre os fundamentos e a decisão, ocorre quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão, existindo, pois, uma contradição entre as suas premissas, de facto e/ou de direito, e conclusão/decisão final. II. Ao vício em presença não subjazem situações em que, por exemplo, o julgador decide contrariamente aos factos provados ou ao arrepio de norma jurídica que consagra solução diversa, antes se enquadrando estes casos no erro de julgamento. III. A circunstância de não se julgar provado que o trabalhador nada auferiu por conta de férias não gozadas e se condenar, depois, o empregador no pagamento da correspectiva retribuição não constitui oposição entre os fundamentos e a decisão. IV. As férias e o respectivo subsídio são direitos que, para o trabalhador, emergem do contrato de trabalho, isto é, são direitos que o trabalhador é credor, cumprindo ao empregador alegar e provar não apenas a marcação do período de férias, mas também que as mesmas foram gozadas. V. A ausência de prova, pelo empregador, da concessão do gozo das férias implica que sobre si recaia o ónus do pagamento da respectiva retribuição.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
1. AA intentou a presente acção declarativa de condenação, emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma do Processo Comum, contra “XX, Lda.”, peticionando: (i) a declaração de nulidade do contrato de trabalho a termo certo assinado a 17 de março de 2023; (ii) seja declarada a existência de um contrato de trabalho sem termo, vigente desde Junho de 2015 até 17 de Março de 2023; (iii) seja considerada lícita a resolução do contrato de trabalho que operou, com fundamento em justa causa, e que, em consequência, seja a ré condenada a pagar-lhe a quantia de € 6.090,4; (iv) seja ainda a ré condenada no pagamento da quantia de € 18.271,23, a título de férias, subsídio de férias e subsídio de natal no período compreendido entre Junho de 2015 e 17 de Março de 2023, € 1.332,00, a título de trabalho prestado em dia de descanso suplementar, e € 900,00€, a título de crédito de horas de formação não ministrada; (v) a condenação da ré no pagamento de juros de mora, vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento.
Alegou o autor, em síntese, que: (i) desde data que não consegue precisar, mas em Junho de 2015, foi admitido ao serviço da ré, por acordo verbal, para desempenhar as funções de electricista, o que fez por um curto período, em duas ou três obras; (ii) desde data que não sabe precisar até à cessação do contrato, exerceu funções de motorista e estafeta, mediante a retribuição de 4,50€/hora, perfazendo 780,00€/mês, nunca tendo sido emitido qualquer recibo; (iii) nunca cumpriu o horário acordado uma vez que iniciava funções pelas 07h00, tendo, entre Agosto de 2018 e Dezembro de 2019, trabalhado um total de 74 sábados, prestando quatro horas de trabalho efectivo em cada um desses sábados; (iv) nunca gozou férias nem auferiu o respectivo subsídio; (v) também nunca auferiu qualquer quantia de subsídio de alimentação ou a título de trabalho suplementar; (vi) no período compreendido entre Junho de 2015 e Março de 2023, nunca a ré efectuou quaisquer descontos; (vii) apesar de sempre ter solicitado ao gerente da ré a regularização da sua situação laboral, este só o fez quando foi confrontado com uma acção judicial de outra trabalhadora, em 17.03.2023, tendo-lhe sido apresentado um contrato de trabalho a termo certo com as funções de electricista, contrato que, por medo, assinou, apesar de estas funções não corresponderem às que efectivamente exercia; (viii) após ter procedido à assinatura do documento, as folhas foram desagrafadas e foram agrafadas outras em seu lugar, tendo de seguida informado pela secretária da sociedade que se encontrava a realizar as contas; (ix) nestas circunstâncias, a 22 de Março de 2023, comunicou a cessação do seu contrato de trabalho com a ré, com fundamento na circunstância de o contrato assinado a 17 de Março de 2023 não o integrar na categoria correspondente às funções por si exercidas, bem como pela falta de pagamento das quantias relativas ao subsídio de férias, férias trabalhadas e não gozadas e subsídios de férias; (x) o contrato a termo é inválido.
2. Realizada a audiência de partes, frustrou-se a conciliação, tendo a ré sido notificada para contestar.
3. Contestou a ré, alegando, em síntese, que: (i) a comunicação da resolução do contrato de trabalho com invocação de justa causa remetida pelo autor no dia 22 de Março de 2023 tem como único motivo para aquela resolução o facto de o contrato assinado entre as partes no dia 17 de Março de 2023 não ser conforme com as funções por aquele exercidas durante 7 anos; (ii) a ter sido invocada a falta de pagamento das retribuições já teria caducado o seu direito à resolução com esse fundamento; (iii) a inexistência de contrato escrito decorreu da vontade do autor, sendo que o contrato apresentado em 17 de Março foi consigo integralmente acordado; (iv) inexistem créditos devidos a título de trabalho suplementar; (v) o pagamento das férias, dos subsídios de férias e de Natal foram realizados em duodécimos.
4. Foi proferido Despacho Saneador, no qual foi fixado à causa o valor de € 29.593,64.
Foi dispensada a enunciação dos temas da prova e do objecto do litígio.
5. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença cujo dispositivo é o seguinte:
«Nos termos e fundamentos expostos e atentas as disposições legais citadas, julga-se a acção principal parcialmente procedente e, em consequência decide-se:
1 – Declarar nulo o contrato de trabalho a termo certo celebrado entre o autor e ré assinado em 17 de março de 2023.
2 – Reconhecer a existência de um contrato de trabalho entre autor e ré desde o ano 2015 até à data da comunicação da resolução pelo autor.
3 – Condenar a ré XX, Lda., a pagar ao autor:
a - férias não gozadas na pendência da relação laboral desde 2015 até ao seu termo, quantia a liquidar por simples cálculo aritmético.
b – a quantia 900,00€ (novecentos euros) a título de créditos de formação não ministrada.
c - juros de mora à taxa legal sobre as quantias referidas alíneas a) e b), desde a data e vencimento até integral e efectivo pagamento.
4 – Absolver a ré XX, Lda., do demais peticionado».
6. Inconformada com a sentença da 1.ª instância, a ré dela interpôs recurso, rematando as suas alegações com a seguinte síntese conclusiva:
«1ª - O presente recurso tem por fundamento a nulidade da douta sentença na parte em que condenou a recorrente a pagar ao autor as férias não gozadas na pendência da relação laboral desde 2015 até ao seu termo, quantia a liquidar por simples cálculo aritmético.
2ª - Tal decisão radicou na conclusão de que competia à recorrente o ónus de provar que o autor gozou férias pelo que não tendo logrado satisfazer esse ónus, deve pagar ao autor as férias não gozadas na pendência da relação laboral desde 2015 até ao seu termo, quantia a liquidar por simples cálculo aritmético.
3ª - A recorrente não se conforma com tal decisão, pois claramente os fundamentos da decisão estão em oposição com a mesma, pelo que a douta sentença incorre nessa parte, na nulidade prevista no Artigo 615º nº 1 al. c) do CPC.
4ª - É que a mesma douta sentença recorrida, no que respeita à sua fundamentação de facto, mais concretamente relativamente ao[s] factos tidos como não provados, conclui, e bem, no respetivo ponto 2, e citando: “Que (não ficou provado que) o autor não recebeu qualquer importância referente a férias não gozadas, a subsídio de férias, nem subsídio de natal;”
5ª - Ou seja, o Tribunal a quo concluiu que não ficou provado que o autor não tenha recebido pagamentos das férias não gozadas. E andou bem a douta sentença recorrida quando assim decidiu em função da prova testemunhal produzida em sede de julgamento.
6ª - É que, do depoimento das testemunhas ouvidas em sede de julgamento extrai-se o oposto.
7ª - Nunca o recorrido expressou qualquer insatisfação ou descontentamento por alegadamente não ter gozado férias, facto que, apelando às regras da experiência comum, permitem concluir que as gozou.
8ª - Face ao exposto, há portanto manifesta oposição entre a decisão e a sua fundamentação, o que acarreta a nulidade da sentença nessa parte.
9ª - Sem prescindir, sempre se dirá, que ainda que a douta sentença escape nessa parte à invocada nulidade, impugna-se a conclusão de que a recorrente não pagou ao recorrido as férias não gozadas.
10ª - Tal impugnação radica na consideração de que tal conclusão extrapola os limites da livre apreciação da prova por parte da Mmª Juiza a quo , na medida em que atenta objectivamente contra as regras do bom senso e da experiência comum, conforme resulta claramente da prova testemunhal acima transcrita.
11ª - Reitera-se portanto que dessa prova testemunhal resulta que o A. nunca manifestou qualquer insatisfação a nenhuma das testemunhas relativamente a férias ou ao seu pagamento. Apelando às regras da experiência comum, qualquer trabalhador que está há anos sem gozar férias teria manifestado esse descontentamento a colegas com quem convivia diariamente.
12ª – Assim deverá prevalecer o entendimento da própria fundamentação de facto da douta sentença recorrida, quando concluiu que não está provado que o recorrido não recebeu os pagamentos relativos a férias não gozadas».
Conclui a apelante no sentido de dever o «recurso ser julgado procedente, vindo a decretar-se a nulidade da douta sentença recorrida na parte em que condenou a recorrente a pagar ao recorrido as férias não gozadas, absolvendo-se recorrida dessa parte do pedido (…)».
7. O autor apresentou as suas contra-alegações ao recurso interposto pela ré, rematando-as com a seguinte síntese conclusiva:
«1. Alega, em suma, a Recorrente que os fundamentos da decisão estão em oposição com a mesma, “pelo que a douta sentença incorre nessa parte, na nulidade prevista no Artigo 615º nº 1 al. c) do CPC, porquanto no que respeita à sua fundamentação de facto, mais concretamente relativamente ao factos tidos como não provados, conclui, e bem, no respetivo ponto 2, e citando: “Que ( não ficou provado que ) o autor não recebeu qualquer importância referente a férias não gozadas, a subsídio de férias, nem subsídio de natal;
Ou seja, o Tribunal a quo concluiu que não ficou provado que o autor não tenha recebido pagamentos das férias não gozadas. E andou bem a douta sentença recorrida quando assim, decidiu em função da prova testemunhal produzida em sede de julgamento.” E que, do depoimento das testemunhas ouvidas em sede de julgamento extrai-se o oposto.
2. Não podemos salvo o devido respeito concordar com tal entendimento.
3. Nos termos do artigo 615.º, n. º1, alínea c), do Código de Processo Civil é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
4. Ou seja, entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Se, na fundamentação da sentença, o julgador acompanhar determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Pelo que, apenas ocorre nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n. º1, alínea c), do Código de Processo Civil, quando os fundamentos invocados pelo juiz deveriam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que vier declarado na sentença.
5. Da sentença recorrida constam os seguintes factos com relevância para a discussão da causa, nomeadamente que: “2- Que o autor não recebeu qualquer importância referente a férias não gozadas, a subsídio de férias, nem subsídio de natal; e ainda que 7- Que o autor gozou férias durante a pendência da relação laboral.”
6. In casu, o Tribunal considerou na fundamentação de direito, que “No que tange ao facto não provado enunciado em 2 (e colocamos este facto na forma negativa porquanto se entendermos como fundamento de resolução temos que o colocar desta forma porque compete ao autor a prova desses fundamentos sendo certo que também recairá sobre a ré o ónus do seu pagamento, aqui para efeitos de se ilibar da condenação do seu pagamento em sede de créditos laborais peticionados), assim se considerou por prova de facto contrário.” E ainda que, “No que tange ao facto não provado enunciado em 7, assim se considerou por falta de prova.”
7. Assim, a decisão do Tribunal recorrido constitui, o corolário lógico da fundamentação jurídica aduzida, isto é: uma vez que competia à Ré, ora Recorrente, o ónus de provar que o Autor gozou férias, e não tendo aquela logrado satisfazer esse ónus, tem de ser condenada a pagar ao Autor as férias não gozadas na pendência da relação laboral desde 2015 até ao seu termo.
8. Não se verifica, pois, a alegada nulidade da decisão, como defende a Recorrente, ainda que esta, divirja subjetivamente da valoração atingida pelo Tribunal “a quo”.
9. Face ao exposto, a sentença recorrida conheceu do objeto do processo, tendo apreciado todas as questões para apreciação, não denota qualquer erro, nem qualquer contradição nos seus termos, não padecendo, por isso do vício assinalado, encontrando-se devidamente fundamentada quer de facto, quer de Direito, concluindo em conformidade com a Lei aplicável ao caso, não merecendo, por conseguinte, reparo, devendo manter-se nos seus exatos termos».
E conclui no sentido de não dever «ser concedido provimento ao recurso, e, em consequência» dever «manter-se a decisão recorrida, com as consequências legais».
8. O recurso foi admitido por despacho datado de 27 de Janeiro de 2025.
9. Os autos foram recebidos neste Tribunal da Relação e foi admitido o recurso sem que se verificassem obstáculos ao seu conhecimento.
10. Cumprido o disposto na primeira parte do n.º 2 do art. 657.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, e realizada a Conferência, cumpre decidir.
*
II. Objecto do Recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente – art. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do art. 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho – cumpre-nos apreciar: (i) se a sentença do tribunal a quo é nula por padecer do vício a que alude o art. 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil, a saber, a oposição entre os fundamentos e a decisão; (ii) se incorreu o tribunal a quo em erro de julgamento ao concluir que ao apelado não foram pagas as férias não gozadas.
*
III. Da nulidade da Sentença por Oposição entre os Fundamentos e a Decisão
1. Regendo a propósito dos vícios da sentença, diz-nos o art. 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil, que «[é] nula a sentença quando: (…) c) [o]s fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível».
O vício a que alude a primeira parte da norma que se deixou transcrita – o único suscitado pela apelante – traduz-se na existência de um vício real e patenteado no raciocínio do julgador, isto é, a fundamentação – de facto ou de direito – aponta num determinado sentido e a decisão proferida segue um caminho oposto1.
A propósito do vício em questão, ponderou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Março de 20222 que «[a] nulidade da sentença/acórdão prevista no 1º. segmento da al. c) do n.º 1 do citado art. 615.º – fundamentos em oposição com a decisão – ocorre quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão, existindo, pois, uma contradição entre as suas premissas, de facto e/ou de direito, e conclusão/decisão final». E em Acórdão de 14 de Abril de 2021, do mesmo Supremo Tribunal3, se considerou que «[a] nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão contemplada no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil, pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la: a contradição geradora de nulidade ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, de sentido diferente».
Nesta senda, a nulidade a que alude a al. c) do n.º do art. 615.º do Código de Processo Civil não se reporta ao denominado erro de julgamento, seja quanto aos factos, seja quanto ao direito, antes tendo subjacente a ausência da coerência lógica da sentença; isto é, ao vício em presença não subjazem as situações em que, por exemplo, o julgador decide contrariamente aos factos provados ou ao arrepio de norma jurídica que consagra solução diversa4, antes se enquadrando estes casos no erro de julgamento.
Conforme explicitado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Abril de 20215, «[p]or vezes torna-se difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, que é aquele que está na origem da decisão», sendo que o primeiro «resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa.
Porque assim é, as nulidades da decisão, previstas no artigo 615º do CPC são vícios intrínsecos da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença que não podem confundir-se com o erro de julgamento que se traduz antes numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjectivo) aplicável.
Nesta última situação, o tribunal fundamenta a decisão, mas decide mal; resolve num certo sentido as questões colocadas porque interpretou e/ou aplicou mal o direito».
2. Aqui chegados, é tempo de aproximar os considerandos expostos à concreta questão que nos é suscitada pela apelante e que, se bem se entende, consistirá na contradição que considera existir entre o facto não provado sob o ponto 2. e, depois, na sua condenação no pagamento das retribuições de férias ao longo da execução do contrato de trabalho com o apelado.
Na sentença proferida pelo tribunal a quo deu-se, efectivamente, como não provado, sob o ponto 2., «que o autor não recebeu qualquer importância referente a férias não gozadas, a subsídio de férias, nem subsídio de Natal».
Na fundamentação da ausência de prova do exposto facto, ponderou a Mm.ª Juiz a quo como segue: «no que tange ao facto não provado enunciado em 2 (e colocamos este facto na forma negativa porquanto se entendermos como fundamento de resolução temos que o colocar desta forma porque compete ao autor a prova desses fundamentos sendo certo que também recairá sobre a ré o ónus do seu pagamento, aqui para efeitos de se ilibar da condenação do seu pagamento em sede de créditos laborais peticionados), assim se considerou por prova de facto contrário». A prova do facto contrário estribar-se-á no que provado está sob o ponto 16. que, como é bom de ver, não abrange a retribuição de férias. Seja como for, a Mm.ª Juiz a quo explicita o seu raciocínio e diz porque razão entendeu que o facto não provado sob o ponto 2. carecia ser formulado sob a negativa (por, no seu ver, integrar facto constitutivo do direito à justa causa resolutiva do contrato de trabalho), do mesmo passo que logo anuncia que, sem prejuízo disso, é à ré, ora apelante, que cabe o ónus da prova do pagamento dos créditos laborais (nos quais naturalmente se inclui o crédito por férias não gozadas).
Já no direito e na subsunção nele dos factos, a Mm.ª Juiz a quo considerou, no segmento que se reporta ao direito ao gozo de férias e seu pagamento, que «competia à ré o ónus de provar que o autor gozou férias pelo que não tendo logrado satisfazer esse ónus, deve pagar ao autor as férias não gozadas na pendência da relação laboral desde 2015 até ao seu termo, quantia a liquidar por simples cálculo aritmético».
O exposto enquadramento não nos permite, com todo o respeito, concluir como o faz a apelante, isto é, que existe contradição entre o facto não provado sob o ponto 2. e o direito que a ele é aplicável. Para além de a ausência de prova de um facto não conduzir à prova do facto inverso, o que a Mm.ª Juiz a quo considerou foi que, por a apelante não ter logrado provar ter concedido ao apelado o gozo de férias ao longo da execução do contrato – por entender que o respectivo ónus de prova àquela competia – teria que, por conseguinte, retribui-lo justamente pelo períodos de férias não gozados, não podendo, além disso, o apelante olvidar o que também não provado está sob o ponto 7. e que, como é bom de ver, esteve também subjacente à decisão recorrida.
Saber se o direito aplicado aos factos foi ou não o correcto não integra, como vimos, o vício da contradição entre os fundamentos e a decisão, podendo, quanto muito, integrar o erro de julgamento. Sem prejuízo, não foi assim que, nesta parte, a apelante colocou a questão em apreço, antes a integrando em vício que se entende não existir, afigurando-se-nos estar a sentença proferida pelo tribunal a quo, para além de correctamente fundamentada, também estribada num raciocínio lógico e coerente e, nessa medida, perceptível. Pode, ou não, concordar-se com ele; o que não pode é erigir-se a mera discordância do enquadramento jurídico dos factos a um vício intrínseco da sentença.
3. O mais alegado pela apelante, em ordem a sustentar o vício em presença, radica, esse sim, num equívoco de raciocínio não desprezível. É que ao mesmo tempo que a apelante aplaude o facto não provado sob o ponto 2., alegando que o mesmo se estribou na prova produzida, extrapola para a conclusão que, afinal, o apelado gozou férias, já que nunca se terá queixado, ao longo de vários anos, da ausência desse tempo de descanso. Sucede que não está provado que esse gozo ocorreu, tal como decorre do facto não provado sob o ponto 7., sem que, com respeito a ele, a apelada se haja insurgido, designadamente impugnando a decisão da matéria de facto em ordem a que, a propósito da realidade sobre o qual versa, tivesse incidido juízo decisório distinto.
Em face do exposto, não merece, pois, provimento, nesta parte, o recurso.
*
III. Fundamentação de Facto
1. Os factos materiais relevantes para a decisão da causa – que não foram objecto de impugnação pelas partes – são os seguintes:
1. A ré tem como objecto social “a cedência temporária de pessoal para o sector da construção, instalações eléctricas, canalizações, obras públicas e particulares”.
2. Em data não consegue precisar, mas situada no ano de 2015 – em momento em que a ré executava a obra de construção dos escritórios da ZZ), o autor foi admitido ao serviço da ré por tempo indeterminado, mediante acordo verbal com o sócio gerente da ré, BB.
3. Para desempenhar as funções de ajudante de electricista, serviços que fez inicial e, pontualmente.
4. A partir de data não concretamente apurada, mas não superior a um ano após a sua admissão e até 22 de março de 2023, o autor passou a exercer, sob a autoridade, direcção e fiscalização da ré, funções de motorista e estafeta.
5. Competindo ao autor, nomeadamente as seguintes tarefas: entrega e recolha dos trabalhadores da ré nos locais onde decorriam as obras adjudicadas à ré e nos locais onde os mesmos tivessem de ser sujeitos a exame de avaliação da medicina do trabalho; entrega de documentação, referente às obras, nos escritórios da ré ou nas próprias obras; levantamento e entrega de equipamentos de protecção individual dos trabalhadores aos próprios; entrega e levantamento de toda a documentação relativa aos contratos de trabalho dos trabalhadores da ré; transporte do gerente da ré, BB, para todos e quaisquer locais por ele determinados.
6. O autor conduzia todas as viaturas pertenças da ré, designadamente a viatura de matrícula ..-TD-.., marca Ford, Modelo Costum, de cor branca.
7. Para execução do trabalho o autor recebia sms’s remetidas por BB directamente para o autor.
8. O autor prestava o seu trabalho mediante a retribuição acordada de 4,50€/hora, perfazendo a mádia mensal de 780,00€.
9. O pagamento era efectuado por meio de cheque bancário, contra a assinatura de recibo, cuja cópia o autor nunca obteve.
10. Em número de vezes não concretamente apuradas, o autor iniciava funções pelas 07h00, por ordens da ré para recolher os trabalhadores da ré e os transportar às obras onde executava a actividade.
11. Em número de sábados não concretamente apurado, a pedido da ré o autor recolhia os trabalhadores nas respectivas residências ou no ponto de encontro sito no ..., em ..., pelas 09h00 e largava-os na empresa WW, Lda. e, após exames, transportava-os de regresso ao ... ou respectivas residências, cerca das 13h00.
12. A 17 de março de 2023, BB apresentou ao autor o contrato de trabalho a termo certo, para exercer funções correspondentes à categoria profissional de ajudante de electricista, 1.º ano, nível salarial XIV, nos termos do Contrato Colectivo AECOPS, junto a fls. 30 a 31 verso e, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
13. Que foi assinado pelo autor.
14. Por carta registada em 22 de março de 2023, junta a fls. 33 e, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzida, o autor comunicou à ré, “com efeito imediato devido ao contrato assinado em 17/03/2023, não se encontrar de acordo com as minhas funções exercidas na firma em questão nos últimos anos.
Mais informo que tendo prova de que exercia a função unicamente de motorista e serviços externos da empresa como serviços bancários e levar contratos aos funcionários as obras.
Venho ainda solicitar que me seja ressarcido os valores dos meus subsídios de férias, férias trabalhadas, subsídios de Natal, e horas extraordinárias efectuadas em todos os dias úteis ao longo dos últimos 7 anos”.
15. O autor levou o contrato apresentado em 17 de março de 2023 para casa para o assinar.
16. O pagamento do subsídio de férias e de natal foi sempre feito de forma fraccionada, por duodécimos.
17. O autor manifestou interesse em não ter a sua situação de trabalho formalizada porque tinha penhoras e que incidiriam sobre o seu vencimento se houvesse essa formalização que implicariam sempre regularização perante a Segurança Social.
2. Foram, ainda, dados como não provados os seguintes factos:
1. Que entre agosto de 2018 e dezembro de 2019, o autor, no cumprimento de ordens da ré, em todas as manhãs, num total de 74 (setenta e quatro) sábados, transportou diversos trabalhadores da ré da empresa WW, Lda. e dali às respectivas residências, para serem submetidos e exames de avaliação de aptidão para o trabalho.
2. Que o autor não recebeu qualquer importância referente a férias não gozadas, a subsídio de férias, nem subsídio de natal.
3. Que durante a relação laboral o autor solicitou, por diversas vezes, a BB, a regularização da sua situação laboral, mormente a elaboração de um contrato de trabalho, escrito, o pagamento das suas contribuições à Segurança Social e o pagamento das quantias que lhe eram devidas a título de férias, subsídio de férias e de natal.
4. Que o autor assinou o contrato apresentado a 17 de março de 2023 por se sentir pressionado, tendo-lhe dito BB que assinasse o documento naquele instante, dizendo-lhe, em tom de voz sério, “Eu não gosto de fazer mal às pessoas (…)”, “Sabes qual é a situação…”, “Sabes que fico maluco a quem tira o pão da boca aos meus netos…”.
5. Que o autor assinou o referido contrato porque sabia que o gerente da ré era detentor de armas e tinha-o ouvido dizer, sobre a ex-trabalhadora CC que, “se a apanhasse lá fora a partia toda, quando acabasse o processo dela”.
6. Que após assinar o documento apresentado no dia 17 de março de 2023, as folhas que o integravam foram desagrafadas e agrafadas outras em seu lugar, tendo-lhe após sido entregue a cópia junta aos autos sob o documento 10.
7. Que o autor gozou férias durante a pendência da relação laboral.
8. Que entre agosto de 2018 e dezembro de 2019, em todas as manhãs de sábado, o autor prestou quatro horas de trabalho, num total de 296 horas.
*
IV. Fundamentação de Direito
1. Na hipótese da improcedência do vício que imputa à sentença, entende também a apelante que a sentença proferida pelo tribunal a quo não poderia, como fez, concluir que ao apelado não foram pagas as férias não gozadas.
Entende a apelante que a conclusão alcançada na sentença da 1.ª instância extrapola os limites da apreciação da prova, atentando «contra as regras do bom senso e da experiência comum».
2. A apelante confunde, com todo o respeito, neste segmento recursório, a integração jurídica dos factos e o conceito de facto em si mesmo. Ou seja, concluir-se, por via da aplicação do direito aos factos – designadamente, as regras do ónus da prova – que a apelante não pagou ao apelado as férias não gozadas não pode, por não constituir um facto, «extrapolar» os limites da livre apreciação da prova. A apreciação da prova situa-se a montante da aplicação do direito, pelo que se era pretensão da apelante justamente colocar em causa os factos provados ou não provados por, designadamente, a Mm.ª Juiz a quo ter excedido o que decorre do princípio da livre apreciação da prova, deveria, então, ter impugnado a matéria de facto, o que não fez.
3. Na perspectiva jurídica e ponderando os factos provados, dir-se-á, face ao demais objecto do recurso, não se nos afigurar merecer a sentença da 1.ª instância qualquer censura.
Permitimo-nos transcrever, na medida em que esclarecedor, neste conspecto, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 20216:
«[A] decisão sobre qual é o facto constitutivo do direito invocado pelo trabalhador tem que partir da premissa de que, segundo o disposto no n.º 1 do artigo 237.º do CT, “o trabalhador tem direito, em cada ano civil, a um período de férias retribuídas, que se vence em 1 de janeiro”. Ou seja, a aquisição do direito a férias, que implica necessariamente a sua retribuição (férias retribuídas, na expressão legal), decorre da qualidade de trabalhador subordinado, sendo que o direito a férias (e à respetiva retribuição) não resulta da violação do contrato de trabalho (…).Para pedir a retribuição a que tem direito durante as férias (…) o trabalhador tem apenas que invocar a sua qualidade de trabalhador subordinado, cabendo ao empregador alegar e provar que cumpriu o seu dever de proporcionar o gozo das férias retribuídas ao trabalhador.
Mas, como já referimos, importa ter ainda em atenção que o direito a férias está hoje também consagrado no artigo 7.º da Diretiva 2003/28, bem como no artigo 31.º, n.º 2 da Carta […], pelo que “o direito a férias anuais remuneradas de cada trabalhador deve ser considerado um princípio do direito social da União”[…] (n.º 19). Acresce que “o direito a férias anuais remuneradas não só se reveste de particular importância enquanto princípio do direito social da União, como está expressamente consagrado no artigo 31.º, n.º 2, da Carta, à qual o artigo 6.º, n.º 1, TUE reconhece o mesmo valor jurídico que os Tratados” […]. Em conformidade, “a entidade patronal deve, nomeadamente, tendo em conta o caráter imperativo do direito a férias anuais remuneradas e a fim de garantir o efeito útil do artigo 7.º da Diretiva 2003/88, garantir de forma concreta e com total transparência que o trabalhador esteja efetivamente em condições de gozar as suas férias anuais remuneradas, incentivando‑o, se necessário formalmente, a fazê‑lo, e informando‑o, de forma precisa e em tempo útil para garantir que as referidas férias sejam adequadas para assegurar ao interessado o repouso e descontração que devem permitir, de que, se não as gozar, serão perdidas no termo do período de referência ou de um período de reporte autorizado”[.. (n.º 45) e “o ónus da prova nesta matéria cabe à entidade patronal”[…]».
Em síntese, as férias e o respectivo subsídio são direitos que, para o trabalhador, emergem do contrato de trabalho, isto é, são direitos que o trabalhador é credor, cumprindo ao empregador alegar e provar não apenas a marcação do período de férias, mas também que as mesmas foram gozadas (arts. 237.º, n.º 1, 240.º, n.º 1, e 241.º, ns. 1 e 2, do Código do Trabalho).
4. Do enquadramento exposto e da sua aproximação aos factos, resulta, pois, que cabia à apelante provar que havia dado a gozar ao apelado as férias ao longo da execução do contrato de trabalho. Assim não procedeu, sendo indiferentes, neste conspecto, os factos não provados sob os pontos 2. e 7., já que deles não resulta a prova do facto contrário.
A ausência de prova da concessão do gozo das férias implica que sobre a apelante recaia o ónus do respectivo pagamento, como acertadamente se decidiu na 1.ª instância.
Nesta conformidade, nenhuma censura nos merece a conclusão a que, quanto a este segmento, se chegou na sentença proferida pelo tribunal a quo, razão pela qual a confirmamos na íntegra, assim se negando provimento ao recurso.
5. Na medida em que ficou vencida, incumbe à recorrente o pagamento das custas (arts. 527.º, ns. 1 e 2, do Código de Processo Civil).
*
V. Decisão
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se, na integra, a sentença recorrida.
*
Custas pela recorrente.
*
Lisboa,12 de Fevereiro de 2025
Susana Martins da Silveira
Alda Martins
Paula Dória C. Pott
_______________________________________________________
1. Neste sentido, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, págs. 689 e 690.
2. Proferido no Processo n.º 4345/12.9TCLRS-A.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
3. Proferido no Processo n.º 3167/17.5T8LSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.ptNeste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, in, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, págs. 737 e 738.
4. Proferido no Processo n.º 3340/16.3T8VIS-A.C1.S2, citado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20 de Maio de 2024, proferido no Processo n.º 3489/22.3T8VFR.P1. este último acessível em www.dgsi.pt.
5. Proferido no Processo n.º 27885/17.9T8LSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.