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RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
RECURSO EXCEPCIONAL
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
INSPECÇÃO DO TRABALHO
COMPETÊNCIA
MUNICÍPIO
Sumário
1. O recurso excepcional visando a promoção da uniformidade da jurisprudência pressupõe a existência de uma questão concreta suscetível de se levantar em muitas outras ocasiões, e que já sido objeto de decisões contraditórias 2. No âmbito da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, a ACT tem competência para perseguir contra-ordenacionalmente autarquias locais.
Texto Integral
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.
I – RELATÓRIO
Recorrente: Ministério Publico.
Arguido: Município de Sesimbra
Tendo o Município de Sesimbra impugnado judicialmente a decisão proferida pela ACT no procedimento de contraordenação n.º 012200005 que o condenou no pagamento de coima de 25 UC’s (€ 2.550,00) pela prática de factos integradores do ilícito previsto no art.º 7.º, do Regulamento (CE) 561/2006, de 15 de Março de 2006, alegando designadamente que:
(i) a ACT é incompetente para fiscalizar a organização dos tempos de trabalho dos seus trabalhadores, mormente as normas sociais comunitárias no domínio dos transportes rodoviários;
(ii) a autarquia local prossegue um interesse público, não lhe sendo aplicável a Lei n.º 27/2020, de 30 de Agosto;
(iii) no dia 15 de Setembro de 2021 verificou-se uma avaria no autocarro que transportava alunos numa visita de estudo, tendo o veículo da recorrente ido buscá-los;
(iv) o motorista que esteve ao serviço no dia 12 de Outubro de 2021 não retirou o seu cartão do tacógrafo, e o motorista AA, quando foi efectuar o transporte dos alunos, também não inseriu o seu cartão;
(v) daí que o tempo de condução haja sido contínuo e sem qualquer interrupção;
(vi) a arguida tem promovido regularmente a formação dos seus trabalhadores, pese embora o motorista AA haja estado pouco tempo ao seu serviço e não haja efectuado nenhuma formação;
(vii) a coima aplicada é excessiva.
Concluiu pedindo o reconhecimento da incompetência da autoridade administrativa para a promoção do procedimento ou, a não se entender assim, a declaração de ilicitude da decisão por falta de fundamentos de facto e de direito.
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Decidindo, o Tribunal do Trabalho de Almada julgou procedente o recurso e declarou a ACT incompetente para o prosseguimento do procedimento contraordena-cional e para a aplicação de coima ao recorrente, e revogou a decisão administrativa.
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Inconformado, o Ministério Público recorreu para este Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo afinal:
1. A Sentença recorrida considerou que “Sem prejuízo, distinto do âmbito de aplicação dos citados diplomas e dos sujeitos a quem se aplica, é a competência em matéria de fiscalização do seu cumprimento e em matéria de prosseguimento de acção sancionatória, sendo o caso. E, neste conspecto, não se nos afigura que caiba à ACT a dita missão, antes competindo a mesma, como dito, ao serviço com competência inspectiva do ministério que dirija, superintenda ou tutele o empregador público em causa e, cumulativamente, à Inspecção-Geral de Finanças (IGF)”.
2. Cremos que o presente recurso deverá ser admitido, porquanto, está em causa uma questão de direito autónoma – competência da ACT para fiscalizar o cumprimento do Regulamento (CEE) n.º 561/2006 de 15 de março, quando estão em causa entidades públicas -; questão esta, que outros Tribunais apreciaram e consideraram aquela entidade administrativa competente; com relevante aplicação prática, pois, considerada a mesma incompetente a questão será suscitada em outros processos de natureza contraordena-cional; “a questão suscitada apresenta uma dignidade ou importância que extravase o caso concreto, de tal forma que se imponha o seu melhor esclarecimento pela instância superior, com vista a propiciar um contributo qualificado no seu tratamento e aplicação a título imediato e em casos idênticos futuros”.
3. Cabe à ACT fiscalizar e decidir dos processos de contraordenação relativos à organização dos tempos de trabalho nos transportes rodoviários pesados, visando a harmonização das condições de concorrência, melhoramento das condições de trabalho e o melhoramento da segurança rodoviária.
4. Outros Tribunais já analisaram a questão suscitada e em abono deste entendimento, podendo citar-se as seguintes decisões:
- sentença proferida pelo Juízo do Trabalho de Guimarães – Juiz 2, processo n.º 6791/17.2T8GMR, de 11/05/2018 (Freguesia de Seide);
- sentença proferida pelo Juízo do Trabalho de Setúbal – juiz 1, processo 6341/19.6T8STB, de 30/04/2021 (Município de Sesimbra);
- sentença proferida pelo juízo do trabalho de Almada – juiz 2, processo 2479/21.8T8ALM, de 31/05/2021 (Município do Seixal), as quais se juntam com o presente recurso.
5. É do conhecimento público que o Recorrente não é uma empresa de transportes, no entanto, o Decreto-Lei no 27/2010, bem como, o Regulamento (CE) n.º 561/2006, não1 se aplicam somente às entidades que tenham como atividade económica o exercício de transportes rodoviários pesados de mercadorias ou de passageiros.
6. Aqueles diplomas legais também têm aplicação em empresas cujo objeto social não corresponda ao desenvolvimento da atividade de transportes rodoviários, mas desde que prestem essa atividade deverão ser-lhes aplicados, conforme n.º 1 do art.º 2.º do Regulamento (EU) n.º 165/2014, de 4 de fevereiro e alíneas c) e p) do n.º 4, do Regulamento (CE) n.º 561/2006:
7. Pelo que deve o presente recurso ser admitido por se afigurar manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência e ser proferida decisão que considere a ACT competente para fiscalizar o cumprimento do Regulamento (CEE) n.º 561/2006 de 15 de março, quando estão em causa entidades públicas que também desenvolvam atividade com a utilização de transportes pesados de mercadorias ou de passageiros.
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O arguido Município de Sesimbra respondeu, pedindo a improcedência do recurso, concluindo:
i. O presente recurso não poderá ser admitido por não preencher os requisitos do art.º 42.º, n.º 2, da Lei 107/2009. Nomeadamente, por não estarmos perante uma questão cuja complexidade careça de uma apreciação superior fundamental para uma melhor aplicação do direito, e uniformização de jurisprudência, não tendo o Recorrente identifi-cado qualquer controvérsia séria e com relevo prático na doutrina e/ou na jurisprudência. Sem prescindir,
ii. Resulta inequívoco que os fundamentos de direito alegados pelo Ministério Público, ora Recorrente, para justificar a revogação da decisão judicial para além de total-mente incompreensíveis vão contra todas as regras da boa interpretação e aplicação da lei.
iii. Aliás o Recorrido não consegue perceber sequer quais as normas violadas pela sentença sob censura que justificam a sua revogação.
iv. O Recorrente baseia a sua pretensão em dois argumentos:
(i) os veículos de transportes pesados de mercadorias ou de passageiros, não estarem abrangidos pela isenção prevista na portaria n.º 222/2008, de 5 de março;
(ii) o Regulamento 561/2006 e o disposto no Decreto-Lei 27/2010, serem aplicáveis a entidades de natureza pública.
v. Contudo, desta argumentação não resulta o afastamento do previsto no art.º 4.º n.º 1 al. l) e n.º 2 e no art.º 16.º-A da Lei 135/2014, de 20 de junho, nem, a contrário, a atribuição à ACT de competência para a fiscalização do cumprimento das normas relativas à organização dos tempos de trabalho das entidades públicas no âmbito das relações de trabalho de emprego público,
vi. Com efeito, o âmbito de aplicação dos referidos diplomas e dos sujeitos a quem se aplicam não se limita à competência em matéria inspetiva e contraordenacional nem da ACT nem do IGF , não ficando esta prejudicada pela verificação daquela.
vii. A competência da ACT em matéria de fiscalização dos referidos diplomas legais não está dependente de o Município de Sesimbra estar obrigado ao cumprimento dos mesmos.
viii. Com efeito, muitas são as regras do foro laboral comunitário transpostas para a ordem interna, a que o Município está obrigado e em que a ACT não é competente para a fiscalização do seu cumprimento.
ix. A ACT apenas tem competência para fiscalizar o Município de Sesimbra em matéria de segurança e saúde no trabalho, sendo que nos termos do disposto no artigo 4.º n.º 1 al. l) n.º 2 e artigo 16.º-A da Lei 135/2014, de 20 de junho, nesta matéria não se inclui as normas que regulam os tempos de condução, pausas e tempos de repouso e controlo da utilização de tacógrafos na atividade de transporte rodoviário.
x. Como tal, a ACT não tem competência para fiscalizar o cumprimento destas matérias pelo Município nas relações laborais com os seus funcionários, e consequente-mente competência para a prossecução do procedimento contraordenacional.
xi. Sendo competente para o efeito o serviço com competência inspetiva do ministério que dirija, superintenda ou tutele o empregador público em causa – a Inspeção-Geral de Finanças (IGF).
xii. A sentença sob censura não podia ser mais justa e conforme a lei e neste sentido o recurso deve improceder na sua totalidade, devendo a Sentença recorrida ser mantida, por dela não resultarem quaisquer entendimentos merecedores de censura ao abrigo dos interesses em jogo e das disposições legais aplicáveis..
Remata pedindo que o recurso seja julgado a) inadmissível, por falta de preenchimento dos pressupostos do art.º 42.º da Lei 107/2009; e caso assim não se entenda, b) totalmente improcedente, confirmando-se a decisão da primeira instância.
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A Exma Srª Procuradora Geral Adjunta colocado neste Tribunal da Relação de Lisboa defendeu a procedência do recurso, nos termos defendidos pelo MP em 1ª instância.
Tendo os autos ido aos vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos art.º 33.º, n.º 1 e 50º do Regime Processual das Contraordenações Laborais e de Segurança Social (Lei n.º 107/2009, de 14/09) e, subsidiariamente, dos art.º 412.º e 420.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal.
O que se discute nos autos consiste em saber se o recurso deve ser admitido com vista à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência (art.º 49, n.º 2, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, que aprovou o regime processual aplicável às contraordenações laborais e de segurança social), uma vez que a decisão não é, de ordinário, recorrível.
Eventualmente, em face disso, se a decisão quanto à competência em razão da matéria merece censura.
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A – De facto
A sentença impugnada considerou a seguinte factualidade provada:
1. No dia 12 de Outubro de 2021, pelas 09h17, na ..., em ..., AA conduzia o veículo pesado de passageiros1, com a matrícula ..-CE-.., propriedade da recorrente.
2. Na data referida em 1.1., o trabalhador ali mencionado exercia a actividade de condução ao serviço do recorrente.
3. O veículo identificado em 1.1. estava equipado com tacógrafo digital.
4. O mencionado trabalhador, na jornada de trabalho do dia 15 de Setembro de 2021, iniciada pelas 7h30 e terminada pelas 21h52, apenas gozou, no período compreendido entre as 7h30 e as 12h00 de uma pausa de 37 minutos, iniciada pelas 11h42 e terminada pelas 12h19.
5. Após as 12h19, o mencionado trabalhador apenas gozou de nova pausa pelas 18h01, tendo a mesma tido a duração de 14 minutos.
6. O recorrente não organizou o trabalho do trabalhador AA de molde a que este pudesse efectuar, na jornada do dia 15 de Setembro de 2021, uma pausa de 45 minutos após um tempo de condução de 4h30 ou, no mesmo tempo de condução, duas pausas com a duração de 15 e 30 minutos.
7. O recorrente não ministrou formação ao trabalhador AA.
8. O recorrente, ao proceder do modo referido em 1.6., agiu sem o cuidado e a diligências devidas, não podendo desconhecer ser a sua conduta proibida e punida por lei.
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Da admissibilidade do recurso.
Dispõe o artigo 49.º da Lei n.º 107/2009, sob a epígrafe “Decisões judiciais que admitem recurso”, que
1 - Admite-se recurso para o Tribunal da Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 39.º, quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa competente tenha aplicado uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente, ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 39.º
Manifestamente, não é isto que ocorre no caso, não sendo, pois, de ordinário, admissível recurso.
O que é pacífico nos autos.
Dispõe, o n.º 2 do mesmo artigo, porém, que,
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
Pode, pois, a impugnação ser extraordinariamente admitida num dos dois casos previstos neste número, a saber, quando tal se afigure manifestamente necessário:
a) à melhoria da aplicação do direito ou
b) à promoção da uniformidade da jurisprudência
Comecemos por notar que a necessidade daquelas melhoria do direito ou uniformidade da jurisprudência deve ser manifesta, ou seja, óbvia, evidente, que salta à vista. Há de, pois, tratar-se de grande carência de aperfeiçoamento, porquanto já houve grande discussão nos Tribunais e os agentes ficaram na dúvida quanto aos seus direitos e deveres. Por todos cfr. os Ac. do TRG de 27.04.2023, Proc. nº 3456/22.7T8GMR.G1, “têm de estar em causa circunstâncias excecionais das quais resulte que é manifesta a necessidade (…) não bastando ser conveniente ou necessário”, e da Relação do Porto de 14.2.22, no proc. 1573/21.0T8AGD.P1: “A aceitação do recurso por se afigurar manifesta-mente necessário à melhor aplicação do direito só tem justificação, quando na decisão impugnada se observe um erro jurídico grosseiro, incomum, uma errónea aplicação do direito bem visível, não se destinando a corrigir, eventuais, erros de julgamento”.
O fito da melhoria da aplicação do direito pressupõe, um erro grosseiro calamitoso, uma errónea aplicação flagrante do direito, nele não se incluindo a mera discordância quanto a interpretação e aplicação do direito pelo tribunal recorrido (erro de julgamento). Um erro grave, incomum e notório que não pode subsistir na ordem jurídica.
Salta à vista que não existe um erro calamitoso na decisão recorrida. Também isto é pacífico nos autos, pelo que não nos alongaremos em maiores considerandos, sendo óbvio que não resulta daqui qualquer necessidade de intervenção para melhoria da aplicação do Direito.
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Quanto à promoção da uniformidade da jurisprudência, importa verificar se existem decisões contraditórias, em termos tais que deva ser reponderada a decisão.
Entendeu o tribunal recorrido que a ACT não dispõe de competência de fiscalização no âmbito do cumprimento das normas relativas aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e controlo da utilização de tacógrafos na actividade de transporte rodoviário, e, por maioria de razão, para a prossecução do procedimento contraordenacional a que se associe vínculo estabelecido entre um ente público e um seu trabalhador, tendo lavrado as seguintes considerações:
“1. A ACT tem a sua missão recortada por via do art.º 2.º, do Decreto Regulamentar 47/2012, de 31 de Julho, aí se estabelecendo que:
«1 - A ACT tem por missão a promoção da melhoria das condições de trabalho, através da fiscalização do cumprimento das normas em matéria laboral e o controlo do cumprimento da legislação relativa à segurança e saúde no trabalho, bem como a promoção de políticas de prevenção dos riscos profissionais, quer no âmbito das relações laborais privadas, quer no âmbito da Administração Pública.
2 - A ACT prossegue as seguintes atribuições:
a) Promover, controlar e fiscalizar o cumprimento das disposições legais, regulamentares e convencionais, respeitantes às relações e condições de trabalho, designadamente as relativas à segurança e saúde no trabalho, de acordo com os princípios vertidos nas Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificadas pelo Estado Português;
b) Promover ações de sensibilização e prestar informações com vista ao esclarecimento dos sujeitos das relações laborais e das respetivas associações;
c) Promover o desenvolvimento, a difusão e a aplicação de conheci-mentos científicos e técnicos no âmbito da segurança e saúde no trabalho;
d) Promover a formação especializada nos domínios da segurança e saúde no trabalho e apoiar as organizações patronais e sindicais na formação dos seus representantes;
e) Promover e participar na elaboração de políticas de segurança e saúde no trabalho;
f) Promover a execução das políticas de segurança, saúde e bem-estar no trabalho;
g) Assegurar a gestão do sistema de prevenção dos riscos profissionais, visando a efetivação do direito à saúde e segurança no trabalho;
h) Gerir o processo de autorização de serviços de segurança e saúde no trabalho;
i) Coordenar o processo de formação e certificação de técnicos superiores e técnicos de segurança do trabalho, incluindo a gestão de eventuais fundos europeus para o efeito;
j) Difundir a informação e assegurar o tratamento técnico dos processos relativos ao sistema internacional de alerta para a segurança e saúde dos trabalhadores, bem como a representação nacional em instâncias internacionais;
k) Assegurar o procedimento das contraordenações laborais e organizar o respetivo registo individual;
l) Apoiar as entidades públicas e privadas na identificação dos riscos profissionais, na aplicação de medidas de prevenção e na organização de serviços de segurança, saúde e bem-estar no trabalho;
m) Emitir carteiras profissionais, nos termos da lei;
n) Exercer as competências em matéria de licenciamento industrial que lhe sejam atribuídas por lei;
o) Exercer as competências em matéria de trabalho de estrangeiros que lhe sejam atribuídas por lei;
p) Prevenir e combater o trabalho infantil, em articulação com os diversos departamentos governamentais;
q) Colaborar com outros órgãos da Administração Pública com vista ao respeito integral das normas laborais, nos termos previstos na legislação europeia e nas Convenções da OIT, ratificadas por Portugal;
r) Sugerir as medidas adequadas em caso de falta ou inadequação de normas legais ou regulamentares;
s) Recolher e analisar informação e elaborar relatórios regulares sobre o funcionamento e a eficácia da ACT;
t) Proceder à conservação dos registos e arquivos, relativos a acidentes e incidentes e à avaliação e exposição aos riscos referentes aos trabalhadores em caso de encerramento da empresa;
u) Avaliar o cumprimento das normas relativas a destacamento de trabalhadores e cooperar com os serviços de fiscalização das condições de trabalho de outros Estados membros do espaço económico europeu, em especial no que respeita aos pedidos de informação neste âmbito;
v) Prosseguir as demais atribuições que lhe forem conferidas por lei.
3 - A ACT prossegue as atribuições referidas no número anterior em empresas de todos os setores de atividade, independentemente da sua forma ou natureza jurídica e do regime aplicável aos respetivos trabalhadores, e em qualquer local em que se verifique a prestação de trabalho ou existam indícios suficientes dessa prestação.
4 - A ACT, em articulação com os serviços competentes do Ministério da Educação e Ciência, deve ainda participar na elaboração dos conteúdos curriculares, com vista à introdução de matérias sobre a segurança e saúde no trabalho, relativamente a todos os graus de ensino e formação profissional».
Sem prejuízo da missão e atribuições previstas no normativo enunciado, estabelece o art.º 4.º, n.º 2 e 3, da Lei 35/2014, de 20 de Junho, que:
«(…)
2 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, quando da aplicação do Código do Trabalho e legislação complementar referida no número anterior resultar a atribuição de competências ao serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área do trabalho, estas devem ser entendidas como atribuídas ao serviço com competência inspetiva do ministério que dirija, superintenda ou tutele o empregador público em causa e, cumulativamente, à Inspeção-Geral de Finanças (IGF), no que se refere às suas competências de coordenação, enquanto autoridade de auditoria neste domínio.
3 - Compete à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) a promoção de políticas de prevenção dos riscos profissionais, a melhoria das condições de trabalho e a fiscalização do cumprimento da legislação relativa à segurança e saúde no trabalho».
Do cotejo de ambos os citados normativos, afigura-se ao tribunal que, em matéria de vínculos estabelecidos com entes que integram a administração local do Estado, da qual fazem parte as autarquias locais, como o são os municípios, a ACT apenas detém competência de fiscalização e inspecção e, por maioria de razão, competência em matéria contraordenacional, no domínio da legislação relativa à segurança e saúde no trabalho.
Em matérias distintas, as ditas competências estão deferidas ao serviço com competência inspectiva do ministério que dirija, superintenda ou tutele o empregador público em causa e, cumulativamente, à Inspecção-Geral de Finanças (IGF).
A legislação relativa à segurança e saúde no trabalho, tal como prevista no art.º 4.º, n.º 1, al. l), da Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, é a que consta da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro (cfr. o art.º 16.º-A, da Lei n.º 35/2014), sendo que nesta se não surpreende norma que regule os tempos de condução, pausas e tempos de repouso e controlo da utilização de tacógrafos na actividade de transporte rodoviário, isto é, norma relativa à regulamentação social no âmbito da actividade de transporte. Aliás, em matéria de organização e tempo de trabalho rege a al. j) do n.º 1 do art.º 4.º da Lei 35/2014, de 20 de Junho, a significar que a que se refere à segurança e saúde no trabalho com ela se não confunde, consequenciando a aplicação de regime jurídico distinto.
Dos preceitos legais que vimos de enunciar resulta, pois, com todo o respeito por posição distinta, designadamente a vertida nas várias decisões juntas aos autos, que a ACT não dispõe de competência de fiscalização no âmbito do cumprimento das normas relativas aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e controlo da utilização de tacógrafos na actividade de transporte rodoviário, e, por maioria de razão, para a prossecução do procedimento contra-ordenacional a que se associe vínculo estabelecido entre um ente público e um seu trabalhador. As modalidades de vinculação à administração pública, da qual fazem parte os municípios, está definida no quadro da Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, nelas se não surpreendendo vínculos aos quais seja aplicável o Código do Trabalho e legislação complementar, daí que o trabalhador, ao serviço do recorrente, tivesse que, por necessário, estar vinculado numa dessas modalidades (inexiste prova de que assim não fosse). A competência de fiscalização está acometida, nos termos da lei, ao serviço com competência inspectiva do ministério que dirija, superintenda ou tutele o empregador público em causa e, cumulativamente, à Inspecção-Geral de Finanças (IGF). A tanto não obsta o disposto na al. a) do art.º 9.º da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto, posto que, como vimos, quando da aplicação do Código do Trabalho e legislação complementar referida no número anterior resultar a atribuição de competências ao serviço com competência inspectiva do ministério responsável pela área do trabalho, estas devem ser entendidas como atribuídas ao serviço com competência inspectiva do ministério que dirija, superintenda ou tutele o empregador público em causa e, cumulativamente, à Inspecção-Geral de Finanças (IGF).
É evidente que o recorrente, sendo um Município, não está excluído do âmbito de aplicação do referido DL n.º 27/2010, de 30 de Agosto, nem, tão-pouco, do Regulamento 561/2006. Isto é, não é a sua natureza pública e os interesses públicos que prossegue que arredam a aplicação dos ditos diplomas, já que as noções de condutor e de empresa transportadora, tal como definidas pelo Regulamento 561/2006, abarcam, sem sombra de dúvida, as pessoas colectivas públicas e os trabalhadores ao seu serviço, independentemente do vínculo jurídico existente. Doutro passo, a actividade de transporte não tem que, por necessário, ser prosseguida por uma empresa, com fins lucrativos, para desencadear a aplicação dos ditos diplomas, pois que essa actividade se consubstancia em qualquer deslocação de um veículo utilizado para o transporte de passageiros ou de mercadorias efectuada total ou parcialmente por estradas abertas ao público, em vazio ou em carga.
Sem prejuízo, distinto do âmbito de aplicação dos citados diplomas e dos sujeitos a quem se aplica, é a competência em matéria de fiscalização do seu cumprimento e em matéria de prosseguimento de acção sancionatória, sendo o caso. E, neste conspecto, não se nos afigura que caiba à ACT a dita missão, antes competindo a mesma, como dito, ao serviço com competência inspectiva do ministério que dirija, superintenda ou tutele o empregador público em causa e, cumulativamente, à Inspecção-Geral de Finanças (IGF).
Nesta conformidade, procede o recurso interposto pela recorrente, concluindo-se, pois, pela incompetência da ACT para o prosseguimento do procedimento contra-ordenacional e, por maioria de razão, para a aplicação de coima ao recorrente”.
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O Ministério Público invoca designadamente as seguintes decisões judiciais, para defender interpretação contrária:
- sentença proferida pelo Juízo do Trabalho de Guimarães – Juiz 2, processo n.º 6791/17.2T8GMR, de 11/05/2018 (Freguesia de Seide);
- sentença proferida pelo Juízo do Trabalho de Setúbal – juiz 1, processo 6341/19.6T8STB, de 30/04/2021 (Município de Sesimbra);
- sentença proferida pelo juízo do trabalho de Almada – juiz 2, processo 2479/21.8T8ALM, de 31/05/2021 (Município do Seixal), as quais se juntam com o presente recurso.
Não há qualquer dúvida, apreciando a jurisprudência invocada, que as decisões referidas pelo recorrente militam em sentido oposto ao da decisão em apreço nos autos.
Também é certo que se trata de uma questão suscetível de se levantar em muitas outras ocasiões, considerando a existência de largas centenas de autarquias locais por todo o país - e tanto que já se levantou, como ilustram estas decisões –, pelo que entende este tribunal superior que a uniformização da aplicação do direito justifica a reapreciação da decisão.
Pelo que, e com este fundamento extraordinário, se admite um recurso.
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Da competência material
Pois bem. Vista a argumentação da douta sentença, não a acompanhamos. Com efeito, afigura-se-nos ser de concluir que pelo menos a Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, atribuiu competência à ACT para perseguir contra-ordenacionalmente entidades como a arguida, ainda que tratando-se de um município, como resulta claro do disposto no seu artigo 9º, nos termos do qual “a fiscalização do cumprimento das disposições sociais comunitárias no domínio dos transportes rodoviários e do AETR é assegurada, no âmbito das respectivas atribuições, pelas seguintes entidades:
a) Autoridade para as Condições do Trabalho;
b) Guarda Nacional Republicana;
c) Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I. P. (IMTT, I. P.);
d) Polícia de Segurança Pública”.
E atribuiu-a independentemente do vínculo jurídico existente entre o prestador da atividade e a entidade arguida.
Efetivamente, não distinguindo este diploma a quer os vínculos dos prestadores da atividade (cfr. quanto a isto, por todos, os acórdãos da relação do Porto de 23-02-06 no processo n.º 249/21.2Y3VNG.P1, “O regime da Lei 27/2010, de 30 de Agosto, aplica-se a todos os condutores da empresa, incluindo os contratados como prestadores de serviço”; e de 23.02.2023, proc. 1016/22.1T8VFR.P1, “I - A prática da contra-ordenação prevista no artigo 25.º, da Lei n.º 27/2010, em conjugação com o artigo 36.º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.º 165/2014, não pressupõe que o condutor seja trabalhador subordinado, abrangendo qualquer pessoa que conduza o veículo, independentemente da natureza do vínculo jurídico existente entre esse condutor e a empresa”), quer a natureza da entidade fiscalizada, como a própria decisão recorrida reconhece, é de concluir que a ACT tem competência para intervir no caso.
Como decidiu o juiz 2 do juízo do trabalho de Guimarães de 9/04/2018 (Dr.ª Paula Penha), “a autoridade para as condições do trabalho (ACT) veio aplicar à arguida o regime sancionatório previsto na Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, através do qual se transpôs para a ordem jurídica interna o regime sancionatório (aprovado pelo Parlamento Europeu e pela Comissão Europeia) sobre a violação das normas respeitantes aos tempos de condução, pausas, tempos de repouso e ao controlo da utilização de tacógrafos no domínio dos transportes rodoviários.
E esta lei prevê, expressamente[nos seus artigos 9, 12, 13 e 25]:
- quer a GNR quer a ACT como entidades competentes para a fiscalização do cumprimento das respetivas normas;
- que às contra ordenações aqui previstas se aplica quer o regime dos artigos 548 a 565 do código do trabalho (…) quero regime do procedimento ou processual das contra ordenações laborais (aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro)
(…) A sujeição a sobredita disciplina contraordenacional contida quer no Código do Trabalho quer na Lei 107/2009, resulta da sobredita imposição legal (prevista no art.º 12, n.º 1 e 2 da Lei 27/2010) e terá de ser feita com a devida e necessária adaptação, ou seja, independentemente da existência (ou não) de uma relação de trabalho subordinado, jurídica e economicamente, entre a entidade detentora do veículo de transporte rodoviário e o respectivo condutor”
Deste modo, o recurso merece provimento, devendo ser proferida sentença que conheça do mérito da impugnação.
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III – DECISÃO
Por todo o exposto, o tribunal julga procedente o recurso e revoga a decisão recorrida, devendo ser proferida sentença que conheça do mérito da impugnação.
Custas a cargo da arguida.
Lisboa, 12 de fevereiro de 2024
Sérgio Almeida
Alves Duarte
Paula Santos
1. No original sem esta partícula de negação, que se depreende do contexto.