CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
HORÁRIO FLEXÍVEL
PARECER DA CITE
RECUSA
Sumário

I - Em matéria de contra-ordenações laborais, o Tribunal do Trabalho funciona como instância de recurso, e o Tribunal da Relação funciona essencialmente como instância de revista, e, consequentemente, em termos limitados, quer quanto às decisões judiciais que admitem recurso, quer quanto ao âmbito e efeitos deste, conhecendo apenas da matéria de direito, excepto nos casos previstos no n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal, aplicável por força dos arts. 41.º, n.º 1 e 74.º, n.º 4 do regime geral das contra-ordenações, por sua vez aplicáveis ex vi art. 60.º do regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social.
II – Resulta do disposto nos nºs 1 a 7 do artigo 57º do CT que, ante o parecer desfavorável da CITE à recusa da entidade empregadora relativamente ao pedido de trabalho em regime de horário flexível solicitado pelo trabalhador, a empregadora tem de satisfazer de imediato a pretensão do trabalhador, independentemente de recorrer aos tribunais para obter decisão que lhe permita recusar tal pretensão. Se o tribunal lhe vier a dar razão, o empregador pode então, e só então, voltar a colocar o trabalhador no horário anterior.

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
A ACT – Autoridade para as Condições do Trabalho - aplicou à arguida, XX, S.A., a coima de 2.652.00€, pela prática de uma contraordenação grave, p. e p. pelos artigos 57º nº 7 e 10 e 554º, nº 3, e), ambos do Código do Trabalho, pelo incumprimento do estatuído no referido artigo 57º, por a arguida ter recusado um pedido de horário flexível por parte de uma trabalhadora com responsabilidades parentais, após parecer desfavorável quanto à recusa por parte da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), e  previamente à deci­são judicial que reconheça a existência de motivo justificativo para tal recusa.
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Foi interposto recurso de impugnação pela arguida.
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Foi realizado julgamento com observância do legal formalismo.
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A sentença decidiu julgar “improcedente o recurso e, em consequência, mantenho a decisão condenatória proferida pela ACT – Autoridade para as Condições do Trabalho (Centro Local da Península de Setúbal), pelo que condenamos a “XX, S.A..” Numa coima de Euros: 2. 652,00 (dois mil, seiscentos e cinquenta e dois euros) pela prática da contra-ordenação prevista pelos n.º 7 e 10 do art.º 57.º do Código de Trabalho e punida nos termos do artigo 554.º, n.º 1 e n.º 3, al. e) do Código do Trabalho.”
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Inconformada, a arguida interpôs recurso, concluindo nas suas alegações que
I. EM PRIMEIRO LUGAR, na sentença recorrida, o Tribunal a quo entendeu que (i) a recorrente violou o artigo 57.º, n.º 7 do Código do Trabalho, ao não respeitar o Parecer da CITE e, (ii) que, além de não cumprir com o dispositivo legal referido, intentou a procedimento cautelar para efetivação do seu direito a organizar o horário de trabalho da trabalhadora, de forma tardia, ao invés de, imediatamente após o conhecimento do Parecer da CITE, não existindo violação do artigo 20.º da CRP, conforme alegado pela Recorrente.
II. A sentença a quo incorreu numa incorreta interpretação da matéria de facto.
III. Resulta do texto da sentença uma incorreta interpretação dos factos aplicáveis aos presentes autos.
IV. De acordo com a decisão recorrida, não consta que as testemunhas apresentadas pela Recorrente apresentem um conhecimento privilegiado e sólido acerca das questões em causa, o que, em primeira linha, fere de erro lógico o valor dado aos seus depoimentos;
V. Resulta dos factos provados que a afluência de clientes à loja é muito mais intensa nos fins de semana, motivo pelo qual o volume de trabalho é muito maior nesses dias.
Ficou ainda provado que “Nos fins-de-semana, as transações registam um aumento de cerca de 30% nas vendas em relação aos dias da semana”.
VI. Imediatamente a seguir, resulta dos factos não provados que a Recorrente não logrou provar que as folgas fixas ao fim-de-semana, solicitadas pela trabalhadora, acarretavam prejuízo e transtorno para a Recorrente, afetando o regular funcionamento da loja.
VII. Assim, existe, desde logo, uma contradição entre os factos provados e não provados.
VIII. Deveria resultar da sentença o motivo pelo qual foi entendido pelo Tribunal a quo que um acréscimo concentrado ao fim-de-semana de 30% das vendas não causa constrangimentos ao normal funcionamento do estabelecimento.
IX. Por esse motivo deverá ser alterada a factualidade não provada que consta das fls.3 da sentença a que ora se recorre, nomeadamente “Que a solicitação da trabalhadora, no sentido de ter um horário fixo e folgas fixas ao fim-de-semana acarretava prejuízos e transtornos para a recorrente, que afetariam o regular funcionamento da loja onde prestava trabalho” para provada;
X. O facto 13 da sentença de que ora se recorre é conclusivo (e opinativo) e deverá ser retirado da teor da sentença.
Vejamos,
XI. De acordo com a sentença em crise, consta do facto 13 provado o seguinte “Ao desrespeitar o parecer da CITE, em relação ao pedido de horário flexível por parte de trabalhadora com responsabilidades familiares a arguida atuou sem o cuidado a que segundo as circunstâncias estava obrigada e de que era capaz, bem sabendo que a sua conduta era punida nos termos da lei, atuando com negligência no que concerne às suas obrigações sócio laborais, no âmbito da proteção dos direitos de parentalidade”.
XII. O raciocínio que leva a esta conclusão não está suportado em qualquer factualidade.
Pior, estamos perante um juízo de valor que surge completamente desenquadrado e com conceitos genéricos.
XIII. Decorre do facto 13 que a Recorrente atuou de forma negligente no âmbito da proteção dos direitos de parentalidade, quando, na realidade, a existir violação por parte da Recorrente, esta será legalmente mais objetiva.
XIV. EM SEGUNDO LUGAR, o Tribunal a quo fez, também, uma errada avaliação do ónus da prova, violando o principio in dubio pro reo.
XV. Ao procedimento contraordenacional, aplica-se subsidiariamente as regras do CPP e demais garantias substantivas resultantes do Código Penal (v. 32.º e 41.º do RGCOC e art. 60.º RPCOL).
XVI. Todo o arguido se presume inocente até prova em contrário. Assim, para a decisão de factos incertos, a dúvida beneficia o arguido.
XVII. Assim, competia à acusação a imputação do ilícito típico (elemento objetivo e subjetivo). Para que houvesse uma real imputação do elemento objetivo, era necessário a acusação demonstrar que o comportamento da recorrente violava na sua globalidade as referidas disposições legais, o que não sucedeu, devendo, também por esta via, a decisão recorrida ser considerada nula por violação das regras da apreciação da prova.
XVIII. EM TERCEIRO LUGAR, não ficou demonstrado que a Recorrente não tenha atuado com a diligência e cuidado necessário a que estava legalmente obrigada.
XIX. Pelo contrário, decorre do texto da sentença, a Recorrente recebeu o Parecer da CITE no dia 05.07.2023.
XX. No dia 25.08.2023 a Recorrente da entrada do procedimento cautelar para reconhecimento do motivo justificativo para recusa do pedido formulado pela trabalhadora e, no dia 15.03.2024 (sete meses depois!) é proferida sentença, no referido procedimento.
XXI. Não deixa de ser surpreendente que, ainda assim, não foi suficiente a interposição do referido procedimento, uma vez que, conforme referido, e como resulta do teor da sentença, o procedimento cautelar deu entrada no dia 25.08.2023 e só no dia 15.03.2024 (7 meses depois!) é que a Recorrente é notificada da sentença.
XXII. É por demais evidente que, só por inércia do Tribunal é que a sentença não foi preferida em tempo útil de acautelar a decisão administrativa que condenou a Recorrente, o que aconteceu no dia 18.01.2024.
XXIII. A Recorrente fez uso do meio processual adequado para reconhecimento do seu direito, de forma atempada a prevenir o risco contraordenacional que sobre si pendia e que seria evitável.
XXIV. Aliás, inexistindo previsão legal que imponha que a atividade inspetiva aguarde o desfecho da ação judicial a que alude o n.º7 do artigo 56.º do CT, fica a entidade empregadora sujeita a que, na pendência da ação judicial, veja instaurado contra si um processo contraordenacional por violação do parecer emitido pela CITE.
XXV. Quando, na prática, a Entidade Empregadora tem a faculdade de recusar o pedido, mesmo após parecer desfavorável da CITE, mediante ação judicial para reconhecimento de motivo justificativo.
XXVI. A recorrente ficou à mercê da conduta da ACT e, mais importante, da INEFICIÊNCIA DOS TRIBUNAIS. Relembre-se e reitere-se que entre a entrada do procedimento cautelar e a prolação da sentença decorreram 7 meses!
XXVII. O Tribunal, ao invés de evitar o prejuízo sério (periculum in mora) proferindo sentença em tempo útil, conforme estatuído no n.º 2 do artigo 363.º do CPC, com a sua demora tornou, impossibilitou um desfecho diferente daquele vertido na sentença, isto é, a condenação da Recorrente.
XXVIII. Quando, na realidade, caso o Tribunal desse cumprimento ao estatuído no já referido artigo do CPC, a Recorrente estava mais do que a tempo de evitar a decisão final da ACT, datada de 18.01.2024, evitando, igualmente, o presente recurso.
XXIX. ADEMAIS, resulta do teor da sentença que o Tribunal a quo assume que não há lugar a infração contraordenacional quando a Entidade Empregadora, após receção do Parecer desfavorável promove de forma imediata um procedimento cautelar com vista a evitar o prejuízo que o seu cumprimento poderia gerar. A Recorrente concorda, parcialmente, com o entendimento do Tribunal de 1.ª Instância.
XXX. No entanto, existe uma divergência, quanto à solução de direito alcançada uma vez que a própria ação da ACT e da GNR exponenciaram o periculum in mora (uma vez que os restantes pressupostos já estavam verificados, como, aliás, resulta do artigo 14 e 15 dos factos provados).
Por fim,
XXXI. EM QUARTO LUGAR, face a todo o mais até aqui exposto, ficou claro que inexistiu negligência por parte da Recorrente, que tudo fez para evitar a condenação.
XXXII. Aliás, a Recorrente agiu com o cuidado a que estava obrigada e ao qua as circunstâncias a obrigavam, nomeadamente, dando entrada do procedimento cautelar adequado, de forma a obter uma decisão, em tempo útil de evitar a conduta da ACT e consequente decisão administrativa;
XXXIII. Atuou, igualmente, com a diligência e cuidado necessário a evitar a consumação de um facto que, à data da entrada do procedimento cautelar estava iminente, mas que, aquando da prolação da sentença (tardia!), já se tinha consumado.
XXXIV. O comportamento da Recorrente não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do artigo 15.º do Código Penal. Consequentemente, não podendo à Recorrente ser imputada uma atuação a título de negligência, muito menos o poderá ser a título de dolo.
XXXV. Em matéria contraordenacional inexiste punibilidade sem culpa do agente (dolo ou negligência), sem que sobre este se possa realizar um juízo de censurabilidade pela atitude interna adotada face à realização do facto típico.
XXXVI. Da factualidade provada pelo Tribunal a quo não se retiram elementos suficientes para concluir pela existência de dolo ou negligência, na atuação da Recorrente, apenas se retira da sentença em crise uma mera presunção de culpa.
XXXVII. Deste modo, nem não só a matéria de facto da sentença ora em crise deve ser alterada, nos termos já exposto como existiu uma errada interpretação nas normas jurídicas.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve o presente Recurso ser recebido e julgado procedente, absolvendo-se a Recorrente, assim se fazendo a tão desejada JU S T I Ç A !
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O Ministério Público contra-alegou, concluindo nas suas alegações que
Por Sentença de 03 de Outubro de 2024 foi apreciado o recurso interposto pela aqui recorrente vindo o mesmo a ser considerado, parcialmente, improcedente, vindo a mesma a ser condenada numa coima de € 2. 652,00 (dois mil, seiscentos e cinquenta e dois euros) pela prática da contraordenação prevista pelos n.º 7 e 10 do art.º 57.º do Código de Trabalho e punida nos termos do artigo 554.º, n.º 1 e n.º 3, al. e) do Código do Trabalho.
2.º
Salvo o devido respeito, que é muito, a recorrente ao alegar vícios da decisão recorrida, pretende por em crise a matéria de facto dada como assente, o que em matéria de contraordenações laborais não merece apoio legal.
3.º
Ora, na situação recorrida o Tribunal fundou a sua convicção, não resultando da própria decisão que o julgador tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, pelo que, improcede, igualmente, a violação do aludido princípio.
4.º
A recorrente não podia desconhecer que, independentemente de concordar ou não com o parecer da CITE, teria que lhe dar cumprimento até obter judicialmente decisão que porventura acolhesse a sua pretensão.
5.º
A recorrente não aplicou o determinado pelo Parecer da CITE quanto à trabalhadora, AA, enquanto apresentou, em Juízo, a providência cautelar, pelo que, carece de fundamento legal a argumentação por si expendida.
6.º
Entende-se que a decisão recorrida deverá ser mantida nos seus precisos termos e o recurso ser declarado improcedente.”
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Os autos foram aos vistos às Exmas Desembargadoras Adjuntas.
Cumpre apreciar e decidir
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II – Objecto
Considerando as conclusões de recurso apresentadas, que delimitam o seu objecto, cumpre apreciar e decidir
- da impugnação da matéria de facto;
- se o tribunal a quo manteve a condenação da arguida em violação do princípio in dúbio pro reo;
- se a arguida agiu de forma negligente.
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III – Fundamentação de Facto
A – Matéria de Facto Provada
São os seguintes os factos considerados provados pela 1ª instância
1. A arguida prossegue a atividade de comércio e retalho em supermercados e hipermercados, CAE 47111.
2. A arguida apresentou um volume de negócios de € 5.045.290.752,00, reportado ao ano relevante nos presentes autos.
3. A Guarda Nacional Republicana (GNR) participou à ACT que, no dia 09/08/2023 foi-lhe solicitado que se deslocasse ao local de trabalho da arguida sito no ..., Rua..., onde foi aferido que a trabalhadora AA, a prestar ali atividade laboral, não teve autorização para entrar no local de trabalho.
4. Na sequência da participação referida no ponto anterior, em 11/08/2023, a ACT realizou visita inspetiva ao local de trabalho e loja da arguida, melhor identificado nos autos.
5. A arguida mantinha ao seu serviço a trabalhadora AA.
6. A trabalhadora efetuou um pedido de horário flexível por carta de 18/05/2022, com fundamento no facto de ter filhos menores de 12 anos a cargo, no qual solicita que o descanso semanal ocorra aos sábados, domingos e feriados, em que se disponibiliza para exercer a sua atividade, como tem vindo a desempenhar, em qualquer secção do hipermercado, conforme doc. junto a fls. 6 e seguintes, o qual se dá por reproduzido.
7. Em 01/06/2022, a entidade empregadora comunicou à trabalhadora a sua intenção de recusar o seu pedido, conforme doc. junto a fls. 7 verso e seguintes, o qual se dá por reproduzido.
8. Em 05/06/2023 a CITE recebeu, via correio eletrónico da EE e aqui recorrente, pedido de emissão de parecer prévio à recusa de prestação de trabalho em regime de horário flexível solicitada pela trabalhadora AA, com a categoria profissional de Operadora naquela entidade, conforme doc. junto a fls. 7 verso e seguintes, o qual se dá por reproduzido.
9. Em 05/07/2023 a CITE emitiu parecer desfavorável à recusa da entidade empregadora relativamente ao pedido de trabalho em regime de horário flexível solicitado pela trabalhadora AA, conforme doc. junto a fls. 7 verso e seguintes, o qual se dá por reproduzido.
10. Em 25/08/2023, a entidade empregadora, aqui recorrente, apresentou em juízo o procedimento cautelar comum contra a mesma e supra identificada trabalhadora, que correu termos sob o n.º 6159/23.1T8ALM no J1 deste Tribunal de Trabalho de Almada, o qual foi julgado improcedente por decisão de 15/03/2024, decisão que transitou em julgado a 05/04/2024, conforme certidão junta em audiência de julgamento, o qual se dá por reproduzido.
11. A loja é assegurada por 28 trabalhadores, 22 do género masculino e seis do género feminino segundo o mapa de horário de trabalho afixado na loja, conforme doc. junto a fls. 19, o qual se dá por reproduzido.
12. A arguida não respeitou o parecer da CITE emitido em 05/07/2023, mantendo a recusa do pedido de horário flexível da trabalhadora, previamente à interposição de ação judicial e à existência de decisão judicial que reconheça a existência de motivo justificativo.
13. Ao desrespeitar o parecer da CITE, em relação ao pedido de horário flexível por parte de trabalhadora com responsabilidades familiares, a arguida atuou sem o cuidado a que segundo as circunstâncias estava obrigada e de que era capaz, bem sabendo que a sua conduta era punida nos termos da lei.1 Alterado conforme decisão infra.
14. A afluência de clientes à loja é muito mais intensa nos fins de semana, pelo que o volume de trabalho é muito maior nesses dias.
15. Nos fins de semana, excluindo feriados, as transações registam um aumento de cerca de 30% nas vendas em relação aos dias de semana, conforme mapa de afluência junto aos autos cujo teor se dá por integramente reproduzido e integrado para todos os efeitos legais.
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B – Matéria de Facto Não Provada
A 1ª instância considerou não provados os seguintes factos
1 - A solicitação da Trabalhadora, no sentido de ter um horário fixo e folgas fixas ao fim de semana, acarretava prejuízos e transtornos para a Recorrente, que afetariam o regular funcionamento da loja onde prestava trabalho.
2- Para que a secção da trabalhadora possa operar em condições mínimas, são necessários 2 trabalhadores da secção a tempo inteiro, pelo que, caso estejam trabalhadores em número inferior, o funcionamento desta secção estará irremediavelmente comprometido.
3 - Dada a composição da secção (bazar), e a especificidade das tarefas, aos sábados e domingos é imperativa a presença de dois colaboradores da secção (idealmente 3).
4- A Recorrente elabora os horários de trabalho com dias de descanso semanal rotativos, de forma que todos os trabalhadores da secção a que a trabalhadora pertence tenham, de forma periódica e rotativa, folga ao sábado e domingo.
5 - Naquele local de trabalho existiam pedidos similares para a atribuição do horário de trabalho flexível.
6 - A Recorrente não retirou qualquer benefício desta atuação.
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IV – Apreciação do Recurso
1.A arguida impugna a matéria de facto, o que faz com os seguintes fundamentos
- a decisão não esclarece a razão de ciência e a experiência comum das testemunhas que fundamentaram a sua convicção;
- ocorre contradição entre os factos 14 e 15 dos provados e o facto 1 dos não provados;
- não consta da sentença o motivo pelo qual foi entendido pelo Tribunal a quo que um acréscimo, concentrado ao fim-de-semana, de 30% das vendas não causa constrangimentos ao normal funcionamento do estabelecimento, na perspectiva de a trabalhadora gozar folga nesses dias;
- o facto 1 dos não provados deve ser considerado provado;
- o facto 13 dos provados é conclusivo.
Dispõe o art. 51º nº 1 do regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social, aprovado pela Lei 107/2009, de 14 de Setembro, que, se o contrário não resultar de tal lei, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.
A este propósito António Santos Abrantes Geraldes2, afirma que “[o] recurso em matéria de facto está limitado às situações referidas no art. 410.º, n.º 2, do CPP, pelo que, em regra, a Relação apenas aprecia matéria de direito, funcionando, na prática, como tribunal de revista.”
Como se afirma no Acórdão desta Relação de 6 de Fevereiro de 20123 - “[N]a verdade, uma vez que o tribunal do trabalho funciona, no âmbito da sua competência em matéria de contra-ordenações laborais e de segurança social, como instância de recurso, e para mais reapreciando a decisão da autoridade administrativa com a maior das amplitudes, quer de facto, quer de direito, o tribunal da relação, em conformidade, funciona essencialmente como instância de revista, e, consequentemente, em termos limitados, quer quanto às decisões judiciais que admitem recurso (art. 49.º do diploma mencionado), quer quanto ao âmbito e efeitos do recurso (art. 51.º, n.º 1 do mesmo).
Nessa mesma ordem de razões, não há lugar ao registo da prova, nos termos do art. 66.º do regime geral das contra-ordenações (DL n.º 433/82, de 27 de Outubro), aplicável ex vi art. 60.º do acima indicado regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social.
Ora, nos termos do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal, aplicável por força dos arts. 41.º, n.º 1 e 74.º, n.º 4 do citado regime geral das contra-ordenações, por sua vez aplicáveis ex vi art. 60.º do regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou c) erro notório na apreciação da prova.
Isto é, para além da sua tipicidade, “[t]êm tais vícios da matéria de facto, deste modo, de resultar do texto da decisão recorrida e sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos (v. Ac. do STJ de 31/1/90, BMJ-393º, pág. 333; Ac. do STJ de 20/6/90, Col. STJ, 1990, T. 3, pág. 22; Ac. do STJ de 11/6/92, BMJ-418º, pág. 478; Ac. do STJ de 8/1/97, BMJ-463º, pág. 189; Ac. do STJ de 5/3/97, BMJ-465º, pág. 407; Ac. do STJ de 9/4/97, BMJ-466º, pág. 392; Ac. do STJ de 17/12/97, BMJ-472º, pág. 407; Ac. do STJ de 27/1/98, BMJ-473º, pág. 148; Ac. do STJ de 10/2/98, BMJ-474º, pág. 351; e Ac. do STJ de 9/12/98, BMJ-482º, pág. 68), não sendo admissível, designadamente, o recurso a declarações ou depoimentos exarados no processo (v. Ac. do STJ de 19/12/90, BMJ-402º, pág. 232) e não podendo basear-se em documentos juntos ao processo (v. Ac. Rel. de Coimbra de 5/2/97, BMJ-464º, pág. 627).
Os vícios da matéria de facto em referência não podem, designadamente, ser confundidos com uma divergência entre a convicção alcançada pelo recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela convicção que, nos termos do art. 127º do CPP e com respeito, designadamente, pelo disposto no art. 125º do CPP, o Tribunal a quo alcançou sobre os factos” (Ac. da Relação de Lisboa de 23 de Fevereiro de 2005, in www.dgsi.pt).
Por seu turno, conforme ensina o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, ed. Verbo, 2000, III Vol, pp. 339-342), no que respeita à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, "[é] necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida"; no que ao erro notório na apreciação da prova concerne, "é o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta"; já quanto à contradição insanável da fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão, "distingue-se antes de mais da falta de fundamentação” e pode existir "não só entre os factos dados como provados mas também entre os dados como provados e os não provados, como entre a fundamentação probatória da matéria de facto”.4
Feitos estes considerandos, vejamos a argumentação da arguida.
««« Quanto à alegada ausência de alusão à razão de ciência e “experiência comum” das testemunhas em que o tribunal a quo fundou a sua convicção, discordamos da recorrente. De facto, essas referências resultam da fundamentação da sentença que, a este propósito, refere que a testemunha BB é inspector, aliás é a pessoa que elaborou o auto de notícia, e que as testemunhas CC e DD  são funcionários da arguida, e, segundo resulta ainda da fundamentação, têm conhecimento directo do modo de funcionamento da arguida para o que ao caso interessa. Portanto, improcede o recurso nesta parte.
««« Quanto à contradição entre os factos 14 e 15 dos provados e 1 dos não provados, a mesma não se verifica.
São os seguintes os factos - 14. A afluência de clientes à loja é muito mais intensa nos fins de semana, pelo que o volume de trabalho é muito maior nesses dias.
15. Nos fins de semana, excluindo feriados, as transações registam um aumento de cerca de 30% nas vendas em relação aos dias de semana., conforme mapa de afluência junto aos autos cujo teor se dá por integramente reproduzido e integrado para todos os efeitos legais.
1 - A solicitação da Trabalhadora, no sentido de ter um horário fixo e folgas fixas ao fim de semana, acarretava prejuízos e transtornos para a Recorrente, que afetariam o regular funcionamento da loja onde prestava trabalho.
A arguida esquece que os factos em causa não podem ser considerados de forma isolada, mas em conjugação com os demais.
Assim, resulta provado que a “loja é assegurada por 28 trabalhadores, 22 do género masculino e seis do género feminino segundo o mapa de horário de trabalho afixado na loja” (facto 11 dos provados), e não resultou provado que “2- Para que a secção da trabalhadora possa operar em condições mínimas, são necessários 2 trabalhadores da secção a tempo inteiro, pelo que, caso estejam trabalhadores em número inferior, o funcionamento desta secção estará irremediavelmente comprometido.” E ainda que “3 - Dada a composição da secção (bazar), e a especificidade das tarefas, aos sábados e domingos é imperativa a presença de dois colaboradores da secção (idealmente 3).”
Portanto, o que resulta da conjugação articulada dos factos referidos (os provados e os não provados) é que o aumento do número de vendas ao fim-de-semana não acarreta necessariamente um prejuízo para a arguida caso a trabalhadora folgasse nesses dias.
Argumenta ainda a arguida que não consta da sentença o motivo pelo qual foi entendido pelo Tribunal a quo que um acréscimo concentrado ao fim-de-semana de 30% das vendas não causa constrangimentos ao normal funcionamento do estabelecimento. No entanto, na fundamentação da matéria de facto o tribunal esclarece esta questão, ao referir “Relevaram ainda os depoimentos das testemunhas CC e DD, funcionários da Arguida, na medida em que esclareceram que é normal que os trabalhadores de outras seções venham para a secção de bazar, onde trabalhava a AA, dada a polivalência dos funcionários e a pouca especificidade da secção em causa, tendo divergido as testemunhas quanto ao número necessário de colaboradores que precisam estar “alocados” à secção de bazar, contribuindo assim para a não comprovação de factualidade alegada pela recorrente a tal respeito.
Do conjunto da prova produzida não ficou minimamente demonstrada a versão da aqui Recorrente quanto à impossibilidade de deferimento da pretensão da trabalhadora, antes nos pareceu que os trabalhadores entendem e concordam com a recusa sob um ponto de vista puramente egoísta, temendo que, se fosse implementado o regime de horário flexível para a trabalhadora AA, lhe fossem atribuídas um menor número de folgas aos fins de semana e feriados. Ao invés, e concluindo, atentas as regras da experiência e o teor dos documentos juntos aos autos, resultou demonstrada a factualidade vertida na decisão administrativa.”
Ou seja, a prova produzida não foi de molde a demonstrar os constrangimentos apostos pela empregadora ao deferimento da pretensão da trabalhadora, mormente que o acréscimo de vendas ao fim-de-semana impedia que esta pudesse gozar as suas folgas neste período.
««« Que o facto 1 dos não provados deve ser considerado provado
Como resulta do que referimos supra, está vedado a este tribunal a reapreciação da prova, pelo que, por essa via, soçobra o recurso. Por outro lado, nada resulta da sentença que nos leve a concluir que ocorreu um erro manifesto na apreciação da prova, a demandar a pretendida alteração da matéria de facto, pelo que improcede o recurso nesta parte.
««« Se o facto 13 dos provados é conclusivo - 13. Ao desrespeitar o parecer da CITE, em relação ao pedido de horário flexível por parte de trabalhadora com responsabilidades familiares a arguida atuou sem o cuidado a que segundo as circunstâncias estava obrigada e de que era capaz, bem sabendo que a sua conduta era punida nos termos da lei, atuando com negligência no que concerne às suas obrigações sócio laborais, no âmbito da proteção dos direitos de parentalidade.
Consideramos que apenas a última parte do facto, por se tratar de matéria de direito - atuando com negligência no que concerne às suas obrigações sócio laborais, no âmbito da proteção dos direitos de parentalidade - deve ser retirada da sua redacção. Relativamente ao demais ali referido trata-se de matéria factual, não merecendo censura a decisão da 1ª instância.
Procede, pois, parcialmente, o recurso nesta parte.
2.Invoca ainda a arguida a violação do princípio in dubio pro reo, afirmando que “não podia, pois, a sentença a quo considerar como não provados os factos acima identificados, quando nem sequer existe qualquer indicação de prova em contrário. Até porque o próprio Tribunal recorrido assume que teve dúvidas quanto a factos face às conclusões retiradas dos factos.”
Não só a arguida não esclarece de onde resulta, na sentença, que o tribunal a quo teve dúvidas, como tal não se descortina no discurso fundamentador dessa peça processual, pelo que, sem necessidade de outros considerandos, improcede o recurso, nesta parte.
3. Pretende ainda a arguida que não actuou com negligência porquanto recebeu o Parecer da CITE no dia 05.07.2023,e no dia 25.08.2023 deu entrada do procedimento cautelar para reconhecimento do motivo justificativo para recusa do pedido formulado pela trabalhadora, sendo certo que apenas 7 meses depois foi proferida sentença neste processo. Alega que fez uso do meio processual adequado para reconhecimento do seu direito, de forma atempada a prevenir o risco contraordenacional que sobre si pendia e que seria evitável. Conclui que,só por inércia do Tribunal é que a sentença não foi preferida em tempo útil de acautelar a decisão administrativa que condenou a Recorrente, o que só aconteceu no dia 18.01.2024.
Vejamos
De acordo com o disposto no artigo 57º do CT, para o que ao caso interessa, “Artigo 57.º
Autorização de trabalho a tempo parcial ou em regime de horário flexível
1 - O trabalhador que pretenda trabalhar a tempo parcial ou em regime de horário de trabalho flexível deve solicitá-lo ao empregador, por escrito, com a antecedência de 30 dias, com os seguintes elementos: (…)
2 - O empregador apenas pode recusar o pedido com fundamento em exigências imperiosas do funcionamento da empresa, ou na impossibilidade de substituir o trabalhador se este for indispensável.
3 - No prazo de 20 dias contados a partir da recepção do pedido, o empregador comunica ao trabalhador, por escrito, a sua decisão.
4 - No caso de pretender recusar o pedido, na comunicação o empregador indica o fundamento da intenção de recusa, podendo o trabalhador apresentar, por escrito, uma apreciação no prazo de cinco dias a partir da recepção.
5 - Nos cinco dias subsequentes ao fim do prazo para apreciação pelo trabalhador, o empregador envia o processo para apreciação pela entidade competente na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, com cópia do pedido, do fundamento da intenção de o recusar e da apreciação do trabalhador.
6 - A entidade referida no número anterior, no prazo de 30 dias, notifica o empregador e o trabalhador do seu parecer, o qual se considera favorável à intenção do empregador se não for emitido naquele prazo.
7 - Se o parecer referido no número anterior for desfavorável, o empregador só pode recusar o pedido após decisão judicial que reconheça a existência de motivo justificativo.
(…)
10 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto nos n.ºs 2, 3, 5 ou 7.
O que resulta deste preceito legal é que, ante o parecer desfavorável da CITE à recusa da entidade empregadora relativamente ao pedido de trabalho em regime de horário flexível solicitado pelo trabalhador, a empregadora tem de satisfazer de imediato a pretensão do trabalhador, independentemente de recorrer aos tribunais para obter decisão que lhe permita recusar tal pretensão. Ou seja, enquanto aguarda pela decisão definitiva do tribunal quanto ao motivo justificativo para a recusa da pretensão do trabalhador, o empregador tem de admitir o pretendido horário flexível. Se o tribunal lhe der razão, o empregador pode então, e só então, voltar a colocar o trabalhador no horário anterior.5 Aliás, como a arguida bem sabe, e como referiu nas conclusões de recurso “inexistindo previsão legal que imponha que a atividade inspetiva aguarde o desfecho da ação judicial a que alude o n.º7 do artigo 56.º do CT, fica a entidade empregadora sujeita a, na pendência da ação judicial, veja instaurado contra si um processo contraordenacional por violação do parecer emitido pela CITE.”
O que se passou no presente caso foi que a arguida/empregadora incumpriu a lei em grave desrespeito do direito da trabalhadora.
Ou seja, improcede o recurso.
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V - Dispositivo
Face a todo o exposto, acordam as Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
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Relatora – Paula de Jesus Jorge dos Santos
1º adjunta – Susana Silveira
2ª adjunta – Celina Nóbrega
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1. Tinha a seguinte redacção “Ao desrespeitar o parecer da CITE, em relação ao pedido de horário flexível por parte de trabalhadora com responsabilidades familiares a arguida atuou sem o cuidado a que segundo as circunstâncias estava obrigada e de que era capaz, bem sabendo que a sua conduta era punida nos termos da lei, atuando com negligência no que concerne às suas obrigações sócio laborais, no âmbito da proteção dos direitos de parentalidade.”
2. Recursos no Processo do Trabalho, Coimbra, 2010, pág. 169.
3. Processo 213/12.2TTLSB.L1.
4. No mesmo sentido, vide, mais recentemente, os acórdão desta Secção de 06-04-2022 – Processo 1225/20.8T8BRR.L1 – de 06-12-2017 – Processo 746/17.4T8LSB.L1 – e de 05-04-2017 – Processo 6529/16.1T8LSB.L1.
5. Veja-se, neste sentido, acórdão da Relação de Évora de 10-03-2022 – Processo 1871/19.2T8STB.E1