TEMPO DE TRABALHO
ISENÇÃO DE HORÁRIO DE TRABALHO
NULIDADE POR FALTA DE FORMA
TRABALHO SUPLEMENTAR
EQUIDADE
JUROS
Sumário

Nulidades da sentença – Modificação da decisão sobre a matéria de facto – Tempo de trabalho do técnico de vendas – Viagens do trabalhador para visitar clientes da empregadora no veículo automóvel fornecido pela empresa e deslocações para comparecer a reuniões, conforme determinado pela empregadora – Registo de tempos de trabalho – Regime de isenção de horário de trabalho nulo por vício de forma – Determinação da retribuição devida por trabalho suplementar com recurso à equidade – Prova do crédito – Artigo 31.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – Artigo 2.º da Directiva 2003/88/CE – Artigos 197.º, 202.º, 218.º, 226.º, 231.º n.º 5 e 337.º n.º 2 do Código do Trabalho – Artigos 4.º - a) e 400.º do Código Civil – Artigos 615.º e 662.º do Código de Processo Civil

Texto Integral

Acordam em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Sentença recorrida
1. Por sentença de 9.1.2024 (referência citius 431160164), o 2.º Juízo do Trabalho de Lisboa, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, (doravante também Tribunal de primeira instância, Tribunal recorrido ou Tribunal a quo), proferiu a seguinte decisão:
“III- DECISÃO
Por tudo o que ficou exposto e nos termos das disposições legais citadas, julgo improcedente a presente acção e, em consequência:
A) absolvo a R. do pedido de pagamento ao A., a título de remunerações vencidas e não pagas, de 70.766,54€ (setenta mil setecentos e sessenta e seis euros e cinquenta e quatro cêntimos);
B) bem como dos inerentes de juros de mora à taxa legal sobre a quantia peticionada, desde a data da citação e até ao seu efetivo e integral pagamento.
Valor: 70.766,54€
Custas por autor”
Alegações do recorrente
2. Inconformado com a sentença mencionada no parágrafo anterior, o recorrente (trabalhador), dela veio interpor o presente recurso (cf. referência citius 38597101 de 26.2.2024), formulando o seguinte pedido:
“(...) devendo declarar-se nula a sentença recorrida e, em qualquer caso, proceder-se à reapreciação da matéria de facto, e, consequentemente, ser a sentença revogada, proferindo-se acórdão que julgue, a final, a ação procedente por provada.”
3. Nas suas alegações vertidas nas conclusões, o recorrente impugna a decisão recorrida com base nos argumentos que o Tribunal a seguir sintetiza, para facilitar a sua análise:
Nulidades da sentença
• A sentença recorrida enferma da nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 – d) do Código de Processo Civil (CPC), por omissão de pronuncia sobre a causa de pedir, por não ter apreciado a questão de saber se o trabalho suplementar prestado pelo recorrente foi comunicado à recorrida e se a recorrida dele teve conhecimento e nunca o recusou;
• A sentença recorrida enferma de nulidade por existir contradição entre a decisão e os seus fundamentos, na medida em que o facto provado 24 além de conter matéria conclusiva e de direito e, por isso, dever ser retirado do elenco dos factos provados, está em contradição com os factos provados 15, 16, 18, 19 e 20;
• A sentença recorrida enferma da nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 – b) do CPC por não especificar suficientemente os fundamentos de facto e direito que justificam a decisão, nomeadamente por não indicar em que meios de prova o Tribunal a quo assenta a convicção de que o trabalho suplementar nunca foi determinado pela recorrida;
Impugnação da matéria de facto
• Os factos não provados 1 a 7 devem ser incluídos no acervo dos factos provados
• Devem ser aditados aos factos provados os seguintes factos:
“Que o Recorrente, em virtude das indicações emanadas da Recorrida, quanto a objetivos mínimos diários de visitas a Clientes, tinha necessidade de realizar as deslocações acima referenciadas fora do respetivo horário normal de trabalho;
Que a Recorrida tinha conhecimento, através dos extratos mensais dos registos efetuados através do sistema “Via Verde”, das passagens nos concretos pontos de portagem e respetivos horários do veículo cujo direito à utilização a mesma atribuiu ao Recorrente para desempenho das funções deste ao abrigo do contrato de trabalho entre ambos celebrado (decorrente dos factos enumerados 18-, 40- e 44- do elenco dos factos provados);
Que a aprovação do reembolso ao Recorrente das tarifas correspondentes às passagens nos pontos de portagem, registados no sistema “Via Verde” obedecia a um procedimento prévio interno em vigor na Recorrida, através da apresentação e entrega pelo Recorrente nas instalações da Recorrida das correspondentes folhas de despesas, cabendo a decisão sobre a respetiva aprovação ao Diretor Comercial daquela, BB (decorrente da parte inicial do facto enumerado 18- do elenco dos factos provados);
Que, em data não concretamente apurada, mas certamente nos dois últimos anos de vigência do contrato de trabalho entre Recorrente e Recorrida, passaram a ser realizadas, com base semanal, às sextas-feiras, reuniões de trabalho da equipa comercial da qual fazia parte o Recorrente;
Que o Recorrente participava das referidas reuniões;
Que as reuniões de trabalho e equipa mencionadas no ponto anterior eram realizadas online e promovidas pelo Diretor Comercial da Recorrida, BB, o qual encarregava uma funcionária da Recorrida de enviar os competentes convites à equipa comercial;
Que as reuniões de trabalho e equipa mencionadas nos pontos anteriores se realizavam ao final do dia, tendo início após as 17 horas e terminando após as 19 horas e, muitas das vezes, pelas 20 ou 21 horas;
Que o Recorrente prestou trabalho para a Recorrida, a solicitação ou com o conhecimento desta, em dias de descanso, fins de semana e períodos de férias. “
• Meios de prova que, na óptica do recorrente, devem ser reapreciados: os documentos 5 a 18 juntos com a petição inicial; os documentos 3 a 6 juntos com a resposta à contestação; os documentos juntos pela recorrida mediante requerimento com a referência citius 45962060; o depoimento das testemunhas CC e DD e as declarações de parte do autor (recorrente) AA, que se encontram gravados e cujas passagens o recorrente indica.
Questões que o recorrente pretende que sejam resolvidas pelo Tribunal da Relação
Primeira questão: o Tribunal a quo errou por não ter julgado provado que o recorrente prestava trabalho suplementar pois, ainda que o recorrente tivesse alguma autonomia para programar a sua jornada diária e as visitas aos clientes, de acordo com as regras da experiência não era lhe seria possível cumprir os objectivos mínimos fixados pela recorrida se obedecesse aos limites do horário convencionado;
Segunda questão: a sentença recorrida interpretou e aplicou incorrectamente a norma de controle de presenças adoptada pela recorrida, desconsiderando que tal norma foi objecto de uma norma interpretativa posterior, emitida pelos serviços da recorrida em 31.7.2020 e enviada ao recorrente por email, conforme documento 18 junto com a petição inicial; com base em tal documento o Tribunal a quo devia ter julgado que o início da jornada de trabalho se dava com o início da primeira viagem para visitar clientes e o seu termo, com o regresso da ultima viagem;
Terceira questão: o Tribunal a quo não levou em conta que se apurou que as reuniões de trabalho promovidas pela recorrida ocorriam semanalmente, às sextas feiras, para além do horário de trabalho e em tempo de descanso do recorrente, iniciando-se entre as 17:30 e as 18:30 e terminando entre as 20:00 e as 21:00, como resulta do depoimento da testemunha CC e das declarações de parte do autor/recorrente;
Quarta questão: o Tribunal a quo julgou serem de escassa ou nenhuma relevância os documentos em falta, em poder da recorrida, cuja junção foi requerida pelo recorrente e ordenada no despacho saneador; a recorrida apenas juntou os documentos referentes ao período de Março de 2018 a Dezembro de 2021 não tendo junto os extractos de via verde relativos à totalidade do período da relação laboral; tendo o recorrente invocado essa falta de colaboração, a recorrida nada disse nem justificou a falta de junção dos restantes documentos; pelo que, o Tribunal a quo devia ter invertido o ónus da prova ao abrigo do disposto nos artigos 344.º n.º 2 do Código Civil (CC) e 417.º do CPC; acresce que dos registos da via verde constam 342 passagens antes das 10:00 ou após as 19:00, ou seja, para além do horário normal de trabalho convencionado; sendo o veículo atribuído também para fins pessoais, as entradas e saídas nas portagens dizem respeito às áreas geográficas dos clientes da recorrida e a recorrida pagou os valores dessas portagens por serem deslocações em serviço controladas e aprovadas pela recorrida segundo o procedimento interno que adoptou;
Quinta questão: resulta do documento 6 junto à resposta à contestação que o recorrente trabalhou ao sábado, dia 22 de Agosto de 2020, respondendo à informação que lhe foi solicitada pelo seu director, BB; não tendo tal prova documental sido impugnada pela recorrida, o Tribunal a quo devia ter julgado provado o que resulta do teor desses e-mails, nomeadamente, que a recorrida solicitou ao recorrente que prestasse trabalho em tempo de descanso, durante os fins de semana e em férias;
Sexta questão: o Tribunal a quo incorreu em erro de direito, por não ter reconhecido o direito do recorrente à remuneração pelo trabalho suplementar prestado pois, contrariamente ao que menciona a sentença recorrida, a atribuição de prémios de produtividade não justifica o não pagamento da remuneração devida por trabalho suplementar; em abono desta argumentação, o recorrente invoca a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (C- 266/14), do Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão de 7.10.2010, no processo 459/05.0TTFAR.S1; acórdão de 8.10.2022 no processo 02S4539; acórdão de 18.1.2005, no processo 04S923) e do Tribunal da Relação do Porto (acórdão de 20.3.2023 no processo 779/20.3T8VFR.P1);
• Com base na argumentação acima sintetizada o recorrente pretende que a sentença recorrida seja revogada e substituída por outra que julgue a acção procedente e condene a recorrida no pedido ou, subsidiariamente, caso não seja possível quantificar o trabalho suplementar prestado pelo recorrente, remeta o seu apuramento para liquidação em execução de sentença.
Contra-alegações da recorrida
4. A recorrida contra-alegou (cf. referência citius 39083306 de 15.4.2024), pugnando pela improcedência do recurso e defendendo, sem síntese:
• A sentença recorrida não enferma das alegadas nulidades;
• O ónus da prova de que as distâncias percorridas eram feitas durante a execução da prestação de trabalho e de que foi prestado trabalho suplementar, impendia sobre o recorrente, que não fez tal prova (cf. artigo 342.º n.º 1 do CC);
• Os registos a que se refere o facto não provado 7 não têm relevo porque não dizem respeito ao registo do tempo de trabalho, mas à plataforma “...” onde são geridas as interacções com os clientes;
• Os registos do tempo de trabalho eram feitos no portal “...”;
• Aditar o facto não provado 7 aos factos provados resultaria numa contradição tendo em conta os factos provados 31 a 40;
• Do depoimento da testemunha BB, cujos trechos são transcritos nas contra-alegações, resulta que cabia ao recorrente a organização do seu tempo de trabalho e das visitas aos clientes e que as reuniões não se prolongavam além do horário normal de trabalho;
• Na dúvida sobre se o horário das reuniões semanais ocorria além do horário, esse facto não deve ser provado;
• A viatura foi atribuída pela recorrida ao recorrente para uso profissional e pessoal, motivo pelo qual não é possível, com base nos documentos juntos ou nos registos da via verde, saber quais as deslocações pessoais e as profissionais;
• As alegações do recorrente são incompatíveis com as restrições à circulação ocorridas entre Março de 2020 e Setembro de 2021, período durante o qual os contactos com clientes foram feitos por meios telemáticos;
• O trabalho suplementar realizado há mais de 5 anos só pode ser provado por documento idóneo, nos termos do artigo 338.º n.º 2 do Código do Trabalho (CT), o que não sucede;
• O recorrente não concretiza as horas de trabalho suplementar alegadamente prestadas, limitando-se a invocar, de modo genérico e vago, que prestou em média, diariamente, 2,5 horas de trabalho suplementar;
• Após o final da prestação laboral e no percurso até ao início da mesma, o trabalhador já não está à disposição da empregadora;
• A jurisprudência do acórdão C- 266/14 teve por base uma situação em que a empregadora controlava a deslocação realizada pelos trabalhadores o que não sucede no presente caso, em que o recorrente é que definia quais os destinos para que se iria deslocar sem qualquer interferência da recorrida na organização do seu tempo de trabalho.
Parecer do Ministério Público
5. O digno magistrado do Ministério Público junto ao Tribunal da Relação emitiu parecer (cf. referência citius 22042592 de 17.9.2024), ao abrigo do disposto no artigo 87.º n.º 3 do Código de Processo do Trabalho (CPT), pugnando pela procedência parcial do recurso, em síntese, com base na seguinte argumentação:
• Embora não se verifiquem as alegadas nulidades da sentença recorrida, o facto provado 24 contém matéria conclusiva;
• A decisão sobre a matéria de facto deve ser modificada no sentido pretendido pelo recorrente por ser o que resulta quer do depoimento da testemunha CC quer das declarações de parte do autor;
• De tais depoimentos resulta que mesmo durante o período da pandemia, em que a circulação estava vedada ou limitada, realizavam-se reuniões semanais da equipa comercial, à sexta feira, ao final do dia, em horário compreendido entre as 17:30 e as 21:00;
• Foi injustificada a recusa da recorrida em juntar a totalidade dos documentos/registos da via verde relativos ao período de 7 anos em que durou a relação contratual entre as partes;
• Nos termos do DL 28/2019 de 15.2 tais documentos devem ser mantidos pela recorrida pelo prazo de 10 anos;
• O autor prestou trabalho suplementar e a respectiva retribuição só não seria exigível se o tivesse feito contra as ordens da empregadora ou sem consentimento dela, o que não foi o caso;
• Se não for possível a quantificação da retribuição devida pelo trabalho suplementar, o seu apuramento deve ser remetido para execução de sentença.
6. Cumprido o disposto no artigo 87.º n.º 3 do CPT, as partes não responderam ao parecer mencionado no parágrafo anterior.
7. Admitido o recurso e colhidos os vistos, cumpre decidir.
Delimitação do âmbito do recurso
8. Têm relevância para a decisão do recurso as seguintes questões, vertidas nas conclusões:
A. Nulidades da sentença
B. Modificação da decisão de facto
C. Retribuição devida pelo trabalho prestado fora do horário de trabalho
Factos
9. Os factos provados e não provados serão a seguir agrupados, respectivamente, em dois parágrafos, antecedidos da numeração/alíneas, pelas quais foram designados na sentença recorrida, sem prejuízo das alterações resultantes do presente recurso que serão assinaladas infra.
10. Factos provados
(1) O Autor foi admitido ao serviço da Ré a 2 de março de 2015, para o exercício das funções de Delegado Comercial e com a categoria profissional de Técnico Comercial (Técnico de Vendas Grau II) .
(2) Contrato esse que cessou, por denúncia comunicada pelo Autor à Ré, com efeitos a 10 de Dezembro de 2021.
(3) Como contrapartida pelo exercício das suas funções a favor da Ré, a retribuição mensal ilíquida inicialmente acordada entre aquela e o Autor era de 2.357,14€.
(4) A qual, em virtude das atualizações acordadas entre as partes, se fixou em € 2.513,42 e vigorou até à data da cessação do contrato de trabalho.
(5) A retribuição horária convencionada entre as partes era € 13,70 (treze euros e setenta cêntimos).
(6) E à referida retribuição mensal acrescia, a título de subsídio de alimentação, a quantia diária inicialmente fixada de € 4,66 (quatro euros e sessenta e seis cêntimos).
(7) Para efeitos do desempenho das funções acima descritas, a Ré atribuiu ao Autor o direito à utilização de viatura automóvel.
(8) Utilização essa a que correspondia uma retribuição mensal atribuída ao Autor, conforme acordado com a Ré, que se fixou em € 43,58 até à data da cessação do contrato de trabalho.
(9) Na sequência do acordado entre ambos, ao longo da vigência da relação contratual, a Ré atribuiu ao Autor a utilização das viaturas com as seguintes matrículas, pelos períodos infra indicados:
(10) Veículo com a matrícula ..-PI-.. (de Março de 2015 a Dezembro de 2018);
(11) Veículo com a matrícula ..-VT-.. (de Dezembro de 2018 até à cessação do contrato de trabalho, em Dezembro de 2021).
(12) Consta da cláusula 4ª do CIT:
“1. Atentas as respetivas funções, o Segundo Contraente deverá prestar o seu trabalho sob as ordens, direção e fiscalização da Primeira Contraente, ou de quem a legitimamente represente, em qualquer estabelecimento, escritório ou unidade de negócio da XX, S.A. ou dos respectivos clientes (actuais ou potenciais) sito na Área ficando adstrito ao estabelecimento sede da Primeira Contraente, sito na Avenida....
2. A eventual permanência do Segundo Contraente num determinado local não equivale à renúncia da possibilidade de o mesmo ser deslocado para qualquer outro estabelecimento, escritório ou unidade de negócio da Primeira Contraente, no âmbito da área geográfica que constitui o respetivo local de trabalho nos termos do número anterior.
3. O Segundo Contraente estará disponível para efetuar deslocações e estadias em Portugal ou no estrangeiro no âmbito das suas funções profissionais ou com vista a participação em acções de formação profissional ou estágios que a Primeira Contraente entenda necessários.”
(13) Da cláusula 6ª do CIT consta:
“1. O período normal de trabalho será, em termos médios de 40 horas semana, ficando a definição do horário de trabalho a cargo da Primeira Contraente, nos termos de dentro dos limites legais.
2. Inicialmente e sem prejuízo de posteriores alterações determinadas pela Primeira Contraente, o Segundo Contraente ficará sujeito ao seguinte horário de trabalho, de Segunda a Sexta-Feira, das 10:00 horas às 13:00 horas e das 14:00 horas às 19 horas.
3. O Segundo Contraente desde já manifesta, sem reservas, a concordância, à sua inclusão num regime de isenção de horário de trabalho, num regime de horário de trabalho com turnos, num regime de jornada contínua, num regime de trabalho nocturno e à prestação de trabalho suplementar e à prestação de trabalho em regime de banco de horas individual, de acordo com as regras aplicáveis constantes da lei laboral vigente e dos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho aplicáveis.”
(14) Em virtude da natureza das suas funções e do disposto na Cláusula Quarta do contrato de trabalho, o Autor prestava essencialmente o seu trabalho fora das instalações físicas da Ré, em deslocações a cliente desta.
(15) O A. usava o sistema informático da Ré denominado “...”, onde registava visitas a clientes.
(16) Tal reporte era feito pelo Autor, por ser esse o procedimento aplicável a todos os trabalhadores da Ré, e de acordo com as instruções expressas desta.
(17) O facto provado 17 passa a ter a redacção, por via do presente recurso:
A ré determinou o seguinte na Norma de Controle de Presença, aplicável à Equipa de Vendas, Serviços Profissionais e New Media, que devido às características das suas funções precisam de fazer viagens para visitar clientes, que comunicou ao autor e a outros trabalhadores por e-mail enviado em 31.7.2020, posteriormente ao envio da norma mencionada nos factos provados 26, 27 e 29:
“Devido a algumas consultas que estamos a receber, relacionadas ao controle de presença, por favor tenham em conta as seguintes considerações:
1. Em relação às viagens, o registo do início do dia de trabalho será feito no início da viagem e o registo de finalização do dia de trabalho seria feito no final da viagem.
2. Quando por motivos seja necessário passar a noite fora de casa o registo do final do dia de trabalho será feito no final da última visita
Esses pontos são aplicáveis à Equipa de Vendas, Serviços Profissionais e New Media, que devido às características das suas funções precisam de fazer viagens aos clientes.
O registo do dia de trabalho será realizado conforme indicado na norma, ou seja, através do Excel, no caso da Equipa de Vendas, até ter um aplicativo móvel, e VPN no caso dos Serviços Profissionais e New Media.
Em caso de incidente, esquecimento ou impossibilidade de assinatura através de VPN, indicará por mail a incidência aos SSGG para que realizem o registo manual, se for preciso, ou resolver o dito incidente.”
[Redacção anterior do facto 17:
A Ré determinou em relação às viagens:
«o registo do início do dia de trabalho será feito no início da viagem e o registo de finalização do dia de trabalho será feito no final da viagem»].
(18) Conforme procedimento interno da Ré, o Autor apresentava mensalmente o extrato da “Via Verde”, correspondente às deslocações efetuadas ao serviço daquela.
(19) O Autor suportava inicialmente estas despesas, as quais eram posteriormente reembolsadas pela Ré, em regra, no mês imediatamente seguinte.
(20) Na vigência do contrato de trabalho, este reembolso foi sempre efetuado pela Ré ao Autor, integralmente e sem quaisquer reservas.
(21) A Ré nunca pagou ao Autor retribuições correspondentes a isenção de horário de trabalho, nem a trabalho suplementar.
(22) A XX, S.A. é uma empresa que se dedica ao fabrico e distribuição de produtos de ótica oftálmica, em particular lentes de óculos.
(23) O A. não reclamou ao longo da relação laboral qualquer montante a título de compensação pela isenção de horário de trabalho ou, até mesmo, trabalho suplementar.
(24) O facto provado 24 foi eliminado do acervo dos factos.
(Tinha a seguinte redacção: A ter existido trabalho prestado fora do horário convencionado entre as partes, nunca foi previamente e expressamente determinado pela R, ou sequer realizado de modo a não ser previsível a oposição do empregador].
(25) Do mesmo modo que nunca chegou a existir criação de turnos, ou trabalho nesse regime.
(26) Na Norma Sobre Controlo de Presença, sob o ponto 3. Considerações Gerais Para o Registo da Jornada, é referido:
“Hora de início da jornada. Considera-se “hora de início da jornada” a hora efetiva de início, conforme estabelecido no calendário laboral publicado anualmente.
Para estes efeitos, salvo autorização do responsável e dos RH, a hora de início será calculada para efeitos do tempo de trabalho efetivo, sempre que a mesma se encontrar dentro do período da jornada e dos horários que correspondam ao trabalhador/a.
No caso de um trabalhador/a antecipar voluntariamente a sua entrada no local de trabalho ou se, da mesma forma, realizar a ligação através dos diferentes meios telemáticos antes do início da jornada que lhe corresponda, os tempos anteriores à sua hora de início da atividade não serão considerados, em nenhum caso, como tempo de trabalho efetivo”
(27) Mais se referindo ainda sob o mesmo ponto 3:
“Hora de término da jornada. Considera-se “hora de término da jornada”, a hora efetiva do seu término, conforme estabelecido no calendário laboral publicado anualmente. Para estes efeitos, salvo autorização do responsável e dos RH, conforme descrito na norma relativa às horas extraordinárias, a hora de término será calculada segundo o estabelecido no calendário laboral aplicável a cada caso, dentro do intervalo de jornada e de horários que correspondam ao trabalhador/a. Se, de forma voluntária, um trabalhador/a demorar a sua saída do local de trabalho ou se, da mesma forma, se desligar posteriormente através dos distintos meios telemáticos -após o término da jornada que lhe corresponda-, os tempos posteriores à sua hora de término da atividade, em nenhuma circunstância serão tidos em conta como tempo de trabalho efetivo.
A consideração de horas extraordinárias requer, como indicado na respetiva norma, a devida autorização prévia.”
(28) O horário de trabalho de cada trabalhador é definido pela R. no princípio de cada ano.
(29) Da aludida Norma consta ainda:
“A consideração de horas extraordinárias requer, como indicado na respetiva norma, a devida autorização prévia.”
(30) O facto provado 30 passa a ter a seguinte redacção, por via do presente recurso:
Provado apenas o que consta do facto provado 17.
[Readacção anterior: O esclarecimento interno circulado pelos trabalhadores no dia 31 de julho de 2020 (doc. 18 p.i.), respeita ao procedimento de registo da jornada de trabalho (ponto 4 do Doc. 2, cont.)].
(31) O denominado “...” é um programa de Gestão de Relacionamento com o Cliente (vulgo ‘CRM’), utilizado para gerenciar e analisar as interações com clientes.
(32) Não sendo utilizado para o controlo de presença, porquanto existe outro programa específico com tal finalidade, designado de “...”, que deve ser efetuado nos termos indicados na Norma de Controlo de Presenças.
(33) O “...” está configurado para suportar o registo do tempo de trabalho apenas dentro do horário de trabalho acordado, precisamente para evitar o registo de trabalho suplementar que não seja previamente autorizado pela R.
(34) A gestão e manutenção do programa de “...” é da responsabilidade de cada trabalhador, que do mesmo se serve para reportar as visitas realizadas aos clientes.
(35) Poderá ocorrer que os comerciais, no uso que fazem deste programa, reportem as suas visitas de forma assíncrona ao final do dia ou num dia concreto da semana, sem que tal garanta que a hora reportada seja a hora da realização.
(36) O facto provado 36 [A R. estruturou a sua atividade de modo a que o horário de trabalho fosse bastante à realização da atividade por parte do A., sem necessidade de extravasamento das horas definidas por forma a que, mesmo com tempo de viagem, as 8 horas diárias fossem suficientes] foi eliminado dos factos provados e inserido no acervo dos factos não provados, como facto não provado 1, por via do presente recurso.
Facto provado 37 passa a ter a seguinte redacção, por via do presente recurso:
(37) Provado apenas o que consta do facto provado 27.
[Redacção anterior: Vedando a prestação não previamente autorizada de trabalho suplementar e manifestando de modo expresso aos trabalhadores a sua organização dos tempos de trabalho.]
(38) O A. tinha uma ampla autonomia na organização da sua jornada de trabalho.
(39) Era, assim, o próprio A. quem decidia as horas das visitas e aos clientes da R. que supervisionava e dirigia.
(40) A** - Dentro das áreas geográficas que lhe estavam atribuídas, o A. planeava as suas visitas, as inerentes deslocações e eventuais estadias,
(40) B **- A R. suportava as despesas com deslocações dos comerciais incluindo Via Verde.
** Por lapso descrita manifesto no seu contexto, existe repetição do número 40, o que dá lugar à sua rectificação – cf. artigo 249.º do CC. Para não alterar a numeração dos restantes factos o que dificultaria as remissões, o Tribunal adita as alíneas A e B, respectivamente, a cada um dos factos 40.
(41) Durante os períodos da pandemia, – a título de exemplo, de abril a junho de 2020, mas também posteriormente durante a segunda vaga da pandemia –, o A. não manteve idêntico ritmo de visitas,
(42) Tendo a maioria das visitas tido lugar por via telemática e à distância.
(43) O veículo da empresa concedido para efeitos destas viagens profissionais, permitia igualmente o seu uso pessoal.
(44) O pagamento das despesas de Via Verde referentes às duas viaturas, reportam-se quer a viagens no contexto profissional, quer também pessoal.
(45) O A. tinha direito a uma retribuição variável paga de acordo com os objetivos estabelecidos pela direção e comunicados oportunamente todos os anos.
(46) O A. não informou diretamente à R. ter IHT ou prestar trabalho suplementar, nem reclamou que o seu horário de trabalho não estava ajustado ao desempenho das suas funções ou que o mesmo era insuficiente para o efeito.
(47) O A. não pediu autorização para prestar trabalho suplementar.
(48) O facto provado 48 [O A. não foi autorizado a prestar trabalho suplementar] foi eliminado dos factos provados e inserido no acervo dos factos não provados, como facto não provado 2, por via do presente recurso.
(49) Por mensagem de correio eletrónico de 15 de fevereiro de 2021, do então ‘Country Manager’ da Ré, BB e superior hierárquico do Autor, sob Assunto Registo Visitas - Modulo ..., pelo referido superior hierárquico do Autor é mencionado, designadamente que é «fundamental registar todas as Visitas efetuadas, quer sejam presenciais quer sejam digitais (ocasionalmente) de modo a que fique todo o vosso trabalho devidamente documentado».
Os factos provados 50, 51 e 52, que se seguem, foram retirados dos factos não provados e acrescentados aos factos provados por via do presente recurso:
(50) O autor efetuava, regularmente, ao serviço da ré, deslocações correspondentes aproximadamente às distâncias abaixo indicadas, para as instalações dos seguintes clientes da ré ou para reuniões em Madrid:
(...)
(51) Nas deslocações que fazia em serviço, aos distritos não limítrofes do distrito de Lisboa e para a ilha da Madeira ou para Madrid, entre 6.12.2017 e 31.7.2020, o autor, em dias e horas não concretamente apurados, iniciou essas viagens antes das 10:00 e completou as visitas aos clientes e/ou terminou a viagem de regresso após as 19:00, por razões que se prendiam com a disponibilidade dos clientes da recorrida para o receberem, a distância a percorrer de automóvel ou o horário do avião no caso das deslocações à ilha da Madeira e a Madrid.
(52) A ré tinha conhecimento que as deslocações em serviço feitas pelo autor, mencionadas no facto provado 51, ocorriam fora do seu horário normal de trabalho, tendo concordado com isso e concedido ao autor autonomia para organizar essas deslocações de modo a alcançar os objectivos e/ou cumprir as prioridades definidas pela ré.
11. Factos não provados
Os factos não provados 1 e 2 que se seguem, foram retirados dos factos provados e inseridos nos factos não provados por via do presente recurso:
(1) A ré estruturou a sua atividade de modo a que o horário de trabalho fosse bastante à realização da atividade por parte do autor, sem necessidade de extravasamento das horas definidas por forma a que, mesmo com tempo de viagem, as 8 horas diárias fossem suficientes.
(2) O autor não foi autorizado a prestar trabalho suplementar
Os factos não provados 1 a 7 constantes da sentença recorrida foram eliminados dos factos não provados e inseridos supra nos factos provados como factos 50, 51 e 52.
[Tinham a seguinte redacão na sentença recorrida:
1- O Autor efetuava, regularmente, ao serviço da Ré, deslocações correspondentes às distâncias abaixo indicadas, para as instalações dos clientes desta, e que adiante se indicam:
(...)
2- Para efeitos da realização das deslocações acima identificadas distritos não limítrofes e para a ilha da Madeira e para Madrid, e em estrito cumprimento dos compromissos assumidos com os Clientes da Ré, o Autor tinha de iniciar as suas funções muito antes do início do seu horário de trabalho.
3- E em consequência saía da sua residência antes das 10h, indicadas como hora de início normal da prestação das respetivas funções.
4- Em todas as suas deslocações fora do Distrito de Lisboa, o Autor regressava após as 19h indicadas como término da respetiva jornada normal de trabalho.
5- Tais deslocações não foram realizadas por decisão ou por livre iniciativa do Autor.
6- Mas sim, por ordem, no interesse e ao serviço da Ré.
7- A Ré aceitou o reporte efetuado pelo Autor relativamente às horas despendidas como correspondentes à efetiva prestação de trabalho.]
Quadro legal relevante
12. Para a apreciação do recurso tem relevo, essencialmente, o quadro legal seguinte:
Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
Artigo 31.o
Condições de trabalho justas e equitativas
1. Todos os trabalhadores têm direito a condições de trabalho saudáveis, seguras e dignas.
2. Todos os trabalhadores têm direito a uma limitação da duração máxima do trabalho e a períodos de descanso diário e semanal, bem como a um período anual de férias pagas.
Directiva 2003/88/CE
Artigo 2.º
Definições
Para efeitos do disposto na presente directiva, entende-se por:
1. Tempo de trabalho: qualquer período durante o qual o trabalhador está a trabalhar ou se encontra à disposição da entidade patronal e no exercício da sua actividade ou das suas funções, de acordo com a legislação e/ou a prática nacional.
2. Período de descanso: qualquer período que não seja tempo de trabalho.
3. Período nocturno: qualquer período de pelo menos sete horas, tal como definido na legislação nacional e que inclua sempre o intervalo entre as 24 horas e as 5 horas.
4. Trabalhador nocturno:
a) Por um lado, qualquer trabalhador que execute durante o período nocturno pelo menos três horas do seu tempo de trabalho diário executadas normalmente;
b) Por outro lado, qualquer trabalhador susceptível de realizar durante o período nocturno uma certa parte do seu tempo de trabalho anual, definida segundo o critério do Estado-Membro em causa:
i) pela legislação nacional, após consulta aos parceiros sociais, ou
ii) por convenções colectivas ou acordos celebrados entre parceiros sociais a nível nacional ou regional;
5. Trabalho por turnos: qualquer modo de organização do trabalho em equipa em que os trabalhadores ocupem sucessivamente os mesmos postos de trabalho, a um determinado ritmo, incluindo o ritmo rotativo, e que pode ser de tipo contínuo ou descontínuo, o que implica que os trabalhadores executem o trabalho a horas diferentes no decurso de um dado período de dias ou semanas.
6. Trabalhador por turnos: qualquer trabalhador cujo horário de trabalho se enquadre no âmbito do trabalho por turnos.
7. Trabalhador móvel: um trabalhador que, fazendo parte do pessoal de bordo, está ao serviço de uma empresa que efectua transporte de passageiros ou de mercadorias por via rodoviária, aérea ou marítima.
8. Actividade em offshore: a actividade efectuada essencialmente numa ou a partir de uma instalação offshore (incluindo as unidades de perfuração), directa ou indirectamente ligada à prospecção, à extracção ou à exploração de recursos minerais, incluindo os hidrocarbonetos, e ao mergulho relacionado com tais actividades, efectuada a partir de uma instalação offshore ou de um navio.
9. Descanso suficiente: o facto de os trabalhadores disporem de períodos de descanso regulares cuja duração seja expressa em unidades de tempo, e suficientemente longos e contínuos para evitar que se lesionem ou lesionem os colegas ou outras pessoas e para não prejudicarem a saúde, a curto ou a longo prazo, por cansaço ou ritmos irregulares de trabalho.
Código do Trabalho ou CT
Artigo 197.º
Tempo de trabalho
1 - Considera-se tempo de trabalho qualquer período durante o qual o trabalhador exerce a actividade ou permanece adstrito à realização da prestação, bem como as interrupções e os intervalos previstos no número seguinte.
2 - Consideram-se compreendidos no tempo de trabalho:
a) A interrupção de trabalho como tal considerada em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, em regulamento interno de empresa ou resultante de uso da empresa;
b) A interrupção ocasional do período de trabalho diário inerente à satisfação de necessidades pessoais inadiáveis do trabalhador ou resultante de consentimento do empregador;
c) A interrupção de trabalho por motivos técnicos, nomeadamente limpeza, manutenção ou afinação de equipamento, mudança de programa de produção, carga ou descarga de mercadorias, falta de matéria-prima ou energia, ou por factor climatérico que afecte a actividade da empresa, ou por motivos económicos, designadamente quebra de encomendas;
d) O intervalo para refeição em que o trabalhador tenha de permanecer no espaço habitual de trabalho ou próximo dele, para poder ser chamado a prestar trabalho normal em caso de necessidade;
e) A interrupção ou pausa no período de trabalho imposta por normas de segurança e saúde no trabalho.
3 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto no número anterior.
Artigo 198.º
Período normal de trabalho
O tempo de trabalho que o trabalhador se obriga a prestar, medido em número de horas por dia e por semana, denomina-se período normal de trabalho.
Artigo 200.º
Horário de trabalho
1 - Entende-se por horário de trabalho a determinação das horas de início e termo do período normal de trabalho diário e do intervalo de descanso, bem como do descanso semanal.
2 - O horário de trabalho delimita o período normal de trabalho diário e semanal.
3 - O início e o termo do período normal de trabalho diário podem ocorrer em dias consecutivos.
Artigo 202.º
Registo de tempos de trabalho
1 - O empregador deve manter o registo dos tempos de trabalho, incluindo dos trabalhadores que estão isentos de horário de trabalho, em local acessível e por forma que permita a sua consulta imediata.
2 - O registo deve conter a indicação das horas de início e de termo do tempo de trabalho, bem como das interrupções ou intervalos que nele não se compreendam, por forma a permitir apurar o número de horas de trabalho prestadas por trabalhador, por dia e por semana, bem como as prestadas em situação referida na alínea b) do n.º 1 do artigo 257.º
3 - O empregador deve assegurar que o trabalhador que preste trabalho no exterior da empresa vise o registo imediatamente após o seu regresso à empresa, ou envie o mesmo devidamente visado, de modo que a empresa disponha do registo devidamente visado no prazo de 15 dias a contar da prestação.
4 - O empregador deve manter o registo dos tempos de trabalho, bem como a declaração a que se refere o artigo 257.º e o acordo a que se refere a alínea f) do n.º 3 do artigo 226.º, durante cinco anos.
5 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto neste artigo.
Artigo 218.º
Condições de isenção de horário de trabalho
1 - Por acordo escrito, pode ser isento de horário de trabalho o trabalhador que se encontre numa das seguintes situações:
a) Exercício de cargo de administração ou direcção, ou de funções de confiança, fiscalização ou apoio a titular desses cargos;
b) Execução de trabalhos preparatórios ou complementares que, pela sua natureza, só possam ser efectuados fora dos limites do horário de trabalho;
c) Teletrabalho e outros casos de exercício regular de actividade fora do estabelecimento, sem controlo imediato por superior hierárquico.
2 - O instrumento de regulamentação colectiva de trabalho pode prever outras situações de admissibilidade de isenção de horário de trabalho.
3 - (Revogado.)
4 - (Revogado.)
Artigo 226.º
Noção de trabalho suplementar
1 - Considera-se trabalho suplementar o prestado fora do horário de trabalho.
2 - No caso em que o acordo sobre isenção de horário de trabalho tenha limitado a prestação deste a um determinado período de trabalho, diário ou semanal, considera-se trabalho suplementar o que exceda esse período.
3 - Não se compreende na noção de trabalho suplementar:
a) O prestado por trabalhador isento de horário de trabalho em dia normal de trabalho, sem prejuízo do disposto no número anterior;
b) O prestado para compensar suspensão de actividade, independentemente da sua causa, de duração não superior a quarenta e oito horas, seguidas ou interpoladas por um dia de descanso ou feriado, mediante acordo entre o empregador e o trabalhador;
c) A tolerância de quinze minutos prevista no n.º 3 do artigo 203.º;
d) A formação profissional realizada fora do horário de trabalho que não exceda duas horas diárias;
e) O trabalho prestado nas condições previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 257.º;
f) O trabalho prestado para compensação de períodos de ausência ao trabalho, efectuada por iniciativa do trabalhador, desde que uma e outra tenham o acordo do empregador.
g) O trabalho prestado para compensar encerramento para férias previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 242.º, por decisão do empregador.
4 - Na situação referida na alínea f) do n.º 3, o trabalho prestado para compensação não pode exceder os limites diários do n.º 1 do artigo 228.º.
Artigo 231.º
Registo de trabalho suplementar
1 - O empregador deve ter um registo de trabalho suplementar em que, antes do início da prestação de trabalho suplementar e logo após o seu termo, são anotadas as horas em que cada uma das situações ocorre.
2 - O trabalhador deve visar o registo a que se refere o número anterior, quando não seja por si efectuado, imediatamente a seguir à prestação de trabalho suplementar.
3 - O trabalhador que realize trabalho suplementar no exterior da empresa deve visar o registo, imediatamente após o seu regresso à empresa ou mediante envio do mesmo devidamente visado, devendo em qualquer caso a empresa dispor do registo visado no prazo de 15 dias a contar da prestação.
4 - Do registo devem constar a indicação expressa do fundamento da prestação de trabalho suplementar e os períodos de descanso compensatório gozados pelo trabalhador, além de outros elementos indicados no respectivo modelo, aprovado por portaria do ministro responsável pela área laboral.
5 - A violação do disposto nos números anteriores confere ao trabalhador, por cada dia em que tenha prestado actividade fora do horário de trabalho, o direito a retribuição correspondente a duas horas de trabalho suplementar.
6 - O registo de trabalho suplementar é efectuado em suporte documental adequado, nomeadamente impressos adaptados ao sistema de controlo de assiduidade existente na empresa, que permita a sua consulta e impressão imediatas, devendo estar permanentemente actualizado, sem emendas ou rasuras não ressalvadas.
7 - O empregador deve comunicar, nos termos previstos em portaria do ministro responsável pela área laboral, ao serviço com competência inspectiva do ministério responsável pela área laboral a relação nominal dos trabalhadores que prestaram trabalho suplementar durante o ano civil anterior, com discriminação do número de horas prestadas ao abrigo dos n.os 1 ou 2 do artigo 227.º, visada pela comissão de trabalhadores ou, na sua falta, em caso de trabalhador filiado, pelo respectivo sindicato.
8 - O empregador deve manter durante cinco anos relação nominal dos trabalhadores que efectuaram trabalho suplementar, com discriminação do número de horas prestadas ao abrigo dos n.os 1 e 2 do artigo 228.º e indicação dos dias de gozo dos correspondentes descansos compensatórios.
9 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto nos n.os 1, 2, 4 ou 7 e constitui contra-ordenação leve a violação do disposto no n.º 8.
Artigo 268.º
Pagamento de trabalho suplementar
1 - O trabalho suplementar até 100 horas anuais é pago pelo valor da retribuição horária com os seguintes acréscimos:
a) 25 /prct. pela primeira hora ou fração desta e 37,5 /prct. por hora ou fração subsequente, em dia útil;
b) 50 /prct. por cada hora ou fração, em dia de descanso semanal, obrigatório ou complementar, ou em feriado.
2 - O trabalho suplementar superior a 100 horas anuais é pago pelo valor da retribuição horária com os seguintes acréscimos:
a) 50 /prct. pela primeira hora ou fração desta e 75 /prct. por hora ou fração subsequente, em dia útil;
b) 100 /prct. por cada hora ou fração, em dia de descanso semanal, obrigatório ou complementar, ou em feriado.
3 – (Revogado.)
4 - É exigível o pagamento de trabalho suplementar cuja prestação tenha sido prévia e expressamente determinada, ou realizada de modo a não ser previsível a oposição do empregador.
5 - Constitui contraordenação grave a violação do disposto nos n.os 1 e 2.
Artigo 272.º
Determinação judicial do valor da retribuição
1 - Compete ao tribunal, tendo em conta a prática da empresa e os usos do sector ou locais, determinar o valor da retribuição quando as partes o não fizeram e ela não resulte de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho aplicável.
2 - Compete ainda ao tribunal resolver dúvida suscitada sobre a qualificação como retribuição de prestação paga pelo empregador.
Artigo 337.º
Prescrição e prova de crédito
1 - O crédito de empregador ou de trabalhador emergente de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação prescreve decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.
2 - O crédito correspondente a compensação por violação do direito a férias, indemnização por aplicação de sanção abusiva ou pagamento de trabalho suplementar, vencido há mais de cinco anos, só pode ser provado por documento idóneo.
3 - O crédito de trabalhador, referido no n.º 1, não é suscetível de extinção por meio de remissão abdicativa, salvo através de transação judicial.
Código Civil ou CC
Artigo 4.º
(Valor da equidade)
Os tribunais só podem resolver segundo a equidade:
a) Quando haja disposição legal que o permita;
b) Quando haja acordo das partes e a relação jurídica não seja indisponível;
c) Quando as partes tenham previamente convencionado o recurso à equidade, nos termos aplicáveis à cláusula compromissória.
Artigo 220.º
(Inobservância da forma legal)
A declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei.
Artigo 400.º
(Determinação da prestação)
1. A determinação da prestação pode ser confiada a uma ou outra das partes ou a terceiro; em qualquer dos casos deve ser feita segundo juízos de equidade, se outros critérios não tiverem sido estipulados.
2. Se a determinação não puder ser feita ou não tiver sido feita no tempo devido, sê-lo-á pelo tribunal, sem prejuízo do disposto acerca das obrigações genéricas e alternativas.
Artigo 599.º
(Transmissão de garantias e acessórios)
1. Com a dívida transmitem-se para o novo devedor, salvo convenção em contrário, as obrigações acessórias do antigo devedor que não sejam inseparáveis da pessoa deste.
2. Mantêm-se nos mesmos termos as garantias do crédito, com excepção das que tiverem sido constituídas por terceiro ou pelo antigo devedor, que não haja consentido na transmissão da dívida.
Artigo 805.º
(Momento da constituição em mora)
1. O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
2. Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:
a) Se a obrigação tiver prazo certo;
b) Se a obrigação provier de facto ilícito;
c) Se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.
3 - Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.
Doutrina e jurisprudência que o Tribunal leva em conta
13. O Tribunal leva em conta os seguintes elementos, mencionados na fundamentação:
Doutrina
Abílio Neto, Novo Código do Trabalho e legislação complementar anotados, 3.ª edição, Ediforum
António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 2020, Almedina
Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição, Coimbra Editora
Francisco Liberal Fernandes, O Trabalho e o Tempo: Comentário ao Código do Trabalho, Centro de Investigação Jurídico Económica, Universidade do Porto
José Lebre de Freitas, Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.ª, 3.ª Edição, Almedina
Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4.ª Edição, Coimbra Editora Limitada
Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, disponível em curia.eu
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia C- 55/18
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia C-266/14
Jurisprudência nacional, disponível em dgsi.pt
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 4553/21.1T8LSB.L1.S1
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo 165/12.9TTSTS.P1
Apreciação do recurso
A. Nulidades da sentença
14. A título liminar o Tribunal começa por recordar que os preceitos do Código de Processo Civil a seguir mencionados sem outra indicação, são aplicáveis no presente caso, por força do disposto no artigo 1.º n.º 2 – a) do CPT.
15. O recorrente invoca três nulidades previstas no artigo 615.º n.º 1 do CPC, que, consoante os casos, incidem sobre a estrutura ou sobre os limites da sentença recorrida.
16. Assim, o recorrente invoca: (i) a omissão de pronúncia, que incide sobre os limites da sentença recorrida (cf. artigo 615.º n.º 1 – d) do CPC); na sua óptica, a sentença recorrida não se pronunciou sobre a alegada existência de trabalho suplementar, nem sobre a comunicação desse trabalho pelo recorrente à recorrida, que não o recusou; (ii) a contradição entre os factos provados, que incide sobre a estrutura da sentença recorrida (cf. artigo 615.º n.º 1 – b) do CPC); na sua óptica, o facto provado 24 contém matéria conclusiva e está em contradição com os factos provados 15, 16, 18, 19 e 20; (iii) a falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e dos meios de prova que justificam a decisão, que incide sobre a estrutura da sentença recorrida (cf. artigo 615.º n.º 1 – b) do CPC).
17. Para resolver o problema o Tribunal acompanha a seguinte doutrina sobre a interpretação do artigo 615.º n.º 1 do CPC (José Lebre de Freitas, Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.ª, 3.ª Edição, Almedina, páginas 735 a 737):
“(...)
Os casos das alíneas b) a e) do n.°1 (excetuada a ininteligibilidade da parte decisória da sentença: ver o n.°2 desta anotação) constituem, rigorosamente, situações de anulabilidade da sentença, e não de verdadeira nulidade.
Respeitam eles à estrutura ou aos limites da sentença. Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação), c) (oposição entre os fundamentos e a decisão). Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum).
Ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (art. 607-3). Há nulidade (no sentido lato de invalidade, usado pela lei) quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão (ac. do STJ de 17.10.90, ROBERTO VALENTE, AJ, 12, p. 20: constitui nulidade a falta de discriminação dos factos provados).
Não a constitui a mera deficiência de fundamentação (ac. do TRP de 6.1.94, CJ, 1984, I , p. 197: a simples indicação do preceito legal aplicável constitui fundamentação suficiente da decisão de condenação da parte como litigante de má té).
(...)
Face ao atual código, que integra na sentença tanto a decisão sobre a matéria de facto como a fundamentação desta decisão (art. 607, n.º 3 e 4), deve considerar-se que a nulidade consagrada na alínea b) do n.° 1 (falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão) apenas se reporta à primeira, sendo à segunda, diversamente, aplicável o regime do art. 662, n.° s 2-d e 3, alíneas b) e d) (ac. do TRP de 5.3.15, ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA, www.dgsi.pt, proc. 1644/11, e ac. do TRP de 29.6.15, PAULA LEAL DE CARVALHO, www.dgsi.pt, proc. 839/13).
Não se pode considerar fundamentação de direito a que seja feita por simples adesão genérica aos fundamentos invocados pelas partes (art. 154-2; mesmo ac. de 19.1.84); mas é admitida em recurso, quando a questão a decidir é simples e foi já objeto de decisão jurisdicional, a remissão para o precedente acórdão (arts. 656 e 663-5; ver, antes da revisão de 1995-1996 do CPC de 1961, o ac. do STJ de 26.3.63, BMJ, 125, p. 523).
A fundamentação da sentença é, além do mais, indispensável em caso de recurso: na reapreciação da causa, a Relação tem de saber em que se fundou a sentença recorrida.
(...)
Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença.
Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se.
(...)
Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado (ver o n." 2 da anotação ao art. 608).”
18. Tendo em conta a doutrina que antecede e a análise do texto da sentença recorrida que se segue, não se verifica nenhuma das alegadas nulidades.
18. Não existe omissão de pronúncia sobre o tema probatório em crise pelas seguintes razões.
19. No despacho saneador (cf. referência citius 426640476 de 14.6.2023), que não foi impugnado, o Tribunal a quo não seleccionou os temas de prova a submeter à instrução e identificou o objecto do litígio como se segue:
“O objecto do litígio circunscreve-se à questão de saber se o autor trabalhou no interesse da ré, a pedido desta ou com o conhecimento desta e/ou com autorização da mesma e/ou em moldes concretos que a mesma não podia deixar de ter conhecimento, duas horas e meia de trabalho adicional durante 21 dias por mês, 11 meses por ano.”
20. No artigo 64.ª da petição inicial (cf. referência citius 34394618 de 6.12.2022) o recorrente qualifica como se segue, à luz do regime jurídico da isenção de horário de trabalho ou, subsidiariamente, do trabalho suplementar, os factos que alegou como causa de pedir:
“64º Em síntese, o Autor reclama, a título de remunerações por isenção de horário de trabalho ou, caso assim não se entenda, de remunerações por trabalho suplementar, vencidas e não pagas, num valor total de € 70.766,54 (setenta mil setecentos e sessenta e seus euros e cinquenta e quatro cêntimos).”
21. Nas alegações o recorrente defende que o Tribunal a quo, na sentença impugnada, não se pronunciou sobre a questão do trabalho suplementar, sustentando a seguinte argumentação nas conclusões V e VI da motivação de recurso:
“V. Impunha-se ao Tribunal recorrido que, em sede de fundamentação da Sentença, apreciasse se o trabalho suplementar que constitui a causa de pedir do Recorrente havia sido prestado com o conhecimento /ou o consentimento da Recorrida e, ou em moldes que esta não pudesse desconhecer.
VI. O que não foi feito.”
22. Ora, contrariamente ao que defende o recorrente, quer na decisão sobre a matéria de facto, quer no enquadramento jurídico dos factos, o Tribunal a quo pronunciou-se sobre a questão do trabalho suplementar e do seu conhecimento pela recorrida. Assim como se pronunciou sobre a questão da isenção de horário de trabalho.
23. Sobre essa questão, na decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal declarou provados os factos 46, 47 e 48 e não provados os factos 1 a 7.
24. Acresce que nas páginas 18 a 29 da sentença recorrida, o Tribunal a quo analisou os factos provados à luz do regime legal aplicável ao trabalho suplementar e à isenção de horário de trabalho, mencionou a jurisprudência que julgou relevante e concluiu pela improcedência da pretensão do autor. Ou seja, contrariamente ao que defende o recorrente, o Tribunal a quo pronunciou-se sobre a causa de pedir mencionada supra no parágrafo 21. Pelo que, não se verifica a alegada nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 – d) do CPC. O que sucede é que o recorrente discorda da decisão sobre a matéria de facto e da solução jurídica adoptada, mas essa discordância será apreciada infra, na análise das questões seguintes.
25. Quanto ao vício previsto no artigo 615.º n.º 1 – c) do CPC, fica prejudicada a apreciação da alegada contradição entre os factos provados 24, por um lado, e 15, 16, 18, 19 e 20, por outro, uma vez que, tal como será explicado infra na análise da questão B (modificação da decisão de facto) a matéria constante do facto provado 24 é conclusiva e, por isso, será retirada do elenco dos factos (provados ou não provados).
26. No mais, a argumentação do recorrente sobre esta questão prende-se com a sua discordância quer com a decisão de facto, quer com a qualificação jurídica dos factos feita pelo Tribunal a quo. Porém, da análise da sentença recorrida não resulta que a mesma enferme do vício previsto no artigo 615.º n.º 1 – c) do CPC, a saber, contradição lógica da sentença por seguir uma linha de raciocínio que apontava para uma conclusão e, em vez de a tirar, ter decidido em sentido divergente. Ao invés, o Tribunal a quo expôs as razões pelas quais julgou que não existiu trabalho suplementar nem isenção de horário de trabalho e que o levaram a julgar improcedente o pedido. Pelo que a sentença não enferma da alegada contradição entre os fundamentos e a decisão.
27. No que respeita à falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, o que está em causa é saber se o Tribunal a quo, na fundamentação da sentença recorrida, cumpriu o disposto no artigo 607.º n.ºs 3 e 4 do CPC. Para esse efeito o Tribunal sublinha que, de cordo com a doutrina acima citada no parágrafo 17 que o Tribunal acompanha, a falta de indicação dos factos provados e não provados deve ser qualificada à luz da nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 – b) do CPC, ao passo que os vícios que incidem sobre a fundamentação (indicação, análise critica e valoração dos meios de prova), devem ser apreciados à luz do disposto no artigo 662.º do CPC (ex vi artigo 87.º n.º 1 do CPT) e, por isso, serão objecto de análise infra, na questão B.
28. Dito isto, é forçoso constatar, da análise da sentença impugnada, que o Tribunal a quo, nas páginas 2 a 12 da sentença, declarou discriminadamente quais os factos provados e os factos não provados; nas páginas 12 a 17 da sentença, indicou e analisou criticamente os meios de prova que serviram para fundamentar a sua convicção; e nas páginas 18 a 34 da sentença, mencionou o quadro jurídico e a jurisprudência que julgou relevantes para qualificar a situação e explicou os fundamentos de facto e de direito pelos quais julgou improcedente a acção.
29. De onde resulta que, por um lado, o Tribunal a quo, na elaboração da sentença, observou o disposto no artigo 607.º n.º s 3 e 4 do CPC e, por outro lado, a sentença recorrida não enferma da nulidade prevista no artigo 615.º n.º 1 – b) do CPC.
30. Isto, sem prejuízo, quer da aplicação do regime previsto no artigo 662.º do CPC em sede da apreciação da impugnação da matéria de facto, quer da diferente qualificação jurídica dos factos operada por via do presente recurso (cf. questões B e C cuja análise se segue).
31. Motivos pelos quais improcede este segmento da argumentação do recorrente.
B. Modificação da decisão de facto
Eliminação do facto provado 24
32. O recorrente e o digno magistrado do Ministério Público defendem que o facto provado 24 contém matéria conclusiva e não factos, pelo que não deve figurar no acervo dos factos provados.
33. A esse propósito, é a seguinte a formulação do facto provado 24:
24- A ter existido trabalho prestado fora do horário convencionado entre as partes, nunca foi previamente e expressamente determinado pela R, ou sequer realizado de modo a não ser previsível a oposição do empregador.
34. A formulação transcrita no parágrafo anterior não contém um facto mas uma mera suposição. Pelo que, não pode ser objecto de instrução, uma vez que a instrução tem por objecto factos necessitados de prova, o que não é o caso (cf. artigo 410.º do CPC).
35. Em consequência, o Tribunal da Relação elimina o facto provado 24 do elenco dos factos (cf. artigo 662.º n.º 1 do CPC).
Aditamento aos factos provados dos factos não provados 1 a 7 e modificação oficiosa da decisão de facto
36. O recorrente defende que os factos não provados 1 a 7 devem ser julgados provados, pedindo a reapreciação da prova gravada e dos documentos acima mencionados no parágrafo 3.
37. Para esse efeito, o Tribunal da Relação reapreciou a prova gravada no sistema citius, nomeadamente as declarações de parte do autor/recorrente e os depoimentos das testemunhas CC, EE, DD e BB. Tais meios de prova estão sujeitos à livre apreciação do Tribunal – cf. artigos 396.º do CC e 466.º n.º 3 do CPC. Adicionalmente, o Tribunal reapreciou a prova documental junta aos autos com relevo para apreciar o tema probatório impugnado, que a seguir será analisada com maior detalhe.
38. Com base nessa análise, o Tribunal ficou convicto da veracidade de parte dos factos não provados 1 a 7, que serão aditados aos factos provados dentro dos limites do provado. Acresce que o Tribunal da Relação, oficiosamente, ao abrigo do disposto no artigo 662.º n.º 1 do CPC, altera a decisão sobre a matéria de facto relativamente a outros factos não impugnados, com base na aplicação das regras de direito probatório a seguir indicadas e para eliminar contradições.
39. Com efeito, o autor desempenhava habitualmente a maior parte da sua prestação de trabalho fora das instalações físicas da ré, uma vez que tinha a categoria profissional de técnico de vendas (cf. factos provados 1 e 2 não impugnados). De acordo com a prova oral a seguir mencionada, as suas funções consistiam em angariar novos clientes, manter ou renovar acordos/contratos pré-existentes com os clientes da ré e dar formação junto dos clientes. Isso foi confirmado pelo depoimento das testemunhas CC e EE e pelas declarações de parte do autor, que nessa parte mereceram credibilidade, por terem deposto de forma coerente e indicado a respectiva razão de ciência.
40. As testemunhas DD e BB, que trabalham para ré pelo menos desde 2020 (a primeira nos recursos humanos e o segundo como director geral e superior hierárquico do autor), também confirmaram a natureza do trabalho levado a cabo pelo autor e as constantes deslocações que fazia. O autor explicou que quando tinha de apanhar o avião para a ilha da Madeira ou para Madrid, ia para o aeroporto muito antes da hora do início do seu horário normal de trabalho e regressava depois desse horário; o mesmo sucedia quando se deslocava a distritos não limítrofes de Lisboa, em que iniciava a viagem antes das 10 horas e terminava as visitas e/ou a viagem de regresso muitas vezes depois do termo do horário de trabalho, dependendo da distância a percorrer, da existência de outros clientes nas proximidades que aproveitava para visitar e da disponibilidade dos clientes, com os quais por vezes até jantava; das suas declarações resulta que tinha autonomia para planear as visitas e os horários mas essa autonomia era condicionada por vários factores, que incluíam o grau de prioridade a dar a certos clientes e a regularidade das visitas (factores que eram definitos pela ré), a disponibilidade de tempo dos clientes para o receber e/ou a proximidade do termo de certos acordos comerciais. Tais contornos fácticos mereceram credibilidade quer porque foram confirmados pela testemunha CC, que exercia na recorrida funções idênticas à do autor/recorrente, quer porque estão de acordo com as regras gerais da experiência, tendo em conta a natureza das funções de técnico de vendas. As testemunhas DD e BB confirmaram que cabia ao autor organizar as visitas aos clientes da ré com grande grau de autonomia e reportá-las na plataforma “...”; referiram ainda a existência de reuniões semanais em que o autor e a restante equipa analisavam o trabalho realizado; ambos referiram que as despesas de serviço, incluindo com a via verde, eram pagas pela ré após aprovação do superior hierárquico do autor. Pelo que, dessas circunstâncias, apreciadas de acordo com as regras gerais da experiência, o Tribunal presume que a recorrida/ré, nomeadamente o superior hierárquico do autor e o departamento de recursos humanos da empresa, embora nunca tenham autorizado expressamente o autor a realizar trabalho suplementar, como afirmaram essas duas testemunhas, sabiam as horas a que tinham lugar as deslocações em serviço do autor para fazer as visitas a clientes ou para ir a reuniões – cf. artigo 351.º do CC.
41. Todas as testemunhas ouvidas assim como o autor, foram unânimes em dizer que o “...”, onde era registado o tempo de trabalho, não permitia registar o trabalho suplementar uma vez que o registo estava bloqueado além de certos limites horários. A testemunha DD explicou que isso sucedia porque o trabalho suplementar tinha que estar previamente autorizado para poder ser inserido no sistema “...”. Porém, quando questionados sobre se sabiam que o autor/recorrente, fazia deslocações e visitas aos clientes fora do seu horário normal de trabalho, as testemunhas BB e DD foram vagas, remeteram para a grande margem de autonomia que a empresa atribuía ao autor e afirmaram, embora sem explicar concretamente como, que o trabalho podia ser feito dentro do horário diário pré-estabelecido pela empresa. A testemunha BB, que foi superior hierárquico do recorrente, quando questionado sobre isso não soube precisar se o horário dos “comerciais” /técnicos de vendas, como o recorrente, dependia do horário das ópticas/clientes que visitavam. Pelo que, nessa parte, tendo em conta as regras gerais da experiência, tais depoimentos não mereceram credibilidade. A testemunha DD quando interrogada sobre a existência na empresa de alguma norma de controlo de presença referiu que essa norma foi divulgada, mas não explicou se a mesma foi alvo de alterações/esclarecimentos quanto à sua aplicação aos trabalhadores que prestavam trabalho no exterior da empresa, como resulta da análise do documento 18 junto à petição inicial, que será feita infra.
42. Adicionalmente, o Tribunal analisou os seguintes documentos relevantes para o tema probatório em crise.
43. O documento intitulado “...” junto pela recorrida a pedido do recorrente (cf. referência citius 36359805 de 26.6.2023) onde o recorrente reportou as visitas que fez aos clientes da ré. Trata-se de um documento particular, elaborado pelo autor, não assinado e não impugnado pelas partes, que está sujeito à livre apreciação do Tribunal – cf. 366.º do CC. Conjugado com a prova oral já acima analisada, tal documento merece credibilidade para prova das deslocações do recorrente para visitar clientes em diversos pontos do país, como mencionado no facto não provado 1 que, por isso, nessa parte será inserido nos factos provados. Das declarações de parte do autor e do depoimento da testemunha CC resulta que o reporte das visitas era em regra feito depois delas ocorrerem.
44. Os documentos juntos à petição inicial, com a referência citius 34394618 de 6.12.2022 designados por “Registo de horas de trabalho” e “Comunicação”. Trata-se de documentos particulares, impugnados pela recorrida nos artigos 36.º e 37.º da contestação.
45. A autoria dos registos de horas é imputada ao recorrente. Esses registos, além de impugnados pela recorrida, não se encontram assinados e as páginas não estão integralmente reproduzidas o que constituí um vício externo dos documentos; por tais razões, estão sujeitos à livre apreciação do Tribunal – cf. artigos 366.º e 376.º n.º 3 do CC. Alguns desses registos de horas mencionam 8:15, 8:30, 9:00 ou seja, o início do trabalho antes das 10:00 que era a hora do início do horário normal de trabalho do autor. Pelos motivos acima indicados neste parágrafo, por si só tais documentos não bastam para prova de que o recorrente prestou trabalho fora do seu horário normal de trabalho, mas isso resulta da prova oral gravada, acima analisada, no que respeita aos limites temporais que a seguir serão indicados.
46. Relativamente à comunicação interna junta à petição inicial, cuja autoria é imputada à recorrida, a mesma foi enviada do endereço e-mail de um dos departamentos da recorrida; a assinatura foi substituída pela reprodução mecânica “RR.HH Grupo XX, S.A.” como é uso nas comunicações electrónicas (cf. artigo 373.º n.º 2 do CC); esse e-mail foi enviado para endereços profissionais dos trabalhadores da recorrida; o que o Tribunal presume, nos termos do artigo 351.º do CC, da utilização do domínio hoya.pt ou hoya.com, consoante os casos; entre os destinatários inclui-se o autor/recorrente; o envio data de 31.7.2020 e contém um documento intitulado “Norma de Controlo de Presença”. Esse documento menciona que “Devido a algumas consultas que estamos a receber, relacionadas ao controle de presença, por favor tenha em conta as seguintes considerações”, seguindo-se a indicação de que em relação às viagens, o registo do início do dia de trabalho será feito no início da viagem e o registo da finalização do dia de trabalho será feito no final da viagem; o documento menciona que quando por motivos de trabalho seja necessário passar a noite fora de casa, o registo do final do dia de trabalho será feito no final da última visita; refere ainda que tais indicações se aplicam à equipa de vendas e a outras equipas aí referidas, que devido às características das suas funções precisam de fazer viagens para visitar clientes; o registo do início e termo do dia de trabalho aí previsto deveria feito pela equipa de vendas através de excel até haver equipamento móvel. Tendo a recorrida alegado que tal documento não é válido nos artigos 36º e 37.º da contestação e sendo-lhe atribuída a sua autoria, cabia-lhe provar a a falsidade desse documento, prova essa que não fez (cf. artigo 376.º n.º 1 parte final do CC). Assim, por força do disposto nos artigos 373.º n.º 2, 374.º e 376.º n.ºs 1 e 2 do CC, o documento aqui em análise faz prova plena das declarações dele constantes; os factos objecto de tais declarações consideram-se provados na medida em que são contrários aos interesses da declarante (a recorrida), sendo a declaração indivisível nos termos prescritos para a prova de confissão.
47. Com base no documento mencionado no parágrafo anterior, o Tribunal, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662.º n.º 1 do CPC altera a redacção do facto provado 17 de modo a dar por reproduzido o teor desse documento, intitulado norma de controle de presença, junto à petição inicial como documento 18 (cf. referência citius 34394618 de 6.12.2022) e ao qual se refere o facto alegado no artigo 33.º da petição inicial. Adicionalmente, o Tribunal altera a redacção do facto provado 30 de modo a que coincida apenas com o teor do documento dado por reproduzido no facto provado 17.
48. A esse propósito, o Tribunal sublinha que as alterações mencionadas no parágrafo anterior eliminam contradições, completando, sem os contradizer, os factos provados 26, 27 e 29. Com efeito, o Tribunal a quo nos factos provados 26, 27 e 29 deu por reproduzido o teor da norma de controle de presença junta pela recorrida com a referência citius 35704497 de 17.4.2023. Para prova de tais factos a recorrida juntou dois documentos designados por “Comunicação interna” e “Regulamento”. O primeiro desses documentos é um e-mail, não completamente legível, remetido pela recorrida aos seus trabalhadores; na página dessa mensagem, por cima de uma imagem, está escrita “Comunicação Interna” e a data ”30-06-2020; a assinatura do e-mail foi substituída pela reprodução mecânica “RR.HH Grupo XX, S.A.” como é uso nas comunicações electrónicas (cf. artigo 373.º n.º 2 do CC); esse e-mail contém um anexo. O segundo dos documentos juntos pela recorrida é o documento intitulado “Norma sobre Controle de presença” cujo teor foi dado por reproduzido nos factos provados 26, 27 e 29. Trata-se de dois documentos particulares, cuja autoria a própria recorrida reclama ser sua, mas que foram impugnados pelo recorrente no artigo 80.º da resposta à contestação (cf. artigo 444.º do CPC). Pelo que, tendo sido impugnados pelo recorrente e não lhe sendo atribuídos, tais documentos não têm força probatória plena quanto às declarações deles constantes e estão, antes sujeitos à livre apreciação do Tribunal. Acresce que, ainda que assim não fosse, os factos objecto de tais declarações são favoráveis à própria declarante, a recorrida, e por isso, relativamente a eles, o documento não tem a força probatória prevista no artigo 376.º n.º 2 do CC. O que sucede é que a testemunha DD confirmou a existência dessa norma interna e a sua divulgação pelos trabalhadores. Pelo que, tendo em conta o princípio da livre apreciação desses meios de prova, à luz das regras gerais da experiência não merece censura a decisão recorrida na parte em que declarou provados os factos 26, 27 e 29. Porém, a ponderação conjunta das duas normas de controle de presença aqui em causa, leva o Tribunal da Relação a ficar convicto de que posteriormente à norma de controle de presença de 30.6.2020, dada por reproduzida nos factos provados 26, 27 e 29, a recorrida foi confrontada com a necessidade de esclarecer a sua aplicação aos trabalhadores que se deslocavam em visitas aos clientes, o que fez em 31.7.2020, por meio de uma norma de controlo de presença aplicável especificamente aos trabalhadores das equipas de vendas e outras aí mencionadas, que tinham por função efectuar visitas aos clientes. Ou seja, em 31.7.2020 o recorrente recebeu por parte da recorrida tais instruções.
49. Por tais motivos, o Tribunal da Relação ficou convicto de que a recorrida sabia que o recorrente prestava o seu trabalho fora do horário normal de trabalho (horário diário das 10:00 às 13:00 e das 14:00 às 19:00, correspondente a 40 horas semanais como resulta dos factos provado 13 e 28) e concordou com isso, já que ao ser consultada sobre essa situação, em 31.7.2020 indicou aos trabalhadores que se deslocavam para visitar clientes como contar o tempo de trabalho e o meio de o registar num excel ou por e-mail. Com efeito, a plataforma “...” tinha limites horários que não permitiam registar o número efectivo de horas de trabalho que ultrapassassem tais limites quando da mesma não constasse ter sido autorizado o trabalho suplementar, como resulta do depoimento da testemunha DD. Pelas mesmas razões, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662.º n.º 1 do CPC, o Tribunal da Relação julga que não se provaram os factos 36 e 48 que o Tribunal a quo declarou provados, os quais, por isso e porque estão em contradição com os factos provados 17 e 52, são retirados dos factos provados e inseridos nos factos não provados, respectivamente como factos não provados 1 e 2. Adicionalmente, a redacção do facto provado 37 é alterada uma vez que, a esse propósito, pelos motivos acima referidos, apenas se provou o que consta do facto provado 27. Ainda nesse contexto, importa esclarecer o seguinte: o contrato de trabalho do recorrente teve início em 2.3.2015 e terminou em 10.12.2021 (cf. factos provados 1 e 2); a presente acção foi proposta em 6.12.2022. (cf. petição inicial apresentada com a referência citius 34394618 de 6.12.2022); o artigo 337.º n.º 2 do CT contém uma regra de direito probatório nos termos da qual a prova do crédito por trabalho suplementar (realizado fora do horário de trabalho) vencido há mais de cinco anos, contados desde a data da propositura da acção, só pode ser feita por documento idóneo, entendendo-se este como documento emanado da empregadora que demonstre, com suficiente razoabilidade, a existência dos factos constitutivos do crédito reclamado pelo trabalhador (cf. Abilio Neto, Novo Código do Trabalho e legislação complementar anotados, 3.ª Edição, Ediforum, página 701 e jurisprudência aí citada); ora, pelos motivos acima explicados, não existe documento idóneo emanado da recorrida do qual resulte a prova de tais factos, por faltar o registo do tempo de trabalho efectuado pelo recorrente fora do horário de trabalho; pelo que, com base nos elementos de prova oral e documental acima analisados, que não constituem documentos idóneos para efeitos do artigo 337.º n.º 2 do CT, o Tribunal da Relação julga provado que o recorrente prestou trabalho fora do horário de trabalho, em dias e horas não concretamente apurados, a partir de 6.12.2017 (limite temporal previsto no artigo 337.º n.º 2 do CT). Acresce que, não tendo o autor/recorrente, alegado e provado, como lhe cabia (cf. artigo 342.º n.º 1 do CC), ter registado horas de trabalho além do seu horário de trabalho diário, por meio de excel ou envio de e-mail, a partir 31.7.2020, o Tribunal tem dúvidas de que tenha prestado tais horas entre 31.7.2020 e o termo do seu contrato de trabalho, ocorrido em 10.12.2021 e, na dúvida, decide contra a parte a quem o facto aproveita – cf. artigo 414.º do CPC. Em consequência, com base nas regras de direito probatório indicadas neste parágrafo, o Tribunal julga provado apenas que entre 6.12.2017 e 31.7.2020 o autor/recorrente prestou um número não concretamente apurado de horas de trabalho fora do seu horário diário de trabalho em dias não concretamente apurados.
50. Contrariamente ao que pretende o recorrente, a análise dos registos da via verde juntos pela recorrida com a referência citius 36359805 de 26.6.2023, ainda que complementados pelo documento “...” e pelos restantes documentos já acima apreciados, não permite apurar o número concreto de horas de trabalho prestado fora do horário normal de trabalho. Os registos da via verde são documentos particulares não assinados, sujeitos à livre apreciação do Tribunal – cf. artigo 366.º do CC. Não tendo sido impugnados, merecem credibilidade para prova de que o recorrente se deslocava em serviço, como foi confirmado pela prova oral gravada acima analisada. Porém, o próprio recorrente, no artigo 42.º da petição inicial reconhece a impossibilidade de concretizar as horas de trabalho que prestou fora do horário normal de trabalho ao longo de mais de seis anos em que durou o contrato de trabalho em causa, por não dispor do registo dessas horas. É p nesse contexto que o recorrente, na petição inicial, indica um número estimado de horas de trabalho além do seu horário normal. Da prova oral acima analisada resulta que esse registo não era feito e a recorrida só indicou o modo de registar essas horas em 31.7.2020. Em tais circunstâncias, não é possível concretizar o número exacto de horas aqui em crise, nem os dias concretos em que foram prestadas, nem se afigura que existam outros elementos que permitam vir a fazê-lo.
51. É com base na análise que antecede que o Tribunal da Relação, no seu juízo autónomo, modifica a decisão sobre a matéria de facto nos termos a seguir mencionados:
A redacção do facto provado 17 é alterada para a seguinte redacção:
A ré determinou o seguinte na Norma de Controle de Presença, aplicável à Equipa de Vendas, Serviços Profissionais e New Media, que devido às características das suas funções precisam de fazer viagens para visitar clientes, que comunicou ao autor e a outros trabalhadores por e-mail enviado em 31.7.2020, posteriormente ao envio da norma mencionada nos factos provados 26, 27 e 29:
“Devido a algumas consultas que estamos a receber, relacionadas ao controle de presença, por favor tenham em conta as seguintes considerações:
3. Em relação às viagens, o registo do início do dia de trabalho será feito no início da viagem e o registo de finalização do dia de trabalho seria feito no final da viagem.
4. Quando por motivos seja necessário passar a noite fora de casa o registo do final do dia de trabalho será feito no final da última visita
Esses pontos são aplicáveis à Equipa de Vendas, Serviços Profissionais e New Media, que devido às características das suas funções precisam de fazer viagens aos clientes.
O registo do dia de trabalho será realizado conforme indicado na norma, ou seja, através do Excel, no caso da Equipa de Vendas, até ter um aplicativo móvel, e VPN no caso dos Serviços Profissionais e New Media.
Em caso de incidente, esquecimento ou impossibilidade de assinatura através de VPN, indicará por mail a incidência aos SSGG para que realizem o registo manual, se for preciso, ou resolver o dito incidente.”
A redacção do facto provado 30 é alterada para a seguinte redacção:
Provado apenas o que consta do facto provado 17.
O facto provado 36 é eliminado dos factos provados e inserido nos factos não provados, como facto não provado 1 mantendo a mesma redacção:
A ré estruturou a sua atividade de modo a que o horário de trabalho fosse bastante à realização da atividade por parte do autor, sem necessidade de extravasamento das horas definidas por forma a que, mesmo com tempo de viagem, as 8 horas diárias fossem suficientes.
A redação do facto provado 37 é alterada para a seguinte redacção:
Provado apenas o que consta do facto provado 27.
O facto provado 48 é eliminado dos factos provados e inserido nos factos não provados, como facto não provado 2 mantendo a mesma redacção:
O autor não foi autorizado a prestar trabalho suplementar.
O facto não provado 1 é retirado do acervo dos factos não provados e incluído no acervo dos factos provados, como facto provado 50, com a redacção seguinte:
O autor efetuava, regularmente, ao serviço da ré, deslocações correspondentes aproximadamente às distâncias abaixo indicadas, para as instalações dos seguintes clientes da ré ou para reuniões em Madrid:
(...)
Os factos não provados 2, 3 e 4 são retirados do acervo dos factos não provados e incluídos no acervo dos factos provados como facto provado 51, mediante resposta conjunta com a redacção seguinte:
Nas deslocações que fazia em serviço, aos distritos não limítrofes do distrito de Lisboa e para a ilha da Madeira ou para Madrid, entre 6.12.2017 e 31.7.2020, o autor, em dias e horas não concretamente apurados, iniciou essas viagens antes das 10:00 e completou as visitas aos clientes e/ou terminou a viagem de regresso após as 19:00, por razões que se prendiam com a disponibilidade dos clientes da recorrida para o receberem, a distância a percorrer de automóvel ou o horário do avião no caso das deslocações à ilha da Madeira e a Madrid.
Os factos não provados 5, 6 e 7 são retirados do acervo dos factos não provados e incluídos no acervo dos factos provados, como facto provado 52, mediante resposta conjunta com a redacção seguinte:
A ré tinha conhecimento de que as deslocações em serviço feitas pelo autor, mencionadas no facto provado 51, ocorriam fora do seu horário normal de trabalho, tendo concordado com isso e concedido ao autor autonomia para organizar essas deslocações de modo a alcançar os objectivos e/ou cumprir as prioridades definidas pela ré.
Aditamento aos factos provados de factos adicionais
52. O recorrente defende que devem ser aditados à matéria de facto provada factos sobre os quais o Tribunal a quo não se pronunciou. Segue-se a análise desta pretensão.
53. Assim, o facto que o recorrente pretende aditar com a redacção “Que o Recorrente, em virtude das indicações emanadas da Recorrida, quanto a objetivos mínimos diários de visitas a Clientes, tinha necessidade de realizar as deslocações acima referenciadas fora do respetivo horário normal de trabalho” foi alegado nos artigos 24.º e 29.º da petição inicial; porém, na parte relevante para a apreciação do mérito, já se encontra provado nos factos provados 51 e 52.
54. O facto que o recorrente pretende aditar com a redacção “Que a Recorrida tinha conhecimento, através dos extratos mensais dos registos efetuados através do sistema “Via Verde”, das passagens nos concretos pontos de portagem e respetivos horários do veículo cujo direito à utilização a mesma atribuiu ao Recorrente para desempenho das funções deste ao abrigo do contrato de trabalho entre ambos celebrado (decorrente dos factos enumerados 18, 40 e 44 do elenco dos factos provados)” foi alegado pelo menos nos artigos 7.º, 30.º e 36.ª da petição inicial; na parte que releva para a decisão de mérito já se encontra provado nos factos provados 1, 2, 7 a 11, 18, 40 B, 44, 51 e 52.
55. O facto que o recorrente pretende aditar com a redacção “Que a aprovação do reembolso ao Recorrente das tarifas correspondentes às passagens nos pontos de portagem, registados no sistema “Via Verde” obedecia a um procedimento prévio interno em vigor na Recorrida, através da apresentação e entrega pelo Recorrente nas instalações da Recorrida das correspondentes folhas de despesas, cabendo a decisão sobre a respetiva aprovação ao Diretor Comercial daquela, BB (decorrente da parte inicial do facto enumerado 18- do elenco dos factos provados)” foi alegado, pelo menos nos artigos 30º.ª, 36.ª e 37.º da petição inicial; na parte que releva para a decisão de mérito já se encontra provado nos factos provados 18 e 52.
56. Em consequência, os factos acima referidos nos parágrafos 53 a 55, na parte relevante, já se encontram provados e na restante parte são inúteis para a decisão de mérito, de acordo com as soluções plausíveis de direito que a seguir serão objecto de análise na questão C.
57. Adicionalmente, o recorrente pede que sejam aditados aos factos provados, factos não alegados na petição inicial e aponta, a esse propósito, os erros de julgamento enunciados na terceira e quinta questões acima sintetizadas no parágrafo 3. Tais factos são os seguintes:
Que, em data não concretamente apurada, mas certamente nos dois últimos anos de vigência do contrato de trabalho entre Recorrente e Recorrida, passaram a ser realizadas, com base semanal, às sextas-feiras, reuniões de trabalho da equipa comercial da qual fazia parte o Recorrente;
Que o Recorrente participava das referidas reuniões;
Que as reuniões de trabalho e equipa mencionadas no ponto anterior eram realizadas online e promovidas pelo Diretor Comercial da Recorrida, BB, o qual encarregava uma funcionária da Recorrida de enviar os competentes convites à equipa comercial;
Que as reuniões de trabalho e equipa mencionadas nos pontos anteriores se realizavam ao final do dia, tendo início após as 17 horas e terminando após as 19 horas e, muitas das vezes, pelas 20 ou 21 horas;
Que o Recorrente prestou trabalho para a Recorrida, a solicitação ou com o conhecimento desta, em dias de descanso, fins de semana e períodos de férias.
58. Os factos acima enunciados no parágrafo 57 não foram alegados na petição inicial (cf. referência citius 34394618 de 6.12.2023) mas nos artigos 51.º a 55 e 57º da resposta à contestação (cf. referência citius 35847238 de 4.5.2023). Os documentos para prova de tais factos, cuja reapreciação o recorrente pede, foram igualmente juntos com a resposta à contestação.
59. A recorrida, impugnou a admissibilidade da resposta à contestação e dos documentos a ela juntos, por requerimento com a referência citius 35991920 de 18.5.2023, em que pediu o desentranhamento dessa resposta à contestação e respectivos documentos, alegando, em síntese, que na contestação não deduziu reconvenção pelo que não é admissível resposta à contestação; além disso, não se defendeu por excepção e ainda que o tivesse feito, a resposta à matéria das execepções teria de ser apresentada na audiência prévia ou não havendo lugar a ela, no início da audiência final.
60. Na audiência prévia de 14.6.2023/referência citius 426640476 o Tribunal a quo não seleccionou temas de prova e não se pronunciou sobre o requerimento de desentranhamento mencionado no parágrafo anterior.
61. A esse propósito, o Tribunal leva em conta que: o Tribunal a quo não proferiu o despacho pré-saneador ou de aperfeiçoamento dos articulados previsto no artigo 61.º do CPT e, ainda que o tivesse feito, as alterações à matéria de facto feitas pelo autor/recorrente, teriam de conformar-se com o disposto no artigo 265.º do CPC, como prevê o artigo 590.º n.º 6 do CPC, para o qual remete o artigo 61.º n.º 1 do CPT; a ré/recorrida, não deduziu reconvenção, pelo que não é admissível a resposta à contestação (cf. artigo 60.º n.º 1 do CPT); o autor/recorrente podia responder às excepções deduzidas na contestação, na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final (cf. artigo 60.º n.º 5 do CPT); tendo sido realizada a audiência prévia, da respectiva acta não resulta que o autor/recorrente, tenha apresentado resposta às excepções nos termos previstos no artigo 60.º n.º 5 do CT (cf. referência citius 426640476 de 14.6.2023); o Tribunal a quo, na audiência prévia, proferiu despacho em que dispensou a selecção dos temas de prova (cf. artigo 62.º n.º 2 do CPT); a ré/recorrida, não reclamou de tal despacho (cf. artigos 591.º n.º 1 – f) e 596.º n.ºs 1, 2 e 3 do CPC, ex vi artigo 62.º n.º 2 do CPT).
62. Assim sendo, afigura-se que a omissão de pronúncia sobre o requerimento mencionado no parágrafo 59 constitui uma irregularidade que, não tendo sido invocada atempadamente, mediante reclamação na audiência prévia (cf. artigo 596.º n.ºs 2 e 3 do CPC), ficou sanada (cf. artigos 195.º n.º 1 e 199.º n.º 1 do CPC). Mas, independentemente de saber se é admissível ou não a resposta à contestação na forma apresentada, problema que não é objecto do presente recurso, o certo é que esse articulado/requerimento é admissível pelo menos na parte em que o recorrente aí exerce o contraditório sobre os documentos juntos à contestação – cf. artigo 444.º do CPC.
63. Feita esta clarificação, o problema colocado no presente recurso é o de saber se os factos alegados na resposta à contestação e mencionados supra no parágrafo 57, devem ser levados em conta na sentença. Para solucionar esse problema, o Tribunal recorda que a noção de causa de pedir nas acções declarativas de condenação, como é o caso da presente acção, deve ser entendida como o facto jurídico concreto ou o conjunto de factos jurídicos concretos dos quais deriva o pretenso direito do autor (cf. artigo 581.º n.º 4 do CPC), ou seja, de acordo com a doutrina que o Tribunal aqui acompanha, “a causa de pedir nada tem a ver com a qualificação jurídica do facto ou factos submetidos à apreciação do tribunal; a causa de pedir está no facto oferecido pela parte, e não na valoração jurídica que ela entenda atribuir-lhe” (cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição, Coimbra Editora Limitada, páginas 91 a 146).
64. Em consequência, à luz da doutrina citada no parágrafo anterior, a presente acção identifica-se e individualiza-se, não pelas normas abstractas que regem a retribuição devida pela isenção de horário de trabalho ou, como foi alegado subsidiariamente, por trabalho suplementar, cuja aplicação o autor defende na petição inicial (e.g. artigos 218.º, 226.º, 265.º e 268.º do CT), mas pelos elementos de facto invocados pelo autor na petição inicial, que convertem em concreto a vontade legal expressa nas normas aplicáveis.
65. Ora, tendo em conta a noção de causa de pedir acima enunciada, afigura-se que os factos mencionados no parágrafo 57 ampliam a causa de pedir.
66. Isto porque, na petição inicial os factos jurídicos concretos invocados pelo autor/recorrente, dos quais deriva a sua pretensão de que lhe seja paga a remuneração pedida, consistem em viagens para visitar clientes e outras viagens em serviço, fora do horário normal de trabalho e fora do período de férias, no contexto da execução do contrato de trabalho que celebrou com a recorrida e das funções de técnico comercial/técnico de vendas que exercia numa área geográfica alargada, ao passo que, na resposta à contestação, a causa de pedir passa a incluir também, entre os factos jurídicos concretos dos quais deriva a pretensão do autor, a prestação de trabalho administrativo aos fins de semana e em férias e a participação em reuniões semanais, às sextas feiras, fora do horário normal de trabalho, em períodos de descanso. Tais factos, alegados na resposta à contestação, embora tenham por base o incumprimento do mesmo contrato de trabalho e da obrigação de pagar a retribuição que dele emerge, não são os mesmos factos que foram alegados na petição para concretizar a vontade legal expressa nas normas aplicáveis.
67. A esse propósito, nem o Tribunal a quo se pronunciou sobre esses factos (mencionados no parágrafo 57), nem resulta das actas de audiência de julgamento (cf. referências citius 429239756 de 9.10.2023 e 430636642 de 22.11.2023) ou da sentença recorrida, que tenha lançado mão do disposto nos artigos 72.º n.º 1 do CPT ou 5.º n.º 2 do CPC para os levar em consideração. Com efeito, constituindo uma ampliação da causa de pedir, os factos aqui em crise só podiam ser levados em conta pelo Tribunal mediante a observância dos requisitos previstos nos artigos 264.º e 265.º do CPC.
68. Assim sendo, não havendo acordo da ré/recorrida, nem confissão dos factos que ampliam a causa de pedir, por parte da ré, não é possível ao autor/recorrente, ampliar dessa forma a causa de pedir – cf. artigos 264.º e 265.º n.º 1 do CPC. No mesmo sentido da solução aqui adoptada, o Tribunal cita a seguinte doutrina que se afigura igualmente válida para interpretar os artigos 60.º e 61.º do CT (cf. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, páginas 299 e 300):
“1. A restrição da réplica aos casos previstos no art. 584* (reconvenção e ações de simples apreciação negativa), em conjugação com as fortes limitações impostas à modificação do objeto da instância (causa de pedir e pedido), torna mais exigente para o autor a tarefa de elaboração da petição inicial, inviabiliza estratégias erráticas e obriga a uma definição séria dos contornos do litígio centrada na alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir (art. 5°, n° 1), sendo certo que a resposta a um eventual convite ao aperfeiçoamento deve deixar intacta a causa de pedir que foi invocada (art. 590°, n° 6).
2. Os condicionalismos impostos pela lei atual obrigam ou aconselham o autor a ponderar a possibilidade ou a necessidade de deduzir pedidos subsidiários ou de alegar factos que integrem causas de pedir subsidiárias, antecipando uma eventual estratégia defensiva que venha a ser adotada pelo réu. Com efeito, como reflexo da redução dos articulados, aquelas modificações estão agora condicionadas pela verificação de confissão assumida pelo réu e aceita pelo autor (arts. 46° e 465°), dispondo este do prazo perentório de 10 dias para requerer alguma dessas modificações.”
69. Motivos pelos quais o Tribunal não adita à matéria de facto provada os factos mencionados no parágrafo 57, julga prejudicada a reapreciação dos meios de prova indicados sobre tais factos e julga prejudicada a apreciação dos alegados erros de valoração desses meios de prova, mencionados na terceira e quinta questões acima sintetizadas no parágrafo 3.
Inversão do ónus da prova
70. Na quarta questão acima sintetizada no parágrafo 3, o recorrente alega que o Tribunal a quo incorreu em erro na apreciação dos meios de prova quando não atribuiu relevo aos extractos da via verde como meio de prova da prestação de trabalho suplementar. A esse propósito, o recorrente defende que o Tribunal a quo devia ter invertido o ónus da prova, ao abrigo do disposto nos artigos 344.º n.º 2 do CC e 417.º do CPC, com base na falta de justificação, pela recorrida, da não junção de parte dos extractos da via verde que foi notificada para juntar.
71. No que releva para a apreciação desta questão, o Tribunal leva em conta o seguinte.
72. Na alínea D da petição inicial o recorrente requereu a notificação da parte contrária, a recorrida, para juntar os extractos da via verde em seu poder, relativos às viaturas usadas pelo recorrente durante todo o período em que durou a execução do contrato de trabalho (2.3.2015 a 10.12.2021) para prova do facto alegado no artigo 36.º da petição inicial.
73. Por despacho de 14.6.2023/referência citius 426640476 o Tribunal ordenou a notificação da recorrida para juntar os documentos referidos no parágrafo anterior.
74. Por requerimento de 26.6.2023/referência citius 36359805 a recorrida, embora tenha mencionado nesse requerimento a junção aos autos dos extractos da via verde relativos a todo o período em que durou a relação laboral, apenas juntou esses extractos relativamente a um período mais reduzido, situado entre os anos de 2018 e 2021.
75. Por requerimento de 7.7.2023/referência citius 36492156 o recorrente exerceu o contraditório relativamente aos documentos mencionados no parágrafo anterior reiterando o pedido de notificação da recorrida para juntar aos autos os extractos da via verde em falta.
76. A notificação da recorrida para juntar documentos em seu poder convoca a aplicação do regime previsto nos artigos 429.º a 431.º do CPC. O Tribunal a quo, perante a falta de junção de parte desses documentos, não se pronunciou sobre o requerimento mencionado no parágrafo anterior, o que constitui uma irregularidade; porém, como essa irregularidade não foi invocada atempadamente ficou sanada (cf. artigos 195.º n.º 1 e 199.º n.º 1 do CPC).
77. Dito isto, independentemente de saber se a recorrida tinha ou devia ter tais documentos em seu poder (nomeadamente, por força do DL 28/2019 de 15.2, relativo ao processamento de faturas e outros documentos fiscalmente relevantes em sede de imposto sobre o valor acrescentado como alega o digno magistrado do Ministério Público), o que importa agora saber, antes de o Tribunal da Relação se pronunciar sobre a utilidade da pretendida inversão do ónus da prova, é se o facto para cuja prova foi requerida a junção dos documentos em causa se apurou ou não. O facto alegado no artigo 36.º da petição inicial, para cuja prova foi requerida a junção dos extractos da via verde, incluindo os que estão em falta, é o seguinte:
“Sem prejuízo, conforme procedimento interno da Ré, o Autor apresentava mensalmente o extrato da “Via Verde”, correspondente às deslocações efetuadas ao serviço daquela”.
78. Ora, é forçoso constatar que esse facto, alegado no artigo 36.º da petição inicial, foi declarado provado pelo Tribunal a quo no facto provado 18, cuja redacção é a seguinte:
Conforme procedimento interno da Ré, o Autor apresentava mensalmente o extrato da “Via Verde”, correspondente às deslocações efetuadas ao serviço daquela.
79. Pelo que, não tendo o facto provado 18 sido impugnado no presente recurso e tendo o recorrente logrado provar esse facto, para cuja prova requereu a junção dos extractos da via verde em falta, é inútil lançar mão da pretendida inversão do ónus da prova para julgar provado um facto que já foi declarado provado. Convém também sublinhar que a pretendida aplicação da inversão do ónus da prova – para a qual remete o artigo 430.º do CPC quando o notificado não junta o documento nem justifica essa falta – só poderia ter lugar para julgar provado o facto alegado no artigo 36.º da petição inicial. Ora, o que o recorrente parece pretender é que o Tribunal aplique uma inversão generalizada do ónus da prova de outros factos, para cuja prova também fossem atendíveis os documentos em falta à luz do disposto no artigo 413.º do CPC. Só que isso está fora do âmbito de aplicação do regime previsto nos artigos 429.º n.º 2 e 430.º n.º 2 do CPC. Com efeito, o artigo 429.º n.º 1 do CPC exige que no requerimento probatório para que a contraparte junte o documento em seu poder, o requerente identifique os factos que com esse documento pretende provar. Portanto, não tendo o recorrente indicado outros factos, como poderia ter feito, seria unicamente quanto ao facto alegado no artigo 36.º da petição inicial, que indicou e foi declarado provado como facto provado 18, que, se fosse necessário, quod non, poderia ter lugar a inversão do ónus da prova.
80. Em consequência, improcede nesta parte a pretensão do recorrente.
81. Na apreciação que antecede, o Tribunal resolveu as questões suscitadas pela impugnação da matéria de facto e as segunda, terceira, quarta e quinta questões suscitadas pelo recorrente, acima sintetizadas no parágrafo 3. No que respeita às primeira e sexta questões suscitadas pelo recorrente, acima sintetizadas no parágrafo 3, as mesmas serão apreciadas na análise da questão de direito, que se segue, uma vez que dizem respeito à qualificação jurídica da situação fáctica como trabalho suplementar.
82. Por todo o exposto, procede parcialmente a impugnação da matéria de facto e o Tribunal da Relação modifica a decisão sobre a matéria de facto nos termos acima enunciados nos parágrafos 35 e 51.
C. Retribuição pelo trabalho prestado fora do horário de trabalho
83. O recorrente pede ao Tribunal da Relação que revogue a sentença recorrida e a substitua por outra que julgue procedente a acção. Para esse efeito, alega que o Tribunal a quo incorreu nos erros de julgamento mencionados na primeira e sexta questões acima sintetizadas no parágrafo 3. Segundo o Tribunal julga perceber, o recorrente censura a sentença recorrida por não ter aplicado à situação em análise o regime do trabalho suplementar, considerando o tempo de viagem como tempo de trabalho e por não ter condenado a recorrida a pagar ao recorrente a retribuição devida pelo trabalho suplementar que prestou em deslocações em serviço e visitas a clientes.
84. Para resolver os problemas enunciados no parágrafo anterior o Tribunal leva em conta os seguintes factores.
85. Em primeiro lugar, no que respeita ao tempo de trabalho do recorrente, dos contornos fácticos apurados (cf. factos provados 1, 13, 14, 17, 28, 38, 39, 43, 49 e 50 a 52) resulta que entre 6.12.2017 e 31.7.2020, a situação de facto apresenta características do regime de isenção de horário de trabalho (cf. artigo 218.º n.º 1 – c) do CT).
86. Com efeito, apurou-se que no período mencionado no parágrafo anterior o recorrente exercia regularmente a sua actividade fora do estabelecimento da empregadora e sem controlo imediato da hierarquia e que nesse contexto, em dias e horas não concretamento apurados, o recorrente prestou trabalho fora do período normal de trabalho previsto no artigo 198.º do CT e fora do horário de trabalho diário previsto no artigo 200.º do CT. Isso sucedia com o conhecimento e consentimento da recorrida, sem que se tivesse provado que a recorrida assegurasse um registo de tempos de trabalho adequado aos objectivos do artigo 202.º n.º 3 do CT, a saber, que permitisse ao recorrente, que trabalhava no exterior da empresa, visar esse registo após o seu regresso à empresa ou enviar o mesmo devidamente visado, como estabelece essa disposição legal, de modo a traduzir fielmente as horas de trabalho que a recorrida consentia que ele prestasse além do horário diário; tal situação manteve-se até 31.7.2020, data em que a recorrida emitiu as instruções constantes do facto provado 17, sobre os momentos de início e termo da jornada de trabalho e o meio de os registar, dirigidas aos trabalhadores que, como o recorrente, prestavam trabalho no exterior da empresa e tinham de visitar clientes.
87. A esse propósito, o Tribunal recorda que resulta do disposto no artigo 227.º n.ºs 1 e 2 do CT que o trabalho suplementar se destina a fazer face a situações transitórias ou de força maior, o que não era o caso, pois a flexibilidade consentida pela recorrida ao recorrente para organizar o tempo de trabalho além do horário de trabalho diário era permanente e prendia-se com a própria natureza da prestação de trabalho em causa.
88. Sucede, porém, que, se em termos fácticos, a prática existente entre as partes se aproxima da isenção de horário de trabalho, em termos formais a lei exige que o acordo de isenção de horário de trabalho observe a forma escrita – cf. artigo 218.º n.º 1 do CT. Ora, no caso em análise não foi observada a forma escrita para o acordo de isenção de horário de trabalho.
89. Como a redução a escrito do acordo de isenção de horário de trabalho constitui uma formalidade ad substantiam, a inobservância dessa formalidade origina a nulidade do regime instituído – cf. artigo 220.º do CC. Contudo, a actividade do recorrente realizada no contexto do regime de isenção de isenção de horário nulo fica sujeita às normas aplicáveis ao trabalho suplementar, caso se verifiquem os respectivos pressupostos – cf. Francisco Liberal Fernandes, O Trabalho e o Tempo: Comentário ao Código do Trabalho, Centro de Investigação Jurídico Económica, Universidade do Porto, página 258.
90. No presente litígio, as partes discordam dos limites e organização do tempo de trabalho do recorrente, defendendo a recorrida que o recorrente excedeu tais limites temporais espontaneamente ao passo que o recorrente defende que excedeu esses limites com o conhecimento e consentimento da recorrida e para poder realizar a prestação de trabalho a que estava obrigado. Como resulta da análise da questão B, uma das principais dificuldades com que se depara o Tribunal deriva da inexistência de um sistema de registo do tempo efectivo do trabalho habitualmente prestado pelo recorrente no exterior da empresa, nos termos consentidos pela recorrida, pelo menos até 31.7.2020 (cf. factos provados 33 e 51).
91. Nesse contexto, o Tribunal recorda que, se é certo que a responsabilidade da empregadora quanto aos direitos conferidos ao trabalhador em matéria de duração do tempo de trabalho não é ilimitada e não cobre, por isso, a prestação espontânea de trabalho sem o conhecimento e o consentimento da empregadora, também é certo que a situação de fragilidade do trabalhador na relação de trabalho levou o legislador a prever um sistema de registo de tempo de trabalho que deve ser implementado seja qual for o regime de horário de trabalho, como modo de garantir o respeito pelos direitos conferidos aos trabalhadores pelo artigo 31.º n.º 2 da Carta do Direitos Fundamentais da União Europeia – cf. artigo 1.º (2) e (4) da Directiva 2003/88/CE e artigo 202.º do CT.
92. É que a falta de um sistema fiável para medir a duração do tempo de trabalho acarreta as dificuldades, que ocorrem no presente processo, em determinar o número de horas concreto além do horário de trabalho diário, tal como foi referido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), no acórdão a seguir citado (cf. acórdão do TJUE, C- 55/18, parágrafos 53 a 61):
53 É verdade que, no caso vertente, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, como alegam a Deutsche Bank e o Governo espanhol, na falta de um sistema que permita medir a duração do tempo de trabalho prestado, um trabalhador pode, segundo as regras processuais espanholas, recorrer a outros meios de prova, como, nomeadamente, testemunhos, a apresentação de mensagens de correio eletrónico ou a consulta de telemóveis ou computadores, para fornecer indícios da violação desses direitos e, assim, dar lugar à inversão do ónus da prova.
54 No entanto, contrariamente a um sistema que mede a duração do tempo de trabalho diário prestado, esses meios de prova não permitem estabelecer de maneira objetiva e fiável o número de horas de trabalho diário e semanal realizadas pelo trabalhador.
55 Importa em especial sublinhar que, tendo em conta a situação de fragilidade do trabalhador na relação de trabalho, a prova testemunhal não pode ser considerada, por si só, um meio de prova eficaz, suscetível de garantir um respeito efetivo dos direitos em causa, uma vez que os trabalhadores se podem mostrar reticentes em testemunhar contra a sua entidade patronal por receio de que esta tome medidas que possam afetar a relação de trabalho em seu detrimento.
56 Em contrapartida, um sistema que permite medir a duração do tempo de trabalho diário prestado pelos trabalhadores proporciona a estes últimos um meio particularmente eficaz de aceder facilmente a dados objetivos e fiáveis relativos à duração efetiva do tempo de trabalho prestado por estes e é, assim, suscetível de facilitar quer a prova, pelos referidos trabalhadores, de uma violação dos direitos que lhes são conferidos pelos artigos 3.o, 5.o e 6.o, alínea b), da Diretiva 2003/88, que precisam o direito fundamental consagrado no artigo 31.o, n.o 2, da Carta, quer o controlo, pelas autoridades e pelos órgãos jurisdicionais nacionais competentes, do respeito efetivo desses direitos.
57 Também não se pode considerar que as dificuldades resultantes da falta de um sistema que permita medir a duração do tempo de trabalho diário prestado por cada trabalhador possam ser ultrapassadas pelos poderes de investigação e sancionatórios conferidos pela legislação nacional aos órgãos de fiscalização, como a Inspeção do Trabalho. Com efeito, na falta desse sistema, essas próprias autoridades ficam privadas de um meio eficaz para aceder a dados objetivos e fiáveis relativos à duração do tempo de trabalho prestado pelos trabalhadores de cada empresa, que se revela necessário para exercer a sua missão de fiscalização e, se for caso disso, aplicar uma sanção (v., neste sentido, Acórdão de 30 de maio de 2013, Worten, C‑342/12, EU:C:2013:355, n.o 37 e jurisprudência referida).
58 Daqui decorre que, na falta de um sistema que permita medir o tempo de trabalho diário prestado por cada trabalhador, nada garante, como resulta aliás dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional de reenvio, referidos no n.o 26 do presente acórdão, que o respeito efetivo do direito à limitação da duração máxima do tempo de trabalho assim como a períodos mínimos de descanso, conferido pela Diretiva 2003/88, seja plenamente assegurado aos trabalhadores, sendo esse respeito deixado ao critério da entidade patronal.
59 Se é verdade que a responsabilidade da entidade patronal quanto ao respeito dos direitos conferidos pela Diretiva 2003/88 não pode ser ilimitada, não é menos verdade que uma regulamentação de um Estado‑Membro que, segundo a interpretação dada pela jurisprudência nacional, não impõe que a entidade patronal meça a duração do tempo de trabalho prestado é suscetível de esvaziar da sua substância os direitos consagrados nos artigos 3.o, 5.o e 6.o, alínea b), desta diretiva, ao não assegurar aos trabalhadores o respeito efetivo do direito a uma limitação da duração máxima do trabalho e a períodos mínimos de descanso, e não é, por conseguinte, conforme com o objetivo prosseguido por esta diretiva, que considera essas exigências mínimas indispensáveis à proteção da segurança e da saúde dos trabalhadores (v., por analogia, Acórdão de 7 de setembro de 2006, Comissão/Reino Unido, C‑484/04, EU:C:2006:526, n.os 43 e 44).
60 Em consequência, para assegurar o efeito útil dos direitos previstos pela Diretiva 2003/88 e do direito fundamental consagrado no artigo 31.o, n.o 2, da Carta, os Estados‑Membros devem impor às entidades patronais a obrigação de estabelecer um sistema objetivo, fiável e acessível que permita medir a duração do tempo de trabalho diário prestado por cada trabalhador.
61 Esta conclusão é corroborada pelas disposições da Diretiva 89/391. Como resulta do artigo 1.o, n.os 2 e 4, da Diretiva 2003/88 e do seu considerando 3, bem como do artigo 16.o, n.o 3, da Diretiva 89/391, esta última diretiva é plenamente aplicável em matéria de períodos mínimos de descanso diário, de descanso semanal e da duração máxima do tempo de trabalho semanal, sem prejuízo das disposições mais vinculativas e/ou específicas contidas na Diretiva 2003/88.”
93. Pelo que, afigura-se que o artigo 202.º do CT, interpretado à luz da jurisprudência que antecede e em conformidade com o artigo 1.º (2) e (4) da Directiva 2003/88/CE, impunha à recorrida, que tinha conhecimento e consentiu que o recorrente prestasse trabalho fora do horário de trabalho, o dever de assegurar o registo fiável desse tempo de trabalho. O que não sucedeu.
94. Em segundo lugar, o Tribunal julga que o recorrente tem razão quando defende que, no caso em análise, o tempo que gastava em viagens para visitar clientes ou comparecer em reuniões em Madrid, deve ser considerado tempo de trabalho. Com efeito, está assente nos autos que o recorrente desempenhava as funções correspondentes à categoria profissional de técnico de vendas e que a sua prestação de trabalho consistia em deslocar-se a várias zonas do país para visitar os clientes da recorrida e em deslocar-se a Madrid para reuniões (cf. factos provados 1, 13 e 50 a 52). Essas visitas e viagens eram determinadas pela recorrida (cf. factos provados 15, 16, 40 A, 40 B e 52). A flexibilidade que o recorrente tinha na organização temporal das viagens e visitas que fazia era exigida pela natureza da sua prestação de trabalho e foi-lhe concedida pela recorrida (cf. factos provados 38, 39, 51 e 52), emanando do poder de direcção da empregadora previsto no artigo 97.º do CT.
95. Nesse contexto, as viagens do recorrente, não eram meras deslocações da sua residência para o local de trabalho, mas faziam parte da própria prestação de trabalho acordada entre as partes no contrato de trabalho (cf. factos provados 1 e 13). Para esse efeito, nas viagens de trabalho em território continental, o recorrente usava a viatura fornecida pela empresa (cf. factos provados 7 a 11 e 43). Nos períodos de tempo correspondentes às viagens em Portugal ou para Madrid, realizadas fora do horário de trabalho diário, entre 6.12.2017 e 31.7.2020, o recorrente estava na disponibilidade da recorrida, que sabia disso e concedeu ao recorrente a flexibilidade para realizar a sua prestação de trabalho fora do horário de trabalho diário das 10:00 às 13:00 e das as 14:00 e as 19:00, pré-estabelecido pela recorrida (cf. factos provados 13 e 52).
96. Em consequência, o Tribunal julga que o tempo de viagens aqui em causa é tempo de trabalho. É o que resulta do artigo 2 (1) da Directiva 2003/88/CE (directiva do tempo de trabalho), transposto para o artigo 197.º n.º 1 do CT, tal como foi interpretado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (cf. acórdão do TJUE, C-266/14, proferido num caso comparável, parágrafo 46):
“46 Resulta do exposto que, quando trabalhadores, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, utilizam um veículo da empresa para se deslocarem da sua residência até ao cliente designado pela entidade patronal ou para regressarem à sua residência a partir do domicílio desse cliente e para se deslocarem de um cliente para o outro ao longo do dia de trabalho, se deve considerar que, durante as referidas deslocações, esses trabalhadores estão «a trabalhar», na aceção do artigo 2.°, ponto 1, da mesma diretiva.”
97. No mesmo sentido, a jurisprudência nacional a seguir citada (cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo 165/12.9TTSTS.P1, sumário):
“Sendo o local de trabalho da Autora (delegada de informação médica) o Funchal, o tempo gasto pela mesma no cumprimento de funções, em deslocações ao Continente determinadas pela empregadora, para comparência a eventos, constitui tempo de trabalho, a merecer pagamento como trabalho suplementar quando tais deslocações ocorrem fora do horário de trabalho.”
98. Em terceiro lugar, resulta dos factos provados que entre 6.12.2017 e 31.7.2020, além do tempo de viagens, também as visitas que o recorrente fazia aos clientes da recorrida ocorreram algumas vezes, em dias e horas não concretamente determinados, fora do horário de trabalho diário, com o conhecimento e concordância da recorrida (cf. factos provados 38, 39 e 50 a 52). Pelo que essas visitas a clientes se consideram também tempo de trabalho, nos termos do artigo 197.º n.º 1 do CT.
99. Em quarto lugar, sendo nulo o regime de isenção de horário de trabalho, tal como já foi acima explicado, para que haja lugar ao pagamento da remuneração devida ao recorrente por trabalho suplementar, nos termos previstos nos artigos 226.º e 268.º do CT, têm de verificar-se os seguintes pressupostos: (i) a existência de um horário de trabalho estabelecido pela empregadora; (ii) a prova de que foi prestado trabalho fora desse horário estabelecido; (iii) e a prova de que esse trabalho foi prévia e expressamente ordenado pela empregadora ou por ela consentido (cf. Abílio Neto, Novo Código do Trabalho e legislação complementar anotados, 3.ª edição, Ediforum, página 541, nota 50, jurisprudência aí citada).
100. Dos factos provados resulta verificarem-se os três pressupostos mencionados no parágrafo anterior no período compreendido entre 6.12.2017 e 31.7.2020 (cf. factos provados 13, 28, 50, 51 e 52).
101. A recorrida, pelo menos até 31.7.2020, não tinha um registo de trabalho onde fossem anotadas as horas de trabalho suplementar prestadas pelo recorrente apesar de ter consentido que o recorrente prestasse trabalho fora do horário de trabalho – cf. factos provados 33, 51 e 52.
102. O que confere ao recorrente, por cada dia em que tenha prestado actividade fora do horário de trabalho, o direito à retribuição correspondente a duas horas de trabalho suplementar – cf. artigo 231.º n.º 5 do CT.
103. Sucede que, tal como resulta do facto provado 51, não só não foi apurado o número de horas de trabalho suplementar, como também não foi apurado o número de dias em que o recorrente prestou actividade fora do horário de trabalho.
104. Assim sendo, o Tribunal pode optar por condenar a recorrida a pagar a retribuição devida por duas horas de trabalho suplementar por cada dia em que o recorrente prestou trabalho fora do horário de trabalho, que se vier a liquidar em execução de sentença (cf. artigo 609.º n.º 2 do CPC) ou optar por fixar esse número de horas e, portanto, determinar a prestação/retribuição devida pelo trabalho suplementar, com recurso à equidade (cf. artigos 4.º - a) e 400.º do CC) e tendo em conta os factores previstos no artigo 272.º n.º 1 do CT, disponíveis nos autos.
105. Para resolver esse problema, o Tribunal acompanha a seguinte doutrina (cf. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina página 729):
“8. A opção entre a fixação da indemnização com recurso à equidade e a liquidação subsequente deve dirimir-se a favor do meio que dê mais garantias de se ajustar à realidade. Por isso, se for previsível que o valor exato do dano será apurado com prova complementar, deve preferir-se a condenação genérica; já se, apesar de provado o dano, não for previsível que possa determinar-se o seu montante exato com recurso a prova complementar, deve fixar-se logo a indemnização com recurso à equidade (ST] 3-2-09, 08A3942).”
106. Devido às dificuldades acima explicadas nos parágrafos 90 a 93, não é previsível que possa determinar-se o número exacto de dias em que o recorrente prestou trabalho fora do horário de trabalho de modo a poder liquidar o valor da retribuição devida por trabalho suplementar em execução de sentença. Pelo que, a solução que oferece mais garantias de se ajustar à realidade, no caso em análise, é o recurso à equidade para essa fixar a prestação. Nesse sentido, a seguinte jurisprudência (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 4553/21.1T8LSB.L1.S1, pontos II, III e IV do sumário):
II- Para além da matéria assim fixada, a autora alegou circunstanciadamente – ano a ano, mês a mês, dia a dia –, o número exato de minutos em que teria trabalhado para além do período normal de trabalho, mas não logrou fazer prova de tais factos.
III- A exata quantificação do valor devido pelo trabalho suplementar que se encontra em falta (correspondente, basicamente, ao excesso de carga horária decorrente do novo horário de trabalho praticado), não pode ser relegada para incidente de liquidação, pois isso traduzir-se-ia numa “repetição da realização da instância probatória quanto a factos já produzidos e conhecidos à data da propositura da ação”, o que não
legalmente permitido.
IV- Deve, antes, proceder-se à fixação da contrapartida devida com recurso à equidade, nos termos do art. 566.º/3 do C. Civil, segundo o qual, “se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.
107. Tratando-se de uma obrigação emergente do contrato de trabalho que não foi determinada, o Tribunal recorda que a indeterminação do objecto dos negócios jurídicos é admitida em geral pelo artigo 280.º do CC, que exige apenas que o objecto da prestação seja determinável. É o que resulta igualmente do disposto no artigo 272.º n. 1 do CT que prevê que o Tribunal leve em conta, na determinação da retribuição, a prática da empresa e os usos do sector, ou locais. Por seu lado, o artigo 400.º CC regula a forma de determinar a prestação no domínio das obrigações, prevendo o recurso à equidade – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4.ª Edição, Coimbra Editora Limitada, página 350.
108. Assim, para concluir, o Tribunal opta por determinar o valor da retribuição devida pelo trabalho suplementar prestado levando em conta os factores previstos no artigo 272.º n.º 1 do CT disponíveis nos autos e recorrendo, no mais, a juízos de equidade, nos termos do artigo 400.º do CC.
109. Para esse efeito o Tribunal leva em conta os seguintes factores:
• Provou-se que entre 6.12.2017 e 31.7.2020 (cerca de 3 anos, 7 meses e 25 dias) o recorrente prestou trabalho suplementar em número de dias e horas não concretamente apurados (cf. facto provado 51);
• O recorrente deslocava-se a partir do distrito de Lisboa e a área geográfica abrangida pelas deslocações que fazia era variada e compreendia tanto distritos mais próximos de Lisboa como distritos mais distantes ou mesmo a ilha da Madeira e Madrid (cf. factos provados 12, 13 e 50);
• A maior parte dos clientes que visitava situavam-se em território continental nacional (cf. facto provado 50);
• Durante o período de pandemia o ritmo das visitas a clientes foi reduzido e tais visitas foram substituídas por contactos por via telemática (cf. factos provados 41 e 42);
• A recorrida, entre 6.12.2017 e 31.7.2020 não manteve o registo das horas de trabalho prestadas pelo recorrente fora do horário de trabalho, o que dificulta a determinação da prestação/retribuição devida, pelos motivos acima explicados nos parágrafos 90 a 93 (cf. factos provados 33 a 35 e 51);
• Em tais circunstâncias, o recorrente tem direito a duas horas de trabalho suplementar por dia em que tenha prestado actividade fora do horário de trabalho (cf. artigo 231.º n.º 5 do CT) mas o número de dias em que isso sucedeu não foi concretamente apurado nem é previsível que possa ser determinado, como já foi explicado;
• O modo de calcular o valor da retribuição horária está previsto no artigo 271.º do CT, porém, o recorrente, no artigo 45.º da petição inicial pediu que lhe fosse pago o valor do trabalho suplementar tomando como base de cálculo a retribuição horária de 13,70 euros, valor horário que se apurou ter sido acordado entre as partes (cf. facto provado 5); pelo que, o Tribunal leva em conta esse valor que corresponde à prática apurada (cf. artigo 272.º n.º 1 do CT);
• Na petição inicial o recorrente pede o pagamento de horas de trabalho suplementar prestado em dias úteis e excluído o período de férias (cf. artigos 45.º a 65.º da petição inicial);
• O horário de trabalho do recorrente era de 8 horas diárias (das 10:00 às 13:00 e das 14:00 às 19:00) e 40 horas semanais (cf. factos provados 13 e 28);
• A situação de facto instituída entre as partes, quanto à organização do tempo de trabalho, tinha alguma permanência e não se destinava a fazer face a acréscimos de trabalho eventuais e transitórios ou casos de força maior, pelo que, aproxima-se do regime de isenção de horário de trabalho nulo por vício de forma (cf. artigos 218.º n.º 1 do CT e 220.º do CC);
• Os acréscimos no valor da retribuição do trabalho suplementar prestado em dias úteis variam consoante o número de horas anuais prestadas seja igual ou superior a 100 horas e se trate da primeira hora ou da hora subsequente, respectivamente entre, entre de 25%, 37%, 50% e 75% da retribuição horária (cf. artigo 268.º do CT).
110. Adicionalmente, o Tribunal leva em conta que na petição inicial, o recorrente formula o seguinte pedido:
“A) Ser a Ré condenada no pagamento ao Autor, a título de remunerações vencidas e não pagas, no valor total de € 70.766,54 (setenta mil setecentos e sessenta e seus euros e cinquenta e quatro cêntimos);
B) Ser a Ré condenada no pagamento de juros de mora à taxa legal sobre a quantia peticionada, desde a data da citação e até ao seu efetivo e integral pagamento;”
111. À luz dos factores acima mencionados no parágrafo 109 e tendo em conta o pedido formulado, acima enunciado no parágrafo 110, afigura-se equitativo fixar a retribuição devida por trabalho suplementar no valor correspondente a 600 horas de trabalho, pagas pelo valor da retribuição horária de 13,70 euros, por ser o que corresponde ao apurado e pedido pelo recorrente, ao qual se aplicam os seguintes acréscimos: 200 horas serão pagas com o acréscimo de 25% do valor da retribuição horária; 200 horas serão pagas com o acréscimo de 37,5% do valor da retribuição horária; 200 horas serão pagas com o acréscimo de 50% do valor da retribuição horária – cf. artigo 268.º n.º 1 – a) e n.º 2 – a) do CT..
112. Ou seja, o valor da prestação devida pela recorrida ao recorrente por trabalho suplementar é fixado pelo Tribunal em 11 302, 50 euros, de acordo com os seguintes cálculos:
• 13,70 x 0,25 = 3,425 | 13,70 + 3,425 = 17,125 euros valor horário com acréscimo de 25%;
• 13,70 x 0, 375 = 5,1375 |13,70 + 5,1375 = 18,8375 euros valor horário com acréscimo de 37,5%;
• 13,70 x 0,50 = 6,85 | 13,70 + 6,85 = 20,55 euros valor horário com acréscimo de 50%;
• (17,125 euros valor horário com acréscimo de 25% x 200 horas) + (18,8375 valor horário com acréscimo de 37,5% x 200 horas) + (20,55 valor horário com acréscimo de 50% x 200 horas) = 11 302,50 euros.
113. A indemnização à forfait pela mora corresponde aos juros à taxa legal anual de 4% - cf. artigo 559.º n.º 1 do CC e Portaria 291/2003 de 8.4.
114. Não se apurou o prazo certo em que devia ser cumprida a obrigação (cf. artigo 805.º n.º 2 – a) do CC) pelo que a recorrente ficou constituída em mora a partir da data da citação. Acresce que a obrigação não era líquida, teve de ser liquidada pelo Tribunal. Nesse caso, em regra, os juros de mora apenas seriam devidos a partir da liquidação (cf. artigo 805.º n.º 3 do CC primeira parte). Porém, sendo a falta de liquidez imputável à devedora/recorrida, como já foi explicado supra nos parágrafos 90 a 93, o artigo 805.º n.º 3 primeira do CC remete para o n.º 1 do mesmo preceito. Em consequência, os juros de mora são devidos desde a data da citação.
115. Motivos pelos quais procede parcialmente o recurso e o Tribunal altera a sentença recorrida, substituindo-a por outra que julga parcialmente procedente a acção, condena a recorrida a pagar ao recorrente a quantia de 11 302,50 euros, acrescida de juros à taxa legal anual de 4% vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento e absolve a recorrida da restante parte do pedido.
Em síntese
116. Pelos motivos enunciados supra na análise da questão A não se verifica nenhuma das alegadas nulidades da sentença recorrida, previstas no artigo 615.º n.º 1 – b), c) e d) do CPC, sem prejuízo da aplicação do regime previsto no artigo 662.º do CPC à reapreciação da decisão de facto.
117. A decisão sobre a matéria de facto é modificada nos termos e pelos motivos acima mencionados na análise da questão B e levando em conta a regra de direito probatório consagrada no artigo 337.º n.º 2 do CT.
118. Tendo sido praticado entre as partes um regime que se aproxima da isenção de horário de trabalho nulo por falta de acordo escrito (cf. artigo 218.º n.º 1 do CT), o recorrente tem direito à remuneração pelo trabalho que prestou fora do horário de trabalho à luz do regime do trabalho suplementar (cf. artigos 226.º, 231.º n.º 5 e 268.º do CT).
119. Não sendo previsível que possa determinar-se o número exacto de dias em que o recorrente prestou trabalho fora do horário de trabalho de modo a poder liquidar o valor da retribuição devida em execução de sentença, a solução que oferece mais garantias de se ajustar à realidade, no caso em análise, é o recurso à equidade para determinar o valor toral da prestação (cf. artigos 4.º - a) e 400.º do CC), levando em conta os factores previstos no artigo 272.º n.º 1 do CT, disponíveis nos autos.
120. O Tribunal fixa o valor da prestação devida pela recorrida ao recorrente, por trabalho suplementar, em de 11 302, 50 euros.
121. Não sendo possível determinar o prazo certo da obrigação e sendo a falta de liquidez devida à recorrida, ao valor mencionado no parágrafo anterior acrescem juros de mora à taxa legal anual de 4.%, vencidos desde a data da citação e vincendos até integral pagamento – cf. artigos 599.º n.º 1 e 805.º n.º 1 do CC e Portaria 291/2003 de 8.4.
122. Motivos pelos quais procede parcialmente o recurso e o Tribunal altera a sentença recorrida, substituindo-a por outra que julga parcialmente procedente a acção, condena a recorrida a pagar ao recorrente a quantia de 11 302,50 euros, acrescida de juros à taxa legal anual de 4% vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento e absolve a recorrida da restante parte do pedido.

Decisão
Acordam os Juízes desta secção em:
I. Julgar parcialmente procedente o recurso.
II. Alterar a matéria de facto nos termos acima mencionados no presente acórdão.
III. Alterar a sentença recorrida, substituindo-a por outra que:
Julga parcialmente procedente a acção.
Condena a recorrida a pagar ao recorrente a quantia de 11 302,50 euros (onze mil trezentos e dois euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros à taxa legal anual de 4% vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento.
Absolve a recorrida da restante parte do pedido.
IV. Condenar cada uma das partes nas custas do recurso na proporção do respectivo decaimento – artigo 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi artigo 87.º n.º 1 do CPT.

Lisboa, 12 de Fevereiro de 2025
Paula Pott
Eugénia Maria Guerra
Susana Silveira