PLATAFORMA DIGITAL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE
SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
INDÍCIOS
Sumário

I. Tendo a relação jurídica havida entre as partes tido início em 11 de Abril de 2022, relevam, para a sua qualificação jurídica, os artigos 11.º e 12.º, do Código do Trabalho, e não a presunção ora consagrada no art. 12.º-A, do Código do Trabalho, apenas entrada em vigor em 1 de Maio de 2023 por via das alterações ali introduzidas pela Lei n.º 13/2023, de 3 de Abril.
II. Ainda que o autor logre demonstrar, como lhe compete à luz do art. 342.º, n.º 1, do Código Civil, a existência de dois ou mais factos indiciários da presunção de laboralidade na relação controvertida, sempre estes deverão ser sopesados globalmente com os demais provados e relevantes para a caracterização da natureza da relação jurídica estabelecida pelas partes para, desse modo, se concluir se se configura a mesma como de trabalho ou de prestação de serviços.
III. A plataforma tecnológica, sendo essencial na triangulação da prestação de serviços, visto ser através dela que os comerciantes e seus clientes contactam entre si e com o estafeta que encaminha para aqueles os produtos por eles vendidos, sendo também através dela que os comerciantes, a ré e o estafeta comunicam entre si, não é o único instrumento necessário para viabilizar a actividade de entregas, pois que sem os demais a mesma também não poderia ser realizada.
IV. O poder de direcção tem por significado a possibilidade de dirigir, comandar e ordenar como e quando trabalhador executa as suas tarefas, sob pena de, assim não sendo, aquele poder perder o seu sentido mais básico.
V. Estando provado que o estafeta decidia livremente o local onde prestava a sua actividade, podia escolher os serviços que prestava, era livre para escolher os dias e horas em que pretendia ligar-se e o horário em que o fazia, podia escolher o itinerário que ia utilizar para realizar as entregas, podia seleccionar e alterar um 'multiplicador', uma vez por dia, para valores iguais ou superiores a 1.0, podia subcontratar noutro prestador de serviços de entrega e, por fim, podia, sem qualquer controlo da empregadora, prestar a mesma actividade para plataformas concorrentes e até mesmo prestar outras actividades, a racionalidade impõe concluir que tudo isto colide com o poder de direcção referido em IV., a par, também, da colisão com a natureza intuitu personae característica do contrato de trabalho.

Texto Integral

Acordam, na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório.
O Ministério Público intentou a presente acção declarativa, com processo especial para reconhecimento da existência de contrato de trabalho, contra Glovoapp Portugal Unipessoal Ld.ª, pedindo que seja declarado que o contrato celebrado entre AA e a requerida é um verdadeiro e próprio contrato de trabalho.
Para tanto alegou, em síntese, que:
• desde Outubro de 2022 que entre a R. e AA existe uma relação laboral já que este integra a estrutura organizativa da ré, recebe dela uma quantia quinzenal, sem negociação e toda a sua actividade é por ela controlada através dos meios electrónicos ou de gestão algorítmica, fazendo uso da geolocalização;
• tem em regra um horário de trabalho, e é avaliado pela ré;
. • o estafeta não se pode fazer substituir, tendo uma credencial unipessoal e confidencial e a ré pode restringir o seu acesso à plataforma;
• todas as regras da sua prestação de trabalho são fixadas pela ré, supervisionando em tempo real esse trabalho por meio da geolocalização e sendo a plataforma o instrumento de trabalho utilizado;
• existe poder disciplinar por via da possibilidade de exclusão da possibilidade de realização de futuras actividades na plataforma ou de suspensão ou desactivação da conta.
Citada, a ré contestou, por impugnação, alegando, em síntese, que:
• não existem ordens, subordinação, poder disciplinar, horário nem qualquer controlo da sua parte antes total autonomia do estafeta;
• este pode trabalhar quando quer e onde quer, durante o tempo que quer, podendo até ficar longos meses ou anos sem logar na plataforma;
• pode escolher o percurso que entende para entregar os pedidos sem interferência sua e decidir ele próprio aceitar ou recusar pedidos e sempre sem consequência;
• pode fazer-se substituir, subcontratando a entrega em terceiros sem a sua interferência;
• a geolocalização é para que o mesmo receba as propostas e que a avaliação que o cliente faz não tem qualquer efeito no estafeta;
• o que presta é um serviço de intermediação até porque os estafetas podem ser pagos em dinheiro pelo cliente e não pela plataforma e nessa medida pagam uma taxa para poderem aceder a esse serviço de intermediação e comparticipar no seguro e no apoio técnico que possa ser concedido nas questões que surjam na entrega, embora todas as avarias e manutenções dos equipamentos que utilizam estejam a seu cargo;
• durante o mesmo período de tempo pode trabalhar para outras plataformas, não tendo exclusividade, ou ter os seus próprios clientes;
• não existe exercício do poder disciplinar ou algo análogo, senão nos casos contratualmente determinados de resolução do contrato e suspensão da sua actividade caso se verifique alguma das situações mencionadas;
• pelo que inexistem indícios que permitam concluir pela existência de um contrato de trabalho.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, a Mm.ª Juiz proferiu sentença pela qual julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido.
Irresignado, o autor apelou da sentença, pedindo que seja revogada e declarada a existência de um contrato de trabalho entre AA e a ré Glovo Portugal - Unipessoal, Ld.ª, desde 1 de Maio de 2023, culminando a alegação com as seguintes conclusões:
"1. O Ministério Público não se conformando com a decisão proferida por entender, conforme ab initio entendeu, que a relação existente entre o indicado estafeta AA e o Glovoapp Portugal - Unipessoal, Ld.ª configura uma relação laboral, o que é patente da prova colhida e produzida nos autos, mas que não encontra respaldo, na respectiva fundamentação proferida pelo tribunal a quo.
2. Assim, remetendo-nos ao caso concreto devemos analisar os factos provados à luz do método indiciário.
3. A titularidade dos meios de produção ou dos instrumentos de trabalho: resulta verificado este indício na medida em que a Glovoapp opera e gere uma plataforma electrónica que dispõe de um software complexo através do qual gere e controla uma organização produtiva.
4. Assim, podemos concluir que infra-estrutura essencial da actividade aqui em causa é o software gerido pela Ré, sendo a propriedade do veículo, do telemóvel e da mochila térmica acessórias, na medida em que na mera posse destes instrumentos de trabalho a prestação dos estafetas seria inviável, sendo a própria aplicação o único meio de subsistência deste sistema de entregas e deste modelo de negócio.
5. O poder de direcção e de conformação do modo como é prestada a actividade: também resulta verificado dado que a Ré através da sua aplicação informática, organiza e gere a actividade de recolha, transporte e entrega de mercadorias.
6. Encontrando-se este procedimento perfeitamente padronizado visto que decorrerá da mesma forma, independentemente do ponto geográfico onde é prestado e da concreta pessoa do estafeta, que se limitará a seguir todo o esquema previamente definido pela Ré.
7. O exercício do poder sancionatório: também resulta verificado, entre outros motivos pelo facto da plataforma pode restringir o acesso à aplicação, ou mesmo desactivar a conta em definitivo, no caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo estafeta.
8. O modo de cálculo da retribuição: que também indica subordinação, visto que é a Ré quem determina as regras essenciais de fixação da retribuição, sendo possível concluir que a plataforma fixa, unilateralmente, o valor dos montantes a pagar ao estafeta para as entregas que efectua por entrega, sem qualquer negociação.
9. Pelo que depois de proceder à análise dos itens que supra referimos, parece-nos que resultam provados indícios relevantes de um contrato de trabalho, que deveria ter sido declarado na douta sentença recorrida.
10. Acresce que, o legislador estabeleceu, no artigo 12.º-A do Código do Trabalho, uma presunção de laboralidade que tem por objectivo dispensar o encargo do ónus da prova que recairia sobre o trabalhador de todos os elementos que caracterizam o contrato de trabalho.
11. Ou seja, de acordo com o normativo transcrito, o preenchimento da presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital está dependente da verificação de pelo menos dois dos seguintes requisitos dos seguintes requisitos que passamos a analisar.
12. a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efectuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela: sendo os estafetas remunerados por cada serviço e depois de o terem realizado, sem qualquer negociação quanto ao preço do serviço e de acordo com os critérios definidos pela Ré. Isto significa que é a Ré que fixa a remuneração devida ao estafeta pelo serviço por ele prestado, sendo que a circunstância do estafeta poder alterar/aumentar, através do 'multiplicador', o valor mínimo do serviço não altera a referida conclusão.
13. b) A plataforma digital exerce o poder de direcção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de actividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da actividade: também resulta verificado, dado que a Ré determina a conduta do prestador de actividade perante o utilizador do serviço e determina ainda regras especificas quanto à prestação da actividade em si mesmo.
14. Desde a fase inicial, que o estafeta para poder prestar a sua actividade tem obrigatoriamente de proceder ao seu registo no site da Ré, entregando a documentação que lhe é solicitada, declarar o meio de transporte que vai usar, diligenciar pelo seguro do mesmo e aderir aos 'termos e condições de utilização da Plataforma Glovo para estafetas'.
15. Acresce ainda que a Ré determina a conduta do prestador de actividade perante o utilizador do serviço e determina ainda regras especificas quanto à prestação da actividade em si mesmo, designadamente quanto às regras a observar quando o cliente pretende pagar o serviço em numerário, quanto às diligências que o estafeta terá que seguir quando o cliente não se encontra no local de entrega.
16. Ou seja, o procedimento de recolha e entrega de mercadorias gerido pela Ré encontra-se perfeitamente padronizado e decorrerá da mesma forma, independentemente do ponto geográfico onde é prestado e da concreta pessoa do estafeta, que se limitará a seguir todo o esquema previamente definido pela Ré.
17. c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da actividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da actividade prestada, nomeadamente através de meios electrónicos ou de gestão algorítmica: também resulta provado visto que para lhe ser atribuído um pedido, por banda da Ré, o estafeta tem que estar ligado na plataforma da Ré e para terminar tem que concluir o procedimento, nessa mesma plataforma, pelo que é manifesto que a Ré consegue controlar e supervisionar a prestação da actividade e a sua execução.
18. Assim, a necessidade de manter o GPS activo não se circunscreve ao momento da proposta de entrega, prolonga-se durante o período de execução da tarefa, cedendo a Ré este registo de geolocalização ao cliente, para que este possa consultar em tempo real, qual o tempo que a encomenda irá demorar a chegar ao seu destino final.
19. e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de actividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras actividades na plataforma através de desactivação da conta: o que é manifesto face ao supra citado ponto 5.2 supra elencado, que consta nos termos e condições de utilização da plataforma Glovo para estafetas.
20. f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação: resulta dos factos provados que a Glovo opera e gere uma plataforma electrónica que dispõe de um software complexo através do qual gere e controla uma organização produtiva que é sua, sendo ela quem recebe as solicitações de entrega por parte dos seus clientes e o distribui o trabalho de entrega conforme os seus critérios de gestão pelos estafetas.
21. Assim, podemos concluir com segurança que a infra-estrutura essencial da actividade aqui em causa é o software gerido pela Ré, sendo a propriedade do veículo, do telemóvel e da mochila térmica acessórias, na medida em que na mera posse destes instrumentos de trabalho a prestação dos estafetas seria inviável, sendo a própria aplicação o único meio de subsistência deste sistema de entregas e deste modelo de negócio.
22. Estão, assim, como vimos, preenchidos os factos índice da presunção enumerados nas alíneas a), b), c), d) e f) do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, pelo que podemos concluir que, no caso, operou a presunção de laboralidade plasmada naquele artigo ao contrário do que considerou a sentença recorrida que não considerou preenchido nenhuma item elencado nesta presunção de inocência.
23. Perante esta evidência cumpre aquilatar se a Ré ilidiu a presunção de laboralidade.
24. No nosso ponto de vista tal não acontece porque indícios como o horário, a exclusividade, a assiduidade, não se adequam a analisar o trabalho prestado no âmbito de uma plataforma digital.
25. Sintetizando, a Ré não se limita a ser um mero intermediário na prestação de serviços entre comerciantes e estafetas.
26. A Ré tem como fim a prestação de um serviço de recolha e entregas, que fixa o preço e as condições do pagamento do serviço, assim como as condições essências para a prestação do referido serviço.
27. Resulta ainda dos autos que o estafeta que não dispõe de uma organização empresarial própria e autónoma, prestando os seus serviços enxertados na organização de trabalho da Ré, submetidos à sua direcção e organização, como demonstra o modo como a Ré estabelece os preços dos serviços de entrega.
28. O estafeta não negoceia preços ou condições do serviço com os proprietários dos estabelecimentos onde efectua a recolha dos bens, nem recebe a retribuição dos clientes finais.
29. Em suma, concluímos que a prestação de trabalho do estafeta está sujeita a uma organização do trabalho determinada pela Ré, que estabeleceu meios de controle do processo produtivo em tempo real que operam sobre a actividade e não apenas sobre o resultado final, mediante a gestão algorítmica do serviço e a possibilidade de conhecer constantemente a geolocalização dos estafetas, o que evidência a ocorrência do requisito da dependência e subordinação jurídica própria da relação laboral
30. Assim, entendemos, com o devido respeito, que a decisão recorrida viola normas e princípios jurídicos que regem a matéria sub judice, designadamente o artigo 11.º e 12.º-A do Código do Trabalho.
31. Patente se torna a existência de um contrato de trabalho no âmbito da relação jurídica aqui em causa".
Contra-alegou a ré, sustentando a manutenção da sentença recorrida.
Admitido o recurso na 1.ª Instância e colhidos os vistos, cumpre apreciar o mérito do recurso, delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente e pelas questões de que se conhece ex officio. Assim, na apelação importa apurar se:
• presume-se laboral o contrato estabelecido entre o estafeta e a ré.
***
II - Fundamentos.
1. Factos julgados provados:
"1. A Ré explora uma plataforma digital de intermediação tecnológica que se encontra ligada 24 horas por dia e 365 dias por ano;
2. A R. tem como objecto social desenvolvimento e exploração de uma plataforma tecnológica, comércio a retalho por via electrónica, comércio não especializado de produtos alimentares e não alimentares, bebidas e tabaco e, de um modo geral, de todos os produtos de grande consumo, comercialização de medicamentos não sujeitos a receita médica, produtos de dermocosmética e de alimentos para animais, a importação de quaisquer produtos, o comércio de refeições prontas a levar para casa e a distribuição ao domicílio de produtos alimentares e não alimentares. Exploração, comercialização, prestação e desenvolvimento de todos os tipos de serviços complementares das actividades constantes do seu objecto social. Realização de actividades de formação, consultoria, assistência técnica, especialização e de pesquisa de mercado relacionadas com o objecto social. Qualquer outra actividade que esteja directa ou indirectamente relacionada com as actividades acima identificadas
3. A R. efectua a intermediação de três tipos de utilizadores da plataforma:
- 'Os estabelecimentos comerciais, sejam restaurantes ou outros estabelecimentos aderentes;
- Os estafetas; e
- Os utilizadores clientes'.
4. Para a execução das referidas actividades, a Ré explora uma plataforma tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes - através de uma aplicação móvel (App) ou através da Internet - actua como intermediária na entrega dos produtos encomendados;
5. A actividade desempenhada pelo estafeta consiste na recolha dos bens nos estabelecimentos aderentes (restaurantes, supermercados, lojas, etc.), transportando esses produtos até ao cliente.
6. A actividade da Ré inclui: - A intermediação dos processos de recolha nos estabelecimentos comerciais e o pagamento dos produtos encomendados através da plataforma; e - A intermediação entre a venda dos produtos e a respectiva recolha, transporte e entrega aos utilizadores que efectuaram as encomendas;
7. A Ré presta serviços de acesso e intermediação a diferentes tipos de utilizador da plataforma - serviços esses pelos quais a Ré recebe os pagamentos das diferentes taxas provenientes desses utilizadores, identificadas em baixo:
- Os estabelecimentos comerciais pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma (denominada 'Taxa de Parceria');
- Os utilizadores prestadores de serviços pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma (denominada 'Taxa de Plataforma');
- Os utilizadores clientes finais pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma (denominada 'Taxa de Serviço').
8. AA, natural da ..., NIF ..., Titular o Passaporte com o n.º L..., com residência na Rua..., titular do n.º de telefone ..., assinou um contrato designado 'contrato para a realização de actividade profissional como profissional liberal' com a Glovo no dia 11 de Abril de 2022.
9. AA realiza a referida actividade de estafeta, mediante pagamento, entregando refeições e outros produtos, conforme pedidos que lhe são disponibilizados e por este aceites através da plataforma GLOVOAPP, na qual se encontra registado e à qual acede através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone;
10. No dia 28.06.2023, pelas 11h00m, AA encontrava-se, junto à sua bicicleta, no lado nascente do Centro Comercial..., sito no ..., em ..., no exercício das referidas funções de estafeta, quando foi identificado por inspectores da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).
11. A GLOVOAPP tem um registo electrónico de adesão aos mesmos com data e hora;
12. O estafeta paga uma taxa quinzenal de €1,85 pela utilização da plataforma da R. como contrapartida do acesso aos outros utilizadores da plataforma, nomeadamente os clientes, estabelecimentos, acesso a cobertura de seguro durante as entregas, aquisição de material, gestão e intermediação no serviço de recolha e pagamentos, bem como o acesso a apoio a serviço de assistência da Glovo para problemas técnicos que possam advir;
13. O pagamento referido apenas será devido se nos últimos quinze dias o estafeta tiver realizado entregas;
14. O estafeta tem de esperar 10 minutos pelo cliente caso este não esteja na morada e caso não pretenda esperar os dez minutos de que o cliente dispõe para chegar pode recusar a entrega e não será pago por isso;
15. Para aceder aos pedidos que existem na plataforma GLOVOAPP, AA teve que se registar e criar uma conta completa naquela plataforma, a qual se comprometeu a manter actualizada e activa sendo que, uma vez activada a conta, é iniciada a actividade como estafeta e o início da sessão na plataforma é feito através das credenciais de identificação do estafeta o email e de uma palavra passe, sendo que, para receber os pedidos, coloca-se em estado de disponibilidade;
16. Para se poder registar e exercer a referida actividade de estafeta através da plataforma da Ré, o estafeta tinha que ter actividade iniciada na Administração Tributária, ter veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), possuir um telemóvel (smartphone) e uma mochila para transporte dos bens;
17. A manutenção e reparação do veículo, telemóvel e mochila que utiliza são suportados pelo estafeta;
18. Os prestadores de actividade registados na Plataforma decidem livremente o local onde prestam a sua actividade, ou seja, se prestam a sua actividade numa determinada zona da cidade ou até mesmo do país.
19. Podem inclusivamente bloquear comerciantes e/ou clientes com quem não desejam contactar.
20. A Plataforma não dá qualquer tipo de indicação aos prestadores de actividade sobre o local onde devem estar para receber propostas de entregas, podendo mudar de localidade quando entenderem, desde que previamente efectuem o registo de mudança de área na plataforma e o registo fique efectuado e processado por parte da Glovo;
21. O estafeta recebe os valores das entregas que efectuar, podendo aceitar mais ou menos entregas durante qualquer período de tempo;
22. O estafeta é livre para escolher o seu horário;
23. É livre para decidir quando se liga e desliga da Plataforma;
24. E durante quanto tempo permanece ligado;
25. Sendo ainda livre para rejeitar e aceitar a ofertas de entrega que entender;
26. Mesmo após aceitar a entrega pode cancela-la sem que exista qualquer consequência para si;
27. O que resulta na impossibilidade de a Ré saber quantos prestadores de actividade estarão com sessão iniciada na Plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as ofertas de entrega disponibilizadas.
28. O Prestador de Actividade pode passar, dias, semanas, meses sem se ligar à Plataforma, sem que daí resulte qualquer consequência para si.
29. E a sua conta continua activa;
30. Só quando o estafeta efectua o login na plataforma é que pode aceder às ofertas de entregas disponíveis;
31. A Ré contratou um seguro de responsabilidade para os estafetas durante os serviços de recolha e entrega, nomeadamente no caso de lesão permanente ou temporária durante e em óbito, com a Chubb European Group SE, sucursal em Espanha.';
32. Nos dados fornecidos pelo estafeta à R. está o início da actividade nas finanças, o ATCUD (código único de documento), regime de IVA e IRS, documento de identificação;
33. A plataforma transmite a encomenda dos artigos ao parceiro, através da sua interface da plataforma e o parceiro aceita ou rejeita a encomenda;
34. Caso seja aceite a encomenda, a plataforma, através da aplicação 'Glovo Couriers' oferece a um utilizador-estafeta o serviço de entrega associado ao referido pedido; caso o utilizador-cliente opte por recolher o pedido directamente junto do parceiro (take away), esta oferta não será efectuada ao estafeta;
35. Pelo menos a partir de Maio de 2023, o utilizador estafeta pode aceitar, não responder ou rejeitar o serviço proposto que, por sua vez, pode ter sido anteriormente rejeitado por outros utilizadores estafeta;
36. Após aceitar um serviço o utilizador estafeta pode ainda rejeitá-lo;
37. A aplicação apresenta aos referidos estafetas aquando da oferta de um serviço o preço do serviço, o mapa com os pontos de recolha e entrega assinalados e a rua da morada do ponto de recolha, sem o número da porta;
38. Quando os estafetas pretendem aceitar o serviço, após aceitação dos serviço na aplicação, esta apresenta ao estafeta o preço do serviço, um mapa com os pontos de recolha (morada do parceiro) e entrega (morada do utilizador cliente) assinalados, o nome e morada do parceiro (ponto de recolha), informações de contacto do parceiro (quando existam), estimativa do tempo de espera no parceiro, o nome e morada do utilizador-cliente (ponto de entrega), a distância estimada, os detalhes do pagamento, a lista dos artigos do pedido e o valor do mesmo;
39. Os estafetas escolhem o itinerário que vão utilizar para a realização do serviço, tanto desde o ponto onde efectuam a aceitação do serviço até ao ponto de recolha, como desde o ponto de recolha até ao ponto de entrega, pois a aplicação da R. exibe um mapa com ambos os pontos assinalados e morada de cada ponto, sem apresentar qualquer itinerário ou rota proposto;
40. No decurso do serviço de entrega a aplicação, quando ligada, solicita aos estafetas que os mesmos assinalem a conclusão das seguintes actividades: chegada à morada do parceiro ponto de recolha), recolha dos artigos no parceiro, chegada à morada do utilizador cliente ponto de entrega); entrega dos artigos ao utilizador-cliente e conclusão do serviço, mas quando os estafetas não assinalam na aplicação a conclusão dessas actividades, não comprometem a execução do serviço, apenas recebendo o preço do serviço e ficando disponíveis para aceitar novos serviços quando comunicam a última das actividades que é a conclusão do serviço;
41. A aplicação indica a necessidade de ter acesso à geolocalização dos estafetas enquanto estes se encontram on-line a aguardar por uma oferta de serviço, a partir da aceitação do serviço os estafetas podem permitir ou não que a plataforma tenha acesso á sua localização sem que isso tenha impacto na realização do serviço ou leve a alguma penalização;
42. Os estafetas após aceitarem o serviço na aplicação podem escolher o meio de transporte utilizado, definir o percurso a seguir e podem desligar a geolocalização do telemóvel;
43. Após entregar as encomendas e caso os clientes tenham optado pelo pagamento em dinheiro, os estafetas têm de receber destes o pagamento do pedido em dinheiro, ficando com a obrigação de proceder ao depósito da quantia cobrada na conta determinada pela plataforma, a favor da R.;
44. Os estafetas podem aceitar ou recusar qualquer serviço através da aplicação, mesmo depois de terem inicialmente aceitado esse serviço, sem que tal afecte o estatuto da sua conta na aplicação, a apresentação de futuros serviços e o preço de tais serviços futuros.
45. Quando os estafetas rejeitam o serviço proposto, após a rejeição desse serviço na aplicação é apresentada uma interface de confirmação da rejeição para evitar rejeições acidentais, não havendo qualquer penalização pela rejeição de serviços propostos.
46. O preço base do serviço que é apresentado aos estafetas é calculado pela plataforma de acordo com um valor base, compensação pela distância e compensação pelo tempo de espera consumido na realização desse serviço; sobre o preço base podem incidir promoções da aplicação.
47. Os estafetas podem seleccionar e alterar um 'multiplicador', uma vez por dia, para valores iguais ou superiores a 1.0, o que permite aumentar o valor total recebido por cada serviço;
48. Adicionalmente, os estafetas podem receber gratificações dos clientes.
49. Os estafetas são remunerados por cada serviço e depois de os terem realizado, independentemente do tempo que tenham estado previamente on-line na aplicação, nem recebem qualquer valor pela espera entre a conclusão de uma entrega e a aceitação de novo pedido;
50. A ré paga, quinzenalmente, através de transferência bancária, directamente aos estafetas os valores correspondentes às entregas efectuadas e processa os pagamentos a efectuar, mediante a emissão de uma factura em nome da ré e que tem por emissor os prestadores de actividade (estafetas).
51. Por autorização dos estafetas, mediante adesão no Portal das Finanças, os recibos emitidos são registados no Portal das Finanças pela R.;
52. Nos Termos e condições de utilização da plataforma GLOVO para estafetas', estão previstas várias situações que podem determinar a desactivação temporária ou permanente da conta do prestador de actividade, designadamente as enumeradas no ponto 5.2., de onde se destacam as possibilidades de tal acontecer se o estafeta: utilizar a Plataforma para insultar, ofender, ameaçar e/ou agredir Terceiros, nomeadamente, Utilizadores Cliente, Estabelecimentos Comerciais, outros Estafetas e pessoal da GLOVO; violar a lei ou quaisquer outras disposições dos Termos e Condições Gerais ou outras políticas da GLOVO; participar em actos ou conduta violentos; e violar os seus direitos na aplicação da GLOVO, causando danos materiais e/ou imateriais a outro Utilizador da plataforma (Estafetas, Utilizadores Cliente e/ou Estabelecimentos Comerciais).
53. Tal como resulta do ponto 5.4.2. dos referidos 'Termos e condições de utilização da plataforma GLOVO para estafetas', 'A GLOVO pode, mas não é obrigada, a monitorizar, rever e/ou editar a sua Conta. A GLOVO reserva-se o direito de, em qualquer caso, eliminar ou desactivar o acesso a qualquer Conta por qualquer motivo ou sem motivo, até mesmo se considerar, a seu critério exclusivo, que a sua Conta viola os direitos de terceiros ou direitos protegidos pelos Termos e Condições'.
54. A ré pode, igualmente, desactivar a conta de comerciantes e de clientes em caso de violação de lei ou de fraude.
55. Desde Maio de 2023 os utilizadores clientes finais são convidados a avaliar a forma como o estafeta realizou o seu trabalho e a plataforma toma-a visível apenas para o estafeta, da mesma forma que os clientes são convidados a avaliar os comerciantes que vendem os seus produtos, sem que tal seja usado para avaliar a qualidade da actividade ou a forma como é executada e sem influenciar a oferta de novos pedidos o que é designado de sistema de reputação;
56. Os estafetas escolhem os dias e horas em que pretendem ligar-se à aplicação da ré.;
57. Os estafetas podem subcontratar noutro prestador de serviços de entrega
58. Antes de iniciar a sua ligação à aplicação da ré e caso pretendam usar veículos a motor, os estafetas devem declarar dispor de carta de condução e seguro de responsabilidade civil do veículo usado.
59. Os estafetas podem receber e aceitar ofertas de serviços de entrega em diferentes localizações dentro da zona geográfica que escolhem.
60. Os estafetas são responsáveis pela perda ou danificação dos produtos que transportam.
61. Os estafetas não são obrigados a utilizar uniforme identificativo da Ré, podendo, como qualquer outra pessoa, comprar merchandising da Ré (incluindo a mochila isotérmica para transporte de comida) na loja on-line desta.
62. A ré não controla nem limita que os estafetas prestem a mesma actividade para plataformas concorrentes nem controla nem limita que os mesmos prestem outras actividades.
63. Quando o estafeta chega ao local e o cliente não se encontra no mesmo entra em contacto com o cliente e depois informa a Glovo desse facto enquanto aguarda dez minutos;
64. Se volvidos os dez minutos o cliente não chega o estafeta é pago pelo serviço efectuado excepto se o mesmo fosse pago em dinheiro pelo cliente, circunstância em que não recebem pelo serviço por o cliente não ter atendido".
2. O direito.
Como se vê das conclusões que retirou da motivação do recurso, o apelante pretende que a relação jurídica estabelecida entre o estafeta e a ré deve ser enquadrada no âmbito de uma relação jus-laboral, presumida em razão dos factos provados e do estatuído pelo n.º 1 do art.º 12.º-A do Código do Trabalho, norma essa que reza assim:
"1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de actividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das seguintes características:
a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efectuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;
b) A plataforma digital exerce o poder de direcção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de actividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da actividade;
c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da actividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da actividade prestada, nomeadamente através de meios electrónicos ou de gestão algorítmica;
d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de actividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar actividade a terceiros via plataforma;
e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de actividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras actividades na plataforma através de desactivação da conta;
f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.
2 - Para efeitos do número anterior, entende-se por plataforma digital a pessoa colectiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios electrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios.
3 - O disposto no n.º 1 aplica-se independentemente da denominação que as partes tenham atribuído ao respectivo vínculo jurídico.
4 - A presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de actividade trabalha com efectiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direcção e poder disciplinar de quem o contrata.
(…)".
Todavia, considerando que a controvertida relação jurídica se estabeleceu entre as partes no dia 11-04-2022 (facto provado n.º 8) e que "a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça está consolidada de forma uniforme no sentido de que estando em causa a qualificação de uma relação jurídica estabelecida entre as partes, antes da entrada em vigor das alterações legislativas que estabeleceram o regime da presunção de laboralidade, e não se extraindo da matéria de facto provada que tenha ocorrido uma mudança na configuração dessa relação, há que aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes",1 as normas qualificativas relevantes são, e apenas, as antes constantes do Código do Trabalho, a saber:
"11.º
Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.
12.º
1 - Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma actividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:
a) A actividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;
b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da actividade;
c) O prestador de actividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;
d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de actividade, como contrapartida da mesma;
e) O prestador de actividade desempenhe funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da empresa".
Em todo o caso, como de resto tem sido regularmente referido, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, ainda que o autor logre demonstrar, como lhe compete à luz do art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil, a existência de dois ou mais factos indiciários de laboralidade na relação controvertida, sempre estes deverão ser sopesados globalmente com os demais provados relevantes para a caracterização da natureza da relação jurídica estabelecida pelas partes e desse modo se concluir que é de trabalho ou de prestação de serviços (neste sentido, Monteiro Fernandes, in Direito do Trabalho, 13.ª Edição, Almedina, Coimbra, página 148 e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-01-2025, no processo n.º 751/21.6T8CSC.L1.S1 e da Relação de Lisboa, 18-12-2019, no processo n.º 15568/18.7T8LSB.L1-4, ambos publicados em http://www.dgsi.pt).
Posto isto, vejamos então como resolver a contenda trazida a esta Relação de Lisboa, no que em qualquer caso se seguirá o trajecto desenrolado pelo apelante na medida em que, não valendo todos os factos como indiciários na lei aplicável, podem todavia relevar para caracterizar a subordinação jurídica do estafeta.
Argumenta desde logo que:
"3. (…) a Glovoapp opera e gere uma plataforma electrónica que dispõe de um software complexo através do qual gere e controla uma organização produtiva.
4. Assim, podemos concluir que infra-estrutura essencial da actividade aqui em causa é o software gerido pela Ré, sendo a propriedade do veículo, do telemóvel e da mochila térmica acessórias, na medida em que na mera posse destes instrumentos de trabalho a prestação dos estafetas seria inviável, sendo a própria aplicação o único meio de subsistência deste sistema de entregas e deste modelo de negócio".
Ora, a este propósito também se provou que:
"4. Para a execução das referidas actividades, a Ré explora uma plataforma tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes - através de uma aplicação móvel (App) ou através da Internet - actua como intermediária na entrega dos produtos encomendados;
5. A actividade desempenhada pelo estafeta consiste na recolha dos bens nos estabelecimentos aderentes (restaurantes, supermercados, lojas, etc.), transportando esses produtos até ao cliente.
6. A actividade da Ré inclui: - A intermediação dos processos de recolha nos estabelecimentos comerciais e o pagamento dos produtos encomendados através da plataforma; e - A intermediação entre a venda dos produtos e a respectiva recolha, transporte e entrega aos utilizadores que efectuaram as encomendas;
7. A Ré presta serviços de acesso e intermediação a diferentes tipos de utilizador da plataforma - serviços esses pelos quais a Ré recebe os pagamentos das diferentes taxas provenientes desses utilizadores, identificadas em baixo:
- Os estabelecimentos comerciais pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma (denominada 'Taxa de Parceria');
- Os utilizadores prestadores de serviços pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma (denominada 'Taxa de Plataforma');
- Os utilizadores clientes finais pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma (denominada 'Taxa de Serviço').
(…)
15. Para aceder aos pedidos que existem na plataforma GLOVOAPP, AA teve que se registar e criar uma conta completa naquela plataforma, a qual se comprometeu a manter actualizada e activa sendo que, uma vez activada a conta, é iniciada a actividade como estafeta e o início da sessão na plataforma é feito através das credenciais de identificação do estafeta o email e de uma palavra passe, sendo que, para receber os pedidos, coloca-se em estado de disponibilidade;
16. Para se poder registar e exercer a referida actividade de estafeta através da plataforma da Ré, o estafeta tinha que ter actividade iniciada na Administração Tributária, ter veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), possuir um telemóvel (smartphone) e uma mochila para transporte dos bens;
17. A manutenção e reparação do veículo, telemóvel e mochila que utiliza são suportados pelo estafeta".
Temos pois, como apodíctico que a plataforma tecnológica é fundamental na triangulação da prestação de serviços visto que é através dela que os comerciantes e seus clientes contactam entre si e com o estafeta que encaminha para aqueles os produtos eles vendidos, sendo também através dela que os comerciantes, a ré e o estafeta comunicam entre si.
Todavia, a verdade é que caso o estafeta não dispusesse de telemóvel não podia sequer inscrever-se na plataforma, o mesmo ocorrendo caso não tivesse veículo próprio e uma mochila para transporte dos bens a entregar aos clientes finais, razão por que se não pode dizer que estes são meramente acessórios da actividade do estafeta e só a plataforma é essencial. Com efeito, "acessório" adjectiva o que é "não fundamental2 ou "que se pode dispensar",3 mas no caso sub iudicio vimos que todos aqueles instrumentos são fundamentais e não podiam ser dispensados para o exercício da actividade do estafeta, a pontos de nem tampouco ser possível inscrever-se na plataforma da apelada. Ou seja, ao contrário do pretendido pelo apelante a plataforma não é o único instrumento necessário para viabilizar a actividade de entregas, pois que sem os demais a mesma também não poderia ser realizada. É certo, por exemplo, que o estafeta sempre poderá caminhar ao invés de usar qualquer daqueles veículos ou transportar em mão os artigos a entregar e não na mochila térmica, mas a verdade é que se não poderia inscrever na plataforma para o fazer porquanto tal lhe era exigido, ficando assim evidente a essencialidade desses instrumentos; e todos eles instrumentos são propriedade do estafeta e não da apelada, pelo que cai pela base a convocada relevância da titularidade da plataforma, essa sim, ser da apelada. Por fim, dir-se-á que se não pode confundir o custo económico de cada um desses instrumentos (que no caso será manifestamente diferenciado) com a sua caracterização como essenciais ou acessórios na economia da actividade em apreço.
Por outro lado, conclui o apelante que "5. O poder de direcção e de conformação do modo como é prestada a actividade: também resulta verificado dado que a Ré através da sua aplicação informática, organiza e gere a actividade de recolha, transporte e entrega de mercadorias", porquanto, acrescenta, "6. Encontrando-se este procedimento perfeitamente padronizado visto que decorrerá da mesma forma, independentemente do ponto geográfico onde é prestado e da concreta pessoa do estafeta, que se limitará a seguir todo o esquema previamente definido pela Ré".
Admite-se, sem qualquer rebuço, que assim seja: mas que prova isso? O que não falta são organizações padronizadas a produzirem e prestarem serviços a terceiros sem que daí resultem relações laborais entre os seus intervenientes. Pense-se, por exemplo, na actividade de organização da contabilidade privada, que mais padronizada não poderia ser e em que amiúde é prestada por pessoas singulares a empresas sem que exista qualquer vínculo laboral entre elas, no que até pode ser utilizado software propriedade dos clientes (e até mesmo o local da prestação do serviço).
Por outro lado, por mais que se torturem as palavras, o certo é que a expressão "A plataforma digital exerce o poder de direcção" não poderia de modo algum deixar de significar que seria essa plataforma que dirigiria, comandaria ou ordenaria como, quando e o modo como o estafeta procederia às entregas aos clientes finais / consumidores dos produtos disponibilizados ao público pelos comerciantes, sob pena de perderem o seu sentido mais básico; isso significa precisamente a faculdade de alguém dirigir, comandar ou determinar o comportamento de outrem, de modo a que este lhe deve obediência. Todavia, no caso sub iudicio nada disso se passava, como se pode comprovar a partir dos factos provados 18 a 30, 35 a 39, 42, 44 a 47, 56, 57 e 62.
Com efeito, se o estafeta decidia livremente o local onde prestar a sua actividade, podendo mesmo mudar livremente de localidade; podia escolher os serviços que prestava, já que podia livremente bloquear comerciantes e clientes e aceitar ou rejeitar mais ou menos entregas durante qualquer período de tempo, e mesmo após aceitar a entrega podia cancelá-la sem que existisse qualquer consequência para si; também era livre para escolher os dias e horas em que pretendia ligar-se e o horário em que o fazia, quando se ligava e desligava da Plataforma e durante quanto tempo permanecia ligado; escolhia o itinerário que ia utilizar para realizar as entregas e podia desligar a geolocalização do telemóvel pelo que não podia ser por ela rastreado; podia seleccionar e alterar um 'multiplicador', uma vez por dia, para valores iguais ou superiores a 1.0, o que permitia aumentar o valor total recebido por cada serviço; podia subcontratar noutro prestador de serviços de entrega; e, por fim, podia sem qualquer controlo da apelada prestar a mesma actividade para plataformas concorrentes e até mesmo prestar outras actividades, a racionalidade impõe concluir que tudo isto colide com a natureza intuitu personae característica do contrato de trabalho e manifesta com toda a evidência a natureza livre de qualquer subordinação jurídica em que decorria a prestação de actividade do estafeta.
Repare-se até no contraponto de tudo isto com os mais significativos deveres laborais instituídos no art.º 128.º do Código do Trabalho: era inexistente o dever de comparecer ao serviço com assiduidade e pontualidade (pelo contrário, desde logo era livre de se ligar ou não à plataforma e, na afirmativa, quando quisesse); de o realizar com zelo e diligência (podia escolher os serviços a realizar e os itinerários a observar); não cumpria ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho (antes podia escolher fazer, quando e como); nem estava adstrito a guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele (pelo contrário, podia livremente prestar o mesmo tipo de serviço a outras plataformas ou até mesmo prestar outras actividades).
Argumenta o apelante com "7. O exercício do poder sancionatório: também resulta verificado, entre outros motivos pelo facto da plataforma pode restringir o acesso à aplicação, ou mesmo desactivar a conta em definitivo, no caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo estafeta"; mas isso é o que normalmente ocorre na economia de qualquer contrato em razão da regra pacta sunt servanda acolhida no art.º 406.º n.º 1 do Código Civil: devendo os contratos ser cumpridos nos termos em que foram celebrados, nada obsta a que as partes convencionem a sua imediata resolução como consequência para o incumprimento da outra (neste sentido, vd. o acórdão da Relação de Lisboa, de 24-02-2022, no processo n.º 2108/20.7T8OER.L1-2, publicado em http://www.dgsi.pt, assim sumariado na parte relevante: "A resolução do contrato por uma das partes não é livre, antes tem de ser fundamentada, exigindo uma situação de incumprimento da parte contrária que seja de tal modo grave que determina uma ruptura contratual. A mesma tem de ter na sua origem factos que se integrem na convenção das partes que contemple a possibilidade de resolução do contrato, ou na lei, designadamente que caibam na previsão do art.º 801.º e 802.º do C. Civil, factos que, pela sua importância ou gravidade, justificam que, unilateralmente, uma das partes ponha fim ao contrato"). Isso nada tem que ver, portanto, com o poder do empregador sancionar o trabalhador juridicamente subordinado por ter cometido uma qualquer infracção disciplinar. De resto, as partes acordaram que a apelante até o poderia fazer mesmo numa situação de cumprimento por parte do estafeta (cfr. facto provado 53), o que desliga essa faculdade da pressuposta violação contratual.
É igualmente descartável o argumento do apelante de que "8. O modo de cálculo da retribuição: que também indica subordinação, visto que é a Ré quem determina as regras essenciais de fixação da retribuição, sendo possível concluir que a plataforma fixa, unilateralmente, o valor dos montantes a pagar ao estafeta para as entregas que efectua por entrega, sem qualquer negociação", pois que, como se viu, não era bem assim que as coisas se passavam, já que se é verdade que "o preço base do serviço que é apresentado aos estafetas é calculado pela plataforma de acordo com um valor base, compensação pela distância e compensação pelo tempo de espera consumido na realização desse serviço; sobre o preço base podem incidir promoções da aplicação" (facto provado n.º 46), também é sabido que "os estafetas podem seleccionar e alterar um 'multiplicador', uma vez por dia, para valores iguais ou superiores a 1.0, o que permite aumentar o valor total recebido por cada serviço" (facto provado n.º 47.).
E o mesmo se dirá quanto á forma de apresentação do estafeta, pois o que se provou foi o oposto da conclusão do apelante: "os estafetas não são obrigados a utilizar uniforme identificativo da Ré, podendo, como qualquer outra pessoa, comprar merchandising da Ré (incluindo a mochila isotérmica para transporte de comida) na loja on-line desta" (facto provado n.º 61), não se vendo aí resquício sequer do poder de direcção da apelada sobre o estafeta.
É certo que a apelada estabeleceu algumas regras a observar pelo estafeta na utilização da plataforma (inter alia, o facto provado n.º 52), mas é manifestamente deslocada a conclusão do apelante de que daí se infere uma qualquer manifestação do seu poder de direcção sobre o estafeta: trata-se e apenas de impedir que este pudesse utilizar a plataforma para a prática de actos lesivos daquela e até mesmo, em alguns casos, de índole criminal, pelo que se tal não tivesse aí sido previsto não deixariam de relevar na mesma medida.
Também não colhe a conclusão do apelante de que "17. c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da actividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da actividade prestada, nomeadamente através de meios electrónicos ou de gestão algorítmica: também resulta provado visto que para lhe ser atribuído um pedido, por banda da Ré, o estafeta tem que estar ligado na plataforma da Ré e para terminar tem que concluir o procedimento, nessa mesma plataforma, pelo que é manifesto que a Ré consegue controlar e supervisionar a prestação da actividade e a sua execução", pois a realidade anda bem distante dessa afirmação, pois que se é verdade que "a aplicação indica a necessidade de ter acesso à geolocalização dos estafetas enquanto estes se encontram on-line a aguardar por uma oferta de serviço", também é certo que "a partir da aceitação do serviço os estafetas podem permitir ou não que a plataforma tenha acesso á sua localização sem que isso tenha impacto na realização do serviço ou leve a alguma penalização" (facto provado n.º 41.); ou seja, a necessidade do estafeta se ligar à plataforma existe, mas é completamente alheia a qualquer poder laboral da apelante, tendo e apenas a ver com a possibilidade prática da prestação ser efectivada (em toda a linha das diversas relações integrantes do circuito, desde a encomenda pelo consumidor final até à entrega pelo estafeta).
Dir-se-á, por fim, que se não acompanha a leitura do apelante relativamente à invocada circunstância de "20. f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação: resulta dos factos provados que a Glovo opera e gere uma plataforma electrónica que dispõe de um software complexo através do qual gere e controla uma organização produtiva que é sua, sendo ela quem recebe as solicitações de entrega por parte dos seus clientes e o distribui o trabalho de entrega conforme os seus critérios de gestão pelos estafetas", pois que se é verdade que a apelada opera e gere a plataforma electrónica, também se viu atrás que os demais instrumentos utilizados na prestação do serviço (carro ou trotinete/bicicleta, telemóvel / smartphone e uma mochila para transporte dos bens) não lhe pertencem mas ao estafeta (facto provado n.º 16); e estes, repete-se, são igualmente necessários para a prestação do estafeta.
Assim, feita uma leitura global da relação estabelecida entre a apelada e o estafeta, fica claro que o contrato estabelecido entre ambos não é de trabalho, mas sim de prestação de serviços, pois que nenhuma subordinação jurídica havia entre ambos que sustentasse o contrário; e porque assim é, bem andou a Mm.ª Juiz a quo ao julgar a acção improcedente, o que agora se confirma.
***
III - Decisão.
Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
Sem custas, pois que delas está o apelante isento (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil e 4.º, n.º 1, alínea a) do Regulamento das Custas Processuais).
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Lisboa, 12-02-2025.
Alves Duarte
Sérgio Almeida
Susana Silveira
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1. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04-07-2018, no processo n.º 1272/16.4T8SNT.L1.S1, publicado em http://www.dgsi.pt.
2. Vd. https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/acess%C3%B3rios.
3. Cfr. https://dicionario.priberam.org/acess%C3%B3rio.