Não admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça acórdão da Relação proferido em recurso que revoga a suspensão da execução da pena de prisão decretada em 1.ª instância.
Reclamação – artigo 405.º do CPP
I - Relatório
O arguido AA foi condenado em 1.ª instância pela prática, como autor material, de um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pela conjugação dos artigos 131. °, n.º 1 e 22. ° e 23. °, todos do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período com sujeição a regime de prova.
Foi ainda condenado a pagar ao assistente/demandante BB pelos danos sofridos, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 10.000,00.
Não se conformando, o Ministério Público, o arguido e o assistente recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 23 de outubro de 2024, concedeu parcial provimento aos recursos do Ministério Público e do assistente, alterando a condenação do arguido fixando a pena aplicada em 4 anos de prisão, não suspensa não sua execução, mantendo, no mais, a decisão recorrida.
Inconformado, o arguido AA interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Recurso que não foi admitido por despacho de 12 de dezembro de 2024, com fundamento no artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal e de acordo com os fundamentos do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 14/2013.
O recorrente apresentou reclamação do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 405.º do CPP, invocando, em síntese, que o disposto na alínea e), do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, ao vedar o segundo grau de recurso quando o Tribunal da Relação, revoga a pena suspensa aplicada em 1.ª instância, aplicando pena de prisão inferior a 5 anos, viola o disposto no artigo 32º, n.º 1, parte final da CRP, porquanto estar-se-á a negar o exercício do primeiro grau de recurso sobre uma decisão totalmente inovadora.
Deduz a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 400º, n.º 1, al. e) do CPP, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, parte final, da CRP, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de 1.ª instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade.
1. No que é relevante, para o conhecimento da reclamação, o arguido foi condenado em 1.ª instância, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, pela prática do crime de homicídio na forma tentada acima referido.
Em recurso, o Tribunal da Relação agravou a pena que fixou em 4 anos de prisão e revogou a decisão recorrida na parte em que suspendeu a execução da pena, condenando o arguido na pena de 4 anos de prisão efetiva.
2. O critério de admissibilidade do recurso para o STJ reporta-se à pena concretamente aplicada, ou seja, à pena em que a arguido foi condenada na decisão recorrida.
A recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões penais está prevista, específica e autonomamente, no artigo 432.º do CPP, dispondo a alínea b) do n.º 1 que se recorre “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.
Deste preceito destaca-se a alínea e) do n.º 1 que consagra a irrecorribilidade dos “acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1ª instância”.
No caso, não se verifica a exceção prevista na parte final do preceito transcrito. O arguido foi condenado em 1ª instância. O acórdão recorrido agravou a pena e revogou a sua suspensão.
Assim sendo, tendo em conta que o arguido foi condenado em pena não superior a 5 anos de prisão, o recurso é inadmissível, ao abrigo das referidas disposições legais.
4. Por sua vez, o n.º 1 do artigo 32.º da CRP inscreve o direito ao recurso como uma garantia de defesa do processo criminal, impondo que seja assegurado ao arguido o direito ao reexame por uma instância superior qualquer decisão judicial contra ele proferida no processo penal.
O arguido recorreu pugnando que a sua conduta:
“- seja considerada enquadrada no artigo 32º do Código Penal – legitima defesa - e sequencialmente, extinguir-se a sua responsabilidade criminal, absolvendo-o;
- No limite, enquadrar a sua conduta à luz do artigo 33º do Código Penal – excesso de legitima
defesa – e consequentemente, atenuar a culpa do arguido, reencontrando-se a pena concretamente
aplicável, com vista à sua diminuição”.
O Ministério Público e o assistente também recorreram, peticionando, além do mais, que fosse determinada a não suspensão da pena de prisão aplicada.
O arguido teve oportunidade de responder aos recursos contra si interpostos, mas não o fez.
Teve, pois, possibilidade de se defender. Com o que ficou assegurado no processo o seu direito constitucional e legal de defesa incluindo o direito de recurso.
5. Incidindo sobre idêntica questão, o Tribunal Constitucional, na decisão sumária n.º 375/2019, confirmada pelo referido acórdão n.º 104/2020, motivando o julgamento da não inconstitucionalidade, expendeu: “no caso de recurso de decisão de primeira instância condenatória, que tenha aplicado pena não privativa da liberdade e em que o recorrente Ministério Público e/ou Assistente pugnem perante a Relação pelo agravamento daquela, o objeto do recurso encontra-se perfeitamente delimitado, balizando-se a possível decisão do mesmo dentro de apertados limites: (…).
Nestes casos, existe uma efetiva reapreciação do segmento da decisão condenatória relativo às consequências do crime, cujos termos, âmbito e consequências, são perfeitamente antecipáveis pelo arguido. O objeto do recurso e os assinalados limites intrínsecos e extrínsecos à decisão a tomar pelo tribunal superior no julgamento daquele, permitem concluir que a faculdade de responder ao recurso, prevista no artigo 413.º do Código de Processo Penal, assegura um efetivo exercício do direito de defesa, permitindo ao arguido expor perante o tribunal superior os motivos – de facto ou de direito – que sustentam a posição jurídico-processual da defesa, em termos idóneos a persuadir o julgador da sua justeza e a influenciar o curso do seu processo decisório.”
Reafirma-se na decisão em citação “que o respeito pelo direito ao recurso não significa que o legislador esteja constitucionalmente vinculado a assegurar a impugnabilidade pelo arguido de todas as decisões condenatórias proferidas em recurso, mesmo quando imponham reação sancionatória privativa da liberdade e imediatamente exequível. Constitui entendimento consolidado do Tribunal que o direito ao recurso, assegurado pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, não garante ao arguido um segundo grau de recurso em matéria penal, assistindo ao legislador democrático margem de liberdade na modelação do acesso por via de recurso ao tribunal judicial supremo, enquanto via de prossecução de outros direitos e interesses constitucionalmente tutelados, como sucede com a própria eficácia do sistema penal, que tem como condição a emissão de um julgamento final e definitivo em tempo razoável”.
Concluindo-se: “é certo que o julgamento do recurso comportou um agravamento da posição processual do arguido relativamente ao antes decidido, mas daí não decorre uma situação de indefesa do sujeito processual, constitucionalmente proibida. No âmbito do recurso da decisão condenatória proferida em 1.ª instância, ciente da pretensão de modificação da reação penal e da natureza fundamentalmente substitutiva do julgamento proferido pela 2.ª instância, pôde o arguido, para além de refutar os argumentos do recorrente, perspetivar as eventuais consequências sancionatórias - à semelhança com o que acontece frequentemente no momento da apresentação na 1.ª instância da contestação e rol de testemunhas (artigo 315.º do CPP), ou nas alegações orais proferidas em audiência de julgamento (artigo 360.º do CPP) - e desse modo influenciar decisivamente o julgamento do recurso.
No quadro em presença, a limitação das garantias de defesa, na dimensão do exercício do direito ao recurso e do acesso a um terceiro grau de jurisdição, não se mostra desrazoável ou desproporcionada, em atenção ao interesse público relevante prosseguido pelo legislador democraticamente legitimado, impondo-se afastar a violação do artigo 32.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição, ou outros parâmetros de constitucionalidade”.
Decisão em linha com a jurisprudência daquele Tribunal.
Incidindo sobre a aplicação do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, a caso como o dos autos, no acórdão n.º 101/2018, de 21 de fevereiro, decidiu “não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, interpretado no sentido de ser irrecorrível o acórdão proferido, em recurso, pelo Tribunal da Relação que aplique pena privativa da liberdade não superior a cinco anos, revogando a suspensão da execução de pena de prisão decretada pelo tribunal de primeira instância.”
6. Pelo exposto, indefere-se a reclamação deduzida pelo arguido AA.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.
Notifique-se.
O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Nuno Gonçalves