Não admite recurso ordinário para o STJ despacho que indeferiu a arguição de irregularidades atribuídas a despachos proferidos depois da decisão final do processo de extradição.
Reclamação - artigo 405.º do CPP
I - Relatório:
O extraditando AA interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do despacho proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de fevereiro de 2025 que se passa a reproduzir: ------
“Requerimento com a ref.ª ....69: vem o extraditando arguir a irregularidade dos despachos proferidos em 29/01/2025, 04/02/2025, por considerar que os presentes autos se encontram suspensos por decisão do Supremo Tribunal de Justiça, em face do recurso da decisão que não admitiu a reclamação do indeferimento do recurso apresentado em 2/10/2024.
Não assiste razão ao extraditando, uma vez que se esquece que existe nos autos uma decisão do
Supremo Tribunal de Justiça, transitada em julgado, posterior a estes factos que decidiu a extradição do mesmo e a sua entrega à República da Argentina.
Esta decisão, analisando todo o processado, incluindo o referido pelo extraditando, entendeu que nada obstava à extradição e entrega do mesmo ao Estado requerente.
É essa decisão, já transitada em julgado, que este Tribunal da Relação visa concretizar com a prolação de todos os despachos posteriores, pelo que nenhuma irregularidade foi praticada com a sua prolação.
Relativamente ao requerido pedido de Asilo, como já decidido em 17/01/2025, o mesmo não tem o efeito de suspender a entrega uma vez que já não estamos na fase de decidir da Extradição, mas da entrega efetiva, pelo que qualquer pedido de asilo não pode obstar ao cumprimento de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça já transitada em julgado e anterior ao referido pedido.
Quanto ao prazo dado para o extraditando se pronunciar sobre o alargamento do prazo de entrega, o mesmo é um prazo urgente e especial ao qual não se aplica as regras da presunção invocadas.
Aliás, no mesmo dia do presente requerimento, poderia o mesmo, querendo se pronunciar o que manifestamente não fez, uma vez que a sua intenção não é discutir o seu mérito, mas apenas arranjar expedientes dilatórios para obstar ao cumprimento de uma decisão já transitada em julgado do Supremo Tribunal de Justiça.
Por todo o exposto, indefere-se liminarmente as requeridas irregularidades, prosseguindo os autos os seus termos normais com a entrega do extraditando nos termos já definidos.
Notifique.
Dê conhecimento.”
Recurso que não foi admitido por despacho de 10 de fevereiro de 2025 com o seguinte teor: “Dispõe o art.º 49.º, n.º 3 da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto que, no processo de extradição, só cabe recurso da decisão final.
Pelo exposto, nos termos do artigo 414.º, n.º 2 do Cód. Processo Penal não admito o recurso para o STJ da decisão de 07/02/2024 que indeferiu as irregularidades arguidas, por irrecorrível.”
O recorrente reclama da não admissão do recurso, nos termos do artigo 405.º do CPP, onde além de relatar as ocorrências do processo, invoca que no caso em apreço, está em causa despacho proferido após a decisão final, a que se refere o artigo 49.º, n.º 3, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, para depois mencionar os artigos 20.º, n.º 4, 2.º e 32.º, n.º 1, da CRP.
Mais refere, que as nulidades e irregularidades têm influência direta no processo, pelo que, impedir o recurso de decisões sobre essa matéria é de forma clara permitir que no decurso do processo possam ser cometidas todas as arbitrariedades, tendo suscitado o vicio de forma atempada, para depois apelar ao artigo 32.º, n.º 1, da CRP, que consagra, expressamente, o direito ao recurso.
Deduz a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 3, do artigo 49.º, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto (seguramente da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto), interpretada no sentido segundo o qual "não é admissível recurso das decisões proferidas pelo Tribunal da Relação posteriores à decisão final de extradição, na parte em que indeferiu nulidades ou irregularidades praticadas”, ou no sentido “ após ter sido proferida decisão final de extradição pelo Tribunal da Relação, não é possível recorrer do despacho que indeferiu as nulidades e irregularidades suscitadas pelo Extraditando, de despachos proferidos após a referida decisão”, por violação dos artigos 2.º, 18.º, 20.º, 29.º, 32.º da Constituição da República Portuguesa, bem como dos artigo 6.º e 13.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
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II - Fundamentação:
1. Face ao teor da reclamação apresentada impõe-se esclarecer que no âmbito da apreciação da reclamação contra despacho que não admite o recurso, nos termos do artigo 405.º do CPP, a competência do Presidente do Supremo Tribunal, limita-se à questão da não admissão ou retenção do recurso.
2. O despacho recorrido apreciou e decidiu incidente em que o extraditando arguiu irregularidades que imputava a despachos posteriores à decisão de entrega, não é, evidentemente, a decisão judicial final do processo de extradição. A decisão final, como notado no despacho reclamado, foi o acórdão que decretou a extradição.
Estatuindo a Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, no seu art.º 49.º, n.º 3 que somente cabe recurso da decisão final proferida no processo de extradição e entendendo-se que além dessa apenas admite recurso a decisão que aplica ao extraditando a detenção ou medidas de coação privativas da liberdade, logo se tem de concluir que o despacho que o reclamante pretende impugnar mediante recurso, mão admite recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, tal como bem foi decidido.
Com efeito, o despacho em causa é ulterior à decisão final, como aliás o reclamante reconhece.
Irrecorribilidade que o reclamante deixa implícita porque não ignorará que se o despacho de que ora pretende recorrer admitisse recurso ordinário haveria de ter recorrido logo, respeitando o disposto no art.º 379.º n.º 2 do CPP, em vez de arguir irregularidades como fez para somente depois recorrer do despacho que indeferiu essas arguições.
3. O reclamante deduz a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 3, do artigo 49.º, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto (seguramente da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto), interpretada nos sentidos supra referidos, por violação dos artigos 2.º, 18.º, 20.º, 29.º, 32.º da Constituição da República Portuguesa, bem como dos artigos 6.º e 13.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Mas sem fundamento.
Desde logo porque o Tribunal Constitucional tem jurisprudência firmado no sentido da conformidade constitucional daquela norma da lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal como sucedeu, entre outros – máxime n.º 723/2022 -, também no Acórdão n.º 273/2022, no qual decidiu “não julgar inconstitucional a norma inscrita no artigo 49.º, n.º 3, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, que estabelece a Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, interpretado no sentido de não ser admissível recurso para o STJ das decisões interlocutórias proferidas no âmbito do processo de extradição, que não apliquem medidas de coação”.
Interpretação perfeitamente transponível para os incidentes pós-decisórios, sendo inteiramente válidos os mesmos fundamentos que com precisão e concisão motivaram aquela declaração de não inconstitucionalidade e que aqui se reproduzem: “nenhuma destas decisões interlocutórias é suscetível de afetar irremediavelmente o núcleo essencial das garantias de defesa do extraditando, de modo que se impusesse a consagração da sua recorribilidade, nos moldes impostos pela CRP. Tal conclusão assenta em três ordens de razão: em primeiro lugar, as decisões interlocutórias em causa não contendem diretamente com o estatuto coativo do extraditando - maxime com a privação ou restrição do seu direito à liberdade (artigos 27.º e 28.º da CRP); em segundo, sendo subsidiariamente aplicável ao processo de extradição as disposições do CPP (cfr. artigo 3.º, n.º 1, da LCJ), o regime de nulidades consagrado na lei processual penal permite que a nulidades insanáveis sejam conhecidas oficiosamente, e a todo o tempo, neste caso, pelo STJ, aquando da apreciação do recurso da decisão final de extradição; e, em terceiro lugar, porque a restrição de recorribilidade dessas decisões interlocutórias afigura-se proporcional e adequada à salvaguarda das finalidades e da natureza específicas do processo de extradição.”
Ainda assim deve notar-se que o artigo 2.º da CRP constitui um princípio conformador da Constituição, que se projeta em diversas soluções e por diversos modos; constitui um princípio fundador e não essencialmente um critério operativo de decisão, a não ser em situações-limite de expressão negativa.
O reclamante, todavia, não concretiza em que medida e por que motivos ou razões a norma n.º 3, do artigo 49.º, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, interpretada no sentido da inadmissibilidade do recurso, afetam algum conteúdo essencial ou constitucional do princípio democrático.
Por outro lado, não pode considerar-se infringido o artigo 18.º, n.º 2, da CRP, porquanto o direito que o reclamante considera restringido seria o do recurso, especificamente previsto no n.º 1 do artigo 32.º da CRP que apesar de garantir o direito ao recurso em processo criminal, não o impõe em todos os casos.
Face ao disposto no citado artigo 32º, n.º 1, da CRP, as garantias de defesa em processo penal na perspetiva do recurso, apenas visam as decisões judiciais de conteúdo condenatório, segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 209/90, de 19.06.90, publicado no BMJ, 398, p. 152), não revestindo tal natureza o despacho que se pretende seja sindicado pelo Supremo Tribunal de Justiça.
O direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, a organização de um modelo de intervenção processual, razoável, proporcional e adequado, não cabendo na dimensão e no respeito da essência constitucional do direito a exigência exacerbada e repetida de meios que se sobreponham e que perturbem a regularidade da evolução processual e dos prazos de decisão.
Está, assim, completamente fora de causa a violação, no caso, do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
Por fim, o princípio da legalidade, com inscrição constitucional no artigo 29.º, n.º 1 da CRP, é uma norma que se reporta ao direito substantivo, pressupondo a condenação por crime não existente na lei penal ao tempo da prática dos factos, e não a disposições processuais sobre o regime dos recursos.
E ainda, o § 1 do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem não prevê qualquer direito ao recurso, que na dimensão convencional fica dependente do modo como os sistemas internos organizam o processo e a reapreciação das decisões. O direito a um segundo grau de jurisdição apenas está estabelecido no artigo 2.º do Protocolo 7.º à Convenção Europeia, como garantia de defesa em processo criminal em termos substancialmente coincidentes com o artigo 32.º, n.º 1, da CRP.
Em referência ao artigo 13.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem cabe dizer que nada acrescenta ao determinado nos artigos 20.º e 32.º da CRP, pois limita-se a reconhecer o direito à existência de remédios efetivos perante as jurisdições nacionais quando está invocada a violação de um direito consagrado. Remédio que o reclamante está a usar, por exemplo, ao formular e apresentar a presente reclamação.
Tanto basta para concluir pela manifesta falta de fundamento da inconstitucionalidade invocada.
III - Decisão:
4. Pelo exposto, indefere-se a reclamação, deduzida pelo extraditando AA.
Sem custas por não serem devidas.
Notifique-se.
Comunique-se imediatamente ao Tribunal reclamado.
O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Nuno Gonçalves