COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
SUCESSÕES
PROCESSO DE INVENTÁRIO
RESIDÊNCIA HABITUAL
REGULAMENTO (UE) Nº. 650/2012
Sumário


I. De acordo com o art. 4º do Regulamento Europeu sobre Sucessões- Regulamento 650/12-, os órgãos jurisdicionais competentes para decidir a sucessão são aqueles do Estado-membro da residência habitual do de cujus no momento do falecimento.
II. No que concerne à definição do que se deve considerar residência habitual do falecido existe algum âmbito de liberdade, desde logo, conforme explanado no considerando 23 e 24 do citado Regulamento.
III. Por isso, impõe-se averiguar as circunstâncias concretas da ida do falecido nos anos anteriores ao óbito e nesse momento do óbito, a fim de se determinar a residência habitual do mesmo, nos termos e para os efeitos do citado Regulamento.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

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I- RELATÓRIO:

Com a data de 23.11.2023, foi proferida a seguinte decisão:
Discutem os interessados a questão da competência deste tribunal, em razão da nacionalidade, para conhecer desta ação.
Cumpre decidir.
Como resulta demonstrado pelo teor dos documentos juntos aos autos e não é posto em causa pelos interessados, a inventariada faleceu em ../../2021.
Mais resulta demonstrado que a inventariada tinha, à data do óbito, residência habitual em ....
Aqui chegados, entendo que para a solução a dar à questão que me foi colocada importará atender ao estipulado pelo Regulamento (UE) n.º 650/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 04-07-2012, que entrou em vigor no dia 17-08-2015.
Estipula o artigo 1º, n.º 1, do aludido regulamento, que o mesmo é aplicável às sucessões por morte, não sendo aplicável às matérias fiscais, aduaneiras e administrativas.
O artigo 4º daquele diploma legal estipula que “São competentes para decidir do conjunto da sucessão os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito.”.
O artigo 21º, n.º 1, do referido diploma legal, estipula o seguinte: “Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito.”.
O n.º 2 daquele normativo estipula o seguinte: “Caso, a título excecional, resulte claramente do conjunto das circunstâncias do caso que, no momento do óbito, o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplicável nos termos do n. o 1, é aplicável à sucessão a lei desse outro Estado.”.
Nos termos do disposto no artigo 22º, n.º 1, do referido diploma legal, “Uma pessoa pode escolher como lei para regular toda a sua sucessão a lei do Estado de que é nacional no momento em que faz a escolha ou no momento do óbito.”.
O n.º 2 deste preceito legal estipula que “A escolha deve ser feita expressamente numa declaração que revista a forma de uma disposição por morte ou resultar dos termos dessa disposição.”.
O n.º 3 daquele artigo 22º dispõe que “A validade material do ato pelo qual foi feita a escolha da lei é regulada pela lei escolhida.”.
Revertendo ao caso sub judice, temos que a inventariada, em 22 de novembro de 2016, outorgou testamento, no âmbito do qual declarou, além do mais, o seguinte: “Que fixa a Lei Portuguesa para regular a sua sucessão, que é lei do país da sua naturalidade”.
Ou seja, a inventariada, no testamento por si outorgado, declarou, de forma expressa, que escolhia como lei para regular toda a sua sucessão a lei do Estado português, de que era nacional no momento em que fez a escolha.
Conclui-se, pois, face ao exposto, no sentido da competência internacional deste tribunal para conhecer desta ação.
Notifique.”
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É desta decisão que vem interposto recurso por AA, interessada nos presentes autos de inventário, a qual terminou o seu recurso formulando as seguintes conclusões:
(…)
19. Face ao exposto, salvo o devido respeito, na nossa opinião, é inexorável que se aplicam, no caso em apreço, as normas jurídicas previstas no n.º 2 do art.º 576.º do C.P. Civil, a al. a) do art.º 577 do C. P. Civil, al a) do art.º 96.º do C.P. Civil, e o n.º 1 do art.º 278.º do C. P. Civil, sendo que as mesmas foram violadas, dado que não foram aplicadas, no caso sub judice, pelo douto Tribunal a quo.
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Foram apresentadas contra-alegações, contudo, foram desentranhadas e entregues aos apresentantes por serem intempestivas.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida em separado e com efeito devolutivo.
O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Assim, cumpre apreciar o recurso deduzido, após os vistos.

II- FUNDAMENTAÇÃO


A questão suscitada no presente recurso diz respeito à procedência ou não procedência da exceção dilatória da (in)competência internacional do tribunal suscitada pela recorrente/interessada no inventário por óbito da sua mãe e da requerente, ou seja, se deve ser proferido acórdão que revogue o despacho que declarou a competência absoluta do Tribunal para apreciar o inventário por óbito da mãe da requerente.
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O tribunal a quo decidiu pela improcedência da exceção da incompetência internacional do tribunal, em síntese, porque “a inventariada, em 22 de novembro de 2016, outorgou testamento, no âmbito do qual declarou, além do mais, o seguinte: “Que fixa a Lei Portuguesa para regular a sua sucessão, que é lei do país da sua naturalidade”.
Ou seja, a inventariada, no testamento por si outorgado, declarou, de forma expressa, que escolhia como lei para regular toda a sua sucessão a lei do Estado português, de que era nacional no momento em que fez a escolha.”.
Concluiu, assim, pela competência internacional do tribunal para conhecer da ação.
A recorrente pugna pela aplicação do Regulamento (UE) nº. 650/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho de 04 de julho de 2012, atenta a data do óbito da de cujus ( ../../2021), pelo que nos termos do artigo 4º, deste diploma, com a epígrafe “competência geral”, são competentes para decidir do conjunto da sucessão os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito e que no caso era a ..., até porque, o n.º 2, do art.º 22.º, do regulamento Europeu não se aplica à questão da competência.
Vejamos.
Atendendo ao objeto dos presentes autos – um inventário por óbito ocorrido em ../../2021 em ..., tendo a falecida nacionalidade portuguesa e tendo a mesma feito testamento público a indicar ser sua vontade a aplicação da lei portuguesa no momento da sua morte-, não restam dúvidas de que se discute matéria objeto do Regulamento citado.
A questão que se coloca é a de saber se o tribunal português é competente para julgar esta ação, face ao citado Regulamento.
Prima facie, importa relembrar que estamos no âmbito da competência em matéria sucessória e definição da lei aplicável a relações sucessórias pluriocasionadas, pelo que dever-se-á articular os arts. 72º-A e 1082º do CPC com o citado Regulamento nº. 650/2012, de modo que, tratando-se de uma relação sucessória pluriocasionada da União Europeia, prevalece a aplicação das normas do Regulamento.
Com efeito, é um reflexo da aplicação do normativo contido no art. 8º da Constituição da Republica Portuguesa, nos termos do qual se estabelece o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, enquanto princípio estruturante do próprio ordenamento comunitário, tal como tem vindo a ser sustentado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
Ora, o citado Regulamento Europeu Sobre Sucessões contem regras de competência internacional, lei aplicável e reconhecimento de decisões estrangeiras em matéria de sucessões internacionais, aplicando-se a relações sucessórias pluriocasionadas na União Europeia ( exceto no Reino Unido, Irlanda e Dinamarca) e que têm pontos de contacto entre mais do que um país, nomeadamente por via da existência de bens sitos em vários países.
Ora, uma das decorrências do caráter universal das normas ressuma do disposto no art. 20º do citado Regulamento, o qual conjugado com o princípio do primado do direito comunitário, significa que as normas de conflito do Regulamento prevalecem sobre as normas do art. 62º a 65º do CC, incluídas na subsecção VI-cujo título é “ Lei reguladora das Sucessões”.
Outra decorrência de tal carater universal é a coincidência “ forum-iuris”, ou seja, o regulamento segue o modelo da unidade da sucessão, aplicando-se uma única lei a toda a sucessão  ( art. 23º,nº1), devendo haver coincidência entre o órgão jurisdicional competente para decidir o conjunto da sucessão e a lei aplicável, “ sem prejuízo de, no domínio do reenvio, a lex domicilii adotar o sistema de cisão” ( cfr. art. 34º; Afonso Patrão, citado in CPC Anotado, GPS, Vol II, p. 556, anotação nº15 ao art. 1097 do CPC).
De acordo com o art. 4º do Regulamento Europeu sobre Sucessões, os órgãos jurisdicionais competentes para decidir a sucessão são aqueles do Estado-membro da residência habitual do de cujus no momento do falecimento.
Nos termos do art. 21º do mesmo regulamento, à sucessão é aplicável a lei da residência habitual do autor da sucessão no momento da morte.
Não é definido o conceito de “ residência habitual”.
Sem embargo, apura-se do considerando 23 que os motivos da escolha da residência habitual como fator determinante da competência e como elemento de conexão radicam “ na necessidade de assegurar a boa administração da justiça e de garantir uma conexão real entre a sucessão e o tribunal competente e a lei aplicável, tendo em conta a mobilidade dos indivíduos. Podemos concluir, deste modo, que a escolha da residência habitual como elemento relevante reside no princípio da proximidade com o autor da sucessão.” ( Anabela Susana de Sousa Gonçalves, in Cadernos de Direito Privado, 52, p.11 “ As linhas Gerais do Regulamento Europeu sobre Sucessões”).
Esta mesma autora alude ao considerando 23 mais uma vez para concluir que “ residência habitual deve traduzir “ uma relação estreita e estável” com certo Estado, sendo apurada a partir de “(…) uma avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais pertinentes, em particular a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as condições e as razões da permanência”, sendo que no considerando 24 se assume que esta determinação pode ser complexa, aceitando-se que um falecido que, por razões profissionais ou económicas, tenha ido viver para o estrangeiro a fim de aí trabalhar, por vezes por um longo período, mas tenha mantido uma relação estreita e estável com o seu Estado de origem possa não ter perdido a residência habitual no seu estado de origem, “no qual se situavam o centro de interesses da sua família e a sua vida social”.
Para aquela autora supracitada pode ser muito desvantajosa a previsão da residência habitual para todos os Estados que possuem uma grande comunidade de emigrantes, como é o caso de Portugal.
Todavia, o art. 21º, nº2 do citado Regulamento consagra uma cláusula de exceção nos termos da qual permite a aplicação de uma lei que apresente, no caso concreto, um vínculo mais estreito do que a aquela fixada pela conexão rígida da norma, no caso a lei da residência habitual do de cujus no momento da morte.
Também outro alicerce em que se estrutura o Regulamento Europeu sobre Sucessões é o princípio da autonomia da vontade, e espelho do mesmo é o disposto no art. 22º do citado regulamento que permite uma eleição da lei aplicável à sucessão. Todavia, no Regulamento, esta escolha encontra-se limitada à lei da nacionalidade do de cujus no momento da escolha ou no momento da morte.
Ainda a autonomia da vontade surge com uma forte vertente processual, quando no art. 5º nº1 permite-se que as partes interessadas, por acordo, atribuam competência exclusiva aos órgãos jurisdicionais desse Estado, esclarecendo o considerando 28 quem são as partes interessadas.

Volvendo ao caso vertente, é inequívoco que não tem aplicação a norma do art. 5º nº1 do regulamento porquanto os interessados, como vimos, não estão de acordo[1].
A ora recorrente entende que a competência para julgar a sucessão do de cuius será dos órgãos jurisdicionais franceses e não do tribunal português, por ser aquela a residência habitual.
A decisão recorrida entendeu que o tribunal tem competência internacional, sendo a sua interpretação a de que, quando foi feita a escolha da lei portuguesa, quis a inventariada incluir nessa escolha também o foro nacional, além de ter como prevalecente a norma especial do artº 22º sobre a regra geral do artº 21º.
Sem embargo, cremos que não poderá a decisão ser tomada apenas com base em tais factos, revelando, assim, ser uma decisão parca nos factos apurados por forma a aferir a sua verdadeira residência habitual, ao abrigo do conceito adotado no Regulamento (UE) Nº 650/2012.
Além do mais, diga-se que dos autos apenas ressumam aqueles factos: a escolha da lei portuguesa pela inventariada, tendo falecido em ....
Ora, cremos que a decisão tomada nesses termos tão singelos- escolheu a lei portuguesa, logo escolheu o foro e a competência- parece olvidar por inteiro a sistematização consagrada no Regulamento a que temos vindo a aludir, aplicando, no domínio da competência, norma respeitante à lei substantiva da partilha, quando, justamente, umas e outras têm assento em capítulos legais incontestavelmente autónomos, como se viu.
Na verdade, uma coisa é a lei aplicável ao inventário, outra, bem diversa, é a escolha do foro para o tramitar.
Ora, já vimos que o critério da competência é pois, o da residência habitual.
Como vimos, no que concerne à definição do que se deve considerar residência habitual do falecido existe algum âmbito de liberdade, desde logo, no considerando 23 e 24 supracitados[2].
Ora, no caso vertente, cremos que a decisão é parca em factos e necessita de se suportar em mais factos concretos, para além do testamento com menção expressa de escolha da lei portuguesa para efeitos sucessórios, por forma a se proceder a um apuramento mais minucioso das circunstâncias da vida da inventariada com vista a aquilatar da sua verdadeira residência habitual, ao abrigo do conceito adotado no Regulamento (UE) Nº 650/2012, até para que o Tribunal possa decidir segundo as várias soluções plausíveis de direito.
Assim, deverá o tribunal a quo convidar a requerente do inventário a vir aos autos narrar os factos que permitam concluir onde tinha a inventariada a sua residência habitual, aperfeiçoando o art. 8º do requerimento inicial, de acordo com o explanado e, em face do que vier a ser apurado, proferir nova decisão sobre a competência internacional dos tribunais portugueses para os termos do inventário.

III – DECISÃO

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta secção cível em julgar a apelação procedente e, embora por diferente fundamento, revogar a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir para apurar a residência habitual da inventariada.
Custas da apelação a final, na proporção dos quinhões.
Notifique.
Guimarães, 6 de fevereiro de 2025

Relatora: Anizabel Sousa Pereira
 Adjuntos: Margarida Pinto Gomes e
                  Luís Miguel Martins


[1] o que desde já se consigna, ser muito estranha a conduta da ora interessada ao suscitar a questão da incompetência nestes autos, quando num outro processo citado nas alegações até foi a própria quem propôs ação de inventário, o qual terminou com despacho liminar, transitado em julgado e antes da citação dos demais interessados e a declarar-se o tribunal incompetente internacionalmente nos termos do citado Regulamento, sendo certo que conforme já foi analisado nestes autos por despacho transitado em julgado, essa decisão não formou caso julgado porquanto os demais interessados, inclusive ora requerentes e cabeça de casal não foram citados.
[2] Lê-se no AC deste TRG de 17-11-2022 ( relatora: Drª Raquel Rego) de forma impressiva o seguinte:“ Aqui chegados e presentes todos estes considerandos, pode, desde logo, afirmar-se que sendo, o nosso, um país com larga tradição de emigração, iniciada em força para países europeus nos anos sessenta, é do conhecimento comum, que, por via de regra, os cidadãos que assim fizeram mantêm uma ligação muito forte com o seu país de origem, tudo fazendo para construir em Portugal um património, mantendo estreitas as ligações às suas terras, aqui passando as suas férias e, quase sempre, almejando terminar aqui os seus dias. Na menor das situações, querem aqui ser sepultados.
No critério amplo e baseado na ligação emotiva e material à sua terra natal, adoptado pelo Regulamento, poderemos dizer que a maioria deles continua, para efeitos de atribuição de competência, a ter residência habitual em Portugal”.