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PROCESSO JUDICIAL DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DE MENOR EM PERIGO
AUDIÇÃO DA CRIANÇA
NULIDADE
Sumário
A falta de audição da criança, nos termos previstos nos arts. 4º e 84º, da L.P.C.J.P. (Lei nº 147/99), afecta a validade das decisões finais dos correspondentes processos, por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva e, por isso mesmo, processual.
Texto Integral
ACORDAM OS JUÍZES NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES: 1. RELATÓRIO
Em 20.6.2024, o Ministério Público requereu a abertura do presente processo judicial de promoção e protecção a favor da criança AA, nascida a ../../2016.
Em 10.9.2024 foi decidido, com a concordância dos pais, fixar um regime provisório de visitas do progenitor e do irmão à AA.
Foram realizadas diligências de prova.
Em 14.10.2024 foi junto relatório do I.S.S..
Em 29.10.2024, em nova conferência com os pais e após produção de mais declarações, o Ministério Público promoveu que se aplicasse à menor a medida provisória de apoio junto do pai, consagrando-se os convívios com a mãe aos fins de semana, até decisão final.
De seguida, em acta, ficou registada a seguinte “decisão cautelar (artigos 37º e 92º da LPCJP)”: “Face ao exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 3.º, nºs 1 e 2, alínea c), 5.º, alínea c), 34.º, alínea a), 35.º, n.º 1, al. a), e nº 2, 37.º, 91.º, n.º 1 e 92.º, todos da LPCJP, determino: 1. A aplicação da medida provisória de apoio junto do pai à criança AA, nascida em ../../2016, por um período de 3 meses, com vista à ulterior concretização do plano de promoção e proteção adequado à mesma, iniciando-se a sua execução no próximo dia 2-11-2024, pelas 18,00 horas, consagrando-se o seguinte regime de visitas à progenitora: 1.1. A mãe estará com a menor todos os fins de semana, recolhendo a menor no sábado, no fim da catequese ou da missa, e entregando a menor ao pai no domingo, pelas 20,30 horas (iniciando-se este regime em 9-11-2024). 2. A autorização para a menor passar a frequentar novamente a escola da residência do pai, do Agrupamento de Escolas .... 3. O pai fica obrigado a prestar à criança todos os cuidados de alimentação, higiene, saúde, conforto e educação que a mesma necessite, (…)”
Inconformada com esta decisão, a progenitora recorreu da mesma, apresentando as alegações de 21.11.2024.
O Recorrido Ministério Público, contra-alegou pedindo a improcedência do recurso.
O Recorrido progenitor respondeu ao recurso pedindo a sua rejeição por falta de conclusões, culminando as suas alegações com pedido da sua improcedência.
Foi convidada a Recorrente a aperfeiçoar as suas conclusões, respondendo esta com o expediente de 10.1.2024, nas quais apresenta as seguintes “Conclusões” (…)
2. QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.2 Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas3 que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.4
As questões enunciadas pelo/a(s) recorrente(s) podem sintetizar-se da seguinte forma: Saber se estão verificados “os pressupostos de que depende a alteração da medida de apoio junto da mãe para junto do pai” e/ou “ a presente decisão violou as normas dos artigos 3.º, nºs 1 e 2, alínea c), 5.º, alínea c), 34.º, alínea a), 35.º, n.º 1, al. a), e nº 2, 37.º, 91.º, n.º 1 e 92.º, todos da LPCJP.”
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
3. FUNDAMENTAÇÃO (…)
3.2. FACTOS A CONSIDERAR
a) Factos provados.
1. BB e CC contraíram casamento em ../../2022, sendo progenitores de DD, com 19 anos de idade, estudante do 2º ano da licenciatura em desporto, e da menor AA, nascida em ../../2016;
2. Até ao dia ../../2024, o referido casal e os filhos residiam na Rua ..., ... (...), ..., sendo que a menor frequentava escola ...;
3. No dia ../../2024, BB, com o apoio de uma amiga de ..., pessoa que conheceu nas redes sociais, e sem o conhecimento dos seus familiares e do pai da sua filha AA e contra a vontade destes, decidiu fixar residência com a sua filha na casa dessa sua amiga, em ..., ocultando o seu paradeiro ao pai e ao irmão da AA, o que se verificou por mais de 30 dias.
4. Nesse mesmo dia ../../2024, por sugestão da aludida amiga de ..., passaram pela CPCJ ..., a quem solicitaram intervenção, alegando mau relacionamento da progenitora da menor com o seu marido;
5. No dia 18-04-2024, a menor AA, nascida em ../../2016, estava matriculada no Agrupamento de Escolas ..., em ..., para onde havia sido pedida transferência de escola;
6. Cerca de um mês depois, em meados de Maio de 2024, por insistência dos seus pais, a progenitora regressou à casa dos pais, transferindo novamente a menor, agora para escola ..., afectando a sua integração escolar.
7. Em 6-09-2024, a técnica da ATT efectuou uma visita domiciliária à casa onde reside a menor (nos avós maternos), tendo observado uma habitação com pouca salubridade, muito deficitária a nível de higiene e organização, onde a criança e a mãe dormem na sala num sofá-cama, num espaço confuso. «(…) habitação encontrava-se suja e desarrumada. Lixo e calçado espalhados no chão, roupa amontoada, latas de refrigerante ainda por abrir, espalhados pela casa, especialmente no quarto do tio materno, Sr. EE, onde a criança mostrou que este também tinha debaixo da cama sacos de bolachas e batatas fritas. Outros alimentos foram igualmente encontrados espalhados pela casa. As casas de banho estavam pouco higienizadas, as paredes estavam sujas e com bastante humidade, os electrodomésticos eram escassos e com marcas de muito uso (…).»
8. Em 25-09-2024, a técnica da ATT efectuou uma visita domiciliária à casa do pai da menor (onde o casal residia até ../../2024), tendo observado uma habitação modesta, mas bem higienizada e organizada. «(…) apesar de ser uma habitação modesta e com divisões diminutas, encontrava-se muito bem higienizada e organizada. A residência é constituída por três quartos, uma cozinha e um wc completo, bem como um anexo, onde abriga os electrodomésticos de maior porte entre outros pertences.
O quarto da AA estava dotado com mobiliário básico essencial e uma secretária, onde a criança costumava estudar, ainda com bastante material escolar. Verificamos que o quarto abarcava brinquedos, maquilhagem de crianças, pulseiras e uma TV. O quarto da AA estava limpo e organizado, inclusive, durante a visita, o pai abriu as gavetas de um móvel de arrumações e verificamos que a roupa da AA estava toda ela muito bem dobrada e acomodada.
Os restantes quartos também eles pequenos, mas igualmente limpos e organizados. A cozinha, apesar de ser reduzida e com pouco espaço, estava munida com electrodomésticos adequados às necessidades do dia-a-dia (…)»
9. Em 14-10-2024, a técnica da ATT fez chegar aos autos a informação social, dando conta que existem indícios de que a progenitora padeça de défice cognitivo ligeiro/moderado e «(…) pelo que foi possível aferir, existem fragilidades tanto da parte da mãe como do pai, no entanto esta equipa averiguou que em termos de condições habitacionais, estabilidade emocional, laboral e retaguarda familiar, o pai reúne um conjunto de factores protectores e estabilizadores necessários para o desenvolvimento físico e psíquico da criança. O irmão, DD, sempre acompanhou o percurso escolar da criança, dando-lhe apoio, situação que foi pausada, atendendo à saída inesperada da mãe do contexto familiar (…)», sugerindo-se a aplicação da medida de apoio junto do pai.
10. Existe entre os progenitores um conflito parental, sendo que a progenitora e a avó materna conversam e acentuam tal conflito, expondo a criança a tais conversas.
11. A criança AA, nascida em ../../2016, padece de problemas de asma, bronquite e sinusite, sendo acompanhada no Hospital ....
b) Factos não provados.
Não foram registados.
3.3. DO DIREITO APLICÁVEL
Conforme ficou acima dito, existem no seio das conclusões da Apelante afirmações que não têm qualquer enquadramento nas normas citadas, tal como era esperado, tivesse a Apelante respeitado e cumprido o convite ao seu aperfeiçoamento para os efeitos do art. 639º, nº 2, do C.P.C., como ficou assinalado no precedente despacho deste Tribunal, de 5.1.2025.
Nesse pressuposto, rejeitam-se desde já essas conclusões e, assim, o conhecimento das alegações de direito nelas contidas que não sejam de conhecimento oficioso.
No restante, constatamos que a Apelante se limita a citar, no ponto 30 das suas conclusões, as normas de direito que a decisão invocou para fundamentar o seu dispositivo, o que é, repete-se manifestamente insuficiente para se dar cumprimento ao disposto no art. 639º, nº 2, do C.P.C..
Posto isto, tendo em conta o que ficou enunciado supra, em 2., desta decisão, apreciaremos em seguida a conclusão produzida no item 7), na qual se questiona a decisão por falta de audição da criança em causa.
Esta questão, à semelhança de outras, está formulada sem qualquer enquadramento legal expresso ou directamente relacionado com essa audição, além do que genericamente se assinala no item 30. das conclusões em apreço.
No entanto, julgamos estar perante questão de conhecimento oficioso e/ou que, não obstante a deficiente qualificação por parte da Recorrente, pode e deve ser devidamente enquadrada, nos termos do art. 5º, nº 3, do C.P.C..
Perante esta alegação, o Recorrido progenitor limita-se a afirmar que o Tribunal recorrido agiu em conformidade com o disposto no art. 108º, da L.P.C.J.P., e o Ministério Público nada alegou.
Contudo, estamos perante princípio determinante nesta jurisdição.
Com efeito, está estabelecido no art. 4º (Princípios orientadores da intervenção), da L.P.C.J.P. (Lei nº 147/99), que a intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo obedece aos seguintes princípios: (…) j) Audição obrigatória e participação - a criança e o jovem, em separado ou na companhia dos pais ou de pessoa por si escolhida, bem como os pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser ouvidos e a participar nos actos e na definição da medida de promoção dos direitos e de protecção; (…).
Por sua vez, o seu art. 84º, estabelece que as crianças e os jovens são ouvidos pela comissão de protecção ou pelo juiz sobre as situações que deram origem à intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e proteção, nos termos previstos nos artigos 4.º e 5.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro.
Esse direito fundamental da criança à sua audição deve, assim, ter em conta o disposto no art. 4º, desse R.G.P.T.C., no qual se estabelece, além de mais, que: 1 - Os processos tutelares cíveis regulados no RGPTC regem-se pelos princípios orientadores de intervenção estabelecidos na lei de proteção de crianças e jovens em perigo e ainda pelos seguintes: (…) c) Audição e participação da criança - a criança, com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito, preferencialmente com o apoio da assessoria técnica ao tribunal, sendo garantido, salvo recusa fundamentada do juiz, o acompanhamento por adulto da sua escolha sempre que nisso manifeste interesse. 2 - Para efeitos do disposto na alínea c) do número anterior, o juiz afere, casuisticamente e por despacho, a capacidade de compreensão dos assuntos em discussão pela criança, podendo para o efeito recorrer ao apoio da assessoria técnica.
Além disso, no seu art. 5º, desse R.G.P.T.C., estabelecem-se normas sobre a forma e a oportunidade dessas declarações, de entre as quais destacamos que as mesmas têm, por regra, de serem gravadas em suporte áudio ou audiovisual (art. 5º, nº 7, al. c), do mesmo Regime).
Desde a alteração introduzida pelo Lei nº 142/2015 que esta norma não prevê qualquer idade mínima para audição da criança, sendo certo que à data de decisão em crise a AA já tinha mais de 8 anos de idade.
Apesar disso, em vão procurámos nos autos a decisão do Tribunal recorrido que, em concreto, se debruçou sobre o dever previsto no art. 4º, nº 2, do R.G.P.T.C., não sendo notório ou evidente que a criança em causa não tenha maturidade para ser ouvida ou atendida no seu relato dos factos pertinentes para uma decisão que lhe diz directamente respeito.
É certo que a AA terá sido entrevistada pelo I.S.S. no decurso da realização do relatório junto em 9.9.2024, previsto no citado art. 108º, da L.P.C.J.P., contudo, essa entrevista não cumpre o estipulado naquelas normas, nem substitui a audição obrigatória acima regulada, a realizar pelo juiz ou por assessoria especializada (v.g., psicólogo habilitado), sendo certo que nessa fase não foi adiantada qualquer medida sobre a qual a menor se pudesse pronunciar, como foi aquela que a final ficou a constar da decisão agora analisada.
Ora, conforme se afirma no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5.12.202318:
“Estes autos consubstanciam um processo de promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral – art.º 1º da L.P.C.J.P..
O critério decisório primordial na tomada de decisões relativas a crianças e jovens é o do superior interesse da criança (cfr. al. a) do art.º 4º da L.P.C.J.P., no que ao processo de promoção e protecção respeita). Por isto, bem se compreende que a criança tenha a possibilidade de participar no processo que a si respeita, de ser ouvida e manifestar os seus pontos de vista.
Esta audição e participação é reconhecida e consagrada em diversos instrumentos legais internacionais: no Princípio 3º do anexo I à Recomendação nº R (84) sobre as Responsabilidades Parentais adoptada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa em 28 de Fevereiro de 1984; no art.º 12º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (Aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 20/90, de 0806, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 49/90, de 12/09); no art.º 24º, nº 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; na Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças (Adoptada em Estrasburgo em 25/01/1996 e aprovada para ratificação pela resolução da Assembleia da República nº 7/2014, de 07/12/2013, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 3/2017, de 27/01/2014); e nos art.ºs 11º, nº 2, 23º, al. b), 41º, nº 2, al. c) e 42º, nº 2, al. a), do Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27/11/2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental (Regulamento Bruxelas II bis).”
Perante a falta desta audição três caminhos tem seguido a jurisprudência recente sobre questão19:
- Tribunal da Relação de Lisboa, 10/11/2022 “– Relatora: Ana de Azeredo Coelho, Processo nº. 3007/22.3T8LRS-B.L1-6 -, no qual, apreciando acerca das consequências da preterição da audição da criança, sem que se tenha lavrado despacho justificativo de tal exclusão, referenciou que “literalmente, a situação pode enquadrar-se no regime das nulidades processuais enquanto omissão de um acto que a lei prescreve – artigo 195.º, n.º 1, do CPC. Assim, o acórdão desta Relação e Secção de 14 de Abril de 2005, proferido no processo 1634/2005-6 (Manuel Gonçalves).
Enquadramento possível é o de considerar a omissão de audição como integrando vício da previsão do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, determinando a anulação da decisão para ampliação da sua base fáctica. Assim, o acórdão desta Relação de 9 de Novembro de 2021, proferido no processo 1117/14.0TMLSB-F.L1-7 (Luís Filipe Pires de Sousa), e o da Relação do Porto de 8 de Outubro de 2020, proferido no processo 2970/19.0T8PRT-C.P1 (Filipe Caroço).
Numa terceira posição, a jurisprudência vem tratando amiudadamente a omissão de que nos ocupamos como de direito material, com consequência de invalidade da decisão, excluindo o seu tratamento no âmbito das nulidades processuais, fazendo repercutir o vício directamente na decisão enquanto invalidade desta.”
Encontramos enunciada esta última posição no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016, proferido no processo 268/12.0TBMGL.C1.S1 (Maria dos Prazeres Beleza)20, no qual se afirma que “a audição da criança num processo que lhe diz respeito não pode ser encarada apenas como um meio de prova, com o qual se pretende fazer prova de um facto relevante no processo. É muito mais vasta a finalidade da audição. Trata-se antes de mais de um direito da criança a que o seu ponto de vista seja considerado no processo de formação da decisão que a afecta.
O exercício do direito de audição, enquanto meio privilegiado de prossecução do superior interesse da criança, que consabidamente norteia processos como o presente, está naturalmente dependente e relacionado com a maturidade da criança em causa. A lei portuguesa actual – cfr. artigos 4º, i) e 84º da Lei nº 147/99 de 1 de Setembro, na anterior e na actual redacção, que lhes foi dada pela Lei nº 142/2015, de 8 de Setembro de 2015, e artigos 4º e 5º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei nº 141/2015, de 8 de Setembro, e que se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor (artigo 5º da Lei nº 141/2015)-, seguindo os diversos instrumentos internacionais vinculativos (ou não) do Estado Português, alterou a forma de determinar a obrigatoriedade de audição da criança. Onde dantes se estabelecia como obrigatória a audição da criança com mais de 12 anos “ou com idade inferior quando a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção o aconselhe” (nº 1 do artigo 84º da Lei nº 147/99), diz-se agora que a criança deve ser ouvida quando tiver “capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em conta a sua idade e maturidade” art.4º, c), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).
Se antes da entrada em vigor da Lei nº 141/2015 se exigia que o tribunal ouvisse as crianças com mais de 12 anos e, quanto àquelas que tivessem idade inferior, ponderasse a sua maturidade e justificasse a decisão de não as ouvir – salvo se a criança tivesse uma idade em que é notória essa falta de maturidade, naturalmente –, após a sua entrada em vigor essa ponderação não pode deixar de se revelar na decisão – continuando a ser dispensada quando for notório que a baixa idade da criança não a permite ou aconselha.
4. Não é adequado aplicar o regime das nulidades processuais à falta de audição. Entende-se antes que essa falta afecta a validade das decisões finais dos correspondentes processos, por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva e, por isso mesmo, processual.”
Por tudo o que fica dito, julgamos que esta é a posição que melhor interpreta as normas em apreço.
Estamos num processo em que o centro da decisão é a criança e o seu superior interesse e, por isso, se salienta a obrigatoriedade da sua audição.
Considerar outra coisa é ignorar esse aspecto fundamental deste e de outros processos em que os protagonistas principais são as crianças e não os seus progenitores, insistindo numa visão da criança como ser menor que nunca tem opinião nos assuntos que lhe dizem respeito, nem pode contribuir para a solução do caso. Enfim, uma posição há muito derrogada pelas normas fundamentais, inclusive internacionais, e ordinárias que regem o nosso ordenamento jurídico.
A prática processual dos Tribunais deve, portanto, perspectivar este direito da criança não como um direito meramente processual mas sim “um direito cuja titularidade é atribuída à própria criança e jovem, enquanto pessoa autónoma, e portanto, um meio insubstituível de assegurar a concretização dos princípios do superior interesse da criança e do jovem, da obrigatoriedade da informação e da audição obrigatória e participação, enquanto princípios orientadores da intervenção, previstos nas alíneas a), i) e j), do art. 4º”21.
Neste conspecto, e à semelhança do que se decidiu nos arestos acima citados (art. 8º, nº 3, do C.C.)., deve anular-se a decisão recorrida para que a primeira instância afira da capacidade da AA para se pronunciar sobre os perigos notados nos autos e a medida em causa e, em conformidade, se justifique positivamente a sua audição ou a sua não audição.
Mais se nota que neste caso essa audição pode ser fundamental para se aferir da pertinência dos alegados perigos referidos pela mesma22 no relatório de 9.9.2024, que envolvem a criança como vítima de actos de violência (doméstica) por parte do pai a ela e à mãe (questão essencial que foi completamente ignorada na decisão em crise), havendo que ponderar criteriosamente essa circunstância à luz da legislação vigente, v.g., o resultante da presunção estipulada actualmente na norma do art. 1906º-A, do Código Civil (cf. art. 9º, do C.C., ainda que em decisão provisória com a presente.
4. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, anulando-se a decisão recorrida e determinando-se que o processo baixe à primeira instância, a fim de proceder à audição da criança, se a sua capacidade de compreensão o admitir, ou ser devidamente justificada a sua não audição.
Custas da Apelação pelo Recorrido progenitor, na proporção de 50%, dado que o Ministério Público está isento (art. 527º, n.º 1, do C. P. Civil).
* Guimarães, 06-02-2025
Rel. – Des. José Manuel Flores 1º Adj. - Des. Paula Ribas 2º - Adj. - Des. Sandra Melo