COMPRA E VENDA DE AUTOMÓVEL
QUILOMETRAGEM
ERRO ESSENCIAL
ANULABILIDADE
Sumário

I – Na actividade de venda de automóveis a quilometragem dos veículos é um elemento determinante nos negócios a realizar, bem como a confiança de que o contador é fiável e apresenta os valores correctos, não havendo alteração dos hodómetros.
II – A quilometragem do veículo e um hodómetro não viciado são qualidades essenciais do mesmo, constituindo um factor determinante do valor e sendo decisivas para o negócio conforme a finalidade económica deste.
III – Para que se verifique a confirmação tácita de um negócio anulável, a intenção de confirmar o negócio tem de poder ser objectivamente deduzida do comportamento do declarante.
IV – Sendo anulado um negócio por erro, a existência de direito a indemnização não ocorre directamente como efeito da anulação, mas decorre da verificação no caso dos pressupostos da responsabilidade pré-contratual ou da responsabilidade extra-contratual.

Texto Integral

Processo nº 3702/22.7T8STS.P1
(Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Santo Tirso – Juiz 2)



Relatora: Isabel Rebelo Ferreira
1º Adjunto: Aristides Rodrigues de Almeida
2º Adjunto: Paulo Dias da Silva




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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


I – “A..., Unipessoal, Lda.” intentou, no Juízo Local Cível de Santo Tirso do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, acção declarativa, com processo comum, contra AA, pedindo:
a) seja anulado o contrato de compra e venda entre ambos celebrado relativamente ao veículo automóvel de marca BMW, modelo ..., matrícula ..-..-MP, com n.º de chassis ...63;
b) a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de € 9.164,00, acrescida de juros vencidos (no montante de € 7,85) e vincendos, “bem como o pagamento das prestações de agosto e setembro de 2022 do empréstimo, contraído pelo cliente, por parte da A.”;
c) a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de € 2.500,00, “a título de indemnização pela afetação da imagem e da boa reputação da A.”.
Alegou para tal que, no exercício da sua actividade de comércio por grosso e a retalho de automóveis e motociclos, em 14/01/2022, comprou ao R. um veículo automóvel de marca BMW, modelo ..., matrícula ..-..-MP, pelo preço de € 5.750,00, que vendeu a BB em 20/01/2022, pelo preço de € 6.900,00, para cujo pagamento este recorreu a crédito bancário, tendo este verificado, em Março de 2022, que o veículo tinha mais quilometragem do que a anunciada e que o hodómetro tinha sido modificado, pelo que se dirigiu à A. para anular a venda, a qual aceitou a devolução do veículo e assumiu a responsabilidade perante aquele para evitar litígio judicial, assumindo o pagamento do montante restante do crédito, no valor de € 132,00, e pagando-lhe a quantia de € 8.900,00, a título de devolução do preço acrescido de uma indemnização de € 2.000,00, sendo que o R., por si interpelado, não assumiu a responsabilidade pelo sucedido.
Alegou ainda que se se tivesse apercebido, ou soubesse, da verdadeira quilometragem do veículo não teria celebrado o negócio de compra e venda com o R., pois um carro com mais de 500.000 km é susceptível de problemas mecânicos a curto prazo, bem como de um grande desgaste, que não interessaria nenhum cliente, que o R. conhecia a diferença da quilometragem verdadeira da apresentada no hodómetro, sabendo o quão essencial é a correcta quilometragem para a declaração de vontade na compra de um carro usado, e que nenhum “stand” ou particular lhe compraria um veículo com mais de 500.000 km. E que a sua reputação foi posta em causa e a sua imagem denegrida com a conduta do R., o que lhe causou prejuízos.
O R. contestou, impugnando os factos alegados pela A. para fundamentar a sua pretensão e alegando que a adulteração do hodómetro ocorreu antes de o veículo ser por si adquirido, não tendo dela conhecimento, sempre estando convencido de que a quilometragem indicada no hodómetro estava correcta, e que se dispôs a anular o negócio, devolvendo o preço à A. e retomando o veículo, o que esta recusou, vindo até a facturar o veículo ao seu cliente em Agosto de 2022 (cuja devolução ocorreu apenas em Novembro de 2022), situação que configura confirmação do negócio.
A A. respondeu, impugnando os factos alegados na contestação e mantendo a posição assumida na petição inicial.
Foi elaborado despacho saneador, fixou-se o objecto do litígio e elencaram-se os temas da prova.
Procedeu-se seguidamente a julgamento.
Após, foi proferida sentença, rectificada pelo despacho de 22/01/2024, na qual se decidiu julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência:
- anular o contrato de compra e venda celebrado entre a A. e o R. com referência ao veículo automóvel de marca BMW, modelo ..., matrícula ..-..-MP, com n.º de chassis ...63;
- condenar o R. a pagar à A. a quantia de € 9.144,00, acrescida de juros de mora computados à taxa legal consignada para as obrigações civis desde a citação até integral pagamento;
- absolver o R. do demais pedido.
De tal sentença veio o R. interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«Em face do atrás alegado conclui-se que os factos 8 e 28 foram incorrectamente julgados:
1) Autora e Réu, por desconhecerem a alteração do hodómetro, não reconheceram por acordo, que tal seria essencial para o negócio de compra e venda do veículo, não o pressupuseram ou sequer puseram em hipótese.
2) A Autora apenas alegou, mas não provou, a essencialidade, para si, daquele erro acerca do objecto do negócio e que o Réu deveria ter tido dela conhecimento. (que se reitera, não ser essencial).
3) O seu sócio gerente da Autora seu cliente e testemunha BB, admitiram inúmeras vezes que o único factor a alterar no negócio seria apenas o preço, e que o veículo serviria igualmente os seus interesses.
4) O erro acerca da quilometragem constituiu apenas um erro incidental, claramente não impeditivo da celebração do negócio.
5) A quilometragem, é apenas uma das características que podem atribuir maior ou menor valorização do veículo, mas não é impeditivo da celebração do negócio para uma pessoa que disso faz vida (ex. comerciante de automóveis).
6) O erro acerca das características do veículo in casu é erro incidental, influiu apenas nos termos do negócio, pois Autora e seu cliente sempre contratariam o mesmo negócio, embora noutras condições sendo que o veículo, os sujeitos seriam os mesmos.
7) Impunha-se que se desse como provado que, em substituição do facto “28” que: No circunstancialismo indicado em 6), se o gerente da Autora soubesse o descrito em 18) teria celebrado um acordo diferente com o Réu.
8) A Autora, assim que soube da alegada alteração do hodómetro do veículo contactou o Réu, que propôs a devolução imediata do dinheiro e a retoma do veículo (facto provado 22).
9) A Autora não aceitou a anulação imediata do negócio, nem retomou de imediato o veículo ao cliente e testemunha, deixou-o na posse do cliente até Outubro de 2022, (Cfr. Facto provado 26), emitiu a factura de venda do veículo em 01/08/2022 (sete meses depois) e ainda o “indemnizou” com um valor correspondente a 1/3 do valor do objecto do negócio, por um dano que aquele, notoriamente não teve.
10) Tal conduta da Autora, configura a confirmação tácita do negócio nos termos prescritos no art.º 288º [do Código Civil], n.º 3 do Código Civil
11) E sanou a eventual anulabilidade do negócio de compra e venda do veículo..
12) Cabia à autora, a alegação e prova dos pressupostos da obrigação de indemnizar, que claramente não logrou fazer, nem o conseguiria neste quadro.
13) A anulabilidade do negócio jurídico não implica, automaticamente, a obrigação de indemnizar.
14) A responsabilidade civil depende da verificação dos seguintes pressupostos que integram a constituição da obrigação de indemnizar… do facto ilícito, a imputação do facto ao lesante, a ilicitude, a culpa, o dano, o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
15) A Autora limitou-se a alegar que indemnizou a testemunha, e a tentar repercutir judicialmente essa indemnização na esfera jurídica do Réu.
16) Nenhum dos ditos pressupostos alegou existirem e muito menos logrou provar.
17) A condenação do Réu ao pagamento de qualquer indemnização constituiria uma profunda injustiça que se pretende evitar.
Nestes termos e nos melhores de Direito, cuja falta de invocação o experimentado e proficiente juízo de Vossas Exas. Doutamente suprirá, deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida e concluindo-se pela ab[s]olvição do Réu, com as legais consequências, fazendo Vossas Excelências a devida elevada e costumeira JUSTIÇA.».
A A. apresentou contra-alegações, aduzindo que o recorrente não cumpriu o ónus da impugnação previsto no art. 640º do C.P.C., pois não procedeu à indicação exacta das passagens da gravação em que fundamenta a impugnação, não indicando os minutos em concreto nem o dia em que a gravação ocorreu, não especificou os meios probatórios que entende imporem decisão diversa da proferida e não estabeleceu a necessária conexão entre os meios probatórios que indica e os concretos factos que considera que deviam de ser dados como não provados, e defendendo que deve ser negado provimento ao recurso e confirmada a sentença recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II - Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar:
a) admissibilidade do recurso;
b) impugnação da matéria de facto;
c) improcedência da pretensão formulada pela A. quanto à anulação do contrato;
d) direito da A. a ser indemnizada pelo R..
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Vejamos a primeira questão.
O recurso pode ter como objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e a reapreciação da prova gravada (cfr. art. 638º, nº 7, e 640º do C.P.C.).
Neste caso, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição (nº 1 do art. 640º):
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No que respeita à alínea b) do nº 1, e de acordo com o previsto na alínea a) do nº 2 da mesma norma, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
No caso, a recorrida defende que o recorrente não procedeu à indicação exacta das passagens da gravação em que fundamenta a impugnação, não indicando os minutos em concreto nem o dia em que a gravação ocorreu, não especificou os meios probatórios que entende imporem decisão diversa e não estabeleceu a necessária conexão entre os meios probatórios que indica e os concretos factos impugnados.
O recorrente impugna os factos que ficaram a constar dos pontos 8 e 28 do elenco dos factos provados, sendo que quanto ao ponto 8, como o mesmo foi considerado provado por apelo às regras da normalidade, aquele aduz argumentação para colocar em causa as referidas regras no caso, donde nem sequer se coloca a questão de ter que indicar passagens da gravação ou estabelecer conexão entre meios probatórios.
Quanto ao ponto 28, o recorrente remete para os depoimentos do sócio-gerente da A. e da testemunha BB, indicando a passagem da gravação respeitante ao primeiro na página 7 do requerimento de recurso, com indicação dos minutos, e a passagem da gravação respeitante ao segundo na página 8 do mesmo requerimento, também com indicação dos minutos, sendo que da sua alegação se percebe que considera que estes depoimentos (não indicando quaisquer documentos de que tivesse que estabelecer conexão com aqueles, ao contrário do referido pela recorrida) impõem que a redacção deste ponto seja aquela que indica e não a que ficou a constar da sentença recorrida.
Ademais, não impõe a lei que se indique o dia em que a testemunha foi ouvida, não havendo qualquer dificuldade em encontrar os depoimentos das testemunhas com a consulta das respectivas actas de audiência de julgamento, para mais que, no caso, houve apenas duas sessões e na segunda sessão apenas foi ouvido o R., tendo toda a restante prova sido produzida na primeira sessão.
Sendo assim, verifica-se que o recorrente deu cumprimento às exigências referidas, especificando os concretos factos que põe em causa, indicando as razões da sua discordância, bem como a alteração que pretende quanto a tal factualidade, e indicando os concretos meios de prova que justificam a sua pretensão, assinalando as respectivas passagens dos depoimentos que, em seu entender, determinam essa alteração,
Pelo que, afigura-se que está cumprido o ónus em questão por parte do recorrente.
Anote-se que há que ter em conta o princípio da proporcionalidade, não exacerbando os requisitos formais a tal ponto que tal se traduza numa denegação/recusa da reapreciação da matéria de facto, ao arrepio do que foi a intenção do legislador e do que consta claramente da letra da lei (neste sentido, cfr. Ac. do S.T.J. de uniformização de jurisprudência nº 12/2023, de 14/11, D.R. n.º 220/2023, Série I, págs. 44 a 65, e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, págs. 202 a 207).
É, portanto, admissível o recurso, não havendo razões para a sua rejeição, designadamente pelo motivo invocado pela recorrida.
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Passemos à segunda questão.
Assente que o recorrente cumpriu com as exigências respeitantes à impugnação da matéria de facto, apreciemos então das alterações pretendidas.
São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida (transcrição – notando-se que, seguramente por lapso, no elenco dos factos provados não consta o ponto 16, passando do 15 para o 17):
«1. A Autora A..., UNIPESSOAL LDA exerce a atividade de comércio por grosso e a retalho de automóveis e motociclos, bem como é intermediária de crédito, explorando um estabelecimento/stand de venda de veículos automóveis e motociclos sito na Avenida ..., ..., ....
2. Em 28/11/2012, pela ap. ...77 efetivou-se o registo de propriedade do veículo automóvel de marca BMW, matrícula ..-..-MP, com n.º de chassis ...63, a favor do Réu AA.
3. Durante o ano de 2021, em dia e mês não concretamente apurados, o predito AA declarou a CC, gerente da Autora, que pretendia vender o veículo descrito em 2).
4. No circunstancialismo indicado em 3), o antedito CC disse ao Réu que poderia colocar o referido veículo “à venda” no stand enunciado em 1).
5. Em consequência do referido em 3) e 4), o veículo indicado em 2) foi transportado para o sobredito stand.
6. Na sequência do mencionado em 4) e 5), em 14/01/2022 o Réu AA e o predito CC declararam acordar a compra do antedito veículo pela Autora, consignando-se o preço de €5.750,00 (cinco mil setecentos e cinquenta euros).
7. No circunstancialismo descrito em 5) e 6), o hodómetro do veículo automóvel de marca BMW, matrícula ..-..-MP apresentava a indicação de 212.948 km.
8. No circunstancialismo referenciado em 6) e 7), o Réu AA sabia que a mencionada quilometragem do veículo constitua uma característica importante para a efetivação do acordo com o gerente da Autora.
9. Em meados de janeiro de 2022, o antedito CC, na qualidade de gerente da Autora, declarou acordar vender a BB o predito veículo pelo preço de €6.900,00 (seis mil e novecentos euros).
10. No circunstancialismo indicado em 9), o Banco 1... subscreveu um “contrato de crédito” com BB, no âmbito do qual declarou emprestar ao mesmo a quantia de €7.400,00 (sete mil e quatrocentos euros), a reembolsar em prestações mensais de €132,00 (cento e trinta e dois euros), consignando-se que a mesma se destinava ao pagamento do preço enunciado em 9), acrescido de encargos.
11. Em 20/01/2022, o Banco 1... transferiu a quantia indicada em 10) para uma conta bancária aberta no Banco 2... em nome da Autora.
12. No circunstancialismo mencionado em 9) a 11), o predito CC entregou a BB o sobredito veículo.
13. Pela ap. ...86 de 02/02/2022 afigura-se registada a reserva de propriedade do veículo enunciado em 2) a favor do Banco 1....
14. Pela ap. ...87 de 02/02/2022 afigura-se registada a propriedade do antedito veículo a favor de BB.
15. Em 03/02/2022, o predito CC transferiu a quantia de €5.750,00 (cinco mil setecentos e cinquenta euros) para uma conta bancária indicada pelo Réu com referência ao pagamento do preço mencionado em 6).
17. Em meados de março de 2022, o antedito BB visualizou a existência no enunciado veículo de uma fatura de reparação de cerca de €5.000,00 (cinco mil euros) e descolou-se a um centro de inspeções, no qual declarou solicitar a verificação dos registos do mesmo.
18. No circunstancialismo indicado em 17) foi entregue ao sobredito BB o registo informático de inspeções técnicas anteriores do veículo, o qual consignava, designadamente, que:
a) em 10/01/2012, o mesmo foi submetido a uma inspeção periódica, na qual o respetivo hodómetro apresentava 464595 km;
b) em 08/11/2012, o veículo foi submetido a uma inspeção periódica, na qual o respetivo hodómetro apresentava 188057 km.
19. Em consequência do referido em 18), em meados de março de 2022, o antedito BB telefonou predito CC, declarando comunicar ao mesmo o indicado em 18).
20. Após, durante o mês de abril de 2022, o referido BB deslocou-se ao stand descrito em 1), no qual disse ao antedito CC que pretendia devolver o predito veículo.
21. Na sequência do referenciado em 19) e 20), o predito CC telefonou ao Réu AA, declarando comunicar ao mesmo o enunciado em 18) a 20).
22. No circunstancialismo mencionado em 21), o Réu AA declarou propor ao gerente da Autora devolver o dinheiro enunciado em 15) e a retomar o predito veículo.
23. Entre os meses de abril e junho de 2022, o indicado BB e o sobredito CC declararam acordar:
a) a devolução do veículo descrito em 2) à Autora;
b) o pagamento pela Autora do remanescente do crédito mencionado em 10) e de uma indemnização de €2.000,00 (dois mil euros).
24. Em 19/08/2022, a Autora procedeu ao pagamento de €132.00 (cento e trinta e dois euros) com referência à prestação mensal do crédito indicado em 10).
25. Em 20/09/2022, a Autora procedeu ao pagamento de €112.00 (cento e doze euros) com referência à prestação mensal do crédito indicado em 10).
26. Em 10/11/2022, a Autora transferiu para uma conta bancária indicada pelo sobredito BB os seguintes montantes:
a) €6.900,00 (seis mil e novecentos euros) para o pagamento do remanescente do crédito enunciado em 10);
b) €2.000,00 (dois mil euros) a título de indemnização.
27. Entre os meses de setembro a outubro de 2022, o referido BB entregou o predito veículo automóvel no stand indicado em 1).
28. No circunstancialismo indicado em 6), se o gerente da Autora soubesse o descrito em 18) não teria celebrado o acordo com o Réu.».
Tendo sido dado como não provado o seguinte facto (transcrição):
«29. No circunstancialismo mencionado em 3) a 6) o Réu AA sabia que a quilometragem do veículo de marca BMW, com a matrícula ..-..-MP se estimava em mais de 400000 km.».
Pretende o recorrente que deve ser dado como não provado o facto do ponto 8 dos factos provados [No circunstancialismo referenciado em 6) e 7), o Réu AA sabia que a mencionada quilometragem do veículo constitua uma característica importante para a efetivação do acordo com o gerente da Autora.] e que seja alterada a redacção do ponto 28 dos factos provados [No circunstancialismo indicado em 6), se o gerente da Autora soubesse o descrito em 18) não teria celebrado o acordo com o Réu.], para que passe a ser “No circunstancialismo indicado em 6), se o gerente da Autora soubesse o descrito em 18) teria celebrado um acordo diferente com o Réu.”.
Na sentença recorrida, quanto ao ponto 8, motivou-se a sua prova da seguinte forma: “No que concerne ao facto 8), o mesmo inferiu-se à luz do princípio da normalidade imanente aos negócios de compra e venda de veículos automóveis, nos quais a quilometragem consubstancia parâmetro nuclear”.
Insurge-se o recorrente, argumentando que era desconhecedor da alteração da quilometragem do veículo e, assim sendo, “não poderia saber, não tinha de conhecer e ignorava, que seria essencial (não apenas importante) para a Autora essa característica para a efectivação do acordo”, que “não o é para um comerciante de automóveis, e sopesaria apenas no valor a atribuir ao veículo”, e que “por desconhecerem Autora e Réu a alteração do hodómetro, não se afigura que os mesmos tenham reconhecido, por acordo, que tal seria essencial, até porque o desconheciam, nem o pressupuseram ou puseram em hipótese”.
Decorre do ponto 8 que a quilometragem do veículo – que, no caso, constava como sendo de 212.948 km – constitui uma característica importante para o acordo, sendo que o elemento que fundou a vontade de contratar da A. foi a circunstância de o veículo ter na realidade esta quilometragem.
Ora, tem razão a sentença recorrida quando conclui que tal decorre do princípio da normalidade. Com efeito, qualquer pessoa de normal entendimento, que alguma vez tenha comprado e/ou vendido veículos automóveis, mesmo não sendo do ramo de actividade de comercialização profissional de veículos, sabe que a quilometragem que o mesmo apresenta é um elemento essencial, quer para a decisão de contratar, quer para o montante a acordar para o preço do negócio. Na verdade, uma determinada quilometragem pode diminuir o preço a contratar, mas, a partir de certo valor até pode contender com a própria vontade de contratar.
No caso, o veículo em questão era do ano de 1999 (como se vê da informação da Conservatória do Registo de Veículos do Porto junta em 05/12/2023), isto é tinha 23 anos à data do negócio em causa nos autos. Ora, tratando-se de um veículo com tal idade, é expectável que o mesmo tenha já percorrido muitos quilómetros. Se o mesmo “apenas” apresenta 212.948 km, obviamente que isso vai ser um factor positivo na decisão de o comprar, por indiciar que se tratará de um veículo bem tratado e sem os problemas decorrentes do extenso uso. Se afinal, na realidade, o veículo já tinha percorrido semelhante número de quilómetros (216.146) em 2003, com 4 anos de idade (cfr. informação junta pelo IMT em 19/12/2023), e se em 2022, à data do negócio, já tinha pelo menos 489.486 km (em 10/01/2012 o veículo tinha 464.595 km e em 08/11/2012 o hodómetro apresentava 188.057 km, sendo que não se sabe quantos quilómetros terão sido percorridos entre estas duas datas. A diferença entre 212.948 km e 188.057 km é de 24.891, o que somado a 464.595 km dá 489.486 km), isso será um factor que desincentiva a compra ou só a faz admitir por um preço seguramente bastante mais baixo.
Note-se que, como se diz no Ac. do S.T.J. de 28/04/2016, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de proc. 91/11.9TBBAO.P1.S1, mesmo não conhecendo o R. a viciação da quilometragem, “não podia ignorar que, ao apresentar à A. um veículo com uma quilometragem inferior à real provocava nesta a convicção de que o veículo apenas tinha essa quilometragem, o que se comprovou no caso”, sendo certo que esta nunca aceitaria pagar o preço que pagou se conhecesse a real quilometragem no caso, e o R. igualmente não poderia ignorar que a quilometragem indicada “foi determinante” para a compra do veículo pelo preço que foi acordado.
Num contexto em que a A. era comerciante do ramo automóvel “e em que, como é do conhecimento geral, o valor comercial dos veículos (maxime de veículos usados importados do estrangeiro) é directa e essencialmente influenciado pelo seu estado de conservação e ainda, numa escala elevada, pela idade e pela quilometragem percorrida, não pode duvidar-se de que a divergência entre o que o contador mostrava e a quilometragem efectiva constituía um factor essencial para a A. no que concerne à sua opção de comprar, para revenda, facto que o R. seguramente não deveria ignorar”, sendo que “o facto de a A. exercer a actividade de compra e venda de veículos não permite afirmar que todo e qualquer veículo que lhe fosse apresentado fosse pela mesma adquirido para revenda”.
Conclui-se, assim, que as regras da normalidade e experiência apontam precisamente nos termos decididos na sentença recorrida, pelo que não merece censura a prova do facto do ponto 8, não tendo razão o recorrente nesta parte.
Quanto ao ponto 28, a sentença recorrida fundamentou a sua prova, juntamente com os pontos 9 a 12, 15 a 17, 19 a 21 e 23 a 28, aduzindo que “o Tribunal estribou-se nas declarações objetivamente estribadas do gerente da Autora CC e da testemunha BB, em concatenação com a valoração do fax da Banco 1..., dos comprovativos de transferências bancárias e da declaração de quitação, soçobrando contraprovas”.
Sendo que os documentos referidos respeitam aos factos dos pontos 10, 11, 24, 25 e 26, conclui-se que, quanto ao ponto 28, a prova que fundou a convicção do tribunal foram as aludidas declarações do legal representante da A. e da testemunha BB.
Pretende o recorrente que precisamente estas declarações impõem uma decisão diferente, que das mesmas resulta provado o facto com a redacção por si proposta.
Ou seja, o recorrente entende que não resulta que o gerente da A. não teria celebrado o acordo, mas que teria celebrado um acordo diferente.
No entanto, tal não resulta da prova produzida, sendo que das declarações de parte do legal representante da A., do depoimento da testemunha BB (conforme indicado pelo recorrente) e também das declarações de parte do R. o que resulta é que depois de se descobrir a adulteração dos quilómetros houve a tentativa de resolver a situação, nomeadamente perante o terceiro que comprou o veículo ao A. (a referida testemunha), com negociações que incluíram a possibilidade de o comprador ficar com o veículo por um preço inferior, eventualmente metade do preço, mas que não foram logradas.
Ora, a existência de negociações com vista à resolução do litígio em que as partes se viram envolvidas nada tem que ver com o possível negócio que a A. faria se, antes de realizar o negócio, soubesse a quilometragem real do veículo (e se não estivesse em causa a viciação do hodómetro – note-se que não está em causa uma eventual má leitura do conta-quilómetros, mas uma adulteração do mesmo). Ali tratou-se apenas de tentar solucionar um problema que surgiu e com o qual não se estava a contar, tentando minimizar as contrariedades daí advindas.
Além do mais, do que se tratou foi de tentar que o segundo comprador aceitasse uma redução do preço do veículo, nada sendo referido quanto ao que sucederia ao primeiro negócio e ao seu preço – em nenhuma da referida prova há qualquer alusão a que a A. aceitaria comprar o veículo com os quilómetros reais que tinha e por que preço.
E sendo assim, para além de também aqui valerem as já referidas regras da normalidade e experiência e o que se aflorou a propósito do ponto 8, é de concluir que nada há a censurar na resposta dada ao ponto 28 na sentença recorrida, não merecendo acolhimento a pretensão de alteração do recorrente.
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Apreciemos agora a terceira questão.
Tendo em conta o resultado do tratamento da questão anterior, a factualidade a ter em conta para apreciação da pretensão do recorrente é a que consta dos factos dados como provados na sentença recorrida e já transcritos.
A. e R. celebraram um contrato de compra e venda do veículo automóvel identificado no ponto 2 da matéria de facto, sendo que tal não vem posto em causa pelas partes.
A A. peticionou, e assim se decidiu na sentença recorrida, a anulação deste contrato.
O R. entende que a A. não provou a essencialidade do erro sobre a quilometragem e que o mesmo não é impeditivo da celebração do negócio.
E defende ainda que houve, da parte da A., confirmação tácita do negócio.
A falta e vícios da vontade estão regulados nos arts. 240º a 257º do Código Civil, incluindo o que ainda hoje se designa por “erro vício”, quer resultante pura e simplesmente de uma vontade mal esclarecida do declarante, quer de uma vontade viciada por dolo de outra pessoa, nomeadamente o declaratário.
“O negócio jurídico apenas pode desempenhar as suas funções que lhe são destinadas pela ordem jurídica quando a vontade, que se manifesta através da declaração negocial, se formou de uma maneira esclarecida, assente em bases correctas, e livre, sem deformações oriundas de influências exteriores. Se a vontade não se formou esclarecida e livremente, ela está viciada. Em consequência do vício que fere a vontade também a declaração negocial, em que esta se manifesta, fica viciada.
Tendo ocorrido um vício, está em causa apenas o lado interno, o elemento subjectivo da declaração negocial. Aqui o problema não reside na divergência entre declaração e vontade ou na falta desta última, mas na deformação da vontade durante o seu processo formativo. A vontade viciada diverge da vontade que o declarante tivesse tido sem a ocorrência da deformação (= vontade conjectural ou hipotética).”
“As possibilidades da ocorrência de um erro no âmbito do negócio jurídico (…) são muito numerosas e vão da primeira motivação que é determinante para a formação da vontade até à manifestação da mesma. É evidente que nem todo o erro pode ser juridicamente relevante, dando origem a uma anulabilidade. Se assim fosse, os resultados seriam insuportáveis para as necessidades de segurança e estabilidade do «tráfico» jurídico.” (Heinrich E. Hörster, Lições policopiadas de Teoria Geral do Direito Civil, ano lectivo de 1990/1991, Universidade Católica Portuguesa, Centro Regional do Porto, págs. 715 e 716-717).
Prevê a lei duas modalidades de “erro-vício”, no art. 251º e no art. 252º do Código Civil., que se enquadram na categoria geral do erro sobre os motivos.
Diz-se no art. 251º que o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247.º - ou seja, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.
E no art. 252º, nº 1, que o erro que recaia nos motivos determinantes da vontade, mas não se refira à pessoa do declaratário nem ao objecto do negócio, só é causa de anulação se as partes houverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo.
Já no nº 2, prevê-se que se o erro recair sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio, é aplicável ao erro do declarante o disposto sobre a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias vigentes no momento em que o negócio foi concluído.
Motivos, no sentido do art. 252º, “são as circunstâncias cuja representação intelectual determina a decisão de querer a conclusão do negócio jurídico. O erro sobre os motivos é, por conseguinte, uma ideia inexacta, uma representação inexacta, sobre a existência, subsistência ou verificação de uma circunstância presente ou actual que era determinante para a declaração negocial, ideia inexacta sem a qual a declaração negocial não teria sido emitida ou não teria sido emitida nos precisos moldes em que o foi.
O erro sobre os motivos recai, assim, sobre o elemento interno, subjectivo, da declaração negocial, mais precisamente sobre elementos determinantes da formação da vontade. O elemento que determina a formação da vontade pode ter vários graus de intensidade: ele pode ser absoluto, quer dizer, influi na declaração negocial em si mesma (fazer ou não fazer a declaração negocial), ou ele pode ser relativo, quer dizer, também influi na declaração negocial, mas apenas nos termos precisos em que foi feita (aqui falamos de um erro incidental). Em ambos os casos o elemento determinante da vontade é objecto do erro, diferindo porém o alcance deste.
Há, deste modo, uma continuidade ou uma convergência entre a vontade real e a declaração (…). Só acontece que a própria vontade, em consequência do erro, se formou mal, divergindo assim da vontade hipotética que o declarante tivesse tido sem o erro, de maneira que ficou viciada (…). Este erro, originado no âmbito dos motivos, tem de ser encarado sob o aspecto subjectivo do errante (…).
Em consequência dessa perspectiva subjectiva, por um lado, e em defesa da segurança do «tráfico» jurídico, por outro, o erro sobre os motivos, em princípio, não pode ser considerado” (idem, págs. 719 a 721).
Temos, portanto, que o princípio que resulta do art. 252º, nº 1, do Código Civil, é o de que o erro sobre os motivos não tem relevância jurídica, princípio este que comporta três excepções, a saber:
- quando o erro se refere à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, nos termos do art. 251º;
- quando as partes por acordo reconheceram como essencial o motivo, nos termos da 2ª parte do nº 1 do art. 252º;
- quando o erro recair sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio, nos termos do art. 252º, nº 2.
No que respeita à primeira excepção (não curamos aqui de analisar as restantes, já que manifestamente não se relacionam com a questão que se encontra em discussão nos autos), verifica-se que o erro sobre a pessoa do declaratário “incide ou sobre a identidade do declaratário ou sobre as suas qualidades pessoais que constituem o motivo determinante da declaração”, só sendo causa de anulabilidade “quando o declarante queria contemplar precisamente uma determinada pessoa, mas esta não foi, ao contrário da ideia do declarante, o declaratário”.
Por sua vez, o erro sobre o objecto “recai ou sobre a identidade do objecto ou sobre a sua substância ou sobre as suas qualidades essenciais. O objecto é apenas aquilo sobre que versa o negócio (…)”, não estando abrangido no artigo em referência “um erro sobre os efeitos produzidos pela declaração negocial a respeito de certo objecto” (sublinhado nosso).
“Qualidade de um objecto são todos os factores determinantes do valor ou da susceptibilidade de utilização pretendida, mas não o próprio preço ou o valor em si nem a propriedade do objecto. Uma qualidade é essencial quando é decisiva para o negócio conforme a finalidade económica deste” (sublinhado nosso).
“O erro sobre os efeitos jurídicos de um negócio que se verificam independentemente da vontade do declarante (…) não releva no âmbito do art. 251º: não existe uma vontade que possa ser viciada, uma vez que se trata de efeitos legais” (ibidem, págs. 724 a 726).
Aliás, sobre esta questão, igualmente referem P. Lima e A. Varela, in Código Civil anotado, vol. I, 4ª ed. revista e actualizada, em anotação ao art. 251º, pág. 235, que “o objecto não se identifica, neste caso, com os efeitos do negócio, mas com aquilo sobre que versa o negócio. É o objecto mediato e não o objecto imediato ou conteúdo do negócio que está em causa”.
Pode acontecer que o erro de que vimos tratando seja resultado da actuação exterior do declaratário ou de um terceiro, que impede a formação da vontade livre e esclarecida do declarante – aí temos os casos de dolo, previstos no art. 253º, nº 1, do Código Civil: Entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante, excepcionando o legislador os casos referidos no nº 2 do mesmo artigo, o chamado “dolo lícito” ou “dolus bonus”.
São, assim, necessários os seguintes pressupostos, para que o dolo seja juridicamente relevante, como causa de anulação da declaração:
“a) que o declarante esteja em erro;
b) que este erro tenha sido induzido, mantido ou, em contrário a um dever de elucidar, dissimulado pelo declaratário ou por um terceiro, de modo que eles provocaram o erro do declarante;
c) que o declaratário ou terceiro haja recorrido para o efeito, ilicitamente a qualquer artifício, sugestão, embuste, etc.”.
Ademais, “só é relevante (…) o dolo anterior ou simultâneo da declaração” e “desde que realmente a tivesse determinado, ou seja, desde que tivesse sido o elemento causal” (Heinrich E. Hörster, ob. cit., págs. 738 e 741).
Revertendo agora à análise do caso concreto, tendo presente tudo quanto acabou de se expor, verifica-se que resultou provado que:
- em 14/01/2022, o R. vendeu à A. o veículo automóvel referido no ponto 2 da matéria de facto, cujo hodómetro marcava 212.948 km, pelo preço de € 5.750,00;
- o R. sabia que a quilometragem do veículo constituía uma característica importante para a efetivação do acordo com o gerente da A.;
- a A., que, entre outras, exerce a actividade de comércio de automóveis, vendeu o veículo a BB, pelo preço de € 6.900,00;
- a A. recebeu o preço em 20/01/2022 e pagou ao R. em 03/02/2022;
- em meados de Março de 2022, BB teve acesso ao registo das anteriores inspecções técnicas efectuadas ao veículo e constatou a existência de uma alteração do hodómetro do veículo, que em 10/01/2021 apresentava 464.595 km e em 08/11/2012 apresentava 188.057 km;
- este deu conhecimento desse facto ao gerente da A., que, por sua vez, o comunicou ao R.;
- se o gerente da A. soubesse destes factos não teria celebrado o acordo com o R.;
- o veículo foi devolvido à A. entre os meses de Setembro e Outubro de 2022, tendo esta devolvido o preço que havia recebido e pago ainda as quantias referidas nos pontos 24, 25 e 26, al. b).
Analisada a factualidade descrita, verifica-se que a A., que se dedica, além do mais, à actividade de venda de automóveis, adquiriu o veículo para o revender, sendo que nesta actividade a quilometragem dos automóveis é um elemento determinante nos negócios a realizar, bem como a confiança de que o contador é fiável e apresenta os valores correctos, não havendo alteração dos hodómetros, e que o R. sabia da importância da quilometragem na celebração do negócio por parte da A..
Ora, vista a situação acabada de descrever, não restam dúvidas de que existe um vício na formação da vontade do representante da A., pois que a vontade de adquirir o veículo se formou com base no pressuposto errado de que este tinha menos de metade da quilometragem que realmente tinha e que o hodómetro estava correcto. Com efeito, não se trata apenas de uma má percepção ou de uma confusão por parte daquele, mas de um efectivo engano do mesmo provocado pela adulteração do hodómetro.
Ou seja, a vontade viciada, de comprar aquele veículo, pela referida pressuposição, diverge da vontade que o representante da A. teria tido, de não adquirir esse mesmo veículo, se estivesse esclarecido quanto à viciação do hodómetro.
Não há, assim, dúvidas, de que estamos perante um erro que atingiu os motivos determinantes da vontade do comprador e que este erro se refere ao objecto do negócio.
Na verdade, o veículo adquirido é o objecto mediato do negócio, aquilo sobre que versa o contrato de compra e venda celebrado entre o R. e a A..
E trata-se de um erro que atinge as qualidades essenciais do objecto, pois que, é manifesto, igualmente, que a quilometragem do veículo e um hodómetro não viciado são qualidades essenciais do mesmo, constituindo um factor determinante “do valor” e sendo decisivas “para o negócio conforme a finalidade económica deste”.
Efectivamente, e como se disse no tratamento da questão anterior, citando o Ac. do S.T.J. de 28/04/2016, o valor comercial dos veículos “é directa e essencialmente influenciado pelo seu estado de conservação e ainda, numa escala elevada, pela idade e pela quilometragem percorrida”, pelo que “não pode duvidar-se de que a divergência entre o que o contador mostrava e a quilometragem efectiva constituía um factor essencial para a A. no que concerne à sua opção de comprar, para revenda”.
Estamos, portanto, perante a existência de um erro por parte do comprador sobre os motivos que determinaram a sua vontade de comprar, referido a qualidades essenciais do veículo objecto do negócio.
Como decorre do que já se analisou anteriormente, este erro só é determinante se o declaratário (no caso, o R.) conhecia ou não ignorava a essencialidade para o declarante (no caso, a A.) do elemento (no caso a correcta quilometragem) sobre que incidiu o erro deste.
Ou se tal erro foi determinado por dolo do declarante ou de algum terceiro, sendo o dolo qualquer sugestão ou artifício que estes empreguem com a intenção ou a consciência de induzirem ou manterem em erro o declarante ou a dissimulação de um erro em que já se encontre o declarante.
No caso concreto, embora resulte da matéria de facto que houve uma viciação propositada do hodómetro, e que foi este artifício que induziu o representante da A. em erro, o certo é que esta viciação ocorreu antes da compra do veículo pelo R. (antes de 08/11/2012, sendo o registo da compra do veículo pelo R. de 28/11/2012 – indiciando-se até que esta viciação já poderá ter sido feita para enganar o próprio R. aquando da sua compra), não resultando que o R. soubesse que de tal facto e que propositadamente dele se tenha aproveitado para induzir aquele em erro, levando-o a comprar um veículo que de outra forma não compraria.
Quer dizer, da matéria de facto não resulta que o R. soubesse da viciação e, apesar desse conhecimento, tivesse aproveitado o artifício para convencer o representante da A..
Efectivamente, afigura-se que o próprio R. estaria em erro sobre a situação verificada (como se disse, poderá até ter sido ele o destinatário inicial da viciação) e por esse motivo assim o transmitiu ao representante da A..
Donde, não existe, no caso da venda do R. à A., erro determinado por dolo.
Mas já se verifica que o R. conhecia a essencialidade para a A. do elemento sobre o qual incidiu o erro do representante desta.
E nem se esgrima com o argumento, usado pelo recorrente, de que a A. não provou que a referida característica era “essencial (não apenas importante)”, aludindo à redacção do ponto 8 da matéria de facto. Com efeito, a essencialidade do elemento é um conceito normativo utilizado no regime legal do Código Civil que disciplina o erro na formação da vontade, o qual tem de ser integrado pelo decisor perante os factos concretos que resultem provados.
Ora, da matéria de facto no seu conjunto, não só o ponto 8, e como já se concluiu supra, retira-se que se trata, no caso, de um elemento que respeita a qualidades essenciais da coisa adquirida, sendo daí que se concluiu pela essencialidade.
Ademais, o conhecimento do R. por referência à “importância” da quilometragem abrange necessariamente essa essencialidade, até porque, “importante” significa “que tem importância”, “que tem interesse e relevância”, “que merece consideração”, “útil”, “necessário”, “essencial” (cfr. Dicionário Infopédia, no sítio https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/importante), “que é essencial, fundamental” (cfr. Dicio – Dicionário Online de Português, no sítio https://www.dicio.com.br/importante/).
Conclui-se, assim, que ocorre efectivamente no caso concreto um erro sobre o objecto do negócio, nos termos do art. 251º do Código Civil, por parte do representante da A., e que tal erro é juridicamente relevante, nos termos do art. 247º do mesmo Código, atento o conhecimento por parte do R. da essencialidade do elemento sobre que tal erro incidiu.
Defende o recorrente que houve confirmação tácita do negócio por parte da A., nos termos do 288º, nº 3, do Código Civil, porque:
- a A., assim que soube da alegada alteração do hodómetro do veículo contactou o R., que propôs a devolução imediata do dinheiro e a retoma do veículo;
- a A. não aceitou a anulação imediata do negócio, nem retomou de imediato o veículo ao cliente e testemunha, deixou-o na posse do cliente até Outubro de 2022, emitiu a factura de venda do veículo em 01/08/2022 (sete meses depois) e ainda o “indemnizou” com um valor correspondente a 1/3 do valor do objecto do negócio, por um dano que aquele, notoriamente não teve.
Nos termos previstos no art. 288º do Código Civil, a anulabilidade de um negócio jurídico é sanável mediante confirmação.
“A confirmação põe termo à invalidade e à provisoriedade dos efeitos do negócio, com força retroactiva, sanando a deficiência originária de que enfermava tanto em relação às partes como em relação a terceiros”.
Trata-se de um negócio jurídico unilateral, “bastando para ela um comportamento concludente, uma manifestação, de onde um terceiro ou, na maioria dos casos, a própria parte possam concluir para a existência de uma vontade confirmativa que, evidentemente, não pode faltar”.
A confirmação pode ser expressa ou tácita. “Ela é tácita quando a pessoa a quem caiba o direito de confirmar haja adoptado um comportamento no sentido de optar pela validação do negócio” (Heinrich E. Hörster, ob. cit., págs. 755 e 756; veja-se também P. Lima e A. Varela, ob. cit., em anotação ao art. 288º, pág. 264, e Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3ª ed. actualizada, 1989, pág. 614).
De acordo com a regra resultante do art. 217º, nº 1, do Código Civil, “a confirmação tácita ocorre:
- Perante comportamentos que, com toda a probabilidade, revelem a intenção de consolidar o negócio;
- Quando o interessado prescinda de invocar anulabilidades;
- Quando decorra um comportamento concludente, com esse conteúdo”
(Mafalda Boavida, Negócio Jurídico e Exercício, F.D.U.L., pág. 104, acessível em https://aafdl.pt/wp-content/uploads/2021/03/Neg%C3%B3cio-Jur%C3%ADdico-e-Exerc%C3%ADcio-Mafalda-Boavida.pdf).
“A concludência dum comportamento, no sentido de permitir concluir «a latere» um certo sentido negocial, não exige a consciência subjectiva por parte do seu autor desse significado implícito, bastando que, objectivamente, de fora, numa consideração de coerência, ele possa ser deduzido do comportamento do declarante” (Mota Pinto, ob. cit., pág. 425).
Para ser eficaz, a confirmação, mesmo que de natureza tácita, tem de ser posterior à cessação do vício que serve de fundamento à anulabilidade e tem de existir conhecimento efectivo do vício e do direito à anulação.
“O vício que originou a anulabilidade deve cessar, de outro modo, conserva-se a causa eficiente da invalidade, não havendo como suprimi-la” (idem).
Revertendo ao caso concreto, da matéria de facto não resulta a existência de qualquer comportamento por parte do representante da A. relativamente ao qual, objectivamente, se possa concluir pela intenção do mesmo de confirmar o negócio que celebrou com o R..
Com efeito, aquele comunicou a este a situação que foi detectada quanto ao veículo, tendo este proposto devolver o dinheiro e retomar o veículo, nada constando da matéria de facto sobre a posição que aquele tomou quanto a esta proposta.
Entretanto, entre Abril e Junho de 2022 o representante da A. e o comprador do veículo acordaram a devolução deste e o pagamento por parte da A. do remanescente do crédito e de uma indemnização, tendo sido pagas quantias entre Agosto e Novembro de 2022. O veículo, por sua vez, foi entregue à A. entre Setembro e Outubro do mesmo ano.
Ora, este comportamento em nada permite concluir pela confirmação do primeiro negócio, respeitando unicamente à resolução do segundo negócio celebrado, que a A. teve que solucionar perante o seu cliente, sendo que a forma como tal sucedeu foi precisamente a de anular este segundo negócio, não resultando de qualquer forma que pretendesse ficar com o veículo para si (a confirmação do primeiro negócio pressupunha que a A. aceitasse os efeitos da compra e venda celebrada com o R., nomeadamente ficando com o veículo).
Ademais, o facto de tal não ter sucedido de imediato, mais ainda ter demorado alguns meses a concretizar-se em nada interfere com a vontade de “desfazer” o negócio (veja-se que mesmo a lei prevê o prazo de um ano para intentar a acção de anulação). E a circunstância de ter sido emitida factura (invocada pelo recorrente, mas que não consta da matéria de facto), a ocorrer, nada mais significa senão o cumprimento de obrigações fiscais.
E de todo o modo, ainda que assim não fosse, sempre no caso não estavam preenchidos os requisitos de cessação do vício (pois o hodómetro continua viciado, a apresentar quilometragem bastante diferente da real) e de conhecimento efectivo do direito à anulação (dos factos provados apenas se retira que o representante da A. já conhecia entretanto o vício, mas não que soubesse que tinha direito à anulação do contrato).
Não ocorreu, pois, a confirmação do negócio, pelo que não merece acolhimento nesta parte a pretensão do recorrente, sendo de manter a sentença recorrida quanto à anulação do contrato.
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Resta apreciar a quarta questão.
Nos termos previstos no art. 289º, nº 1, do Código Civil, a anulação tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
Logo, os efeitos da anulação de um contrato de compra e venda são a devolução da coisa pelo comprador ao vendedor e a restituição do preço pelo vendedor ao comprador, não havendo lugar a indemnização por danos como decorrência directa desta anulação.
A existência de direito a indemnização decorre, portanto, das regras gerais da responsabilidade, da verificação no caso dos respectivos pressupostos, podendo eventualmente existir responsabilidade pré-contratual, nos termos do art. 227º do Código Civil (na medida em que não há contrato validamente concluído, a responsabilidade não pode ser contratual), ou responsabilidade extra-contratual, nos termos do art. 483º do Código Civil, se ocorrer violação ilícita do direito da A. ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, tendo de verificar-se os respectivos pressupostos – facto voluntário, ilicitude, culpa, prejuízo sofrido pelo credor e nexo de causalidade entre o facto e o prejuízo.
No caso, a circunstância que provoca toda a situação ocorrida é a existência de uma viciação do hodómetro do veículo, com significativa alteração da quilometragem do mesmo.
Porém, não resultou provado que o R. conhecesse essa viciação, mais, até resulta dos factos provados que esta ocorreu em data anterior à data da aquisição da propriedade do veículo pelo R., que se manteve proprietário do mesmo durante nove anos, sem que, nomeadamente em qualquer inspecção, tal alteração tivesse sido detectada.
Logo, falece a existência do pressuposto da ocorrência de facto voluntário por parte do R. e também do pressuposto da culpa, pois que nem sequer demonstrada se encontra qualquer negligência da parte deste.
Por outro lado, igualmente não se pode dizer que o R. não procedeu segundo as regras da boa fé, nomeadamente omitindo informações relevantes para a A. de que tivesse conhecimento, posto que também ele não sabia da existência da alteração do hodómetro, o que determina a não verificação dos pressupostos da responsabilidade pré-contratual.
O que significa que, no caso, a A. apenas tem direito à devolução do preço que pagou (devolvendo, ela, por sua vez, ao R. o veículo) e não a qualquer indemnização a acrescer a esse montante.
A sentença recorrida condenou o R. a pagar à A. o montante total de € 9.144,00, que engloba o preço pago pela A. de € 5.750,00, mais o montante de € 1.150,00, correspondente ao lucro desta na venda do veículo ao seu cliente (a diferença entre o preço que pagou e o preço de € 6.900,00 por que o revendeu), as quantias de € 132,00 e € 112,00 que a A. pagou directamente à entidade que forneceu o crédito ao seu cliente para a compra do veículo e o valor de € 2.000,00, que a A. acordou entregar ao seu cliente a título de indemnização pelo sucedido.
Valendo o que se disse também para o negócio celebrado entre a A. e o seu cliente, verifica-se que igualmente neste caso não havia outra obrigação para a A. senão a de restituir o preço que recebeu, posto que o seu legal representante, tal como o R., desconhecia, sem culpa, a viciação do veículo, não tendo havido qualquer omissão de informações conhecidas da sua parte.
A A., eventualmente para preservar a sua imagem comercial e as boas relações com o seu cliente, entendeu indemnizar o mesmo com o pagamento da quantia total de € 2.244,00, o que não pode repercutir no R., posto que este não é obrigado, fora dos pressupostos da responsabilidade civil, a partilhar daquela decisão da A..
E quanto à diferença entre o preço pago e o preço recebido, tal constitui o lucro que a A. pretendia obter com o segundo negócio, decorrente do concreto preço que acordou com o cliente, que não seria indemnizável no caso, tendo em conta o disposto nos arts. 562º, 563º e 566º, nº 2, do Código Civil, pois, sem a celebração do negócio anulado também não teria havido lugar à celebração do segundo negócio e, consequentemente, à obtenção desse acréscimo (veja-se que mesmo no regime da venda de coisa defeituosa, a indemnização em caso de erro, que pode existir em simultâneo com a anulação do negócio, apenas abrange danos emergentes e não tem lugar se o vendedor desconhecia, sem culpa, o vício – arts. 915º e 909º do C.C.).
Tudo para concluir que o R. apenas tem de pagar à A. o preço que dela recebeu, ou seja o montante de € 5.750,00, e já não os restantes valores considerados na sentença recorrida (a qual, aliás, nesta parte, se limitou a dizer, sem mais fundamentação, que a A. tem direito “ao ressarcimento dos danos inerentes ao interesse contratual negativo, os quais se antolham objetivamente decorrentes da perpetração do contrato anulado, i.e., as despesas acrescidas descritas em 24) a 26) dos factos provados, no montante global de €9.144,00”).
Assim, merece provimento nesta parte o recurso interposto, devendo o R. ser condenado a pagar à A. apenas o montante de € 5.750,00, acrescido dos juros de mora nos termos determinados.
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Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela obtenção parcial de provimento do recurso interposto pelo R..
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo R. e, em consequência:
a) condenar o R. a pagar à A. a quantia de € 5.750,00 (cinco mil setecentos e cinquenta euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal fixada para as obrigações civis, desde a citação até integral pagamento;
b) no mais, negar provimento ao recurso, confirmando-se a restante parte da sentença recorrida.
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Custas da apelação por recorrente e recorrida, na proporção do respectivo decaimento (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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datado e assinado electronicamente

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Porto, 6/2/2025.

Isabel Rebelo Ferreira
Aristides Rodrigues de Almeida
Paulo Dias da Silva