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HERANÇA
AÇÃO POSSESSÓRIA
CABEÇA DE CASAL
LEGITIMIDADE ATIVA
DIREITO DE SERVIDÃO
SINAIS APARENTES
CONSTITUIÇÃO
Sumário
I - Se é certo que nos termos do disposto no art. 2091.º do CC, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros, certo é também que o mesmo preceito exceciona “os casos declarados nos artigos anteriores”, como seja, entre outros, o artigo 2088.º, o qual dispõe que “O cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiros a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de ações possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído.”. E assim sendo, a intervenção da cabeça-de-casal, ainda que acompanhada de outro herdeiro, é suficiente para assegurar a legitimidade processual ativa, num processo em que está apenas a usar de uma ação possessória, a fim de ser restituída da posse. II - Se em dois ou mais prédios pertencentes ao mesmo dono, existirem sinais que mostrem que uma certa utilidade de um dos prédios está a ser gozada por outro desses prédios, estamos perante uma situação de facto que não tem qualquer significado jurídico, uma vez que o direito de servidão apenas se constitui em proveito de proprietário diferente do dono do prédio onerado, conforme dispõe o artigo 1543.º do Código Civil. Contudo, se os prédios passam a pertencer a titulares distintos, aquela situação de facto converte-se num verdadeiro direito de servidão, que nasce automaticamente em consequência do ato pelo qual passam a existir, pelo menos, dois prédios com proprietários diferentes. III - Para efeitos do disposto no final do art. 1549.º do Código Civil, a declaração em contrário constante do documento tem que ser expressa, ou objetiva, não bastando a aposição tabelar da cláusula “livre de ónus e encargos”. IV - Na decisão de um procedimento cautelar de restituição provisória da posse, atenta a sua natureza urgente, não pode determinar-se a restituição provisória da posse aos requerentes, no prazo de 10 dias após o trânsito da respetiva decisão, sob pena de ficar subvertido o efeito devolutivo do recurso, para além da própria finalidade do procedimento cautelar.
Texto Integral
Apelação 2217/23.0T8OAZ.P1
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
AA, na qualidade de possuidora e cabeça de casal, e BB, na qualidade de possuidor e herdeiro, por óbito de CC, instauraram contra,
A..., Lda., DD e EE, todos melhor identificados nos autos, procedimento cautelar de restituição provisória da posse, pedindo que “sem audiência prévia dos requeridos, se digne ordenar a remoção da obstrução que os RR fizeram no portão a impedir a passagem dos requerentes para aceder aos locais identificados e ordenar a sua não intervenção na alteração das mesmas, comprometendo-se estes a colocar à disposição do Tribunal os meios necessários para o efeito.”.
Para o efeito alegaram que são co-herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de CC e possuidores do prédio urbano que identificam; que a primeira requerida, por sua vez, é proprietária de dois outros prédios, dos quais os demais requeridos são comodatários; que a favor do prédio de que se dizem possuidores, existe uma servidão de passagem, a pé e de carro, bem como uma servidão de águas; que os requeridos vêm impedindo o gozo dessas servidões, o que fizeram de forma violenta.
Não tendo sido dispensada a audiência prévia dos requeridos, foram estes citados e vieram deduzir oposição, arguindo a exceção de ilegitimidade ativa por não estarem em juízo todos os herdeiros da herança, para além de impugnarem os factos alegados pelos requerentes, alegando não existirem quaisquer servidões.
Notificados para o efeito, os requerentes vieram pronunciar-se pela improcedência da exceção de ilegitimidade ativa.
Por despacho de 16-11-2023, foi julgada improcedente a exceção de ilegitimidade ativa.
Prosseguindo os autos, com a produção das provas requeridas, foi proferido despacho final que decidiu: “Pelo exposto, e nos termos dos fundamentos de Direito invocados, julgo parcialmente procedente, por provado, o presente procedimento cautelar de restituição provisória da posse, e em consequência: «declaro os requerentes legítimos possuidores de servidão constituída por destinação de pai de família quanto à utilização da água do poço e acesso para a sua manutenção/conservação/limpeza (actos inerentes àquela utilização) e, bem assim, servidão de passagem que permite o acesso desde o portão localizado a norte no prédio b) e até aos anexos existentes no rés-do-chão da parte traseira do prédio dos autores, passagem esta que tem início na entrada do prédio b), a norte, junto ao referido portão que dá para a Rua ..., com uma largura de 2,55m e uma extensão de 11,70m na direcção sul; bifurcando depois a passagem para nascente numa extensão de 7,25m, mais determinando que os réus procedam à disponibilização aos autores de chave que permite o acesso a essas serventias através do portão localizado na Rua ..., no prazo de 10 dias após o trânsito da presente decisão, abstendo-se de praticar quaisquer outros actos que impeçam a passagem dos autores; «Não reconhecendo o Tribunal o direito de servidão de passagem para alcançar os anexos existentes a sul/poente, constituído a favor do prédio dos autores sobre o prédio b) da 1ª ré, nada há a determinar neste aspecto quanto à obrigação dos réus de procederem à remoção de qualquer obstrução.”.
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Não se conformando com o assim decidido, nem com a decisão que julgou improcedente a exceção de ilegitimidade ativa, vieram os requeridos interpor recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, formulando as seguintes conclusões: “1) Deve o despacho de referência: 129029289 datado de 16-11-2023, que indeferiu a exceção dilatória de ilegitimidade processual ativa dos requerentes, ser revogado por outro que a defira, porquanto, 2) A providência cautelar foi interposta por AA, esta, na qualidade de cabeça de casal e, BB na qualidade de co-herdeiro da herança ilíquida e indivisa – NIF ... – aberta por óbito de CC, porém, 3) Analisado o documento de habilitação de herdeiros junto com a p.i., identificada como documento 3, junta pelos requerentes, faltam como requerentes os herdeiros FF, casada no regime da comunhão geral com GG, residentes na Rua ... n.º ..., 3º esquerdo, da União de Freguesias ..., ..., ..., ... e ..., cidade e concelho de Oliveira de Azeméis. Ora, 4) Não tendo a herança aberta ilíquida e indivisa, personalidade jurídica, esta tem de ser representada em juízo por todos os herdeiros, o que não acontece in casu 5) Com a exigência da legitimidade pretende-se garantir que devem estar em juízo todos os titulares da relação material controvertida, para que a decisão a proferir resolva em definitivo o conflito, pelo que, 6) Em face do supra descrito a providência cautelar teria de ter sido interposta pelos três herdeiros, faltando um dos interessados, cuja presença seja necessária, verifica-se a preterição do litisconsórcio necessário ativo, o que se requereu e, foi indeferido pelo despacho de que ora se recorre. Assim, 7) Tal exceção dilatória, obsta ao conhecimento do mérito da causa, devendo V.Ex.as, determinar, ab initio, e, oficiosamente, a absolvição dos requerentes da instância, ao abrigo do disposto nos artigos 576º e 577º do CPC., pelo que, 8) Revogando, V.Ex.as, o despacho de que ora se recorre, proferindo despacho a deferir a exceção dilatória de ilegitimidade processual ativa, alegada farão justiça. Sem conceder, 9) Quanto á parte da decisão de que ora se recorre, não se conformam os recorrentes/apelantes, da constituição da servidão de passagem e da água do poço e acesso para a sua manutenção, vejamos, 10) Consta, do contrato promessa de compra e venda outorgado, pelo falecido CC e, a então esposa HH, em 3 de fevereiro de 1993, cujas assinaturas estão reconhecidas presencialmente, que se juntou como documento 3 com a oposição apresentada, que o prédio em questão seria, (…) adquirido livre de quaisquer ónus, encargos e responsabilidades e desocupado de coisas e pessoas a partir de hoje.” - vontade expressa dos outorgantes e, aí promitentes vendedores, pelo que, 11) A declaração negocial do dono do prédio nesse sentido, corresponde á declaração de renuncia ou de deixar de ser titular de qualquer direito, nomeadamente, a existência de quaisquer servidões. 12) Tal declaração deve ser entendida para efeitos de afastar a constituição de uma qualquer servidão por destinação de pai de família, e, por maioria de razão, assim, seria, para efeitos de renúncia de uma qualquer servidão previamente constituída. 13) Caso contrário a recorrente, “A..., Ldª, não teria adquirido o prédio, pois que, com a respetiva separação dos prédios, e, consequente, loteamento, apto para construção, estando o prédio adquirido, por esta, onerado com qualquer servidão, perderia capacidade construtiva, que se consubstancia, como hoje se verifica num prejuízo considerável em termos monetários para a adquirente. 14) As servidões, de passagem e de água do poço, NUNCA se chegaram a constituir, pois que, as servidões por destinação do antigo proprietário só se constituem no momento da separação dos prédios quanto á sua titularidade, e, tal acontece com a outorga do supra referido contrato promessa. Acresce que, 15) A declaração negocial constante do contrato promessa de compra e venda cumpre a vontade unilateral dos aí outorgantes pais dos requerentes da providência, sendo tal declaração suficiente para extinguir qualquer relação de serventia existente entre os prédios de apelantes e apelados, e, bem assim, 16) Tem de se atender, ao teor literal da declaração emitida pelos primitivos proprietários de que a venda seria feita “livre de quaisquer ónus e encargos”, o que é suficiente e bastante para impedir que sobre o prédio se constitua qualquer servidão. Com efeito, 17) A declaração aposta no contrato promessa de compra e venda “livre de ónus e encargos e desocupado de coisas e pessoas a partir de hoje”, conjugada com os termos do processo negocial posterior, deve ser entendida como renúncia ao direito a qualquer servidão. Acresce que, 18) O tribunal “a quo”, não fez uma apreciação correta da prova documental apresentada pelos apelantes, pois que, no ano de 1992 foi concedido em nome do falecido CC, pela Câmara Municipal ..., Alvará de Licenciamento de Loteamento Urbano para o prédio referenciado, onde consta no final do ponto 5.2 que, “O abastecimento de água será feito através da rede pública existente no local.(…)” – documento 1 que se juntou com a oposição, constando do Edital publicado, o mesmo teor quanto ao abastecimento de água do prédio – cfr. documento 2 que juntou com a oposição Com efeito, 19) É obrigatória a ligação á rede pública de água, obrigatoriedade inserta no artigo 8º do Regulamento Geral de Abastecimento e Águas Residuais do Município ..., uma vez que, 20) Por questões de saúde pública não é permitido o abastecimento de um prédio habitacional, este no centro da cidade de Oliveira de Azeméis, com água de um poço, á qual não é feito qualquer analise e controlo de qualidade, como acontece com o presente. 21) É um assunto do conhecimento geral a amplamente debatido em praça pública; 22) E caro, pois os preços para a ligação, taxas e consumos, cobrados neste concelho, constituem um entrave, e, fizeram com que os primitivos interessados e, agora, os apelados, continuem a protelar e adiar indefinidamente, a ligação, do seu prédio, á rede pública, mas, por tal não podem os demais ser punidos, já estão amplamente prejudicados com a afetação da capacidade construtiva do prédio adquirido, com a constituição das servidões. 23) Tendo o tribunal “á quo”, feito tábua rasa de uma obrigatoriedade legal, estabelecida por este Município ... – cfr. DL 207/94 de 6 de Agosto, o decreto Regulamentar 23/95 de 23 de Agosto e o Regulamento 356/2013. 24) Não se conformando os aqui apelantes com tal decisão, porquanto, para além de não existir qualquer servidão de água, é, igualmente obrigatória a ligação do prédio dos apelados á rede pública de água, com as consequências que daí advêm. 25) Quanto à servidão de passagem, deferida pela Meritíssima Juiz a quo, com a qual os recorrentes não se conformam, nem se podem conformar, que permite o acesso desde o portão localizado a norte do prédio dos apelantes e até aos anexos existentes no rés do chão da parte traseira do prédio dos apelados, sempre dirão os aqui recorrentes que, o alvará de loteamento ..., referente ao prédio dos recorridos, foi requerido pelo próprio falecido CC, pai dos aqui recorridos. 26) Aliás, conforme decorre da análise dos documentos autênticos, nomeadamente, do Alvará, do edital que o tornou público e da certidão da Conservatória do Registo Predial, juntos com a oposição apresentada, o lote com o número um, tem de área 314 m2, destina-se à construção de um edifício de cave para aparcamento, rés do chão para comércio e 3 andares para habitação, sendo o último recuado, originando um total de duas unidades para comércio e 6 fogos. 27) Em sítio nenhum prescreve o alvará que o lote se encontra onerado com qualquer servidão, nem se encontram registadas quaisquer servidões ou ónus a favor do prédio dos recorridos. 28) Sempre dirão os apelantes que, da confrontação e análise dos documentos autênticos, apresentados em juízo, relativamente à servidão “inexistente”, quanto aos anexos situados no rés do chão da parte traseira do prédio dos AA aqui recorridos/apelados, conclui-se que os mesmos são de construção ilegal. 29) Não podendo os recorrentes/apelantes serem prejudicados com a constituição de mais uma servidão com construções ilegais. Com efeito, 30) Não fez a M. Juiz “a quo”, salvo melhor opinião em contrário, a correta análise á prova, nomeadamente, á extensa prova documental existente nos autos, junta pelos apelantes em sede de oposição apresentada, 31) Não fez, igualmente, salvo o devido respeito, a meritíssima Juiz a quo, a correcta e critica análise da prova testemunhal apresentada nos autos, porquanto, 32) Refere a mesma, na decisão de que ora se recorre que, as testemunhas arroladas pelos então requerentes aqui recorridos, prestaram um depoimento espontâneo e desinteressado, quanto à questão em análise, porém, 33) Tal não corresponde à realidade dos factos, pois que, da audição dos referidos testemunhos, mormente da testemunha II, conclui-se precisamente o contrário, ou seja, que o seu depoimento foi tudo menos espontâneo, aliás 34) O seu depoimento, quando inquirido pelas mandatárias dos requeridos aqui apelantes, foi rude e interessado no desfecho da lide. Por tal, 35) Deve ser reanalisada e valorada por V.Ex.as, a prova documental apresentada e bem assim, a prova testemunhal, nomeadamente, da testemunha supra referida, e, consequentemente, 36) Revogando a decisão proferida por outra, que julgue improcedente, por não provado o procedimento cautelar de restituição provisória de posse apresentado pelos apelados, com as demais consequências legais, farão a costumada e sã Justiça!”.
Os recorridos apresentaram contra-alegações, concluindo pela improcedência da apelação dos recorrentes.
Formularam, ainda, recurso subordinado, com as seguintes conclusões das suas alegações: “1. A meritíssima juiz a quo não cumpriu com o estabelecido no artigo 378º do CPC. Ainda, 2. Após 7 meses desde a entrada da presente providência, deferindo parcialmente a reivindicação dos AA., determinou a mesma no seu dispositivo que os efeitos da sentença ora recorrida, apenas ocorreria 10 dias após o trânsito em julgado. 3. Tal viola as regras dos efeitos dos recursos previstos em processo civil, (em regra devolutivos) e, por outro lado, 4. Retira toda a razão de ser da existência de procedimentos cautelares, deferindo o efeito da sentença para após o trânsito da mesma, impondo um ónus aos AA. incompreensível. Também, 5. Veio a meritíssima juiz a quo dar como provado o facto nº 6, condicionado/limitado no entanto pela alínea a) e a alínea b), ambas dadas como não provadas. Assim, 6. Não podem os recorrentes/AA. aceitar tal decisão porquanto contraria totalmente o depoimento de todas as testemunhas dos recorrentes, a falta de contraditório quanto a tal pelas testemunhas dos Requeridos e os documentos e peças processuais existentes. Desde já se refere que, 7. Começando por esta (alínea b)), trata esta de uns anexos/benfeitorias existentes no prédio serviente justamente no limite poente do mesmo e a sua utilização exclusiva por parte dos recorrentes/AA.. Desde logo, 8. Ocorre em erro manifesto a conclusão/afirmação da meritíssima juiz a quo de que os AA. se arrogam à titularidade desses anexos (pág. 8, primeiro parágrafo, da sentença), o que nunca foi pelos mesmos afirmado ou sequer indiciado. 9. O que os mesmos alegam (e provaram) foi a utilização exclusiva de tais anexos, sucedendo ao seu pai, como arrecadação para bens provenientes, nomeadamente, do seu negócio, contabilidade e particulares (11º da PI). Sendo que, 10. Os mesmos foram construídos pelo pai dos requerentes/AA. e sempre utilizados por este, em exclusivo, nomeadamente, no início, para uma atividade de comércio de carnes verdes/talho e como sua residência provisória, tendo continuado com os AA., como espaço de arrumação. Por outro lado, 11. Todas as testemunhas identificaram, confirmaram e reconheceram, que a única entrada existente e direta para aquele prédio serviente é a do portão existente a norte, com uma largura de 2,55m e que foi objeto do referido encerramento violento (esbulho) pelos Requeridos/RR.. 12. Outro argumento que a mesma usa para justificar a sua decisão é que tais anexos confrontam com a via pública sendo tal percetível pela análise de um levantamento topográfico junto aos autos pelos AA. e que têm uma passagem direta por aí. 13. Tal afirmação não só não corresponde à verdade, pois, inexiste qualquer abertura para a via pública por qualquer outro lado que não o portão esbulhado (vd. Artigos 5 e 14 da PI, não contestadas quanto ao portão), como, não tem qualquer base factual e documental (também docs. 25 da PI e 11 da contestação). 14. É que inexiste qualquer levantamento topográfico específico do local nos autos, mas apenas um para definir a localização do poço e as passagens/caraterísticas das servidões. 15. O mesmo foi efetuado e junto por iniciativa dos AA., perante a notificação para procederem à descrição mais pormenorizada das servidões de passagem e localização do poço (despacho de 16/11/2023, refª 129029289). 16. Este assinala com rigor apenas as mesmas, sendo o restante meras projeções aproximadas de parte das construções. No entanto, 17. Naquele nem sequer figuram na totalidade os anexos em causa, apenas a sua frente e afastamento em relação ao poço e à casa dos AA., não se podendo concluir pela existência de qualquer entrada ou acesso direto à estrada a norte (vd designação/legenda do documento). Sendo que, 18. Repete-se, ninguém (nem partes nem testemunhas) nos presentes autos afirmou ou alegou a existência de qualquer passagem para e dos anexos para a rua a norte (ou outra) que não o portão esbulhado. Pelo que, 19. Tais anexos/benfeitorias encontram-se erigidos no extremo poente do prédio serviente e a sua única entrada e acesso é a nascente, pela frente, justamente pelo portão esbulhado sito a norte. 20. A utilização de tal espaço exclusiva pelos requerentes foi provada por todas as testemunhas dos recorrentes e reconhecida pelos Requeridos, apenas, quanto a estes, com a menção de que se tratava de uma utilização meramente autorizada. 21. Apesar de impugnarem o referido no artigo 11º da PI, a sua impugnação/alegação/contradita apenas versa o facto referido no 12º da PI, referente à existência de um canídeo no espaço exterior do prédio serviente. Por último, 22. A legalidade da sua construção/existência (que não poderá estar em causa dado a sua evidente existência, aceite por ambas as partes), em nada tem a ver com a matéria em discussão e respetivo pedido, sendo indiferente às partes se constam ou não de documentação oficial. 23. (Foi requerida pelos Requeridos a inspeção ao local sobre a qual a meritíssima juiz a quo não deferiu nem se pronunciou definitivamente). 24. Finalmente, vem a meritíssima juiz a quo referir a existência de obras executadas pelos RR. nesses, há cerca de 2 anos e que tal atuação, não tendo sido reclamada pelos recorrentes (?), é sinal de que não se preocupam ou reconhecem não ter a titularidade de tal espaço. Ora, 25. Em primeiro lugar, uma qualquer referência intervenção no “espaço”, aparentemente, apenas terá sido referida em sede de declarações de parte pela R. DD, cuja importância e valor está definida judicialmente. Por outro lado, 26. Existe apenas uma alusão efetuada pela testemunha JJ, a qual refere ter aquela R. efetuado a limpeza dos anexos, não sabendo precisar quando, mas há cerca de 1 ano. 27. Embora tal situação se nos afigure irrelevante para os efeitos pretendidos com a providência, a verdade é que, 28. Não há qualquer referência a obras nos anexos a poente, logo, de terem ocorrido há 2 anos como refere a meritíssima juiz a quo, porquanto tal nunca foi alegado ou afirmado por ninguém em qualquer peça processual, tendo esta, aparentemente, confundido o alegado no artigo 17º da PI (referente ao espaço a céu aberto do prédio serviente, conforme os docs. lá referenciados). 29. Trata-se, no entanto, de matéria puramente conclusiva, ainda por cima, sustentada em nenhum facto, documento ou referência alegada. 30. Motivos pelos quais o quesito da alínea b) deverá ser assim decidido e dado como provado. Por outro lado, 31. Do facto dado como não provado correspondente à alínea a), não podem também os recorrentes estar em mais desacordo com a decisão proferida. Assim, 32. Todas as testemunhas dos AA./recorrentes, nos seus depoimentos, confirmaram a entrada de viaturas, desde sempre, por parte destes e ante possuidores em tal espaço (cfr. transcrição dos depoimentos supra), percorrendo as distâncias que se lhes afiguravam necessárias, sem qualquer limitação de tempo e espaço e nenhuma das dos RR. o contrariou. 33. Só a meritíssima juiz a quo é que não se apercebeu de tão consistente confirmação!!! Acresce que, 34. Ao reconhecer aquela e assim decidir, a servidão de passagem com largura que apresenta (2,55m), justamente a abertura do portão esbulhado, tal se tornaria estranho para uma mera passagem a pé. Pelo que, 35. Deverá ser alterado tal quesito (alínea a)) e dado como provado, e reconhecida a passagem de carro, com as consequências decorrentes. 36. Com tal violou a meritíssima juiz a quo o estabelecido, nomeadamente, nos artigos 378º e nºs 4 e 5 do artigo 607º do CPC. NESTES TERMOS, E nos melhores de Direito, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exª., deve a decisão ora recorrida ser revogada nos termos supra explanados. Dando-se, assim, provimento ao presente recurso, tudo com as consequências legais, como é de Direito e de JUSTIÇA!”.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelos apelantes, são as seguintes as questões a apreciar:
- Se ocorre a exceção de ilegitimidade processual ativa;
- Se ocorre erro de julgamento, por errada apreciação das provas, e consequente alteração da decisão da matéria de facto;
- Decidir se em conformidade, face à alteração, ou não, da matéria de facto e subsunção dos factos ao direito, deve ser alterada a decisão de direito.
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O Tribunal de 1ª Instância considerou indiciariamente provada a seguinte matéria de facto: 1. Os autores são herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de CC e possuidores do prédio urbano em propriedade horizontal, composto por edifício de r/chão com um estabelecimento e uma garagem, 1º e 2º andares para habitação um em cada piso e sótão para arrumos, sito na Rua ..., ... ..., da União de Freguesias ..., ..., ..., ... e ..., concelho de Oliveira de Azeméis, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o nº ... e com licença de utilização emitida pela respetiva Câmara Municipal. 2. A primeira ré é proprietária dos prédios urbanos: a - Prédio urbano em propriedade total, composto por casa térrea com quatro divisões e pátio, sito na Rua ..., ... ..., da União de Freguesias ..., ..., ..., ... e ..., concelho de Oliveira de Azeméis, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... (antigo artigo ... da freguesia ...); b - Prédio urbano, terreno para construção, composto de parcela de terreno destinado a construção urbana, sito na Rua ..., ... ..., da União de Freguesias ..., ..., ..., ... e ..., concelho de Oliveira de Azeméis, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo .... 3. A 1ª ré adquiriu estes prédios a CC, referido em 1. supra, ou seja, os prédios referidos em 1 e 2 pertenciam ambos a este último até à transmissão dos dois prédios referidos em 2. À 1ª ré. 4. Essa aquisição foi celebrada por escritura pública outorgada a 11.04.1994. 5. Os 2ºs réus residem e utilizam os prédios referidos em 2. supra há mais de 10 anos. 6. Desde a data referida em 4., os autores utilizam como passagem a pé para acesso aos anexos existentes no rés-do-chão do seu prédio, um caminho que se inicia a norte do prédio b. referido em 2. 7. Circunstância que é do conhecimento dos réus, estes que nunca impediram a passagem dos autores por este caminho. 8. Também desde essa data, os autores fazem uso da água proveniente de poço existente no prédio B referido em 2, que sempre trataram deste poço, compraram e colocaram motores, montaram e trataram de canalizações e pagaram e pagam as despesas inerentes, como o consumo de energia eléctrica pela utilização de motor e despesas com a reparação deste motor. 9. A este poço é possível ter acesso a partir do referido portão, prosseguindo na direcção de poente. 10. Nesse poço encontram-se montados, quer a canalização, quer o motor e respectivo depósito/balão no topo do mesmo, quer a estrutura de suporte deste, com guindaste de manivela, e caixa exterior de acondicionamento dos componentes elétricos respetivos, todos colocados, pagos e utilizados, em exclusivo, pelos autores. 11. A canalização vem de baixo da linha de água do poço até ao motor e prolonga-se, subterraneamente em direção ao muro norte do prédio da 1ª ré e em linha recta durante 2,00m, seguidamente e também subterraneamente, em ângulo reto, por 6,30m até uma parede poente, seguindo subterrânea a cablagem elétrica que alimenta o motor e balão do poço, partindo da parede a nascente a cerca de 7,00m contados do portão, numa pequena diagonal durante 6,50m. 12. A alimentação de água do prédio dos autores foi e é exclusivamente efectuada pela água de tal poço. 13. Circunstância que é do conhecimento dos réus, estes que nunca impediram a utilização pelos autores da água proveniente daquele poço ou da realização de intervenções de reparação. 14. No prédio B referido em 2, os autores mantinham um cão, sendo alimentado pelos mesmos. 15. Em data não concretamente apurada, os 2ºs réus colocaram um cadeado no portão com código de abertura e depois procederam à substituição da fechadura, impedindo o seu uso pelos autores e não disponibilizando a estes uma chave. 16. Em virtude, os autores não conseguem passar nesse portão, não tendo acesso ao referido cão, aos anexos existentes no rés-do-chão do seu prédio referido em 1. e ao poço. 17. Em data não concretamente apurada, os autores tiveram acesso ao motor para efectuar uma reparação.
E deu como não provados, os factos seguintes: a) Que os autores percorram também de carro o caminho referido em 6. b) Os autores beneficiam da utilização em exclusivo de uns anexos/benfeitorias edificados a sul/poente do prédio “B” referido em 2 nos quais, há mais de 20, 30 e 40 anos, guardam os seus produtos e pertences, nomeadamente, agrícolas, mobílias, produtos da sua atividade comercial, documentos de contabilidade e maquinaria variada, publica e pacificamente, sem qualquer contestação. c) Em 18 de Abril do corrente ano, utilizando as mangueiras, os motores, a luz e a água da exclusiva propriedade dos autores ou exclusivamente suportada e reservada para o prédio destes, resolveram encher uma piscina. d) A 08 de Maio pelas 20h30m os 2ºs réus tentaram efectuar uma ligação eléctrica do motor do poço dos autores, tendo provocado um curto-circuito, o que originou a reparação referida em 17 supra. e) Que devido a essa conduta os autores tenham ficado sem água durante dois dias. f) Os segundos réus, a 14 de maio passado, chumbaram um tubo na zona de passagem do portão para o acesso aos anexos dos autores, com vista ao encaminhamento e encanamento de resíduos líquidos e águas pluviais provenientes do prédio da primeira ré prédio, que violam o seu natural escoamento e irão inundar aquela zona de passagem, impedindo e obstruindo a utilização e passagem pelos autores. g) Os 2ºs réus, sem autorização, ocupam o espaço dos autores, justamente no único caminho de acesso, não de servidão, mas de sua propriedade, aos seus anexos e no topo dos mesmos, situado por baixo da sua varanda, justamente com o armazenamento e colocação de objetos variados e de duvidosa qualidade e estado, impedindo a sua total e livre utilização pelos autores, provocando lixo e péssimas condições de salubridade e higiene. h) Os 2ºs réus são pessoas quezilentas e os autores sentem receio de confrontação física.
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IV - MOTIVAÇÃO DE DIREITO
1- Do recurso dos requeridos no procedimento cautelar a) Da exceção de ilegitimidade processual ativa
Os apelantes, requeridos no procedimento cautelar, para além do recurso da decisão final, apresentaram também recurso do despacho com a referência 129029289, datado de 16-11-2023, que julgou improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade processual ativa invocada no seu articulado de oposição.
Tal despacho tem o seguinte teor (na parte que foi objeto de recurso): “A legitimidade é um pressuposto processual que se encontra previsto no artigo 30º do Código de Processo Civil. Este preceito legal, no seu n.º 1, dispõe que “o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar e o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer.” O n.º 2 do mesmo artigo estatui que “o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.”. Trata-se, pois, da susceptibilidade de ser parte numa acção aferida em função da relação dessa parte com o objecto daquela acção, quer dizer, é sempre relativa a uma determinada acção, com um certo objecto. Não podemos deixar de entender que o objecto da acção é fixado, em primeira linha, pelo autor, pelo que são partes legítimas os titulares da relação material controvertida, tal como ela é configurada pelo autor. Com efeito, a forma como o autor equaciona a causa, na petição inicial, é de acentuado relevo para efeitos de determinar se estão reunidos todos os pressupostos processuais, até porque é em face da petição inicial que vem a definir-se a instância. Esta foi a solução pela qual claramente optou a nossa lei processual civil, que veio, no artigo 30º, n.º 3, resolver a velha querela que dividia Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães, acerca desta questão da legitimidade. Dispõe, pois, este preceito legal que “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como ela é apresentada pelo autor.”. Foi consagrada sem restrições a tese sustentada pelo Prof. Barbosa de Magalhães no sentido de que a relação controvertida é delineada pelo autor na petição inicial, através do pedido e da causa de pedir e é em face de tal relação que se haverá de aferir se são ou não as partes legítimas. Nesta decorrência não há que indagar qual é na verdade a relação controvertida ou atender ao alegado pelos réus na contestação, mas apenas aferir se, em face do alegado pelo autor e que define o objecto da lide, se encontra ou não verificado o pressuposto da legitimidade das partes. Regressando ao caso dos autos e estando em causa um procedimento cautelar de restituição provisória da posse, onde é peticionado “a remoção da obstrução que os réus fizeram no portão a impedir a passagem dos requerentes para aceder a locais identificados e ordenar a sua não intervenção na alteração das mesmas (…).”, figurando como requerentes dois herdeiros da herança aberta por morte de CC, um dos quais o cabeça-de-casal, somos de considerar que, no que concerne à legitimidade processual activa, pode recorrer a uma acção possessória quem detenha a posse da coisa nos termos de um direito real de gozo, de um direito real de garantia suscetível de posse ou de um direito pessoal de gozo que beneficie dessa tutela. Ora, flui do disposto no art. 1286.º do CCivil: “1 – Cada um dos compossuidores, seja qual for a parte que lhe cabe, pode usar contra terceiro dos meios facultados nos artigos precedentes, quer para defesa da própria posse, quer para defesa da posse comum, sem que ao terceiro seja lícito opor-lhe que ela não lhe pertence por inteiro”. A par disso, o art. 2088º do CC estatui que “o cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído.”. Em face do exposto, somos de considerar que, em face da relação material controvertida delineada pelos requerentes e em face do pedido final, a intervenção da cabeça-de-casal, ainda que acompanhada de outro herdeiro, é suficiente para assegurar a legitimidade processual activa. Termos em que se julga improcedente a invocada excepção dilatória de ilegitimidade processual activa. Sem custas. Notifique.”
Referem os recorrentes que não tendo a herança aberta ilíquida e indivisa, personalidade jurídica, esta tem de ser representada em juízo por todos os herdeiros, o que não acontece no caso, sendo os herdeiros que têm personalidade jurídica e legitimidade para agir - artigo 2091.º do Código Civil.
Mas, sem razão.
Se é certo que nos termos do disposto no art. 2091.º do CC, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros, certo é também que o mesmo preceito exceciona “os casos declarados nos artigos anteriores”, como seja, entre outros, o artigo 2088.º, no que para o caso interessa, o qual dispõe que “O cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiros a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de ações possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído.”.
Posto isto, temos de concordar com a decisão recorrida, quando refere que em face da relação material controvertida delineada pelos requerentes e em face do pedido final, a intervenção da cabeça-de-casal, ainda que acompanhada de outro herdeiro, é suficiente para assegurar a legitimidade processual ativa, já que, neste processo, está apenas a usar de uma ação possessória, a fim de ser restituída da posse.
Improcede, pois, o recurso, nesta parte.
b) Do erro de julgamento, por errada apreciação das provas
Nas suas conclusões de recurso, acabam os recorrentes/requeridos por pedir que deve ser reanalisada e valorada a prova documental apresentada e bem assim, a prova testemunhal, nomeadamente, da testemunha que referem, e que, consequentemente, deve ser revogada a decisão proferida por outra, que julgue improcedente, por não provado o procedimento cautelar de restituição provisória de posse apresentado pelos apelados.
Ora, parece resultar dessa conclusão que os recorrentes requerem a reapreciação da decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova.
Sucede que, o art. 640.º do CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
O mencionado regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão de facto, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, o qual terá que apresentar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, o ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar os concretos pontos da decisão que pretende questionar, ou seja, delimitar o objeto do recurso, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto, a fundamentação, e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pelo Tribunal da Relação.
No caso concreto, o julgamento foi realizado com gravação dos depoimentos prestados em audiência, sendo que os apelantes nem indicam os pontos de facto alvo de impugnação, nem, em concreto, as provas a reapreciar, tal como não indicam a decisão que sugerem quanto aos factos que eventualmente pretendessem impugnar, não se mostrando, assim, reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão, pelo que se rejeita recurso, quanto a uma eventual reapreciação da matéria de facto.
c) Do erro de julgamento de direito
O presente processo configura um procedimento cautelar de restituição provisória da posse, tendo por objeto um alegado direito de servidão de passagem e de servidão de águas, a favor de prédio do qual os requerentes são possuidores e a onerar dois prédios da primeira requerida e habitados pelos segundos.
Quanto ao procedimento cautelar de restituição provisória de posse, determina o artigo 377.º do Código de Processo Civil que, “No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência”.
Deste modo, para que seja decretada a restituição provisória de posse é necessário que se mostrem verificados os seguintes requisitos, ainda que a prova sobre os mesmos seja apenas indiciária: A posse, o esbulho e a violência.
Posto isto, o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, pelo que, provada a aquisição do direito de propriedade sobre determinado imóvel, em princípio, ninguém pode usar, dispor ou fruir dos bens do respetivo proprietário, sem autorização deste.
Contudo, há que ter em conta que são admissíveis restrições ao direito de propriedade plena - arts. 1305.º e 1306.º do Código Civil, restrições que podem consistir, por exemplo, na constituição de uma servidão a favor de um outro prédio e que constitui um encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro pertencente a dono diferente - art. 1543.º do mesmo diploma legal.
Quanto ao seu exercício e extensão as servidões são reguladas pelo respetivo título constitutivo, o que significa, essencialmente, que os direitos e as obrigações delas resultantes são delimitados por esse título, não ficando dependentes da vontade do dono do prédio dominante ou do dono do prédio serviente - art. 1564.º do referido código.
Podem ser objeto da servidão, por outro lado, quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, suscetíveis de serem gozadas por intermédio do prédio dominante, compreendendo o direito de servidão tudo o que é necessário para o seu uso e conservação - arts. 1544.º e 1565.º, nº 1 do mesmo diploma.
Quanto ao modo de constituição das servidões, estabelece o art. 1547.º do citado código que as mesmas podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família, podendo, na falta de constituição voluntária, ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa.
No caso sob análise, dizem os recorrentes/requeridos que as servidões invocadas pelos requerentes do procedimento cautelar, nunca se chegaram a constituir, sendo que, ainda que assim fosse, o anterior dono dos prédios em causa, quando prometeu vender os dois prédios à primeira requerida, renunciou a qualquer direito, nomeadamente qualquer servidão a onerar os prédios a vender, quando do contrato respetivo ficou a constar que os prédios seriam adquiridos “livres de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades”.
Os requerentes invocam a constituição das servidões que descrevem, por destinação do pai de família.
Quanto a esta forma de constituição do direito de servidão, determina o artigo 1549.º do Código Civil:
“Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas frações de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas frações do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respetivo documento.”.
Assim, são três os pressupostos (ou requisitos) para a aquisição da servidão por destinação do pai de família: a) que os dois prédios, ou as duas frações do mesmo prédio, tenham pertencido ao mesmo dono; b) que exista uma relação estável de serventia de um prédio a outro ou de uma fração a outra correspondente a uma servidão aparente revelada por sinais visíveis e permanentes; e c) que tenha existido uma separação dos prédios ou frações em relação ao domínio, inexistindo qualquer declaração no respetivo documento contrária à constituição do encargo.
Deste modo, se em dois ou mais prédios pertencentes ao mesmo dono, existirem sinais que mostrem que uma certa utilidade de um dos prédios está a ser gozada por outro desses prédios, estamos perante uma situação de facto que não tem qualquer significado jurídico, uma vez que o direito de servidão apenas se constitui em proveito de proprietário diferente do dono do prédio onerado, conforme dispõe o artigo 1543.º do Código Civil.
Contudo, se os prédios passam a pertencer a titulares distintos, aquela situação de facto converte-se num verdadeiro direito de servidão, que nasce automaticamente em consequência do ato pelo qual passam a existir, pelo menos, dois prédios com proprietários diferentes.
No caso dos autos, resulta da matéria de facto que desde a aquisição dos prédios pela primeira requerida/recorrente, os requerentes utilizam como passagem a pé para acesso aos anexos existentes no rés-do-chão do seu prédio, um caminho que se inicia a norte do prédio b. referido em 2, o que é do conhecimento dos requeridos, os quais nunca impediram a passagem por este caminho, e, ainda, que também desde essa data, os requerentes fazem uso da água proveniente de poço existente no prédio B referido em 2, que sempre trataram deste poço, compraram e colocaram motores, montaram e trataram de canalizações e pagaram e pagam as despesas inerentes, como o consumo de energia elétrica pela utilização de motor e despesas com a reparação deste motor.
Resulta também dos autos que o imóvel dos autores sempre foi abastecido de água através da água proveniente do dito poço.
Face ao que se disse supra, temos, assim, por constituídas as servidões de passagem e de águas, por destinação do pai de família, no momento em que os prédios, dominante e servientes, passaram a pertencer a proprietários diferentes.
No que diz respeito a uma eventual renúncia ao exercício das servidões, como pretendido pelos recorrentes, também não lhes assiste razão.
Quanto a esta questão, porque reflete totalmente a nossa opinião, passamos a transcrever parte do sumário do Acórdão desta 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, de 23-05-2024, Processo 836/21.9T8AGD.P1, Relatora: ANA VIEIRA, onde se decidiu que:
“(…) III - A servidão por destinação de pai de família ocorre, se os dois prédios se separarem, e passarem a ser de proprietários diferentes, se ocorrerem os seguintes requisitos: a) Os dois prédios ou frações de um só prédio tenham pertencido ao mesmo proprietário; b) exista uma relação estável de serventia de um prédio a outro, correspondente a uma servidão aparente, revelada por sinais visíveis e permanentes e c) separação dos prédios em relação ao domínio e inexistência de qualquer declaração no respetivo documento contrária à destinação.
IV - A declaração em contrário constante do documento tem que ser expressa, ou objetiva, não bastando a aposição tabelar da cláusula “livre de ónus e encargos”.
V - A servidão constituída por destinação de pai de família, devido a sua natureza voluntária, não se extingue por desnecessidade. (…)”.
Ou seja, ao contrário do que os recorrentes pretendem, concordamos com o que a propósito se diz na sentença recorrida, quando aí se refere que a expressão “livre de ónus ou encargos” constante do contrato promessa, não configura uma renúncia expressa, “antes sim uma referência genérica e habitual em documentos daquela natureza, mas cujo alcance não se coaduna com uma renúncia, sobretudo se tivermos em ponderação os atos subsequentes de autores e réus.”.
Finalmente, em nada releva a alegação dos recorrentes relativamente à falta de ligação à rede pública de água ou à legalidade das construções, já que a constituição de servidão, nomeadamente por destinação do pai de família, não depende de o prédio dominante ter outro acesso à via pública ou de beneficiar de abastecimento de água por outra via, uma vez que não estamos perante servidões legais.
Posto isto, e não tendo sido impugnados os demais requisitos para o decretamento do procedimento cautelar, improcede o recurso dos recorrentes/requeridos no procedimento cautelar.
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3- Do recurso subordinado dos requerentes do procedimento cautelar a) Do erro de julgamento, por errada apreciação das provas, e consequente alteração da decisão da matéria de facto
No recurso subordinado que interpõem, os apelantes recorrem da decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal a quo, impugnando determinados factos.
Como já referido, o art. 640.º do CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
O mencionado regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão de facto, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, o qual terá que apresentar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, o ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar os concretos pontos da decisão que pretende questionar, ou seja, delimitar o objeto do recurso, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto, a fundamentação, e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pelo Tribunal da Relação.
No caso concreto, o julgamento foi realizado com gravação dos depoimentos prestados em audiência, sendo que os apelantes impugnam a decisão da matéria de facto com indicação dos pontos de facto alvo de impugnação, indicam as provas a reapreciar, bem como indicam a decisão que sugerem quanto aos factos impugnados, mostrando-se, assim, reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662.º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem um meio a utilizar apenas nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
No presente processo, como referido, a audiência final processou-se com gravação da prova produzida.
Segundo ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225, e a respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, compete ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, face ao teor das alegações do recorrente e do recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Cabe, ainda, referir que neste âmbito da reapreciação da prova vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Código Civil.
E é por isso que o art. 607.º, nº 4 do CPC impõe ao julgador o dever de fundamentação da factualidade provada e não provada, especificando os fundamentos que levaram à convicção quanto a toda a matéria de facto, fundamentação essencial para o Tribunal de Recurso, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, com vista a verificar se ocorreu, ou não, erro de apreciação da prova.
Posto isto, cabe analisar se assiste razão aos apelantes, na parte da impugnação da matéria de facto, quando pretendem que o facto provado e os não provados que impugnam sejam alterados nos termos que propõem.
Os factos que os recorrentes impugnam são o facto provado 6 e os factos não provados a) e b), os quais têm o seguinte teor:
Facto provado: 6. Desde a data referida em 4., os autores utilizam como passagem a pé para acesso aos anexos existentes no rés-do-chão do seu prédio, um caminho que se inicia a norte do prédio b. referido em 2.
Facto não provado: a) Que os autores percorram também de carro o caminho referido em 6.
Facto não provado: b) Os autores beneficiam da utilização em exclusivo de uns anexos/benfeitorias edificados a sul/poente do prédio “B” referido em 2 nos quais, há mais de 20, 30 e 40 anos, guardam os seus produtos e pertences, nomeadamente, agrícolas, mobílias, produtos da sua atividade comercial, documentos de contabilidade e maquinaria variada, publica e pacificamente, sem qualquer contestação.
Dizem os recorrentes que o facto não provado b) deve ser dado como provado, por ter sido referido por várias das testemunhas ouvidas e ter sido admitido pelos requeridos do procedimento cautelar.
Ouvida a prova gravada, temos de concluir que assiste razão aos recorrentes, no que diz respeito à utilização dos anexos em causa. No entanto, tal como o facto se mostra redigido, parece resultar que os mesmos se arrogam um qualquer direito exclusivo sobre a dita construção, o que levou o tribunal a quo a referir que se arrogam como titulares.
Ora, não se arrogando como titulares do direito de propriedade sobre os anexos, não invocando um qualquer contrato de arrendamento ou de outro tipo, apenas podemos concluir que, tal como os requeridos disseram na sua oposição, usam tal anexo por tolerância da primeira requerida, bem sabendo que nenhum direito lhes assiste sobre tal anexo.
E sendo assim, também não têm a posse do mesmo em termos que lhes permita usarem de algum meio possessório, como seja, a restituição provisória da posse.
Nestes termos, o facto não provado b) passa a considerar-se como facto provado 14.A, o qual passa a ter a seguinte redação: Os autores beneficiam da utilização em exclusivo de uns anexos/benfeitorias edificados a sul/poente do prédio “B” referido em 2 nos quais, há mais de 20, 30 e 40 anos, guardam os seus produtos e pertences, nomeadamente, agrícolas, mobílias, produtos da sua atividade comercial, documentos de contabilidade e maquinaria variada, publica e pacificamente, sem qualquer contestação, embora o façam por mera tolerância da primeira requerida, o que bem sabem.
Quanto aos factos provado 6 e não provado a), os quais estão relacionados, está em causa saber se a servidão de passagem que se provou, é apenas a pé, ou também de carro.
O facto provado 6 refere que “Desde a data referida em 4., os autores utilizam como passagem a pé para acesso aos anexos existentes no rés-do-chão do seu prédio, um caminho que se inicia a norte do prédio b. referido em 2.”.
Pretendem os recorrentes que se dê como provado o facto não provado a), ou seja, que “os autores percorrem também de carro o caminho referido em 6.”, ou seja, para acesso aos anexos existentes no rés-do-chão do seu prédio.
Ora, da audição dos depoimentos das testemunhas mencionadas pelos recorrentes, nas suas alegações, não podemos concluir que tal facto se provou.
Efetivamente, a testemunha II, quanto à questão em causa, da utilização da passagem com viaturas, nada de concreto disse, sendo de realçar que a dita testemunha se mostrou tendenciosa na forma como respondeu às perguntas dos ilustres mandatários, tendo sido chamado à atenção pela senhora juíza a quo quanto à forma como respondeu às perguntas da ilustre mandatária dos requeridos, em confronto como a forma muito mais solícita como o fez em relação às perguntas do ilustre mandatário dos requerentes.
KK, quanto ao modo como era utilizada a passagem, após insistência sobre se também utilizavam o carro, a testemunha apenas disse “cheguei a ver lá o carro desta família”, não especificando em que altura, e muito menos que a viatura circulava pela passagem em causa até ao anexo do imóvel, tendo referido, quando questionado novamente quanto ao acesso aos anexos integrados na fração, que quanto a isso “já não posso dizer nada”.
LL disse que há mais de 20 anos que entra lá e ajuda na casa e na loja, identificou o portão e a casa dos requerentes, e os anexos junto à casa, onde arrumavam coisas, e que disse ter acesso só por fora, sem acesso pelo interior da casa. Sobre a utilização da passagem com carro, limitou-se a concordar com o que o senhor advogado lhe perguntou, ou seja, à pergunta “entravam lá de carro?”, respondeu “entravam, entravam, para lavar o carro”, e à pergunta “para levar coisas?” respondeu “Sim, levava-se, nunca ninguém nos disse nada, a gente levava”, sem referir para onde levavam as coisas e se percorriam a passagem até ao anexo que faz parte da casa.
Finalmente, MM disse que os requerentes, e seu pai, sempre utilizaram esse terreno, achava que eram proprietários, não sabia da venda. Confirmou que a entrada se fazia pelo portão em causa, disse que o portão estava aberto, que até punham lá os carros, mas não falou que iam de carro até à porta dos anexos.
Perante estes depoimentos, entendemos que não é possível dar como provado o facto que consta como não provado da alínea a), o que, por sua vez, leva a que se mantenha o facto provado 6, improcedendo, assim, a impugnação da matéria de facto, com exceção da alteração do facto não provado b), nos termos expostos.
b) Do erro de julgamento de direito
Os requerentes do procedimento cautelar interpõem recurso subordinado por não concordarem com a decisão, na parte em que não reconhece a servidão de acesso aos anexos situados a poente, nem a entrada e passagem de viatura automóvel, e atribui efeitos suspensivos à sentença no seu dispositivo.
Vejamos.
No que diz respeito à questão da servidão até aos anexos referidos e à servidão de carro, não tendo os recorrentes logrado a alteração da matéria de facto – sendo certo que a alteração do facto não provado b), nos termos decididos, em nada interfere com a decisão – nada há a alterar na decisão do procedimento cautelar.
Improcede, assim, sem necessidade de outras considerações, o recurso, nessa parte.
Já quanto ao dipositivo da decisão do procedimento cautelar, na parte em que determina a restituição provisória da posse aos requerentes, “determinando que os réus procedam à disponibilização aos autores de chave que permite o acesso a essas serventias através do portão localizado na Rua ..., no prazo de 10 dias após o trânsito da presente decisão, abstendo-se de praticar quaisquer outros atos que impeçam a passagem dos autores”, entendemos assistir razão aos recorrentes/requerentes do procedimento cautelar.
Por um lado, há que ter em conta que os procedimentos cautelares revestem caráter urgente – art. 363.º, nº 1 do CPC, tendo sido largamente ultrapassado o prazo previsto no nº 2 desse preceito.
Por outro lado, o recurso tem, no caso, efeito meramente devolutivo, efeito que a decisão em causa acaba por contrariar.
Aliás, o recurso foi admitido com efeito devolutivo, sendo certo que se a decisão apenas se tornar efetiva com o respetivo trânsito em julgado, ou, até, 10 dias após esse trânsito, fica subvertido o efeito do recurso, para além da própria finalidade do procedimento cautelar.
Deste modo, altera-se a decisão recorrida, na parte em que faz contar o prazo de 10 dias para entrega da chave do portão aos requerentes, após o trânsito da decisão.
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V - DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:
a) Julgar improcedente o recurso dos recorrentes/requeridos no procedimento cautelar.
b) Julgar parcialmente procedente o recurso subordinado dos recorrentes/requerentes do procedimento cautelar e, consequentemente:
- Alteram o facto não provado b) que passa a facto provado, com a redação referida supra.
- Retiram do dispositivo a referência ao trânsito em julgado da decisão, pelo que, os requeridos dispõem do prazo de 10 dias para proceder à entrega aos requerentes, de uma chave do portão de acesso à passagem.
- Mantêm o restante decidido, nos seus precisos termos.
Custas do recurso a cargo dos recorrentes, e do recurso subordinado a cargo de recorrentes e recorridos, na proporção de metade (art. 527.º, nºs 1 e 2 do CPC).
Porto, 2025-02-06
Manuela Machado
Ana Luísa Loureiro
José Manuel Correia