I - As prescrições presuntivas, ou de curto prazo, reportam-se a créditos gerados pelo exercício de actividades profissionais, e/ou de prestação de serviços, cujos pagamentos são normal e correntemente reclamados pelos credores em prazos geralmente computados em dias ou meses, por se tratar de receitas reditícias necessárias à manutenção do regular giro ou mesmo à sobrevivência do prestador.
II - O objectivo da prescrição presuntiva é o de proteger o devedor da dificuldade de prova e corresponde em regra a dívidas que se pagam em prazos curtos e sem que ao devedor seja entregue documento de quitação, ou sem que seja corrente conservá-lo.
III - Provado o decurso do prazo, bem como os demais requisitos descritos nos artigos 316º e 317º do Código Civil, presume-se o cumprimento, recaindo sobre o credor o ónus de ilidir essa presunção.
IV - A presunção, porém, só pode ser ilidida por confissão do próprio devedor, expressa ou tácita, nomeadamente através de “atos incompatíveis com a presunção de cumprimento”, a que se refere o artigo 314º do Código Civil.
ECLI:PT:TRP:2024:274/21.3T8AND.P2
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
Misericórdia da Freguesia ..., com sede na Rua ..., ... - ... instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de AA, representada pelos seus filhos, BB e CC, este ausente em parte incerta, onde concluiu pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 36.520,51, acrescida de juros de mora vencidos, desde, pelo menos, a citação do herdeiro BB para a procedimento cautelar de arresto, ocorrida em 04.08.2020, à taxa legal de 4% ao ano, os quais à presente data ascendem a € 1.172,66 e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que prestou serviços de apoio social à idosa AA, mais precisamente de apoio social no âmbito da resposta social da Estrutura Residencial para Idosos, desde 01.01.2007, altura em que ingressou na Instituição, continuadamente, até à data do seu óbito ocorrido em 30.05.2020.
Acrescentou que, desde o seu início, a mensalidade/comparticipação familiar por frequência daquela resposta social foi determinada pela aplicação de percentagem variável entre 85% a 90% sobre os rendimentos da referida AA, actualizada no final de cada ano, tendo em conta as orientações e legislação em vigor sobre esta matéria, acrescida de uma ajuda familiar, também objecto de actualização anual, fixada em função dos rendimentos dos descendentes, não podendo a mesma exceder o custo médio real do cliente verificado na resposta social no ano anterior.
Mais alegou, que na mensalidade e na comparticipação familiar estavam incluídos todos os serviços destinados a assegurar a satisfação das necessidades básicas da referida AA no alojamento, alimentação, saúde, higiene, conforto, ocupação e lazer, não estando, porém, incluídos os encargos com cabeleireiro e esteticista nos cuidados de imagem e beleza, taxas moderadoras, medicamentos, material de enfermagem e de incontinência, artigos específicos de higiene pessoal, transporte e acompanhamento a consultas médicas e/ ou exames de diagnóstico complementares e a outros serviços públicos ou privados de acordo com as necessidades individuais da utente e tratamentos de fisioterapia, os quais sempre que por si fossem pagos, deveriam ser liquidados aquando do pagamento da mensalidade da utente.
Alegou, ainda, que, por contrato de prestação de serviços celebrado em 15.12.2011 com o filho da utente, BB, em representação daquela, foi fixado e acordado o valor da mensalidade em € 297,00, sendo o valor da ajuda familiar de € 181,00, a pagar até ao vigésimo dia do mês correspondente, por transferência bancária.
Mais alegou, que o valor da mensalidade e da ajuda familiar foram actualizados, tendo em conta os rendimentos da utente, que eram, apenas, a reforma que auferia do Centro Nacional de Pensões, e a insuficiência da mesma para fazer face aos serviços prestados, para os seguintes montantes:
-Fevereiro de 2013: mensalidade - € 318,83; ajuda familiar - € 181,07;
-Fevereiro de 2014: mensalidade - € 321,68; ajuda familiar - € 181,07;
-Março de 2016: mensalidade - € 344,00; ajuda familiar - € 180,71;
-Agosto de 2018: mensalidade - € 348,92; ajuda familiar - € 303,83.
Acrescentou que a ajuda familiar determinada em Agosto de 2018 foi fixada no montante de € 303,83 correspondente ao custo médio real do utente verificado na resposta social da Estrutura Residencial para Idosos no ano anterior, considerando que os descendentes da utente não apresentaram os documentos comprovativos dos seus rendimentos, em cumprimento da norma XVI do Regulamento Interno da Estrutura Residencial para Idosos da A.
Alegou, ainda, que desde o seu ingresso no Lar até à data do seu óbito ocorrido em 30.05.2020, a referida AA recebeu os serviços identificados nos artigos antecedentes, tendo também despendido inúmeras quantias com a aquisição de fraldas, medicamentos, consultas médicas, exames de diagnóstico complementares, taxas moderadoras, cabeleireiro, esteticista, transportes, inclusive através de bombeiros, necessários ao bem-estar da utente AA.
Mais alegou, que os documentos contabilísticos subjacentes à mensalidade e ajuda familiar, bem como das despesas que suportou, e os pagamentos feitos para a sua liquidação, foram sendo lançadas na conta corrente aberta em nome da utente AA, da qual resulta existir um saldo a seu favor no montante de € 36.520,51, deduzidos os pagamentos feitos, saldo esse que até hoje não foi pago, correspondentes às mensalidades, ajuda familiar, medicamentos, consultas médicas, transportes, cabeleireiro, esteticista e demais bens e/ serviços prestados/suportados a AA.
Acrescentou que, AA faleceu no dia 30.05.2020, com última residência no Lar da Misericórdia da Freguesia ..., no estado de divorciada, tendo-lhe sucedido, como únicos e universais herdeiros seus filhos BB e CC.
Acrescentou que, por diversas vezes, interpelou BB para que procedesse ao pagamento dos montantes em dívida, o qual, por sua vez, sempre fez questão de informar ter dado conhecimento da divida existente ao seu irmão CC, mantendo-se, porém, o pagamento do saldo em aberto.
Alegou, em síntese, que, estando em causa um lar, o mesmo prestava serviços de assistência à falecida AA, que foram sempre pagos por si, enquanto filho do de cujus, não havendo qualquer valor em dívida.
Acrescentou que a ré, pelo decurso do prazo, beneficia do instituto da prescrição presuntiva.
Mais alegou, que a autora invocou que a ré era devedora da quantia € 36.520,51 referente a mensalidades, ajudas familiares e despesas extra não pagas pela prestação de serviços à falecida AA, desde 01.01.2007 até 30.05.2020, ou seja num lapso temporal de 13 anos e 4 meses, sendo certo que, nos termos do artigo 317.º do Código Civil, prescrevem no prazo de dois anos os créditos dos estabelecimentos que forneçam alojamento, ou alojamento e alimentação, a estudantes, bem como os créditos dos estabelecimentos de ensino, educação, assistência ou tratamento, relativamente aos serviços prestados.
Assim, foi determinado que a acção prosseguisse contra a Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de AA, representada pelos seus filhos BB e CC.
- Julgar parcialmente procedente a excepção de prescrição invocada pela ré Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de AA e, consequentemente, absolvê-la do pedido deduzido pela autora Misericórdia da Freguesia ... relativo aos serviços descritos na conta-corrente mencionada no ponto 2. dos factos provados, referentes ao período compreendido entre 01.01.2007 e 03.08.2018.
- Julgar a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e condenar a ré Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de AA a pagar à autora Misericórdia da Freguesia ... a quantia correspondente aos serviços descritos na conta-corrente mencionada no ponto 2. dos factos provados, referentes ao período compreendido entre 04.08.2018 e 29.05.2020, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, calculados, à taxa supletiva legal de 4,00% ao ano, sem prejuízo das alterações à taxa legal que, entretanto, venham a ocorrer, desde 04.08.2020, até efetivo e integral pagamento.”
I. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença recorrida em que a A, aqui Recorrente, foi vencida, ou seja, na parte em que se decidiu julgar parcialmente procedente a exceção de prescrição invocada pelo Réu contestante BB em representação da HERANÇA ILÍQUIDA E INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE AA e, consequentemente, absolvê-la quanto ao pedido deduzido, relativo aos serviços descritos na conta-corrente mencionada no ponto 2. dos factos provados referentes ao período compreendido entre 01.01.2007 e 03.08.2018.
II.O objecto da presente apelação, para além de versar sobre a matéria de direito, abrange a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, com pedido de reapreciação da prova gravada, porquanto salvo o devido respeito por opinião em contrário, entende a Recorrente que a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo enferma de diversos erros de julgamento da matéria de facto, assim como aplicou erroneamente diversas normas jurídicas com óbvias consequências nefastas para a boa decisão da causa, como passaremos a expor.
III. Entenda a Recorrente que foram erroneamente julgados os pontos sob as alíneas a) e c) dos factos não provados, impugnando-se expressamente a decisão tomada na Douta Sentença recorrida quanto aos mesmos, devendo ser revogado o decidido e proferida decisão que dê como provado que:
a. A ré e/ou os seus herdeiros não procederam ao pagamento da mensalidade da utente, do complemento de ajuda familiar e de todas as despesas relativas a medicamentos, consultas médicas, transportes, cabeleireiro, esteticista e demais bens e/ serviços prestados/suportados autora a AA, até 03.08.2018.
b. A autora interpelou, em data anterior à referida em 10., o herdeiro BB para que procedesse ao pagamento dos montantes em dívida.
IV. Sem prescindir do que até aqui se alegou, sempre se dirá que que decisão objeto do presente recurso viola diversas normas jurídicas, nomeadamente os artigos 317º, al. a), que foi
erroneamente interpretado e aplicado à matéria de facto, e 306º e 320º, n.º 3, todos do Código Civil e artigo art. 567.º n.º 1 do CPC;
V. Com efeito, entendeu, salvo o devido respeito, erradamente, o Tribunal a quo que, aos créditos peticionados pela Recorrente se aplicaria o disposto no artigo 317º, al. a) do Código Civil.
VI. Para tanto, o Tribunal a quo considerou estarem reunidos os respetivos requisitos previstos no artigo 317º, al. a): - que o crédito provenha de um estabelecimento de assistência ou tratamento relativamente aos serviços prestados; e o decurso do prazo de dois anos;
VII. Acontece porém, que, conforme consta dos factos dados como provados nos pontos n.ºs 2, 3, 4, 5 e 6 da Douta Sentença recorrida, a Recorrente desde 01.01.2007, altura em que a AA ingressou na instituição, continuadamente, até à data do seu óbito, ocorrido em 30.05.2020, não só lhe prestou os serviços destinados a assegurar a satisfação das necessidades básicas no alojamento, alimentação, saúde, higiene, conforto, ocupação e lazer, que estavam incluídos na mensalidade/comparticipação familiar,
VIII. Mas também suportou a Recorrente todos os encargos com cabeleireiro e esteticista nos cuidados de imagem e beleza; taxas moderadoras, medicamentos, material de enfermagem e de incontinência; artigos específicos de higiene pessoal, transporte e acompanhamento a consultas médicas e/ ou exames de diagnóstico complementares e a outros serviços públicos ou privados de acordo com as necessidades individuais da utente e tratamentos de fisioterapia, que foram pagos pela Recorrente e que também se encontram descritos na conta corrente junta a fls. 148/167,
IX. Aos quais jamais se aplicaria a prescrição presuntiva contida na sobredita disposição legal, porquanto tais despesas não integral o conceito de “serviços” prestados.
X. Por outro lado, no que se refere ao momento a partir do qual se começa a contar o prazo de prescrição, considerando que os serviços prestados e/ ou despesas suportadas pela Recorrente se protelam frequentemente no tempo, como sucedeu na presente situação, atendendo às circunstâncias do caso concreto, em que a utente estava numa situação de total dependência e incapacidade para reger a sua pessoa e seus bens,
XI. O cumprimento das obrigações da Recorrente só ocorre com a morte da utente, data até à qual lhe prestou os sobreditos serviços, e, consequentemente, só neste momento é que esta se encontra desonerada de quaisquer prestações relacionadas com os serviços de apoio social àquela a que se obrigara.
XII. A contrario, contado a partir de cada mensalidade e/ ou despesa suportada pela Recorrente, teria como resultado uma pluralidade de ações judiciais, o que não é razoável.
XIII. No caso dos presentes autos, o momento a partir do qual se inicia a contagem do prazo de prescrição é a data em que foram prestados os últimos serviços de apoio social e que coincide com a data do óbito da utente,
XIV. Assim, considerando que o Recorrido foi citado para os termos do procedimento cautelar de arresto em 04.08.2020, verifica-se que ainda não decorreram 2 anos desde a data do óbito da utente.
XV. Pelo que o direito da ora Recorrente, no que toca aos créditos relativos ao período compreendido entre 01.01.2007 a 03.08.2018, não poderá considera-se prescrito.
XVI. Por último, dir-se-á que, a luz do disposto no artigo 320º, n.º 3 do CC. nunca o invocado prazo de prescrição começaria a correr e se completaria, mercê da situação de total dependência e incapacidade a que a utente AA se encontrava, incapaz de reger a sua pessoa e os seus bens, desde pelo menos o ano de 15.12. 2011,
XVII. Altura em que a Recorrente e o Recorrido BB, em representação da sua mãe, como responsável por esta, foi fixado e acordado o valor da mensalidade, que era de €297,00 e o valor da ajuda familiar, que então era de €181,00, conforme resultou provado no ponto 7 dos factos dados como provados.
XVIII. Por outro lado, mesmo que o Tribunal a quo tivesse julgado corretamente procedente a exceção perentória de prescrição presuntiva, o qual apenas se coloca por mera hipótese académica, alegada pelo Réu BB, tal procedência apenas poderia ter levado à absolvição deste (no que toca aos créditos relativos ao período compreendido entre 01.01.2007 a 03.08.2018) e não à absolvição do Réu CC,
XIX. O qual, por sua vez, não apresentou qualquer defesa, quer por exceção quer por impugnação, devendo o Tribunal a quo ter considerado os factos articulados pela A., aqui Recorrente, confessados, com todas as legais consequências, o que não se verificou e de cuja decisão de absolvição quanto ao R. CC também se recorre por violação do art. 567.º n.º 1 do CPC, o qual não poderia beneficiar de uma prescrição presuntiva cujo ónus tinha que ter sido por si alegado (vide nesse sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, referente ao processo 97B016, datado de 14.01.1998 e o Acórdão da Relação do Porto proferido no proc. n.º 13480/20.9T8PRT.P1, datado de em 23.05.2022)
XX. Posto tudo o que supra se alegou, o Tribunal a quo fez uma incorreta interpretação e/ ou aplicação e/ou violou o disposto nos artigos 317º, al. a), que foi erroneamente interpretado e aplicado à matéria de facto, e 306º e 320º, n.º 3, todos do Código Civil e artigo 567.º n.º 1 do CPC impondo-se a revogação da douta Sentença recorrida.
2.1 Factos Provados
O Tribunal a quo considerou assentes os seguintes factos:
1. A autora é uma pessoa coletiva privada sem fins lucrativos, de reconhecida Utilidade Pública.
2. No exercício das suas finalidades, a autora prestou a AA os serviços de apoio social, mais precisamente de apoio social no âmbito da resposta social da Estrutura Residencial para Idosos, desde 01.01.2007, altura em que ingressou na Instituição, continuadamente, até à data do seu óbito, ocorrido em 30.05.2020, todos descritos na conta correntes junta a fls. 148/167, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
3. Assim, eram devidas uma mensalidade e uma comparticipação familiar, dada a insuficiência dos rendimentos auferidos pela referida AA e do apoio da Segurança Social para fazer face a todas as despesas, os quais eram objeto de atualização anual, fixada função dos rendimentos dos descendentes, não podendo a mesma exceder o custo médio real do cliente verificado na resposta social no ano anterior.
4. Na mensalidade e na comparticipação familiar estavam incluídos todos os serviços destinados a assegurar a satisfação das necessidades básicas da referida AA no alojamento, alimentação, saúde, higiene, conforto, ocupação e lazer;
5. Mas não estavam incluídos os encargos com cabeleireiro e esteticista nos cuidados de imagem e beleza, taxas moderadoras, medicamentos, material de enfermagem e de incontinência, artigos específicos de higiene pessoal, transporte e acompanhamento a consultas médicas e/ ou exames de diagnóstico complementares e a outros serviços públicos ou privados de acordo com as necessidades individuais da utente e tratamentos de fisioterapia.
6. Esses encargos, sendo variáveis, eram sempre adiantados pela autora, devendo ser liquidados aquando do pagamento da mensalidade da utente.
7. Em 15.12.2011 entre a autora e o filho da utente, BB, em representação da sua mãe, como responsável por esta, foi fixado e acordado o valor da mensalidade, que então era de € 297,00 e o valor da ajuda familiar, que então era de €181,00, a pagar até ao vigésimo dia do mês correspondente, por transferência bancária.
8. O valor da mensalidade e da ajuda familiar foram sendo atualizados nos termos descritos na conta-corrente acima mencionada.
9. AA faleceu no dia 30.05.2020, com última residência no Lar da Misericórdia da Freguesia ..., sito na Rua ..., em ....
10. A autora intentou contra a ré o procedimento cautelar de arresto, que começou por ter o n.º 199/20.0T8AND e corre por apenso à presente ação, no qual BB foi citado, em representação daquela, a 04.08.2020 [conforme aviso de recepção junto a fls. 95 daquele procedimento, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].
2.2. Factos Não Provados
O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
a. A ré e/ou os seus herdeiros não procederam ao pagamento da mensalidade da utente, do complemento de ajuda familiar e de todas as despesas relativas a medicamentos, consultas médicas, transportes, cabeleireiro, esteticista e demais bens e/ serviços prestados/suportados autora a AA, até 03.08.2018.
b. A ré e/ou os seus herdeiros procederam ao pagamento da mensalidade da utente, do complemento de ajuda familiar e de todas as despesas relativas a medicamentos, consultas médicas, transportes, cabeleireiro, esteticista e demais bens e/ serviços prestados e suportados pela autora a AA nos dois anos que antecederam a citação para o procedimento cautelar, ou seja, de 04.08.2018 a 04.08.2020.
c. A autora interpelou, em data anterior à referida em 10., o herdeiro BB para que procedesse ao pagamento dos montantes em dívida.
Das conclusões formuladas pela recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver no âmbito do presente recurso são as seguintes:
- Impugnação da matéria de facto;
- Do mérito da decisão.
4.1. Da impugnação da Matéria de facto
A Apelante defende que foram erroneamente julgados os pontos sob as alíneas a) e c) dos factos não provados, pugnando que se dê como provado:
“a. A ré e/ou os seus herdeiros não procederam ao pagamento da mensalidade da utente, do complemento de ajuda familiar e de todas as despesas relativas a medicamentos, consultas médicas, transportes, cabeleireiro, esteticista e demais bens e/ serviços prestados/suportados autora a AA, até 03.08.2018.
c. A autora interpelou, em data anterior à referida em 10., o herdeiro BB para que procedesse ao pagamento dos montantes em dívida.”
Vejamos, então.
No caso vertente, mostram-se cumpridos os requisitos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto previstos no artigo 640.º, do Código de Processo Civil, nada obstando a que se conheça da mesma.
Entende-se actualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no artigo 662.º do Código de Processo Civil, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (artigo 655.º do anterior Código de Processo Civil e artigo 607.º, n.º 5, do actual Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efectivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efectiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 224 e 225, “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”.
Importa, pois, por regra, reexaminar as provas indicadas pela recorrente e, se necessário, outras provas, máxime as referenciadas na fundamentação da decisão em matéria de facto e que, deste modo, serviram para formar a convicção do Julgador, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efectivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, a decisão em matéria de facto.
Reportando-nos ao caso vertente, constata-se que a Senhora Juiz a quo, após a audiência e em sede de sentença, motivou a sua decisão sobre os factos nos seguintes termos:
“A convicção do Tribunal, para a determinação da matéria de facto acima referida, assentou na posição assumida nos articulados pelas partes e no conjunto de toda a prova produzida nos autos, analisada conjugada e criticamente, à luz das regras de experiência, segundo juízos de normalidade e de acordo com as regras da repartição do ónus da prova aplicáveis ao caso.
Assim, antes de mais, cumpre referir que a factualidade provada sob os pontos 1. a 10. resultou, da análise da posição assumida pelas partes nos articulados, que a admitiram, em conjugação com o depoimento das testemunhas DD, contabilista ao serviço da autora desde 2012, o qual confirmou a conta-corrente junta a fls. 148/167 e os documentos de suporte dos lançamentos nela efetuados que constam o apenso que constitui o procedimento cautelar; e EE, diretora técnica de, depois, coordenadora ao serviço da autora, que acompanhou a integração de AA desde 2007, na qualidade de diretora técnica, a qual afirmou que, nos últimos 6 anos já não tinha a incumbência de proceder às cobranças dos valores que se encontrassem em dívida, por ser coordenadora e já não diretora técnica. Ambas as referias testemunhas afirmaram que a conta-corrente espelha os pagamentos efetuados e os montantes que não liquidados, pelo que não têm dúvidas de que corresponde à realidade do contrato celebrado com AA que ficou na Instituição até à morte.
No que respeita aos factos que resultaram não provados sob as alíneas a. e b, o tribunal se fundamentou na ponderação de toda a prova produzida e, bem assim, na ausência de produção de prova documental e/ou testemunhal suficientemente consistente e segura para considerar como provada a sua realidade.
No que concretamente respeita à factualidade vertida na alínea a. cumpre dizer o seguinte: a mesma resultou indemonstrada por não ter sido recolhida nos autos prova bastante que a demonstrasse que, nos termos do art. 313.º do Código Civil, como se descortinará, infra, na fundamentação de direito, consistia na confissão da ré, representada por BB, que não ocorreu, na medida em que o mesmo afirmou sempre tudo ter liquidado e não praticou quaisquer atos incompatíveis com tal posição.
No que concretamente respeita à factualidade vertida na alínea b. cumpre dizer que a mesma resultou não provada por a ré, apesar de não ter posto em causa os serviços prestados pela autos, não ter logrado demonstrar, comos e lhe impunha, nos termos do art. 342.º, n.º 1, do Código Civil, ter efetuado os correspondentes pagamentos - pois que esta factualidade, não estando abrangida pela prescrição presuntiva invocada pela ré, com a seguir se explicará, deveria por esta ter sido provada, o que não logrou fazer.
Por fim, quanto à factualidade vertida na alínea c. o tribunal fundamentou-se na ausência de produção de prova documental, testemunhal ou de depoimento de parte suficientemente consistente e segura para considerar como provada qualquer outra realidade para além da que resultou provada.”
Tendo presentes os elementos probatórios e demais motivação, vejamos então se, na parte colocada em crise, a referida análise crítica corresponde à realidade dos factos ou se a matéria em questão merece, e em que medida, a alteração pretendida pela apelante.
Insurge-se a Apelante contra a referida decisão por entender que o Tribunal a quo valorou erradamente a prova oferecida nos segmentos fácticos em causa.
Entendemos, porém, que a Senhora Juiz a quo fundamentou devidamente a sua decisão, à luz da prova oferecida, bem como do regime legal substantivo de valoração da prova.
Com efeito, na sentença proferida nos autos, decidiu o tribunal a quo julgar parcialmente procedente a excepção da prescrição presuntiva invocada pela Apelada, absolvendo-a do pedido de pagamento dos créditos referentes aos serviços prestados pela Apelante à de cujus no período compreendido entre 01.01.2007 e 03.08.2018.
Insurge-se a Recorrente contra aquela parte da sentença, alegando, desde logo, que da instrução dos autos teria resultado ilidida a presunção de pagamento invocada pela Recorrida, fundada nos artigos 317.º, al. a) e 312.º do Código Civil.
Afigura-se-nos, no entanto, que não lhe assiste razão.
A prescrição de que aqui se trata é uma prescrição presuntiva ou "imperfeita", na medida em que, decorrido o prazo legal, o que funciona, o que actua em termos jurídicos não é propriamente a extinção da obrigação - mais precisamente, a recusa legítima do cumprimento da prestação por parte do beneficiário (artigo 304º, nº 1 do Código Civil) - mas apenas a presunção do cumprimento; a "imperfeição", a incompletude resulta justamente da sua natureza presuntiva, e não extintiva do direito accionado.
A presunção do cumprimento pode ser ilidida por prova em contrário, que, no entanto, a lei só aceita que se faça por confissão do devedor (judicial e extrajudicial, mas neste caso ainda com a limitação de ter que se realizar por escrito - artigos 313º e 314º do mesmo diploma legal).
A prescrição presuntiva, portanto, tem um carácter diferente da prescrição comum; nesta, basta ao devedor invocar e provar a inércia do credor no exercício do direito durante o tempo fixado na lei; naquela, exactamente porque só se presume o cumprimento, o devedor carece de provar os elementos (requisitos) que a caracterizam e definem.
Assim, conforme decorre do disposto no artigo 313.º, n.º 1 do Código Civil “A presunção de cumprimento pelo decurso do prazo só pode ser ilidida por confissão do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão.”
De resto, admite a lei que a confissão possa ser realizada em sede judicial ou extrajudicial.
No entanto, decorre do disposto no n.º 2 do artigo 313.º do Código Civil que “A confissão extrajudicial só releva quando for realizada por escrito”.
No caso vertente, é manifesto que não ocorreu qualquer confissão extrajudicial, uma vez que não foi junto aos autos (nem existe) qualquer documento escrito em que a Apelada confesse a dívida.
Além disso, ouvida a prova, constatamos que também em sede judicial não ocorreu qualquer confissão.
É certo que nesta matéria, a lei admite tanto a confissão expressa, como tácita.
Todavia, a confissão expressa não ocorreu, uma vez que o representante da Recorrida afirmou inequívoca e repetidamente em audiência de julgamento que pagou sempre todos os valores devidos à Recorrente pelos serviços/bens prestados/fornecidos à de cujus, posição que já havia assumido na contestação à acção.
Assim, a posição da Apelada foi, ao longo do processo, inequívoca e coerente no sentido de que sempre tudo pagou.
Relativamente à confissão tácita, dispõe o artigo 314.º do Código Civil que: “Considera-se confessada a dívida, se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento.”
Ora, no caso em apreço, o representante da Apelada não se recusou a depor ou a prestar juramento no tribunal. Com efeito, este foi, conforme já referido, ouvido em sede de depoimento de parte e prestou prévio juramento.
Além disso, também não praticou em juízo qualquer acto incompatível com a presunção de cumprimento.
Ora, “Integram factos e atos concludentes que contrariam a presunção de pagamento, nos termos da parte final do artigo 314º do Código Civil: negar a existência originária do crédito; discutir o montante em dívida; remeter a determinação do montante em dívida para o tribunal; invocar uma causa de nulidade e/ou anulabilidade da obrigação; alegar o pagamento de importância inferior à reclamada, sob o pretexto de que aquele pagamento corresponde à liquidação integral do débito; invocar a gratuitidade dos serviços.” Cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09/11/2021, in www.dgsi.pt., citado na decisão recorrida e que aqui seguimos de perto dada a pertinência dos argumentos usados.
Ora, nunca a Recorrida alegou nestes autos qualquer das circunstâncias atrás citadas, sendo certo que a sua versão foi uma só: o crédito existiu, e nos precisos valores indicados pela Recorrente, mas foi integralmente pago.
A Apelante salienta, no entanto, nas alegações de recurso que o representante da Recorrida não havia logrado precisar, em sede de depoimento de parte, aspectos como “quando e quanto é que pagou”, “qual a ultima vez que pagou ou se pagou algum valor à recorrente depois do óbito de sua mãe”, “quando é que foi a última vez que se deslocou ao Lar da Misericórdia da Freguesia ...”, “quando foi a ultima vez que visitou a sua mãe naquele lar”, “quando é que foi a última vez que pagou por transferência bancária”.
A este propósito, leia-se o exarado, que acompanhamos, no já citado acórdão da Relação de Lisboa, de 09/11/2021:
“No âmbito do depoimento de parte prestado pelo devedor, que invoca a prescrição presuntiva, não lhe é exigível uma precisão e uniformidade discursórias que são incompatíveis com o próprio fundamento das prescrições presuntivas, não integrando a prática de atos incompatíveis com a presunção a existência de meras incongruências ou hesitação de memória quanto ao modo e quanto ao momento do pagamento alegado.”
Nestes termos, o facto de, na tese da Apelante, o representante da Recorrida não ter logrado precisar os aspectos elencados pela primeira seria relevante para a decisão da causa se à Recorrida coubesse provar que pagou; aí incumbir-lhe-ia circunstanciar e precisar os contornos desses pagamentos.
Mas, no caso vertente, a Apelada não tinha de provar que pagou, uma vez que beneficia da presunção de pagamento.
Normalmente, se o credor prova que prestou determinados serviços ou forneceu determinados bens, cabe ao devedor provar que pagou o preço devido.
Esse ónus deixa de existir, para o devedor, nos casos excepcionais em que este beneficie de uma presunção de pagamento, o que constitui o caso da Apelada.
Não obstante o sobredito, o representante da Recorrida esclareceu, ainda, em audiência, os meios de pagamento que utilizava (dinheiro e transferências bancárias).
Assim, o facto de, na tese da Recorrente, o representante da Recorrida não ter logrado detalhar os contornos em que foram realizados os pagamentos não “põe em crise as declarações por si prestadas”, uma vez que a referida circunstância não tem a virtualidade de afastar a presunção de cumprimento, não integrando a previsão de prática em juízo de actos incompatíveis com tal presunção.
Afigura-se-nos, por isso, estarmos em sintonia com o tribunal a quo quando argumenta o seguinte:
“No que concretamente respeita à factualidade vertida na alínea a. cumpre dizer o seguinte: a mesma resultou indemonstrada por não ter sido recolhida nos autos prova bastante que a demonstrasse que, nos termos do artigo 313.º do Código Civil, como se descortinará, infra, na fundamentação de direito, consistia na confissão da ré, representada por BB, que não ocorreu, na medida em que o mesmo afirmou sempre tudo ter liquidado e não praticou quaisquer atos incompatíveis com tal posição.”
Assim, não tendo ocorrido confissão, quer expressa quer tácita, por parte da Apelada, afigura-se-nos ser totalmente irrelevante os depoimentos das duas testemunhas DD e EE relativamente à matéria em causa, uma vez que a presunção de cumprimento só pode ser afastada por confissão do devedor, não se admitindo qualquer outro meio de prova, designadamente, testemunhal.
De resto, pelas mesmas razões, igualmente não relevam, nesta matéria, as alegadas interpelações extrajudiciais para pagamento (facto não provado “c.”), que a Apelante pretende ver julgadas provadas, que, ainda que julgadas provadas, nunca permitiriam afastar a presunção de cumprimento.
De todo o modo, sempre se dirá que os elementos probatórios invocados no recurso não infirmam a posição assumida na sentença recorrida no sentido de não ter resultado provada a existência de tais interpelações extrajudiciais, subscrevendo-se a judiciosa argumentação do tribunal a quo quanto à “ausência de produção de prova documental, testemunhal ou de depoimento de parte suficientemente consistente e segura para considerar como provada qualquer outra realidade para além da que resultou provada.”
Por todo o exposto, bem andou o tribunal a quo ao julgar como não provados os factos
sinalizados na sentença recorrida como “a.” e “c.”
Afigura-se-nos, por isso, à luz da globalidade da prova produzida conjugada com as regras da lógica e da experiência comum que não merecem crítica as respostas à matéria de facto provada nos segmentos impugnados, improcedendo, por isso, a impugnação apresentada.
A Autora/Apelante clama pela revogação da sentença de que recorre nos pontos que assinala.
Sustenta, desde logo, a referida pretensão na modificação da decisão sobre a matéria de facto que, pela via recursiva, reclama.
Mantendo-se, todavia, inalterada a decisão relativa à matéria de facto, em consequência da improcedência do recurso impugnativo da mesma, afigura-se-nos que, à luz da mesma, se deve manter a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
Com efeito, no caso vertente, resultou provado que a autora é uma pessoa coletiva privada sem fins lucrativos, de reconhecida Utilidade Pública, e que, no exercício das suas finalidades, a AA usufruiu dos serviços de apoio social, mais precisamente de apoio social no âmbito da resposta social da Estrutura Residencial para Idosos, desde 01.01.2007, altura em que ingressou na Instituição, continuadamente, até à data do seu óbito, ocorrido em 30.05.2020.
Mais, resultou provado que, em virtude do referido contrato, eram devidas uma mensalidade e uma comparticipação familiar, dada a insuficiência dos rendimentos auferidos por AA e do apoio da Segurança Social para fazer face a todas as despesas, os quais eram objecto de actualização anual, fixada em função dos rendimentos dos descendentes, não podendo a mesma exceder o custo médio real do cliente verificado na resposta social no ano anterior, sendo que na mensalidade e na comparticipação familiar estavam incluídos todos os serviços destinados a assegurar a satisfação das necessidades básicas da referida AA no alojamento, alimentação, saúde, higiene, conforto, ocupação e lazer.
Nessa mensalidade e comparticipação familiar não estavam incluídos os encargos com cabeleireiro e esteticista nos cuidados de imagem e beleza, taxas moderadoras, medicamentos, material de enfermagem e de incontinência, artigos específicos de higiene pessoal, transporte e acompanhamento a consultas médicas e/ ou exames de diagnóstico complementares e a outros serviços públicos ou privados de acordo com as necessidades individuais da utente e tratamentos de fisioterapia, os quais, sendo variáveis, eram adiantados pela autora, devendo ser liquidados aquando do pagamento da mensalidade da utente.
Por fim, resultou provado que o valor da mensalidade e da ajuda familiar foram sendo actualizados nos termos descritos na conta-corrente atrás mencionada e que AA faleceu no dia 30.05.2020, com última residência no Lar da Misericórdia da Freguesia ....
Estamos, pois, perante um típico contrato de prestação de serviços, mormente, de alojamento, de alimentação, de cuidados de higiene pessoal, tratamento de roupa, higiene dos espaços, actividades de animação sociocultural, lúdico-recreativas e ocupacionais, apoio no desempenho das actividades da vida diária, cuidados de enfermagem e acesso a cuidados de saúde, administração de fármacos, quando prescritos.
Ora, na sua oposição a ré invocou a prescrição presuntiva dos créditos peticionados pela Apelante ao abrigo do artigo 317.º, al. a), do Código Civil.
Estabelece o artigo 317.º, al. a), do Código Civil, que prescrevem no prazo de dois anos os créditos dos estabelecimentos que forneçam alojamento, ou alojamento e alimentação, a estudantes, bem como os créditos dos estabelecimentos de ensino, educação, assistência ou tratamento, relativamente aos serviços prestados.
Como é sabido, funda-se a prescrição presuntiva na presunção de cumprimento, procurando tutelar o devedor por se considerar não ser nestes casos exigível a conservação da quitação. O decurso deste prazo, ao contrário do que se refere à prescrição extintiva[1], determina uma presunção iuris tantum, relativa ao cumprimento da obrigação, dispensando a sua demonstração[2]. Tal presunção é apenas ilidível por um dos meios indicados nos artigos 313.º e 314.º do Código Civil - confissão do devedor e confissão tácita.
A alínea a) do art. 317.º do Código Civil prevê, numa primeira parte os créditos dos estabelecimentos que forneçam alojamento, ou alojamento e alimentação, a estudantes e, numa segunda parte, os créditos dos estabelecimentos de ensino, educação, assistência ou tratamento, relativamente aos serviços prestados.
Esta prescrição reveste a natureza de prescrição presuntiva, uma vez que assenta numa presunção de cumprimento prevista no art. 312.º do Código Civil, residindo a sua razão de ser na necessidade de proteger o devedor contra o risco de satisfazer duas vezes dívidas de que não é usual exigir recibo ou guardá-lo durante muito tempo[3].
Com efeito, as prescrições presuntivas são presunções de pagamento, fundando-se em que as obrigações a que se referem costumam ser pagas em prazo bastante curto e não é costume exigir quitação do seu pagamento; decorrido o prazo legal presume, pois, a lei que a dívida está paga, dispensando, assim, o devedor da prova do pagamento, prova que lhe poderia ser difícil ou, até, impossível, por falta de quitação[4].
Constituindo uma verdadeira presunção legal de cumprimento, a prescrição presuntiva produz a inversão do ónus da prova, ficando, por isso, o devedor liberto desse encargo que, em princípio, à luz do n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil, lhe incumbiria.
Ora, da análise da matéria de facto provada, mormente dos factos descritos sobre os pontos 1. a 7., facilmente se infere que a Apelante, tendo prestado serviços no âmbito de uma resposta social da Estrutura Residencial para Idosos, constitui um estabelecimento de assistência.
Mais, resultou provado que a Apelante, no exercício das suas finalidades, prestou a AA os serviços de apoio social, mais precisamente de apoio social no âmbito da resposta social da Estrutura Residencial para Idosos, desde 01.01.2007, altura em que ingressou na Instituição, continuadamente, até à data do seu óbito, ocorrido em 30.05.2020.
De resto, não acompanhamos o entendimento da Recorrente no sentido de excluir da presunção de cumprimento os “encargos com cabeleireiro e esteticista nos cuidados de imagem e beleza; taxas moderadoras, medicamentos, material de enfermagem e de incontinência; artigos específicos de higiene pessoal, transporte e acompanhamento a consultas médicas e/ou exames de diagnóstico complementares e a outros serviços públicos ou privados de acordo com as necessidades individuais da utente e tratamentos de fisioterapia”.
Com efeito, segundo o nosso entendimento, trata-se de serviços que também faziam parte da relação contratual desenvolvida entre Recorrente e Recorrida, o que decorre até da natureza reiterada e periódica daquelas despesas, sendo que nenhuma prova foi produzida nos autos que permitisse concluir o contrário.
Assim, bem andou o tribunal a quo ao aplicar a prescrição presuntiva a todos os serviços em causa.
Quanto ao requisito atrás enunciado do decurso do prazo de dois anos entre a formação do crédito e a interrupção do prazo prescricional, ocorrida por via da citação para os termos de um processo judicial[5], concatenados com os factos demonstrados sob os pontos 1. e 10. concluímos que tal requisito também se verifica nestes autos quanto aos serviços prestados em data anterior a 04.08.2020, data da citação de BB foi citado, em representação da ré, para os termos do procedimento cautelar de arresto.
De resto, quanto ao termo inicial do prazo de prescrição, também não acompanhamos a argumentação da Apelante.
Com efeito, a regra geral em matéria de início do curso da prescrição encontra-se consagrada no artigo 306.º do Código Civil, em cujo n.º 1 se acha disposto o seguinte:
“O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo da prescrição.”
Ora, a formulação “quando o direito puder ser exercido” remete para o momento do vencimento da obrigação em causa – no caso vertente, a obrigação de pagamento de cada prestação.
Já o artigo 307.º do Código Civil estatui o seguinte: “Tratando-se de renda perpétua ou vitalícia ou de outras prestações periódicas análogas, a prescrição do direito unitário do credor corre desde a exigibilidade da primeira prestação que não for paga.”
Assim, no caso vertente, o prazo de prescrição de dois anos deve ser contado, senão desde a exigibilidade da primeira prestação que a Recorrente alega não ter sido paga, a partir do momento do vencimento de cada prestação mensal.
Destarte, nenhum reparo merece o cálculo dos prazos de prescrição efectuado pelo tribunal a quo.
Desta feita, entendemos que se deve manter o entendimento do Tribunal a quo relativamente à procedência da excepção de prescrição presuntiva dos créditos peticionados nestes autos relativos ao período compreendido entre 01.01.2007 e 03.08.2018.
Com efeito, este tipo de prescrição actua através de um mecanismo de ordem essencialmente processual. A sua repercussão no direito substantivo, traduzida na extinção do vínculo obrigacional, processa-se por via indirecta, resultando da presunção de cumprimento. Menos do que directamente extintiva, a sua eficácia, é, pois, liberatória do ónus da prova de cumprimento, limitando-se a balizar o termo a partir do qual o réu fica dispensado desse encargo[6].
No caso em análise, tendo a ré invocado a prescrição presuntiva e alegado o pagamento, inexistindo qualquer elemento factual que afaste tal presunção - de pagamento - que a mesma deve ser, pois, julgada procedente no que respeita ao período compreendido entre 01.01.2007 e 03.08.2018.
Por último, alega a Recorrente que: “Por outro lado, mesmo que o Tribunal a quo tivesse julgado corretamente procedente a exceção perentória de prescrição presuntiva, o qual apenas se coloca por mera hipótese académica, alegada pelo Réu BB, tal procedência apenas poderia ter levado à absolvição deste (no que toca aos créditos relativos ao período compreendido entre 01.01.2007 a 03.08.2018) e não à absolvição do Réu CC”.
Parece-nos, porém, que, também, neste ponto não assiste razão à Apelante.
Com efeito, nos presentes autos não foi o “Réu BB” que foi absolvido, nem este é sequer réu. Ré é a herança, da qual são herdeiros os irmãos BB e CC.
Assim, quem foi absolvida, nos termos da sentença recorrida, foi a herança, tendo o cabeça-de-casal BB intervindo nos autos apenas na qualidade de representante da herança.
Como tal, também neste ponto se revela improcedente o recurso interposto.
Afigura-se-nos, assim, não merecer censura a sentença proferida pelo Tribunal recorrido.
Impõe-se, por isso, o não provimento da apelação.
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5. Decisão
Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar não provido o recurso de apelação, confirmando a decisão recorrida.
Porto, 06 de Fevereiro de 2025
Paulo Dias da Silva
Isabel Silva
João Venade
(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
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[1] Cf. artigo 304.º do Código Civil.
[2] Cf. artigos 350.º, n.º 1 e 344.º, n.º 1, do Código Civil.
[3] Cf. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., págs. 281-282.
4Cf. Vaz Serra, in Rev. Leg. Jur., ano 109.º, pág. 246.
[5] Cf. artigos 315.º e 323.º, n.º 1, ambos do Código Civil.
[6] Cf. Joaquim de Sousa Ribeiro, in RDE, Ano V, nº 2, pág. 394.