FACTOS CONCLUSIVOS
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DEVER DE VIGILÂNCIA
PRESUNÇÃO DE CULPA
Sumário

I - Do elenco de factos provados e não provados constante da sentença só devem constar factos materiais e concretos, enquanto acontecimentos ou realidades do mundo exterior e não juízos conclusivos ou de valoração normativa.
II - Afirmações conclusivas, sobretudo quando correspondam ao objeto do litígio ou à questão a decidir, confundindo-se com o ‘conceito chave’ da solução jurídica da causa, devem ser excluídas ou consideradas não escritas, por não reunirem os requisitos que, para os efeitos do n.º 4 do art.º 607.º do CPC, permitem que sejam qualificados como factos juridicamente relevantes.
III - O art.º 492.º, n.º 1 do CC contém uma presunção de culpa, mas já não uma presunção de ilicitude; por conseguinte, corolário do princípio geral de que ao lesado incumbe fazer prova do facto ilícito, à luz do mesmo, sobre este recai o ónus de demonstrar a ruína e o vício de construção ou o defeito de conservação que esteve na sua origem; cumprido esse ónus, presumir-se-á, então, a culpa do proprietário, cabendo a este ilidi-la.
IV - Diversamente, o art.º 493.º, n.º 1 do CC contém, além de uma presunção de culpa, uma verdadeira presunção de ilicitude; consequentemente, à luz do mesmo, ao lesado incumbe provar que os danos foram causados pela coisa e que o dever de a vigiar estava a cargo do lesante, passando a caber sobre este, então, o ónus da prova de que observara o dever de vigilância da coisa ou que os danos se teriam produzido ainda que não houvesse culpa sua.

Texto Integral

Processo n.º 10220/23.4T8PRT.P1 - Recurso de apelação
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível do Porto, Juiz 8
Recorrente: A... Y Reaseguros, S.A.
Recorrida: B... Companhia de Seguros, S.A.

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.- Sumário
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.- Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto,

I.- Relatório
.- B... - Companhia de Seguros, S.A. instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra C..., S.A., AA, BB, CC e DD, pedindo que, pela sua procedência, sejam os Réus solidariamente condenados a pagar-lhe a quantia de € 17.251,19, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde a citação, até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, e em suma, alegou o seguinte.
Celebrou com D..., Lda., no âmbito da atividade de ambas, um contrato de seguro, pelo qual aceitou a transferência da responsabilidade civil por, entre o mais, danos próprios decorrentes da circulação do veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-XZ-.., o qual estava em vigor à data de 10-09-2020, pelas 13h45.
Nesta data, o referido veículo estava estacionado na Rua ..., ..., na cidade do Porto, quando, por razões não apuradas, foi atingido por um beiral de telhas, fragmentos de pedra, caleiras e condutores de águas pluviais pertencentes ao edifício com aquele número de polícia, sofrendo danos avultados.
Este edifício é propriedade da herança indivisa de EE, falecido em 08-09-1998 e que deixou a suceder-lhe os segundo a quinto Réus, seus filhos, sendo que a herança tinha celebrado com a primeira Ré um contrato de seguro, pelo qual transferira para esta a responsabilidade civil por danos causados pelo edifício a terceiros.
Em virtude do sinistro, o veículo sofreu estragos que acarretaram a sua perda total, sendo que, por tal razão, e ao abrigo do contrato de seguro que com ela celebrara, ressarciu a sua proprietária com o pagamento de uma indemnização no valor de € 16.651,00, além de ter suportado o pagamento do valor de € 600,19, com o reembolso das despesas com veículo de substituição, tudo no montante total de € 17.251,19.
Na origem do sinistro não esteve qualquer fenómeno da natureza ou intempérie, mas sim o incumprimento de deveres relativos à construção ou conservação dos edifícios, a cujo cumprimento estavam adstritos os Réus herdeiros da proprietária do edifício; assiste-lhe, por conseguinte, o direito de exigir destes e, por força do contrato de seguro, da primeira Ré, o reembolso da aludida quantia.
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Válida e regularmente citados, apresentaram os segundo a quinto Réus contestação, batendo-se pela improcedência da ação.
Em síntese, negaram que tenha havido omissão da sua parte do dever de manutenção e de conservação do edifício, tendo, inclusive, com vista à sua reabilitação, realizado obras, concluídas em 2006, que contemplaram, além do mais, a reconstrução da cobertura.
Depois dessas obras, diligenciaram por intervenções regulares no prédio, a uma cadência, pelo menos, anual, sendo que, em 9 de julho e em 20 de agosto de 2020, um mês antes do sinistro, procederam a trabalhos de manutenção na cobertura e caleiras do prédio.
A derrocada que originou o sinistro não se deveu, por conseguinte, a omissão de dever de cuidado na manutenção do edifício, mas sim a circunstâncias que não conseguem explicar, na certeza de que o prédio não fornecia a quem o inspecionava indícios de patologias que a pudessem originar.
A ocorrência constituiu, por isso, um facto que, para os réus foi absolutamente imprevisível, fortuito e súbito, impossível, como tal, de antecipar e de prevenir, não sendo responsáveis pelo ressarcimento dos danos que possa ter causado.
Concluem, consequentemente, pela improcedência da ação.
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Também a primeira Ré contestou, batendo-se pela improcedência da ação.
Em síntese, invocou que o prédio em que se deu a derrocada havia sido objeto de obras de manutenção e que, à data do sinistro, estava em bom estado de conservação, pelo que os danos no veículo seguro na Autora decorreram de circunstâncias imprevisíveis e que constituíra facto fortuito, súbito e imprevisto e impossível de prevenir.
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A Autora, sob convite do tribunal a quo, exerceu o contraditório sobre a matéria alegada pelos Réus nas suas contestações, mantendo a sua posição vertida na petição inicial e concluindo tal como fizera nesta.
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Dispensada a audiência prévia e fixado em € 17.251,19 o valor da causa, foi proferido despacho saneador tabelar e, bem assim, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova, o que não mereceu reclamações.
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Foi realizada a audiência de discussão e julgamento.
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Seguidamente, foi proferida sentença, julgando a ação:
i.- procedente quanto à 1.ª Ré C..., Companhia de Seguros Y Reaseguros, S.A., condenando-se a mesma a pagar à Autora B... - Companhia de Seguros, S.A. a quantia de € 17.251,19, acrescida de juros de mora, à taxa legal supletiva civil, a contar da data da citação e até integral e efetivo pagamento;
ii.- improcedente quanto aos restantes Réus, absolvendo-se os mesmos do pedido.
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Inconformada com esta decisão, dela veio A... Y Reaseguros, S.A. – Sucursal em Portugal, que sucedeu nos direitos e obrigações da anterior C..., Companhia de Seguros Y Reaseguros, S.A., interpor o presente recurso, batendo-se pela sua revogação e pela sua substituição por outra que julgue a ação improcedente e a absolva do pedido.
Para tanto, formulou as conclusões que, com exceção das transcrições dos depoimentos de testemunhas que consta da conclusão 3.ª, porque totalmente desnecessário, assim se transcrevem:
1.- Nos termos e para os efeitos da alínea b) dos Factos Não Provados, foi atribuída culpa presumida à proprietária do imóvel seguro na demandada, cuja redacção se passa a transcrever: “Que os danos do veículo seguro na A. com origem no edifício nº ... a ..., propriedade da herança indivisa por óbito de EE, decorreram de circunstâncias imprevisíveis e que constituíram facto súbito e imprevisto” (sublinhado e carregado nosso).
2.- A demandada entende que, salvo sempre o devido respeito, foi feita uma errada valoração da prova testemunhal, pois desvalorizou-se, de forma absolutamente injustificada, os depoimentos das testemunhas FF e GG, que nenhum interesse têm, directo ou indirecto, no resultado da presente demanda.
3.- A demandada desde já indica que o meio probatório onde fundamenta o seu pedido de alteração da matéria de facto são os depoimentos das testemunhas FF e GG, prestados em 15/05/2024, que se passam a transcrever de seguida, com as passagens que interessam para o desiderato da demandada a sublinhado e carregado:
(…)
4.- Resulta evidente destes depoimentos, prestados de forma clara, isenta, imparcial e equidistante, que os proprietários do imóvel seguro na demandada cumpriram, “in totum”, todas as obrigações de vigilância, conservação e manutenção do imóvel em causa, providenciando, de forma preventiva, pelo bom estado geral e permanente desse mesmo imóvel; como, aliás, resulta da factualidade dada como provada.
5.- Aliás, impõe-se a pergunta: o que mais era exigível aos proprietários em termos de vigilância, manutenção e conservação desse imóvel? É que o entendimento vertido na Douta Sentença, e sempre com o devido respeito, coloca as demandadas numa autêntica situação de prova impossível.
6.- Ora, tendo sido cumpridos todos os deveres e obrigações legais, conseguiram as demandadas, de forma clara e inequívoca, ilidir as presunções previstas nos citados artºs 492º e 493º do Código Civil.
7.- E, como tal, impõe-se dar como provado que a queda das tenhas ocorreu por circunstâncias imprevisíveis e que constituíram facto súbito e imprevisto.
8.- De sorte que, com base nos depoimentos das testemunhas supra identificadas, deve ser dado como PROVADA a factualidade constante da alínea b) dos Factos Não Provados; em sua substituição, deve ser dada como PROVADA a factualidade constante dessa mesma alínea b).
9.- Como consequência, considerando que a queda das telhas ocorreu por circunstâncias imprevisíveis e que constituíram facto súbito e imprevisto, deve a demandada ser absolvida de todos os pedidos formulados pela demandante.
10.- Até porque não estamos perante um caso de responsabilidade civil objectiva; ou há culpa, ou não há, e já vimos que não há.
11.- Sempre se dirá que, salvo sempre o devido e legal respeito, existe manifesta contradição entre a factualidade constante da matéria de facto dada como provada sob os nºs 27 a 37 e a alínea b) dos Factos Não Provados.
12.- É a seguinte a matéria dada como assente:
27. O prédio foi alvo de obras de reconstrução em 2007 e tem sido objecto de obras de conservação executadas regularmente ao longo dos anos. 28. O telhado, beiral e caleiras foram objecto de revisão em 2016.
29. Os 2.ºs Réus, com vista à reabilitação do edifício, apresentaram uma candidatura ao programa “...”, que, após ser aprovada, conduziu à realização das obras nela contempladas.
30. A candidatura e a conclusão das obras aprovadas ocorreram entre os anos de 2005 e 2006.
31. O orçamento apresentado à Câmara Municipal ... no âmbito do programa ..., aprovado por esse município e posteriormente executado pelos 2.ºs RR., contemplou, de entre outros trabalhos, uma intervenção na cobertura, com demolição da existente e reconstrução da cobertura, incluindo a substituição de telhas e cumes degradados.
32. Após a conclusão destas obras, tomando como referência os últimos cinco anos que antecederam o sinistro acima descrito, os 2.ºs RR. Promoveram trabalhos de manutenção, limpeza e reparação do telhado com uma periodicidade anual.
33. Em Novembro de 2016, os 2.ºs RR. diligenciaram pela realização de trabalhos de limpeza e reparação do telhado, trabalhos esses que contrataram ao Sr. HH (entretanto falecido);
34. Em Agosto de 2017, os 2.ºs RR. diligenciaram pela realização de trabalhos de manutenção do telhado, trabalhos esses que contrataram ainda ao Sr. HH;
35. Em Novembro de 2018, os 2.ºs RR. voltaram a diligenciar pela realização de trabalhos de limpeza e manutenção do telhado, trabalhos esses que, desta feita, contrataram ao Sr. FF;
36. Em Dezembro de 2019, os 2.ºs RR. de novo diligenciam pela realização de trabalhos de limpeza e manutenção do telhado, que igualmente contemplaram a parte que esteve na origem do sinistro, trabalhos esses que também contrataram ao Sr. FF;
37. Em 09 de Julho e 20 de Agosto de 2020, ou seja, um mês antes de se dar a derrocada, os 2.ºs RR., recorrendo de novo aos serviços do empreiteiro FF, promoveram trabalhos de manutenção na cobertura do prédio.
13 - É a seguinte a matéria dada como não assente:
b) Que os danos do veículo seguro na A. com origem no edifício nº ... a ..., propriedade da herança indivisa por óbito de EE, decorreram de circunstâncias imprevisíveis e que constituíram facto súbito e imprevisto.
14. Da factualidade dada como provada, resulta evidente que os proprietários do imóvel tudo fizeram para que aquele se encontrasse em perfeitas condições de funcionamento, segurança, conservação e manutenção.
15. Independentemente de se proceder à alteração da matéria de facto conforme defende a demandada, é certo que a factualidade assente acima transcrita, por si só, é suficiente para que se considerem ilididas as já identificadas presunções, pois resulta evidente que nada mais era exigido aos proprietários, para além dos cuidados e medidas que já haviam tomado.
16. Portanto, também por esta via deve ser dada como provada a alínea b) dos Factos Não Provados ou, em alternativa, deve ser eliminada por se encontrar em manifesta contradição com a factualidade assente sob os nºs 27 a 37.
17.- A Douta Sentença recorrida violou, pois, os artºs 492º e 493º do Código Civil.
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A Requerente respondeu ao recurso da Ré, batendo-se por que lhe fosse negado provimento e por que fosse mantida a sentença recorrida, formulando as seguintes conclusões:
1.- Veio a Ré, aqui Recorrente, recorrer da douta sentença proferida invocando errada decisão quanto à matéria de facto dada como não provada.
2.- Ora, discorda a Autora/ Recorrida, in totum, das alegações apresentadas pela Ré/ Recorrente, que carecem de qualquer fundamento, visto que a sentença proferida não padece de qualquer erro decisório quanto à matéria de facto, motivo pelo qual a Autora/ Recorrida pugna pela manutenção mesma.
3.- A Ré/ Recorrente, apresenta, então, recurso da matéria de facto, não se conformando, em suma com: a culpa presumida dos proprietários do imóvel que deu origem ao sinistro dos autos, designadamente por se ter entendido que as demandadas não conseguiram ilidir as presunções previstas nos artigos 492.º e 493.º, ambos do Código Civil.
4.- Entende a Recorrente (no nosso entender, de forma infundada) que foi feita errada valoração da prova testemunhal pelo Tribunal a quo e que, por conseguinte, não poderia ter sido considerando como não provado o facto constante da alínea b) dos “FACTOS NÃO PROVADOS” da douta sentença aqui em crise: “Que os danos do veículo seguro na A. Com origem no edifício 97 a 99-A, propriedade da herança indivisa por óbito de EE, decorreram de circunstâncias imprevisíveis e que constituíram facto súbito e imprevisto.” (itálico e negrito nossos).
5.- Considera a Recorrente que não foram devidamente valorados os depoimentos das testemunhas FF e GG.
6.- Ora, não pode a aqui Recorrida, naturalmente, concordar com tal posição, já que o depoimento das referidas testemunhas suporta, sem margem para dúvidas, a decisão vertida na douta sentença proferida pelo Tribunal a quo.
7.- De acordo com o que pretende fazer crer a Recorrente, os depoimentos das testemunhas FF e GG seriam, na sua opinião, passíveis de ilidir a presunção de culpa que recai sobre a proprietária do imóvel que deu origem aos danos, por força do disposto nos artigos 492.º e 493.º, ambos do Código Civil.
8.- Sucede, todavia, que não é isso que resulta de tais depoimentos
9.- Não obstante a Recorrente pretender convencer que ficou provado que os Réus/ Ré Herança Indivisa tudo fizeram para manter o edifício – mormente o telhado e o beiral, para o que se discute nestes autos - em perfeitas condições de segurança e conservação, o que resultou inequivocamente provado foi que as intervenções feitas no prédio mais não eram do que meras operações de limpeza de lixo e entulho que se acumulava no telhado.
10.- Ambas as testemunhas foram categóricas ao afirmar que não foi feita qualquer manutenção no beiral e que nunca foi confirmado/ assegurado que o mesmo não padecia de qualquer vício de construção e/ ou de conservação.
11.- É que limpar entulho e garantir a efectiva fixação das telhas não é propriamente a mesma coisa… E proceder à limpeza ocasional do telhado não é assegurar a integridade do mesmo, do seu beiral e de todos os elementos que o compõem…
12.- Cabia à Ré proprietária provar que assegurou que o telhado e o seu beiral não padeciam de vícios (quer de construção, quer de conservação) e essa prova, salvo melhor entendimento, não foi feita. Consequentemente, não logrou a Ré ilidir a presunção legal que sobre si recai.
13.- Depoimento da testemunha FF:
[00:11:02] Mandatária da Autora (Dra. II): Desculpe, o Sr. FF esclareceu aqui o Tribunal que costumava ir lá fazer a manutenção.
[00:11:06] FF: Sim, sim.
[00:11:08] Mandatária da Autora (Dra. II): Mas também explicou que essa manutenção consistia quase exclusivamente na limpeza do telhado.
[00:11:14] FF: Do telhado, sim.
[00:11:40] Mandatária da Autora (Dra. II): O Sr. JJ não andava seguramente nessas telhas porque essas telhas estão praticamente no limite do edifício. Portanto, sob pena de cair por ali abaixo não era nessas telhas que o Sr. FF andava.
[00:11:48] FF: Não, não, não.
[00:13:29] Mandatária da Autora (Dra. II): Em setembro de 2020 estava limpo. Já quanto ao beiral propriamente dito e ao material onde estavam assentes as telhas, o Sr. FF não consegue confirmar como é que estava porque não fazia essa análise.
[00:13:42] FF: Isso era impossível de fazer.
14.- É, portanto, inquestionável que as intervenções que eram feitas no telhado do prédio aqui em questão nunca se debruçaram sobre o beiral; nunca a Ré proprietária curou de garantir, num prédio de construção tão antiga, se o beiral oferecia condições de segurança, se a sua estrutura se mantinha íntegra e fixa, não cuidando de certificar-se se aquelas telhas em específico, pendentes e debruçadas sobre a via pública, padeciam de algum vício de construção ou defeito de conservação.
15.- A Ré juntou inclusivamente documentação demonstrativa de que o prédio havia, em 2006, sofrido importantes obras de reabilitação; todavia, como é confirmado pela testemunha GG, tais trabalhos não recaíram sobre o beiral ou a estrutura em que assenta o mesmo, não tendo havido qualquer intervenção ao nível do beiral do prédio ou das telhas que formavam o mesmo.
16.- Depoimento da testemunha GG: “[00:16:14] Mandatária da Autora (Dra. II): Só umas questões mesmo muito breves. Quando diz que no âmbito do tal projeto ... foi feita a alteração ou, não sei como é que diz, que o telhado foi integralmente reconstruído nessa altura, em 2006.
[00:16:27] GG: Sim.
[00:16:28] Mandatária da Autora (Dra. II): Significa exatamente o quê? As telhas foram substituídas?
[00:16:30] GG: Estrutura, telha, subtelha, sim.
[00:16:34] Mandatária da Autora (Dra. II): Pronto. Não, ia-lhe perguntar se sabe exatamente... porque aqui não estamos a falar das telhas do resto do telhado. Preocupa-me sobretudo são aquelas que estão no beiral e, portanto, neste limite do edifício que foram as únicas que caíram. Se sabe se a estrutura em que estavam assentes se isso também foi alterado ou não, se houve uma substituição disso ou não, e em que é que essas telhas estão assentes. Também já agora perguntava-lhe, que é uma dúvida que temos tido aqui ao longo do processo. (…)
[00:17:04] GG: Sem nenhuma certeza, eu conseguia ver uma parte do telhado através de uma das janelas, porque como aqueles quartos lá em cima estavam nas águas-furtadas, uma das janelas até dava acesso a uma parte do telhado, mas não era esta em questão que sofreu a derrocada. Eu penso que os elementos estruturais de paredes, aqueles beirais em granito penso que não foram substituídos, que são... Que se mantêm os originais do prédio. Mas sem nenhuma certeza.
[00:17:35] Mandatária da Autora (Dra. II): Portanto, à partida, aquilo que é a estrutura onde assentam as telhas terá permanecido a mesma e foi substituída só a estrutura do telhado propriamente dita.
[00:17:46] GG: A estrutura da cobertura. (…)
(…)
[00:18:04] Mandatária da Autora (Dra. II): Depois, quando fala nas inspeções pelo menos anuais que eram feitas ao telhado, são as intervenções que eram feitas nomeadamente pelo Sr. FF.
[00:18:14] GG: Novo. E pelo Sr. HH também, sim.
[00:18:16] Mandatária da Autora (Dra. II): Que tanto quanto nos foi dito pelo próprio, consistam sobretudo era na limpeza do telhado.
[00:18:21] GG: Certo, certo.
[00:18:25] Mandatária da Autora (Dra. II): Também nos disse o senhor arquiteto que seria até contraproducente que quem lá fosse fazer essa manutenção que pisasse esta parte ou estas telhas precisamente pelo risco elevado de queda e de não haver segurança para o efeito.
[00:18:38] GG: Sim, certo.
17.- Importante é, ainda, salientar o depoimento da testemunha KK que, sendo engenheiro de profissão e exercendo as suas funções na Protecção Civil ..., manifestou, de forma evidente e isenta, qual, na sua opinião enquanto técnico, a causa para a queda das telhas: a falta de manutenção do prédio, mais concretamente do telhado/ beiral do telhado.
18.- Depoimento da testemunha KK:
Mandatária da Autora: Conseguiram apurar o porquê da queda daquelas telhas? Em circunstâncias normais as telhas não caem assim dos telhados e, portanto, a minha questão é, na qualidade de técnico e engenheiro associado à Protecção Civil, como lhe foi possível concluir que não havia rico adicional de continuação de queda do que restou do telhado e o que levou à queda do que caiu 2 dias antes?
KK: “A causa nestas coisas geralmente acaba por ser sempre a mesma: é falta de manutençãonão sei quantos anos é que aquilo tinha mas o método construtivo lá aplicado era de certo modo frágil, porque estava alicerçado numa tabela de madeira presa à parede de pedra. Ao fim de vários anos vai-se deteriorando… o beiral
(…)
-- KK: “Há um beiral que, naquele caso é bastante comprido, ou seja, há uma boa parte que esta suspensa para fora do edifício, passa a fachada do edifício, e tem de ser agarrado de alguma maneira, dado que o peso da parte da telha que está fora é superior ao peso da telha que está dentro, portanto tem tendência a cair; a maior parte do peso está fora. Pronto, ela era presa com uma tabela de madeira agarrada à parede de pedra e depois recoberto com massa. Pronto, com o passar dos anos e infiltrações sucessivas, a madeira vai-se deteriorando, deixa de estar devidamente agarrada ao seu suporte e um dia pode cair tudo. A massa está junta, solidária com a madeira, começando a desligar-se do suporte, aquilo acaba por cair tudo.”
-- KK: “O prédio continua exactamente igual. Também sei que há um processo na Câmara, no Urbanismo, para fazer qualquer tipo de intervenção, para o reabilitar de alguma maneira.”
19.- Relevante é também o facto de a queda das telhas ter ocorrido apenas no prédio pertencente à Ré Herança Indivisa, não se tendo verificado nenhum fenómeno semelhante, naquele dia ou em dias próximos, nos prédios vizinhos!! Pelo que a queda das telhas só pode ter resultado de defeituosa manutenção feita ao telhado/ beiral
20.- Por conseguinte, bem andou o Tribunal a quo ao considerar que, da prova produzida nos autos, não lograram os Réus afastar e ilidir a presunção de culpa que sobre si faz recair os normativos 492.º e 493.º do Código Civil.
21.- Não logrou a Ré proprietária demonstrar o cabal cumprimento do dever de vigilância que sobre si impendia, nos termos do qual quem tiver a seu cargo coisa imóvel com o dever de a vigiar responde pelos danos que a coisa causar, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua (cfr. artigo 493.º, n.º 1, do Cód. Civil).
22.- O artigo 492.º, n.º 1 do Código Civil, por sua vez, impõe aos proprietários ou possuidores edifícios a obrigação de os conservar, respondendo os mesmos pelos danos causados pela ruína do edifício, salvo se provarem que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos.
23.- Tais normas estabelecem presunções de culpa, ainda que ilidíveis, a cargo das pessoas responsáveis pela vigilância e pela conservação de bens imóveis, incumbindo-lhes, portanto, demonstrar que o dano não lhe é imputável, ou seja, que não se deveu à sua acção ou omissão.
24.- Ora, no caso dos autos, os Réus não lograram produzir qualquer prova que contrariasse tais presunções!
25.- Os Réus apenas conseguiram demonstrar que efectuavam com regularidade diligências de limpeza e manutenção no edifício, sem, todavia, conseguirem afastar a presunção de culpa; o facto de efectuarem trabalhos de manutenção ou limpeza, mesmo que no telhado, não significa que tenham intervindo na parte concreta do telhado que ruiu, ou seja, o beiral!
26.- Cabia aos Réus demonstrar que as telhas do beiral e o suporte que as fixava à cobertura se encontravam em bom estado de conservação e devidamente encaixadas, fixas, seguras. Tal matéria, todavia, não resultou provada, como bem entendeu o Tribunal a quo.
27.- A prova do vício de construção ou de defeito de conservação, pode ser feita por qualquer meio, nomeadamente através de presunções judiciais.
28.- Assim, como bem se entendeu na sentença recorrida, “…verificada a queda das telhas e a sua desagregação da cobertura do telhado, junto ao beiral onde assentavam, poderá presumir-se, na ausência de outro circunstancialismo verdadeiramente excepcional, que tal ocorreu por incumprimento do dever de conservação dessa parte do edifício.” (cfr. sentença em crise).
29.- “… de acordo com os defensores desta tese, o vício de construção ou o defeito de conservação podem provar-se por todos os meios, com particular destaque para as presunções judiciais (artigo 351.º do Código Civil), já que, conhecida a causa do dano, se concluirá se houve defeito de conservação…”- in Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 07/07/2016, no âmbito do processo n.º 12509/14.4LSB.L1-8, disponível em www.dgsi.pt
30.- “Salvo no caso de fenómenos extraordinários, como os terramotos, a ruína de um edifício ou obra é um facto que indicia por si só o incumprimento de deveres relativos à construção ou conservação dos edifícios, não se justificando por isso que recaia sobre o lesado o ónus suplementar e demonstrar a forma como ocorreu esse incumprimento.
31.- É antes o responsável pela construção ou conservação que deve genericamente demonstrar que não foi por culpa sua que ocorreu a ruína do edifício ou obra – nomeadamente pela prova da ausência de vícios de construção ou defeitos de conservação ou que os danos continuariam a verificar-se ainda que não houvesse culpa sua.” …” - in Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 07/07/2016, no âmbito do processo n.º 12509/14.4LSB.L1-8, disponível em www.dgsi.pt
32.- Alega ainda a Recorrente que impor à Ré proprietária o ónus de provar a não existência de vício de construção ou defeito de conservação colocaria esta numa situação de prova impossível, pretendendo sedimentar a ideia de que terá ficado provado que foram “cumpridos todos os deveres e obrigações legais” e questionado “o que mais lhes era exigível em termos de vigilância, manutenção e conservação do imóvel”?
33.- Ora, conforme já aqui amplamente se expôs e resulta igualmente da sentença recorrida, os Réus lograram tão-só demonstrar que executaram alguns trabalhos de manutenção e limpeza no telhado do prédio, não tendo, manifesta e inequivocamente, provado que algum desses trabalhos tenha alguma vez incidido sobre a parte que ruiu!!
34.- Os vários depoimentos das testemunhas arroladas pelos próprios Réus foram peremptórios ao afirmar que nunca estiveram no beiral do telhado, nunca inspeccionaram essa parte do telhado e nenhuma intervenção foi efectuada naquele concreto elemento estruturante do telhado!!
35.- Consequentemente, repete-se que o Tribunal a quo andou bem quando deu como provados os factos considerados provados e deu como não provado que:
(a) A queda das telhas se deveu a fenómenos da natureza ou intempérie; (b) Os danos do veículo seguro na A. com origem no n.º ... a ..., propriedade da herança indivisa por óbito de EE, decorreram de circunstâncias imprevisíveis e que constituíram facto súbito e imprevisto.
36.- Por tudo quanto acima vem exposto, resulta evidente que a sentença proferida fez uma acertada valoração e interpretação da prova produzida e uma adequada aplicação da lei, não padecendo de qualquer vício, nem merecendo qualquer reparo, devendo, assim, manter-se na íntegra.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II.- Das questões a decidir
O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art. ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art. ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Neste pressuposto, as questões que, neste recurso, importa apreciar e decidir são as seguintes:
i.- da impugnação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida quanto ao facto não provado da alínea b);
ii.- da ilisão, pela Apelante, das presunções de culpa previstas nos art.ºs 492.º e 493.º do CC.
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III.- Da Fundamentação
III.I.- Na sentença proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso foram considerados provados os seguintes factos:
1.- EE, faleceu em 08 de Setembro de 1998, tendo-lhe sucedido como seus herdeiros, os seus quatro filhos:
1.- AA;
2.- BB;
3.- CC; e
4.- DD.
2.- O edifício interveniente no sinistro infra descrito é propriedade da Herança Indivisa por óbito de EE.
3.- O edifício em questão tem seguro de responsabilidade civil, titulado pela apólice nº ..., na 1.ª R., Seguradora C..., através do qual foi transferida para esta última a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com origem no prédio.
4.- A Autora é uma sociedade constituída sob a forma comercial que tem por objecto a actividade de seguradora.
5.- No âmbito da sua actividade, celebrou com a sociedade D..., Lda., contrato de seguro com a apólice nº ... – Ramo automóvel, por via do qual aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-XZ-.., dentro dos limites legais e contratuais.
6.- Tal contrato de seguro encontrava-se em vigor à data do sinistro infra descrito, em que o referido veículo esteve envolvido, ou seja, em 19 de Setembro de 2020, pelas 13:45h.
7.- No dia 19 de Setembro de 2020, pelas 13:45h, o veículo seguro de matrícula ..-XZ-.. encontrava-se estacionado na Rua ..., ..., no Porto, quando, por razões que não foram possíveis determinar, foi atingido por um beiral de telhas, fragmentos de pedra, caleiras e condutores de águas pluviais pertencentes ao edifício nº ... a ..., propriedade da herança indivisa por óbito de EE, que provocaram avultados danos na viatura segura.
8.- A referida via configura uma recta em inclinação ascendente e de sentido único de circulação.
9.- Existem lugares destinados ao estacionamento, paralelos à via e passeios de ambos os lados, estando o veículo seguro de matrícula ..-XZ-.. devidamente estacionado num desses lugares, sem ninguém no seu interior, tendo sido o habitual utilizador da viatura LL, identificado como lesado no auto de participação policial do sinistro, a pessoa que estacionou a viatura em apreço.
10.- No dia e hora do acidente, chovia ligeiramente e o vento soprava aproximadamente a 26 Km/h.
11.- O condutor do veículo seguro, em sede de peritagem, declarou o seguinte:
“Estacionei o meu veículo devidamente por volta das 13 horas e cerca de quarenta minutos depois mais ou menos, ouvi um barulho semelhante a uma explosão e vim ao exterior e deparei-me com o meu veículo bastante danificado com telhas e pedras que caíram do prédio do nº .../.... Liguei de imediato para o 112 e as autoridades locais e bombeiros acorreram ao local registando o sinistro. Não identifiquei ninguém que tenha visto. Na altura chovia com pouca intensidade e o vento era bastante fraco”.
12.- Além do veículo seguro foram registados mais dois sinistros, com dois outros veículos, também estacionados naquele local, embora os danos não tenham sido tão extensos.
13.- No local estiveram os Bombeiros Sapadores ..., com seis elementos e duas viaturas.
14.- Deslocaram-se ainda ao local elementos da Protecção Civil e duas viaturas da Polícia Municipal ..., que efectuaram o corte da via para se proceder aos trabalhos.
15.- O sinistro foi registado pelas autoridades, PSP ..., que elaborou a participação da ocorrência com NPP: ....
16.- O prédio de onde caíram as telhas que atingiram o veículo seguro pela Autora é propriedade da Herança Indivisa de EE, sendo os 2.ºs Réus os seus únicos Herdeiros.
17.- A proprietária do edifício tinha um contrato de seguro com a 1ª Ré, para que havia transferido a responsabilidade por danos causados a terceiros, tendo o sinistro sido participado a esta, sob o processo n.º ....
18.- Em resposta à interpelação da Autora, a 1ª Ré recusou-se a assumir responsabilidade relativamente ao sinistro em causa.
19.- Em virtude do sinistro em discussão, sofreu o veículo segurado pela Autora danos na zona dianteira que ficou integralmente destruída, nomeadamente o para-brisas, tejadilho e o próprio interior da viatura.
20.- Conforme procedimento habitual, o veículo de matrícula ..-XZ-.. foi sujeito a uma peritagem que determinou, face à extensão dos danos, a sua perda total.
21.- Por tal razão, a proprietária do veículo seguro recebeu uma indemnização no montante de €16.651,00 (dezasseis mil, seiscentos e cinquenta e um euros).
22.- Indemnização cujo pagamento a Autora efectuou, ao abrigo da cobertura facultativa de Danos Próprios para situações de “Choque, Colisão e Capotamento”, decorrente do contrato de seguro celebrado com a sociedade D..., Lda..
23.- A autora suportou ainda despesas relativas ao veículo de substituição, no valor de €600,19 (seiscentos euros e dezanove cêntimos).
24.- Tudo no montante global de € 17.251,19 (dezassete mil, duzentos e cinquenta e um euros e dezanove cêntimos).
25.- Não se verificou mais nenhuma ocorrência semelhante nas imediações do local.
26.- O capital destinado a cobrir o risco de responsabilidade civil, titulado pela apólice nº ..., através do qual foi transferida para a 1.ª R., Seguradora C... a responsabilidade por danos causados a terceiros com origem no edifício nº ... a ..., propriedade da herança indivisa por óbito de EE, é limitado a 250.000,00.
27.- O prédio foi alvo de obras de reconstrução em 2007 e tem sido objecto de obras de conservação executadas regularmente ao longo dos anos.
28.- O telhado, beiral e caleiras foram objecto de revisão em 2016.
29.- Os 2.ºs Réus, com vista à reabilitação do edifício, apresentaram uma candidatura ao programa “...”, que, após ser aprovada, conduziu à realização das obras nela contempladas.
30.- A candidatura e a conclusão das obras aprovadas ocorreram entre os anos de 2005 e 2006.
31.- O orçamento apresentado à Câmara Municipal ... no âmbito do programa ..., aprovado por esse município e posteriormente executado pelos 2.ºs RR., contemplou, de entre outros trabalhos, uma intervenção na cobertura, com demolição da existente e reconstrução da cobertura, incluindo a substituição de telhas e cumes degradados.
32.- Após a conclusão destas obras, tomando como referência os últimos cinco anos que antecederam o sinistro acima descrito, os 2.ºs RR. promoveram trabalhos de manutenção, limpeza e reparação do telhado com uma periodicidade anual.
33.- Em Novembro de 2016, os 2.ºs RR. diligenciaram pela realização de trabalhos de limpeza e reparação do telhado, trabalhos esses que contrataram ao Sr. HH (entretanto falecido);
34.- Em Agosto de 2017, os 2.ºs RR. diligenciaram pela realização de trabalhos de manutenção do telhado, trabalhos esses que contrataram ainda ao Sr. HH;
35.- Em Novembro de 2018, os 2.ºs RR. voltaram a diligenciar pela realização de trabalhos de limpeza e manutenção do telhado, trabalhos esses que, desta feita, contrataram ao Sr. FF;
36.- Em Dezembro de 2019, os 2.ºs RR. de novo diligenciam pela realização de trabalhos de limpeza e manutenção do telhado, que igualmente contemplaram a parte que esteve na origem do sinistro, trabalhos esses que também contrataram ao Sr. FF;
37.- Em 09 de Julho e 20 de Agosto de 2020, ou seja, um mês antes de se dar a derrocada, os 2.ºs RR., recorrendo de novo aos serviços do empreiteiro FF, promoveram trabalhos de manutenção na cobertura do prédio.
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III.II.- Na mesma sentença não foram considerados provados os seguintes factos:
a.- Que a queda das telhas se deveu a fenómeno da natureza ou intempérie.
b.- Que os danos do veículo seguro na A. com origem no edifício nº ... a ..., propriedade da herança indivisa por óbito de EE, decorreram de circunstâncias imprevisíveis e que constituíram facto súbito e imprevisto.
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III.II.- Do objeto do recurso
1.- Da impugnação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida
.- Insurge-se a Apelante contra a circunstância de o tribunal a quo ter considerado não provada a matéria que incluiu na alínea b) do elenco de factos não provados.
O teor de tal alínea é o seguinte:
“b.- Que os danos do veículo seguro na A. com origem no edifício nº ... a ..., propriedade da herança indivisa por óbito de EE, decorreram de circunstâncias imprevisíveis e que constituíram facto súbito e imprevisto.”
A respeito dela, e independentemente do sentido da prova produzida em julgamento quanto à matéria que lhe subjaz, há que dizer que deve ser excluída do acervo de factos provados e não provados.
Na verdade, o que aqui está em causa é a decisão da matéria de facto do tribunal a quo, no que diz respeito, designadamente, à enunciação dos factos que o mesmo considerou provados e não provados.
Nessa tarefa, aquilo que importa apurar é exclusivamente factos materiais e concretos, enquanto acontecimentos ou realidades do mundo exterior, ou, nas palavras de Anselmo de Castro, “não só acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos” (in Direito Processual Civil Declaratório, Coimbra, Vol. III, 1982, p. 268/269).
Do elenco de factos relevantes para a decisão a proferir não devem constar, por conseguinte, juízos conclusivos ou de valoração normativa. Tais juízos, a relevar, relevam sim, mas em sede de subsunção daqueles factos ao direito aplicável, isto é, noutra sede que não nesta. Como se referiu a este propósito no Acórdão da Relação do Porto de 27-09-2023, “só os factos materiais são suscetíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados”, pelo que “conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objeto de prova” (proferido no processo n.º 9028/21.6T8VNG.P1, disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
Consequentemente, afirmações conclusivas, sobretudo quando correspondam ao objeto do litígio ou à questão a decidir, confundindo-se com o ‘conceito chave’ da solução jurídica da causa, devem ser excluídas ou consideradas não escritas. Como, mais uma vez, se concluiu no aludido aresto, deve-se ter por “não escrita” “a enunciação [que se] revele conclusiva”, mormente nos casos em que, citando o Acórdão do STJ de 14-07-2021, essa enunciação encerre um juízo “contendo (…) em si mesmo a decisão da própria causa” ou em que “se tais factos fossem considerados provados ou não provados toda a acção seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência) com base nessa única resposta”.

Ora, a alínea b) do elenco de factos não provados aqui em apreço contém, não realidades ou acontecimentos do mundo exterior, mas um juízo de pendor marcadamente conclusivo.
Na verdade, dizer-se que os danos do veículo dos autos decorreram de “circunstâncias imprevisíveis e que constituíram facto súbito e imprevisto” é, não descrever ou retratar uma ocorrência do mundo exterior, mas formular uma conclusão despojada de factos.
Além de conclusão, trata-se, também, de conclusão vaga e genérica, na qual tudo cabe e, por conseguinte, da qual não se pode retirar efeito útil. Diz-se que os danos decorreram de “circunstâncias imprevisíveis” ou “de facto súbito e imprevisto”, mas não se concretiza que circunstâncias ou que facto estavam em causa, o que inviabiliza aquilatar a realidade a que se reporta e, inclusive, caracterizá-la como “imprevisível”, “súbita” ou “imprevista”.
Acresce que, como melhor se verá à frente, o cerne do objeto do litígio e do próprio recurso gira em torno da questão de saber a quem compete o ónus da prova da causa do desabamento que originou os danos no veículo dos autos e se tal ónus foi ou não cumprido pela parte onerada.
Ora, a matéria em questão consiste, precisamente, na enunciação (conclusiva) da causa do sinistro e, portanto, num facto nuclear e decisivo para o desfecho da ação. Da sua enunciação, mormente se incluída, como a Apelante pretende na presente impugnação, no elenco de factos provados, resultaria, assim, a decisão virtual da própria causa.
O ponto da matéria de facto em apreço não reúne, pelo exposto, os requisitos para que, à luz do disposto no n.º 4 do art.º 607.º do CPC, possa ser visto como “facto” juridicamente relevante, a ponto de dever integrar o acervo de factos provados ou não provados.
Determina-se, pois, a sua exclusão, daí resultando prejudicada a apreciação da impugnação da Apelante no que a eles diz respeito.

Sem prejuízo, quanto à impugnação da decisão da matéria de facto deduzida pela Apelante, sempre se diga que, no caso, não haveria lugar à sua apreciação.
Na verdade, com a impugnação da decisão da matéria de facto pretende-se, passe a redundância, alterar o julgamento feito quanto aos factos que, por via da impugnação, se reputam mal julgados.
Isto, contudo, não como fim em si mesmo, mas como meio ou instrumento de, mediante a alteração do julgamento dos factos impugnados, se poder concluir que - afinal - existe o direito que em 1.ª instância não foi reconhecido ou, pelo contrário, que não existe o direito que o foi; o mesmo é dizer, como meio de provocar um diverso enquadramento jurídico dos factos do levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, obter uma decisão diversa da nele proferida quanto ao fundo da causa.
A impugnação da decisão da matéria de facto tem, por conseguinte, como referido no Acórdão da Relação de Guimarães de 15-12-2016, “carácter instrumental”, “não se justifica(ndo) a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo um carácter instrumental face à mesma” (Acórdão proferido no processo n.º 86/14.0T8AMR.G1, disponível na internet, no local já antes citado).
O seu fim último é, pois, como também referido no Acórdão da Relação de Coimbra de 24-04-2012, naquele citado, “conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada”, não com esse único intuito, mas sim “de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante”.
Por este motivo, o tribunal de recurso não deve conhecer a impugnação da matéria de facto sempre que, como se escreveu no Acórdão da Relação de Coimbra de 27-05-2014, também citado naqueloutro, “o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (sublinhado nosso).

Ora, com a presente impugnação, pretendia a Apelante, como se viu, sindicar o julgamento feito pela 1.ª instância da alínea b) dos factos não provados.
Em tal alínea, como também se viu, aludia-se a circunstâncias imprevisíveis ou a facto súbito e imprevisível como tendo sido a causa do sinistro dos autos.
Julgar provada a matéria em questão equivaleria, por conseguinte, a considerar provada a verificação de algum evento, ainda que súbito e imprevisível, que pudesse ter estado na origem do desabamento.
A Apelante, contudo, na sua impugnação, não aventa a possibilidade de ocorrência de um qualquer evento que, independentemente das suas características, pudesse ter estado na origem do sinistro, mas, pelo contrário, limita-se a associar a prova do facto em apreço aos atos de manutenção e de conservação do prédio que foram sendo executados ao longos dos anos pelos respetivos proprietários.
Ou seja, face à forma como a Apelante estrutura o recurso, a matéria em apreço deveria ser considerada provada, não pela demonstração de algo que a pudesse suportar, mas por exclusão de partes, em função da manutenção e conservação que foi feita do prédio.
Tanto assim é, aliás, que a Apelante, não só pugna pela consideração como provada da matéria da alínea em questão, como invoca uma suposta contradição existente entre a consideração como não provada de tal matéria e os factos provados dos n.ºs 27 a 37, que consistem, precisamente, na descrição dos trabalhos realizados no edifício a mando dos seus proprietários.
Bem entendida, a posição da Apelante consiste, pois, não necessariamente na constatação de que o sinistro teve como causa o que consta da alínea b) dos factos não provados, mas que os proprietários do prédio tudo fizeram de modo a evitar a ocorrência desses danos, servindo a alusão àquela alínea, na economia do recurso, não como fim em si mesmo, mas como forma de destacar aquela realidade.
Tal realidade (a dos trabalhos realizados) é, contudo, matéria assente nos autos, pelo que nenhum interesse ou relevo teria para a decisão jurídica da causa a apreciação da impugnação da Apelante no que tange à alínea b) dos factos não provados.
A Apelante, de resto, é a própria a reconhecê-lo, ao referir, na motivação do seu recurso, que “independentemente de se proceder à alteração da matéria de facto conforme defende (…), é certo que a factualidade assente acima transcrita, por si só, é suficiente para que se considerem ilididas as já identificadas presunções, pois resulta evidente que nada mais era exigido aos proprietários, para além dos cuidados e medidas que já haviam tomado.”
Em suma, o conhecimento da impugnação da Apelante está prejudicado pela exclusão do facto em apreço, mas, mesmo que não o estivesse, não deveria ter lugar.
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2.- Do enquadramento jurídicos dos factos
O quadro com que nos deparamos neste recurso é o seguinte.
No dia 19-09-2020, pelas 13h45, o veículo automóvel com a matrícula ..-XZ-.. estava estacionado na Rua ..., no Porto, quando, por razões não determinadas, foi atingido por um beiral de telhas, fragmentos de pedra, caleiras e condutores de águas pluviais do edifício com n.º ... a ....
Porque a proprietária do veículo tivesse transferido para a Apelada, por contrato de seguro adrede celebrado, vigente na referida data, a responsabilidade por danos próprios do veículo, esta indemnizou-a dos prejuízos sofridos com o sinistro, pagando-lhe a quantia global de € 17.251,19.
O edifício no qual teve origem o sinistro é da propriedade da herança indivisa por óbito de EE, cujos sucessores são os segundo a quinto Réus na ação, sendo que, por contrato de seguro, vigente na mesma data, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com origem no prédio fora transferida para a Apelante.
Tendo ressarcido o lesado dos prejuízos sofridos com o sinistro, a Apelada instaurou a presente ação por forma a que, por sub-rogação, obtivesse de todos os Réus – os segundo a quinto, enquanto sucessores da proprietária do edifício e a primeira, por força do contrato de seguro com estes celebrado – o reembolso daquilo que, a esse título, pagara.
Em 1.ª instância, entendendo-se que estavam verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual relativamente aos segundo a quinto Réus por culpa presumida nos termos dos art.ºs 492.º e 493.º do CC e não ilidida, condenou-se a Apelante – e só a Apelante, por força do contrato de seguro relativo ao edifício – a pagar à Apelada a quantia peticionada.
Neste recurso, a Apelante bate-se pela revogação da sentença recorrida e, consequentemente, pela sua absolvição do pedido, pelo facto de, na sua perspetiva, e contrariamente ao plasmado na sentença recorrida, ter sido ilidida a presunção de culpa prevista nos citados art.ºs 492.º e 493.º do CC.
A questão que está em causa neste recurso e que, como tal, aqui importa apreciar e decidir é a de saber, portanto, assente e consolidado que está tudo o mais (sub-rogação da Apelada ao lesado; responsabilidade da Apelante com base no contrato de seguro relativo ao edifício; e montante da indemnização arbitrada), se se mostra, de facto, ilidida a presunção de culpa emergente dos citados preceitos legais.
Apreciemos, pois, tal questão, sendo que, tendo os art.ºs 492.º e 493.º do CC âmbitos de previsão e requisitos diversos um do outro, fá-lo-emos de forma individualizada quanto a cada um deles.
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.- Da presunção de culpa prevista no art.º 492.º do CC
A pretensão da Apelante funda-se no instituto jurídico da responsabilidade civil por factos ilícitos, cujo princípio geral consta do n.º 1 do art.º 483.º do Código Civil.
Estatui este normativo que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Da sua leitura resulta que a obrigação de indemnização nele prevista depende da verificação de vários pressupostos, a saber: o facto, a ilicitude, o nexo de imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (v., neste sentido, Almeida Costa, in «Direito das Obrigações», 9ª edição, Revista e Aumentada, Almedina, 2005, p. 509 e seguintes, Antunes Varela, in «Das Obrigações em Geral», vol. I, 9ª edição, Almedina, 1998, pág. 543 e seguintes e Vaz Serra, in «Requisitos da Responsabilidade Civil», nº2).
A arquitetura do instituto resultante do normativo em apreço assenta, como se vê, na existência de um nexo de imputação do facto ao lesante, o mesmo é dizer, na culpa deste, a qual deve, por conseguinte, ser provada pelo lesado, tal como, aliás, é salientado no art.º 487.º do CC.
Situações há, contudo, em que o legislador, considerando as suas especificidades, estabelece presunções de culpa que, em face do n.º 1 do art.º 350.º do CC, desoneram o lesado da sua prova e que, pelo contrário, nos termos do n.º 2 deste preceito, cometem ao lesante o ónus de ilidir a presunção mediante prova em contrário.
Em tais casos, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual permanecem os mesmos, isto é, tal como previstos no art.º 483.º, n.º 1 do CC, mas a culpa é presumida, recaindo, não sobre o lesado o ónus da sua prova, mas sobre o lesante o ónus da sua ilisão.
Um desses casos é o previsto no n.º 1 do art.º 492.º do CC.
De acordo com tal preceito, o proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos causados, salvo se prova que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos.
Como resulta da sua leitura, nele se estabelece uma presunção de culpa, no que ao caso importa, do proprietário de edifício que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação.
À luz do mesmo, provada a ruína, total ou parcial, do edifício e que tal ruína teve origem em vício de construção ou defeito de conservação, presume-se que houve culpa do respetivo proprietário, cabendo a este, então, demonstrar que não teve culpa ou que, mesmo que tivesse agido com diligência, os danos sempre teriam ocorrido.
Note-se que, do que se trata aqui, é de uma presunção de culpa e não de presunção de ilicitude. Por conseguinte, corolário do princípio geral de que ao lesado incumbe fazer prova do facto ilícito, à luz do preceito em apreço, incumbe ao lesado o ónus de demonstrar a ruína e, bem assim, o vício de construção ou o defeito de conservação que esteve na sua origem. Feita essa demonstração, presumir-se-á, então, a culpa do proprietário, cabendo a este ilidi-la.
Esta conclusão não é pacífica. Assim, e nomeadamente, para Menezes Leitão sobre o lesado não deve recair o ónus da prova do vício de construção ou de conservação, na certeza de que tal equivaleria “a retirar grande parte do alcance à presunção de culpa”. Segundo o Autor, “[s]alvo no caso de fenómenos extraordinários, como os terramotos, a ruína de um edifício ou obra é um facto que indicia só por si o incumprimento de deveres relativos à construção ou conservação dos edifícios, não se justificando por isso que recaia sobre o lesado o ónus suplementar de demonstrar a forma como ocorreu esse incumprimento. É antes o responsável pela construção ou conservação que deve genericamente demonstrar que não foi por culpa sua que ocorreu a ruína do edifício ou obra – nomeadamente pela prova da ausência de vícios de construção ou defeitos de conservação – ou que os danos continuariam a verificar-se, ainda que não houvesse culpa sua” (in Direito das Obrigações, Vol. I, p. 320 e 321).
Como quer que seja, afigura-se-nos que a letra do preceito aponta para a leitura que acima foi feita, assim como que cabe ao lesado a prova do vício de construção ou o defeito de conservação.
Acresce que esta leitura é aquela que mais se coaduna, não só com o princípio geral de que cabe ao lesado a prova do facto ilícito, como com a regra do ónus da prova em caso de existência de presunção, que, nos termos do n.º 1 do art.º 350.º do CC, cinge-se ao facto a que ela conduz, no caso, a culpa.
Concluímos, pois, como referido na sentença recorrida, que “a presunção prevista [no] preceito apenas dispensa a prova do facto presumido (a culpa), mas já não a do facto-base, que (…) é o vício de construção ou defeito de conservação”, pelo que “o lesado apenas está dispensado de provar a culpa, mas já não de provar o vício de construção ou de conservação”.
Trata-se aqui, de resto, de posição que se crê maioritária da jurisprudência dos tribunais superiores, de que servem de exemplo os Acórdãos do STJ de 11-11-2010, proferido no processo 7848/05.8TBCSC.L1.S1; de 12/05/2005, proferido no processo 05B932, de 09/10/2003, proferido no processo n.º 03B2680; de 06/02/96, proferido no processo n.º 088120; da Relação do Porto de 15/10/2013, proferido no processo n.º 4319/10.4TBVFR.P1; da Relação de Guimarães de 16/02/2012, proferido no processo n.º 7788/05.0TBBRG.G1; da Relação de Coimbra de 09-01-2024, proferido no processo n.º 325/21.1T8CVL.C1 (no qual é feita a resenha dos restantes); e da Relação do Porto de 26-01-2023, proferido no processo 06/21.9T8PRT.P1 (referenciado na sentença recorrida).
Impressivamente, escreveu-se no sumário do primeiro dos Acórdãos referenciados que “[o] regime de inversão do ónus de prova contemplado no art. 492.º do C.C. só pode, sem mácula, aplicar-se, uma vez provado o vício de construção ou o defeito de manutenção, prova essa que incumbe ao autor (art. 342.º n.º 1 do C.C.), sob pena de defeso alargamento do âmbito da presunção prevista no primeiro dos normativos citados à causa da ruína”.

In casu, não foi feita prova de que, na origem do sinistro dos autos, consubstanciado no desabamento de um beiral de telhas, de fragmentos de pedra, de caleiras e de condutores de águas pluviais do prédio dos autos, tenha estado vício de construção ou defeito de conservação.
Como resulta expressamente do facto provado n.º 7, o desabamento ocorreu “por razões que não foi possível determinar”, o mesmo é dizer por causa desconhecida.
Por conseguinte, pressupondo a presunção de culpa em análise a prova prévia do “facto-base” de que o acidente decorreu de vício de construção ou de defeito de conservação, forçoso é concluir-se que tal presunção não chegou sequer a operar.
Na sentença recorrida chegou-se a esta mesma conclusão; todavia, entendeu-se que o vício de construção ou o defeito de conservação podiam provar-se por todos os meios, nomeadamente, por presunção judicial prevista no art.º 351.º do CC, na certeza de que “conhecida a causa do dano, se concluiria se houve defeito de conservação”. Neste pressuposto, porque “verificada a queda das telhas e a sua desagregação da cobertura do telhado, junto ao beiral, onde assentavam, poder[ia] presumir-se, na ausência de outro circunstancialismo verdadeiramente excecional, que tal ocorreu por incumprimento do dever de conservação dessa parte do edifício”, julgou provada a prática do ato ilícito.
Pese embora compreensível e pertinente tal observação, discorda-se, contudo, da mesma, pela seguinte ordem de razões.

A possibilidade de, em casos como o dos autos, em que não há, de todo, prova do vício de construção ou do defeito de conservação, se concluir pela verificação do ato ilícito por decorrência da presunção judicial é uma posição que tem tido acolhimento em jurisprudência dos nossos tribunais superiores.
É o caso, entre outros, do Acórdão da Relação de Lisboa de 29-11-2007, proferido no processo n.º 8211/2007-8 (disponível na internet, no sítio acima referenciado), no qual se refere que “será em muitos casos por via de presunção judicial (art.º 351.º do Código Civil), conhecida a causa do dano, que se concluirá se houve defeito de conservação”.
Como quer que seja, uma tal presunção judicial não pode ser automática, nem muito menos imediata, dependendo a sua operatividade, naturalmente, de as circunstâncias do caso concreto permitirem o recurso à mesma. A não se entender assim, cairíamos na total incongruência de começar por dizer que o art.º 492.º do CC não prevê uma “presunção legal de ilicitude”, para depois acabar por se aceitar essa mesma presunção, ainda que transmutada em “judicial”.
É, pois, e repita-se, em função das circunstâncias do caso concreto que o recurso a essa presunção deve ser perspetivado.
Ora, no nosso caso, ponderando essas mesmas circunstâncias, e contrariamente ao caminho seguido pela 1.ª instância, entende-se não ser possível concluir, por presunção judicial, que o sinistro dos autos tenha tido origem em vício de construção ou defeito de conservação.
Com efeito, do que se trata aqui é do desabamento de telhas, fragmentos de pedra, caleiras e condutores de águas pluviais e, portanto, componentes da cobertura do telhado do edifício dos autos.
Ora, resulta da matéria de facto provada – cujo teor não foi posto em causa por nenhuma das partes – que o prédio foi alvo de obras de reconstrução em 2007 e, bem assim, que tem sido objeto de obras de conservação regularmente ao longo dos anos.
Resulta da factualidade apurada, também, que o telhado, o beiral e as caleiras, isto é, a parte da estrutura do edifício afetada pelo desabamento, foram objecto de revisão em 2016.
Resulta, ainda, dos factos provados, que com referência aos últimos cinco anos que antecederam o sinistro, os proprietários promoveram trabalhos de manutenção, de limpeza e de reparação do telhado com uma periodicidade anual, designadamente: em Novembro de 2016, em agosto de 2017, em Novembro de 2018, em dezembro de 2019.
Finalmente, provou-se que um mês antes da derrocada, isto é, em 9 de julho e em 20 de agosto de 2020, os proprietários do prédio promoveram novamente trabalhos de manutenção na cobertura do prédio.
Ora, perante estes dados, a única conclusão que se pode retirar é a de que os proprietários do prédio, com uma regularidade especialmente digna de nota, diligenciaram pela realização de trabalhos de manutenção e conservação da estrutura da cobertura do prédio. Fizeram-no, inclusive, um mês antes da derrocada. Não vemos, pois, perante uma cadência tão regular de intervenções, como possível concluir que a derrocada tenha tido origem em vício de construção ou em defeito de construção.

Note-se que, como referem Pires de Lima e Antunes Varela, as presunções judiciais previstas no art.º 351.º do CC “inspiram-se nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana”. Assentam, por isso, num “raciocínio de quem julga”, pelo que aquilo que lhes subjaz é um verdadeiro juízo de facto - um verdadeiro juízo de apreciação da prova - do julgador quanto ao facto presumível. São, por isso, e ainda segundo os mesmos Autores, meios de prova “especialmente falíveis, precários, cuja força persuasiva pode, por isso mesmo, ser afastada por simples contraprova”.
Ora, no caso, sabendo-se que o edifício dos autos foi objeto de intervenções regulares de manutenção na cobertura, não vemos como possível concluir que, ‘com toda a probabilidade’, ‘de acordo com a lógica’, ou ‘de acordo com os dados da intuição humana’, o desabamento tenha ocorrido por vício de construção ou defeito de conservação do edifício. No mínimo, sempre subsistiria a dúvida, pelo que, estando aqui em causa um juízo de facto, sempre ficaria afastada a operatividade da presunção.
Pelo exposto, não se tendo provado a causa do desabamento em apreço, ficou por demonstrar o próprio facto ilícito que, à luz do art.º 492.º do CC, poderia fundar a responsabilidade dos proprietários do edifício.
E uma vez que era sobre o lesado – no casu, a Apelada, que intervém nos autos por sub-rogação – que recaía o ónus da prova correspondente, forçoso é concluir que a pretensão indemnizatória da Apelada estribada no preceito em análise não pode prevalecer.
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.- Da presunção de culpa do art.º 493.º do CC
Vejamos, agora, a pretensão indemnizatória da Apelada à luz do art.º 493.º, n.º 1 do CC.
De acordo com tal dispositivo legal, reportando-nos àquilo que aqui importa considerar, quem tiver em seu poder coisa imóvel, com o dever de a vigiar, responde pelos danos que a coisa causar, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa da sua parte.
Estabelece-se neste preceito uma presunção de culpa que recai sobre aquele que tenha em seu poder coisa imóvel com o dever de a vigiar.
Pressupondo a culpa, embora presumida, aqui se prevê, à semelhança do art.º 492.º do CC, e como referem Pires de Lima e Antunes Varela, um caso de “responsabilidade delitual e não de responsabilidade objetiva ou pelo risco” (in Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, 1987, p. 495).
Subjacente a este regime está a ideia, expressa por Vaz Serra, de que, por um lado, “quem tem a coisa à sua guarda deve tomar as medidas necessárias a evitar o dano”; por outro lado, “está em melhor situação do que o prejudicado para fazer a prova relativa à culpa, visto que tinha a coisa à sua disposição e deve saber, como ninguém, se realmente foi cauteloso na guarda”.
Segundo o mesmo Autor, “o critério para determinar a pessoa cuja culpa se presume deve ser o de que guarda, para tal efeito, quem tiver a coisa em seu poder e tiver a obrigação de a guardar: esse é que pode materialmente guardá-la e tem o dever de o fazer. Se esta pessoa não detiver materialmente a coisa porque a confiou a terceiro (v.g. para reparação ou em locação ou comodato), o dever de guarda transfere-se para esse terceiro, não sendo agora razoável presumir a culpa de quem não pode guardar a coisa” (in Trabalhos Preparatórios do Código Civil, in BMJ, n.º 85, p. 365/366).
Por conseguinte, a respeito de quem em a guarda, ”pode tratar-se do proprietário da coisa (…); mas não tem necessariamente de ser o proprietário (…). É a pessoa que tem as coisas (…) à sua guarda quem deve tomar as providências indispensáveis para evitar a lesão” (V. Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, p. 495).

Sublinhe-se que, diversamente do art.º 492.º do CC acima analisado, o preceito em apreço contempla, além da presunção de culpa já assinalada, uma verdadeira presunção de ilicitude.
A letra do preceito faz depender a presunção de culpa do poder sobre a coisa com o dever de a vigiar, independentemente, portanto, da violação desse dever. Por conseguinte, à luz do mesmo ao lesado incumbe provar que os danos foram causados pela coisa e que o dever de a vigiar estava a cargo do lesante, passando a caber sobre este, então, o ónus da prova de que observara o dever de vigilância da coisa ou que os danos sempre se teriam produzido ainda que não houvesse culpa sua.
Neste sentido tem alinhado uma parte, se não maioritária, pelo menos significativa da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, como foi o caso dos Acórdãos do STJ de 02-03-2011, de 10/12/2013 e de 30/09/2014, bem como do recente acórdão desta mesma Relação e Secção de 26-01-2023 (todos eles disponíveis no local já referenciado).
Impressivamente, escreveu-se no sumário deste último que “[a] norma do art.º 493.º, n.º 1, do CC estabelece uma presunção de culpa que, em bom rigor, é, simultaneamente, uma presunção de ilicitude, de tal modo que, face à ocorrência de danos, se presume ter existido, por parte da pessoa que detém a coisa, incumprimento do dever de vigiar”. Assim, “[a] pessoa responsável nos termos do artigo 493º, nº1, do CC pode isentar-se da obrigação de indemnizar contra si presumivelmente instituída por dois modos: - provando que cumpriu o dever de vigilância que ao caso cabia (ilidindo, assim, a presunção de culpa); - demonstrando que os danos se teriam produzido igualmente anda que ele tivesse sido observado (relevância negativa da causa virtual)”.

In casu, os proprietários do edifício em que se verificou a derrocada tinham, como flui dos factos provados, o poder sobre esse mesmo edifício e, consequentemente, o dever de o vigiar.
Assim, dele tendo resultado danos para terceiro, sobre eles recai, quer a presunção de ilicitude, quer a de culpa previstas no preceito em análise.
Tais presunções mostram-se, contudo, ilididas, mercê dos trabalhos realizados pelos proprietários do prédio a que acima se fez referência já.
Na verdade, a realização de tais trabalhos revela, desde logo, o cumprimento, pelos proprietários, do dever de vigilância do edifício. Independentemente do motivo que possa ter estado na origem de tais intervenções, o certo é que as mesmas revelam cuidado e atenção pelo estado do prédio e, como tal, o cumprimento do dever de o vigiar.
Acresce que, apesar da derrocada verificada, não vemos que fosse exigível aos proprietários do edifício fazer mais do que aquilo que fizeram e que resulta dos factos provados.
Na verdade, do que se trata aqui é do desabamento de componentes da estrutura da cobertura do edifício e, portanto, de componentes que, pela sua natureza, são dotados de resistência e durabilidade especialmente significativas.
Assim, salvo em caso de ocorrência de fatores excecionais como sejam, nomeadamente, fortes intempéries ou fenómenos da natureza que, do ponto de vista do homem médio, suscitem o dever de averiguar a manutenção do seu estado, trata-se aqui de componentes da estrutura global do edifício que, em geral, não implicam uma vigilância com uma cadência especialmente significativa.
Ora, no caso, não só não há notícia de que o desabamento tenha tido a precedê-lo qualquer fenómeno extremo da natureza (pelo contrário, é um dado assente que, no dia do sinistro, o estado do tempo não era suscetível de causar o desabamento em causa), como está provado que os proprietários do edifício diligenciaram por intervenções com uma regularidade especialmente significativa, como se viu.
Acresce que, tendo presente os factos provados, com a redação que lhes foi dada e que não mereceu censura por qualquer das partes no processo, as intervenções assumiram as mais variadas formas que podiam assumir, passando pela reconstrução, pela conservação, pela revisão, pela manutenção, pela limpeza e pela reparação.
Não vemos, como tal, como não concluir que, ao fazê-lo, agiram com a diligência que se lhes impunha e que, por isso, ilidiram a presunção de culpa prevista no preceito em análise.
A responsabilidade consagrada no art.º 493.º do CC é, como se viu, delitual e pressupõe a culpa. Esta, apesar de, no caso, ser presumida, tem como bitola, à luz do art.º 487.º, n.º 2 do CC, a diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso. E o certo é que, no caso dos autos, os proprietários do edifício agiram com a diligência e prudência que são esperadas do indivíduo médio e responsável, isto é, do bom pai de família. Não lhes é imputável, por conseguinte, culpa.
Pelo exposto, ilididas que estão as presunções previstas no art.º 493.º, n.º 1 do CC, afastada fica a responsabilidade dos proprietários do edifício que nele se pudesse fundar e, consequentemente, da Apelante.
Procede, portanto, o recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida e a absolvição da Apelante do pedido.
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Porque vencida no recurso, suportará a Apelada as custas da apelação (art.ºs 527.º e 529.º do CPC).
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IV.- Decisão
Termos em que se julga procedente a apelação e, consequentemente, revogando-se a sentença recorrida, absolve-se a Apelante do pedido.
Custas da apelação pela Apelada.
Notifique.
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Porto, 6 de fevereiro de 2025
(assinado eletronicamente)
José Manuel Correia
Isabel Peixoto Pereira
Paulo Dias da Silva