CONTRATO DE SEGURO
SEGURO FACULTATIVO
FURTO DE VEÍCULO
INDEMNIZAÇÃO
DANO DA PRIVAÇÃO DO VEÍCULO
VIOLAÇÃO PELA SEGURADORA DE DEVERES DE CONDUTA
Sumário

No caso de seguro facultativo, em que não esteja prevista a indemnização pelo dano da privação do veículo, a seguradora poderá ser responsabilizada pela indemnização de tal dano quando, na gestão do sinistro, tenha existido violação de deveres acessórios de conduta, designadamente dos deveres de boa-fé, diligência, probidade e lealdade.

Texto Integral

Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO

1. A intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra MAPFRE SEGUROS GERAIS, SA alegando ter celebrado com a R. um contrato de seguro que abrangia a cobertura de furto do seu veículo, com o capital seguro de € 27.900,00 e que o seu veículo foi furtado.
Termina pedindo que a condenação da R. no pagamento de € 27.900,00 (vinte e sete mil e novecentos euros) a título de indemnização pelo ressarcimento decorrente do risco de furto, de roubo ou de furto de uso do veículo segurado; acrescida de juros vencidos desde 23/01/2018 e vincendos, sendo que nesta data ascendem a € 1421,75 e ainda indemnização por privação do USO no montante de € 20 por dia desde 23-01-2018 até pagamento (que nesta data ascende a € 9.380,00.
2. Contestando, a R. deduziu a excepção de ilegitimidade activa e impugnou a factualidade alegada na petição inicial.
3. Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador em que se julgou improcedente a excepção deduzida e se procedeu à fixação do objecto do litígio e de temas de prova.
4. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida sentença, cujo dispositivo é o seguinte:
“Em face do exposto, decido julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência:
i. Condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de 21.473,00€ (Vinte e um mil, quatrocentos e setenta e três euros) a título de indemnização pelo furto do veículo seguro, acrescida do pagamento de juros moratórios, à taxa anual correspondente aos juros legais, desde o dia 23/01/2018 e até integral pagamento;
ii. Condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de €20,00 (vinte euros) por dia, no total de 524 dias, no montante de €10.480,00 (Dez mil, quatrocentos e oitenta euros) a título de privação de uso do veículo, desde 23/01/2018 até ao mês de Junho de 2019;
iii. Absolver a Ré do restante peticionado.
iv. Condeno as partes nas custas da acção, na proporção do decaimento (cfr. art.º 527.º n.º s 1 e 2 do Código de Processo Civil.)”.
5. Inconformada, a R. recorre desta sentença, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
“PRIMEIRO. O presente recurso vem interposto, pondo em crise apenas a matéria de direito constante da decisão proferida, uma vez que, salvo o devido respeito (que é muito), a aqui recorrente insurge-se contra a indemnização arbitrada à autora ora recorrida, assente numa interpretação manifestamente errónea e em arrepio ao contrato celebrado entre as partes, encontrando-se, nessa medida, incorrectamente interpretadas e/ou aplicadas as normas legais previstas nos artigos 762.º, números 1 e 2 do Código Civil e os artigos 1.º, 51.º, 52.º, 102.º, 128.º, 130.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, bem como as Condição Especial das Condições Gerais da Apólice do Contrato de Seguro celebrado entre as partes.
SEGUNDO. Entendeu, o Tribunal a quo condenar a ora recorrente a pagar à autora ora recorrida a quantia de € 10.480,00 (dez mil quatrocentos e oitenta euros) a título de privação de uso do veículo, desde 23/01/2018 até ao mês de junho de 2019
TERCEIRO. Tal condenação teve por base o hiato temporal decorrido entre a data em que autora deixou de ter direito à utilização de veículo de substituição e a data em que a mesma passou a usufruir de veículo que adquiriu e à razão diária de € 20,00 (vinte euros).
QUARTO. Como é bom de ver, através de toda a documentação junta aos autos pelas partes, bem como da factualidade dada como provada (designadamente o facto provado 2.: «No ano de 2015, a Autora celebrou com a Ré um contrato de seguro para o referido veículo, titulado pela apólice n.º 4101511016194/0, abrangendo este, para além das coberturas emergentes de responsabilidade civil obrigatória (Danos materiais e corporais), as coberturas de responsabilidade civil facultativa, furto ou roubo ou furto de uso (sem franquia), pelo valor de €27.900» – a relação entre a autora e a ré, trata-se uma relação exclusivamente contratual, uma vez que foi celebrado um contrato de seguro do ramo automóvel sobre o veículo de matrícula 16-##-39, de que a autora é/era proprietária.
QUINTO. A autora ora recorrida havia contratado junto da ré ora recorrente, um contrato de seguro do ramo automóvel que cobria não só os riscos inerentes à de “furto ou roubo ou furto de uso”.
SEXTO. Ou seja, de entre as coberturas facultativas que a autora podia contratar, esta apenas contratou as coberturas das Condições Especiais expressamente descritas nas Condições Particulares constantes da Apólice junta com a contestação, ressaltando-se para o caso em questão a cobertura para o risco de “furto ou roubo ou furto de uso” do veículo de matrícula 16-##-39.
SÉTIMO. Esta cobertura não abrange, porque não foi contratada, a Condição Especial correspondente às despesas ou indemnização resultantes da privação de uso do veículo seguro.
OITAVO. As despesas ou danos que a autora suportou, resultantes da privação do uso do seu veículo, não estão abrangidas pelo contrato de seguro facultativo de danos próprios.
NONO. A responsabilidade do segurador ao abrigo das coberturas facultativas, in casu, a responsabilidade da ré ora recorrente está limitada pelo que decorre do disposto nas respectivas Condições Especiais, limitando-se igualmente, e apenas, aos riscos abrangidos pela cobertura de danos próprios, correspondendo a sua responsabilidade ao valor seguro à data do sinistro conforme importância fixada nas Condições Particulares.
DÉCIMO. Não foram contratadas diversas outras coberturas facultativas possíveis e que a Ré disponibilizava, nomeadamente, as coberturas do risco de colisão incêndio, actos maliciosos, de veículo de substituição ou de privação de uso.
DÉCIMO PRIMEIRO. Ou seja, a autora ora recorrida não contratou qualquer cobertura passível de a ressarcir de danos alegadamente verificados na sua esfera jurídica a decorrentes da paralisação/privação do veículo, junto da recorrente, para tal não contratou qualquer cobertura de privação do uso!
DÉCIMO SEGUNDO. Neste sentido, não poderá a ora recorrente concordar com o teor da decisão proferida pelo Tribunal a quo, porquanto, salvo o devido respeito que lhe é muito, extravasa as condições acordadas entre as partes, condenando a recorrente numa quantia que simplesmente não se encontra garantida pelo contrato de seguro em apreço.
DÉCIMO TERCEIRO. Dentro da liberdade contratual das partes e dos limites que a lei prescreve, Tomadora de Seguro e Seguradora podem, livremente, contratar a existência de coberturas facultativas, como a que está em causa nos presentes autos (privação de uso).
DÉCIMO QUARTO. No caso em concreto, estamos perante uma cobertura facultativa (que não foi contratada) pelo que, todas as vicissitudes contratuais que nasçam entre a autora e a recorrente terão de ser supridas à luz do princípio da liberdade contratual, maxime pela interpretação das cláusulas do presente contrato de seguro.
DÉCIMO QUINTO. Com efeito, não estando em discussão nos presentes autos, um direito emergente da responsabilidade civil extracontratual, o qual, admite-se, poderia eventualmente comportar o ressarcimento do dano decorrente da paralisação do veículo, haverá sempre que se atender ao conteúdo do contrato celebrado entre as partes, e bem assim aos correspondentes direitos e deveres emergentes desse contrato.
DÉCIMO SEXTO. Ressalvando naturalmente o devido respeito por melhor opinião, existindo no contrato celebrado entre as partes, uma específica cobertura de “privação de uso”, a qual visa precisamente garantir ao tomador, os prejuízos decorrentes da paralisação do veículo seguro, no âmbito das coberturas facultativas de danos próprios, e não tendo a autora, por mero acto de sua vontade, contratado tal cobertura, nunca poderá a agora recorrente ser condenada a pagar à autora os alegados prejuízos decorrentes daquela privação.
DÉCIMO SÉTIMO. Assim, estando em causa, nos presentes autos, o apuramento da responsabilidade da ré pelo ressarcimento dos danos ocorridos no veículo da autora, única e estritamente no âmbito contratual, não poderá ser a mesma obrigada a suportar alegados prejuízos que não se encontram, absolutamente, previstos e garantidos pelo contrato de seguro em apreço.
Nestes termos, e pelas razões expostas, não pode a ora ré ora recorrente aceitar, salvo o devido respeito, o teor da decisão proferida, na medida em que a mesma interpreta e aplica de forma incorreta e/ou imprecisa, as normas legais constantes dos artigos 762.º, números 1 e 2 do Código Civil e os artigos 1.º, 51.º, 52.º, 102.º, 128.º, 130.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, introduzindo um manifesto desequilíbrio das posições contratuais, devendo a mesma ser revogada nesta parte, absolvendo-se a ré ora recorrente da condenação no pagamento, à autora, de indemnização a título de privação de uso.
DÉCIMO OITAVO. Nestes termos, e pelas razões expostas, não pode a ora ré ora recorrente aceitar, salvo o devido respeito, o teor da decisão proferida, na medida em que a mesma interpreta e aplica de forma incorreta e/ou imprecisa, as normas legais constantes dos artigos 762.º, números 1 e 2 do Código Civil e os artigos 1.º, 51.º, 52.º, 102.º, 128.º, 130.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, introduzindo um manifesto desequilíbrio das posições contratuais, devendo a mesma ser revogada nesta parte, absolvendo-se a ré ora recorrente da condenação no pagamento, à autora, de indemnização a título de privação de uso.
DÉCIMO NONO. A ser entendido de outro modo, era forçar a entrada pela janela o que não foi sequer contratado entrar pela porta.
VIGÉSIMO. A indemnização devida à autora, em função do contrato de seguro celebrado com a ré, é apenas a importância correspondente ao valor do veículo seguro à data do sinistro.
VIGÉSIMO PRIMEIRO. A entender este Douto Tribunal de Recurso, como entendeu o Tribunal a quo, que incorreu a ré apelante em mora, deverá limitar a responsabilidade desta apenas e só na medida da sua condenação no pagamento de juros de mora, pois é a condenação nesses termos a única consequência legal da eventual mora em que tenha incorrido a ré ora apelante, nunca se aceitando, nem concebendo, a condenação da ré ora apelante no pagamento de indemnização pela privação de uso.
VIGÉSIMO SEGUNDO. Ao decidir como decidiu, a decisão proferida pelo Tribunal a quo, ora objecto de recurso, não teve na devida conta o contrato de seguro celebrado entre a autora e a ré, bem tão pouco o direito aplicável ao caso concreto, tendo violado de forma manifesta e grosseira, o disposto no número 1 do artigo 762.º Código Civil e dos artigos 1.º, 51.º, 52.º, 102.º, 128.º e 130.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
VIGÉSIMO TERCEIRO. Termos em que, em face de tudo quanto exposto, deve a decisão proferida pelo Tribunal a quo, ora objecto de recurso ser revogada e substituída por outra que absolva a ora apelante do pagamento da indemnização arbitrada a título de privação de uso do veículo.”.
6. Em contra-alegações, a A. defendeu a improcedência do recurso.
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II. QUESTÕES A DECIDIR
Considerando o disposto nos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, nos termos dos quais as questões submetidas a recurso são delimitadas pelas conclusões de recurso, impõe-se concluir que a única questão submetida a recurso é determinar se a R. deve ser condenada no pagamento do dano decorrente da privação do uso do veículo automóvel objecto do contrato de seguro celebrado entre as partes.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso decidiu os factos do seguinte modo:
“Matéria de facto provada
Encontra-se assente a seguinte factualidade (COM EXPRESSA EXCLUSÃO DA MATÉRIA DE FACTO ALEGADA PELAS PARTES DE ÍNDOLE CONCLUSIVA, JURÍDICA OU DE CARÁCTER INSTRUMENTAL):
1. Autora é proprietária do veículo automóvel de marca Mercedes-Benz, modelo CLK 320, matrícula 16-##-39.
2. No ano de 2015, a Autora celebrou com a Ré um contrato de seguro para o referido veículo, titulado pela apólice n.º 4101511016194/0, abrangendo este, para além das coberturas emergentes de responsabilidade civil obrigatória (Danos materiais e corporais), as coberturas de responsabilidade civil facultativa, furto ou roubo ou furto de uso (sem franquia), pelo valor de €27.900.
3. No período 08/10/2016 a 08/10/202017, o valor referido no ponto anterior era de €21.473,49.
4. No dia 28 de Julho de 2017, enquanto a aqui Autora se encontrava em França, na cidade de Savigny-Sur-Orge (Essone), estacionou na via pública o seu veículo, mais concretamente na Avenida de Chardonnerets, …, França, por volta das 23 horas, em frente à residência dos amigos, onde pernoitou.
5. Nas referidas circunstâncias de lugar, pelas 11 horas, do dia seguinte, ou seja do dia 29 de julho de 2017, quando a Autora chegou ao local onde deixou o veículo estacionado, este tinha desaparecido.
6. Ao deparar-se com o desaparecimento da sua viatura, a Autora dirigiu-se às entidades competentes, a saber, à esquadra da Direction Generale de La Police Nationale, Direction Centrale de la Securite Publique, designadamente ao Comissariat de Police de Savigny sur Orge, 1, sita na Praça Regis Ryckebush, 91600, Savigny sur Orge, onde apresentou a competente queixa referente ao furto da sua viatura.
7. A Autora participou à Ré o sucedido, a fim de ser indemnizada de acordo com o contrato de seguro, mas a Ré declinou a responsabilidade alegando não ter elementos de prova da ocorrência do furto.
8. Na sequência da referida carta, a Autora enviou à Ré em 23 de janeiro de 2018, através de mandatário, a participação do furto junto das autoridades francesas.
9. A esta carta a Ré não respondeu, nem pagou qualquer quantia.
10. À data dos factos descritos nos pontos 3 e 4 estava em vigor o contrato de seguro referido no ponto 2.
11. A Autora participou os factos relatados nos pontos 3 a 5 à Ré e reclamou o pagamento da indemnização, contudo não logrou obter por parte da Ré, qualquer pagamento até à presente data.
12. Após o sucedido a Autora ficou privada do único veículo que possuía para as suas deslocações diárias até ao momento em que adquiriu um novo veículo automóvel, apenas em Junho de 2019, devido aos seus encargos mensais e à falta de pagamento da indemnização pela Ré.
13. Mesmo privada do uso do veículo identificado nos autos, a Autora continuou a pagar o empréstimo do referido veículo no montante mensal de €596,8.
B. Matéria de facto não provada
Com relevância para a decisão da causa, foi considerada não provada a seguinte factualidade:
a. No desenvolvimento do processo de averiguações a que normalmente procede em caso de sinistros como o dos autos, a A. sempre se furtou ao contacto com o perito averiguador a quem a R. incumbiu de efectuar as necessárias diligências.
b. Nunca a R. teve acesso às chaves do veículo, para proceder à respectiva leitura, nem lhe foi possível obter outros elementos, como sejam a Declaração da A., a indicação se o veículo tinha via verde, comprovativos da deslocação em França, comprovativos de revisões, e outros.
c. Da averiguação efectuada foi possível concluir que a viatura em questão não funciona sem uma das chaves originais, dado os sistemas de segurança que possui, inclusivamente um imobilizador.
d. Este dispositivo antifurto é codificado eletronicamente com o objetivo de habilitar ou não a partida do motor do veículo.
e. O sistema é constituído por um Módulo de Comando ligado diretamente a Central de Injeção Eletrónica do motor. Ao girar a chave na ignição, um pequeno chip instalado na chave (Transponder), emite um sinal codificado, amplificado por uma antena localizada no cilindro, sendo reconhecido pelo Módulo.
f. Neste momento, a Central de Injecção eletrónica recebe a informação confirmando o reconhecimento da chave, liberando assim a partida do motor.
g. Este sistema impede que na tentativa de ligação direta ou utilização de uma chave desconhecida seja possível ligar o veículo.
h. Nestas condições, o Módulo de Comando não recebe nenhum código, eliminando a sua comunicação com a Central de Injeção Electrónica, impossibilitando a partida do veículo.
i. Por motivo de segurança, os imobilizadores possuem códigos criptografados o que impede sua cópia ou reprodução dificultando ainda mais a vida dos ladrões.
j. Logo, além de não existirem provas concretas que o veículo se encontrava estacionado no aludido local, é impossível o mesmo ter sido deslocado sem ter sido utilizada uma das suas chaves.
k. Os serviços da R. verificaram que os extras indicados na proposta de seguro eram de origem no veículo.”.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Face ao teor das alegações de recurso, importa, desde logo, salientar que a presente apelação apenas coloca em causa o segmento condenatório da sentença relativo à indemnização a título de privação de uso do veículo automóvel durante o período compreendido entre 23 de Janeiro de 2018 e o mês de Julho de 2019, defendendo a apelante que a mesma não é devida por não estar abrangida pelo clausulado pelas partes à luz do contrato de seguro celebrado.
Vejamos.
Estruturou a A. a presente acção com base no contrato de seguro celebrado com a R., alegando ter transferido para a R. a responsabilidade civil pela circulação do veículo em causa nos autos, o qual foi furtado (cfr. factos nºs 4 a 6).
Contrato de seguro é o contrato pelo qual alguém transfere para outrem o risco da verificação de um dano, comprometendo-se o segurador a satisfazer as indemnizações ou a pagar o capital seguro em caso de ocorrência de sinistro, nos termos acordados, e ficando o segurado com a obrigação do pagamento de uma remuneração.
O seu regime jurídico está previsto no DL 72/2008, de 16 de Abril (Lei do Contrato de Seguro doravante aqui designada por LCS), que estabelece no seu art.º 1º que “Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.
Por outro lado, o contrato de seguro rege-se pelas estipulações da respectiva apólice não contrárias à lei e acordadas pelas partes, pelo regime do contrato de seguro, pela lei geral e subsidiariamente pelas disposições da lei comercial e civil, tal como resulta do art.º 4º da LCS e do art.º 7º, nº 2 do CC.
Assim, na apólice de seguro, enquanto documento titulador do contrato de seguro, devem constar todas as condições estipuladas entre as partes, nomeadamente as respectivas condições gerais e especiais que sejam acordadas por forma a definir as garantias e os riscos cobertos e excluídos pelo contrato.
No que ao caso diz respeito, dúvidas não restam que foi celebrado um contrato de seguro entre a A. e a R., já que está assente que a A. transferiu para a R. a responsabilidade civil pela circulação do veículo automóvel, marca Mercedes-Benz, modelo CLK 320, matrícula 16-##-39, mediante contrato de seguro celebrado com a mesma titulado pela apólice n.º 4101511016194/0, abrangendo este, para além das coberturas emergentes de responsabilidade civil obrigatória (Danos materiais e corporais), as coberturas de responsabilidade civil facultativa, furto ou roubo ou furto de uso (sem franquia), pelo valor de € 27.900 (factos nºs 1 a 3).
Recorde-se que os riscos cobertos pelo contrato de seguro têm de estar concretizados na apólice, quer admitidos nas suas condições gerais, especiais e particulares, quer expressamente excluídos.
Ora, na apólice em causa nos autos não foi contratada a assunção de responsabilidade da seguradora pela privação do uso do veículo seguro, como bem refere a apelante, sendo que esta garantia também não está coberta pelo seguro obrigatório nos termos do art.º 4º, nº 1 do DL 291/2007, de 21 de Agosto relativo ao regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Desta constatação extrai a apelante a conclusão que não está obrigada ao pagamento de qualquer quantia a título de indemnização por privação do uso do veículo, por tal não estar contido nas coberturas facultativas contratadas e especificadas nas condições particulares da apólice.
Mais alega que a sentença recorrida “interpreta e aplica de forma incorreta e/ou imprecisa, as normas legais constantes dos artigos 762.º, números 1 e 2 do Código Civil e os artigos 1.º, 51.º, 52.º, 102.º, 128.º, 130.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, introduzindo um manifesto desequilíbrio das posições contratuais”.
Entendeu a sentença recorrida que a indemnização em causa era devida, fundando a responsabilidade da R. no facto ilícito que “consistiu na não disponibilização ao autor da quantia correspondente ao capital seguro, não tendo o autor incorrido em mora (cfr. artigo 830.º do Código Civil) ao não remeter à ré os aludidos documentos, justamente porque o montante cujo pagamento a mesma se propunha efetuar era inferior ao devido”.
Parece-nos que a fundamentação adoptada pelo tribunal recorrido peca pela sua simplicidade, uma vez que a questão em apreço tem de se analisada de forma mais detalhada.
Senão, vejamos.
Dispõe o art.º 130º da LCS o seguinte:
“1 - No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro.
2 - No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado.
3 - O disposto no número anterior aplica-se igualmente quanto ao valor de privação de uso do bem.”.
Tem sido entendido pela jurisprudência que no caso de seguro facultativo em que não esteja prevista a indemnização pelo dano da privação do veículo, a seguradora poderá ser responsabilizada pela indemnização de tal dano se no apuramento do sinistro e da sua responsabilidade e ainda no pagamento da indemnização devida tiver actuado em violação de deveres acessórios de conduta (dever de boa-fé, dever de diligência, dever de probidade, dever de lealdade).
Não existindo essa violação de deveres acessórios apenas será responsável pelo pagamento dos juros moratórios sobre a demais indemnização devida.
Como se explica no Ac. TRC de 10-01-2023, proc. 4280/21.0T8VIS.C1, relator Henrique Antunes, “No caso de simples seguro de coisa, o sinistro pode ser causa tanto de um dano emergente como de um lucro cessante. Todavia, o segurador só responde pelo lucro cessante, se assim for convencionado (art.º 130.º, n.º 2, da LCS). Esta regra é aplicável, qua tale, ao dano de privação do uso do bem objecto do seguro: apesar de se tratar de um dano emergente, e não de um lucro cessante, o segurador só está vinculado a indemnizá-lo se assim se tiver convencionado (art.º 130.º, n.º 3, do LCS). No contrato de seguro de coisa, a regra é, portanto, a de que o segurador só está vinculado ao dever de indemnizar o segurado do dano da privação do uso do bem seguro se assim for convencionado.
Todavia, também neste domínio, uma coisa é o dano da privação do uso da coisa segura, enquanto objecto da cobertura do seguro, outra, deveras diferente, é da reparabilidade desse dano quando seja imputável à violação, pelo segurador, de uma qualquer obrigação a que se vinculou por força do contrato, como, por exemplo, a de pronta e diligentemente proceder à liquidação do sinistro, retardando, por uma qualquer razão que se não deva ter por procedente ou razoável, o cumprimento da sua fundamental obrigação de satisfazer a prestação a que, por força do contrato, se adstringiu.
Realmente, estando o segurador indubitavelmente vinculado ao deve de actuar de forma diligente, equitativa e transparente no seu relacionamento com os tomadores dos seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados, deste dever fundamental decorrem deveres - também legais - acessórios de conduta - v.g. de pagamento ou de realização da sua prestação contratual em prazo razoável - cuja violação o constitui no dever de reparar os danos causados, por exemplo, ao segurado (art.ºs 153.º, n.º 1, da LCS, e 762.º. n.º 2 do Código Civil). Neste caso, a vinculação do segurador ao dever de reparar os danos decorrentes da privação do bem seguro não assenta na mora, mas na violação de deveres acessórios ou laterais de conduta, pelo que não se verifica uma sobreposição ou duplicação de indemnizações, rectius, de prestações contratuais.
Embora a problemática dos deveres acessórios seja particularmente complexa, não deve oferecer dúvida séria de que aqueles se distinguem, com clareza, em função do seu fundamento final designadamente, do dever de prestar principal: enquanto este dever - que se funda na autonomia privada - visa a satisfação do direito do credor na prestação - aqueles - que têm a sua raiz na boa fé - promovem o interesse do credor na integralidade da própria prestação e ainda na indemnidade dos seus interesses colaterais: património e integridade, física e psíquica, desse mesmo credor (artºs 398.º, n.º 1, e 762.º, n.º 2, do Código Civil). É comum o distinguo entre os deveres acessórios de informação, de segurança e de lealdade: este último obrigaria as partes, designadamente, a uma actuação séria, evitando condutas que atinjam o dever de prestar ou a sua utilidade para o credor, e vincularia, tanto o devedor como o credor - através do princípio da tutela da confiança, derivado da boa fé - a adoptar todas as condutas necessárias para prevenir danos pessoais ou patrimoniais na esfera da contraparte.”.
Também no sumário do Ac. TRL de 21-12-2023, proc. 3701/22.9T8OER.L1-6, relator Gabriela de Fátima Marques, se pode ler que “II. No regime do contrato de seguro facultativo a possibilidade de indemnizar o tomador do seguro pela privação do uso de veículo, ou está previsto nas cláusulas do contrato como cobertura facultativa, ou resulta da interpretação deste, quando prevê assunção pela seguradora de veículo de substituição, ou, por último, resulta da violação dos deveres acessórios do contrato.
III. Com efeito, ocorre o dever de indemnizar o dano da privação de uso de coisa segura fundada no retardamento pela seguradora da realização da prestação indemnizatória a que se vinculou, por força do contrato de seguro de danos, ainda que tal cobertura não tenha sido expressamente convencionada.”.
Este entendimento foi também adoptado no Ac. STJ de 08-11-2018, proc. 1069/16.1T8PVZ.P1.S1, relator Oliveira Abreu, onde consta que “o atraso injustificado da seguradora na gestão célere e eficiente do processo de sinistro, impondo-lhe que aja com a possível prontidão e diligência nas averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos, poderá responsabilizá-la ao pagamento de ajustada indemnização pela privação do uso do veículo, ao abrigo do disposto nos artºs. 562º e seguintes do Código Civil”.
Em igual sentido, veja-se ainda o Ac. STJ de 27-11-2018, proc. 78/13.7PVPRT.P2.S1, relator Cabral Tavares, o Ac. TRC de 10-09-2024, proc. 461/23.0T8PBL.C1, relator Moreira do Carmo, o Ac. TRG de 09-03-2017, proc. 4076/15.8T8BRG.G1, relator Anabela Tenreiro, Ac. TRP de 13-09-2022, proc. 216/22.9YRPRT, relator Rui Moreira e Ac. TRC de 10-05-2022, proc. 2371/19.6T8PBL.C1, relator Fernando Monteiro.
Donde, entende-se que, no caso de seguro facultativo, em que não esteja prevista a indemnização pelo dano da privação do veículo, a seguradora poderá ser responsabilizada pela indemnização de tal dano quando, na gestão do sinistro, tenha existido violação de deveres acessórios de conduta, designadamente dos deveres de boa-fé, diligência, probidade e lealdade.
Para compreender o que sejam estes deveres, e com recurso ao Ac. TRL de 04-06-2024, proc. 6554/22.3T8LSB.L1, relator José Capacete, ora 1º Adjunto, onde se faz minuciosa apreciação desta questão, dir-se-á, como consta no sumário deste aresto que “Deveres acessórios de conduta são deveres que derivam diretamente do princípio da boa fé, que estruturalmente atravessa o direito civil, e que, não estando diretamente ligados à execução da prestação principal contratualizada, antes funcionando em paralelo, estão ao serviço da plena consecução dos interesses globais visados pela relação contratual, dado que o fim do contrato é mais amplo que o interesse creditório na prestação, o que significa que ao credor não basta a realização da prestação, mas que ela deve ter lugar em determinadas condições, nomeadamente, nas que garantam a integridade da sua pessoa e do seu património.
XV - Os deveres acessórios de conduta podem distinguir-se em:
- Deveres de informação: ligados à correta e mútua transferência de conhecimento relevante em todas as fases do contrato, incluindo a necessária colaboração ao cumprimento dos fins prosseguidos com a relação estabelecida;
- Deveres de lealdade: que funcionam como um prius em relação aos deveres de informação, pois consistem numa conduta de honesta cooperação, com vista a minimizar prejuízos ou dificuldades para a contraparte;
- Deveres de proteção: que visam abranger todos os riscos a que as partes se expõem, por causa e por conta da execução do contrato.
XVI - Um contrato de seguro automóvel facultativo, de danos próprios, comporta, para além do capital contratado, o dever de a seguradora indemnizar o segurado por danos acessórios por este sofridos, em consequência da recusa ou retardamento injustificados no cumprimento da prestação principal: a entrega ao segurado do valor do capital contratado.”.
Estabelecido este enquadramento jurídico, apreciemos os factos dados como provados por forma a concluir pela existência da violação de quaisquer destes deveres acessórios.
A este propósito, está provado que, na sequência do furto do seu veículo automóvel, descrito em 4. a 6. dos factos assentes, a A. participou à R. o sucedido, a qual declinou a responsabilidade alegando não ter elementos de prova da ocorrência do furto, tendo a A. enviado à R., em 23 de Janeiro de 2018, através de mandatário, a participação do furto junto das autoridades francesas (cfr. factos nºs 7. e 8.).
Mais está assente, sob o nº 9, que “A esta carta a Ré não respondeu, nem pagou qualquer quantia”, sendo patente nos autos que os mesmos deram entrada em juízo a 06-05-2019.
Da conjugação destes factos resulta evidente que a seguradora, ora apelante, ao não proceder ao pagamento devido e atempado da prestação principal: o pagamento do valor do capital contratado, violou o dever de proceder à liquidação do sinistro de modo adequado ou em prazo razoável.
Essa violação determina a sua constituição no dever de reparar todos os danos causados no segurado, designadamente o da privação do uso daquele bem, ainda que não convencionado.
A esta conclusão não obsta o facto de a R. ter solicitado diligências para apuramento das responsabilidades da A. na ocorrência do sinistro e, em concreto, da verificação do furto, uma vez que apenas está em causa o período desde a datas em que se deu a comunicação da participação do furto junto das autoridades francesas (facto nº 8.) e data da aquisição de novo veículo (facto nº 12).
Pelo exposto, é a apelante responsável pelo pagamento da quantia devida a título de privação de uso do veículo, assim improcedendo a apelação.
A finalizar, refira-se que, não tendo a apelante questionado o montante dessa indemnização, mas apenas a sua responsabilidade pelo pagamento, nada há a apreciar quanto ao valor em causa.
Concluindo, e não tendo sido suscitada qualquer outra questão, decide-se pela improcedência da apelação e pela manutenção da decisão recorrida.
As custas devidas pela presente apelação, na modalidade de custas de parte, são suportadas pela apelante, cfr. art.º 527º do CPC.
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V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
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Lisboa, 25 de Junho de 2024
Ana Rodrigues da Silva
José Capacete
Carlos Oliveira