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SENTENÇA ESTRANGEIRA
REVISÃO
CONVENÇÃO ANTENUPCIAL
DIREITOS HEREDITÁRIOS
RENÚNCIA
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
Sumário
(da responsabilidade da relatora) Não existe fundamento para recusar, por violação dos princípios de ordem pública internacional do Estado Português, o reconhecimento de uma sentença estrangeira que julgou válida a convenção antenupcial celebrada entre a falecida e o requerido, no âmbito da qual este renunciou aos seus direitos hereditários e, em consequência, o filho da falecida foi considerado o único herdeiro da herança.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
RELATÓRIO
1 O requerente veio solicitar a confirmação de sentença estrangeira.
2 Foi tentada a citação do requerido. Mas a carta veio devolvida.
3 Em 5/9/2024, invocando ter tomado conhecimento da pendência dos autos, o requerido veio aos autos juntar procuração e apresentou o seguinte requerimento: V. (…) vem, mui respeitosamente, informar que tomou conhecimento da tramitação dos presentes Autos por lhe ter sido solicitada por P. a assinatura da Declaração que anexa como Documento n.º 1, pelo que, por razões de cooperação processual, requer a notificação da Petição Inicial e de todo o processado nos Autos visando o exercício do contraditório e a prossecução da ulterior tramitação processual.
4 Em 8/9/2024, os autos foram ao Ministério Público, que emitiu parecer favorável à confirmação da sentença estrangeira.
5 Em 24/9/2024, o requerido veio apresentar requerimento no âmbito do qual arguiu a falta de citação e deduziu oposição ao procedimento, justificando além do mais que: Atendendo a que o douto Tribunal ainda não se pronunciou acerca do referido Requerimento do Requerido, de 19-09-2024, com a Ref.ª Citius n.º 711382/49898138, que este não foi citado e que a falta de citação não deve considerar-se sanada, ainda não se iniciou o cômputo do prazo do Requerido para apresentação da Oposição.
6 E, em seguida, o requerido apresentou a oposição ao pedido de verificação da sentença estrangeira, o qual concluiu da seguinte forma: Nestes termos, nos melhores de Direito, com o douto suprimento de V. Exas e não olvidando que se trata de matéria de conhecimento oficioso (Cfr. art.º 984.º do CPC), deverá, como requer, ser negada a confirmação da Sentença Revidenda em Portugal mercê da não verificação do requisito sine qua non previsto na alínea f) do art.º 980.º do CPC, uma vez que salvo melhor opinião, o seu reconhecimento conduziria a um resultado manifestamente incompatível com os Princípios da Ordem Pública Internacional do Estado Português, para além do mais, nos moldes supra explanados.
7 A relatora proferiu decisão de procedência quanto ao pedido de reconhecimento de sentença estrangeira.
8 O requerido, notificado, reclamou para a conferência, assim concluindo:
A. A Decisão Singular Sumária mostra-se extemporânea e prematura por ter sido proferida no 4.º dia do prazo de que o Requerente/Reclamado dispunha para, querendo, responder à Oposição apresentada pelo Requerido/Reclamante em 24-09-2024, com a Ref.ª 712006/ 49941653 e respetivo acervo documental, portanto, sem observância da tramitação processual prevista nos arts. 981.º e 982.º do C.P.C., que ficou preterida, o que deverá ser emendado, retomando-se a tramitação processual assim interrompida abruptamente ao arrepio das disposições legais em causa, maxime do disposto no art.º 981.º do C.P.C.
B. A Decisão Singular Sumária foi proferida sem que previamente tivesse recaído despacho/decisão quanto ao alegado e requerido pelo Requerido/Reclamante no Requerimento que apresentou em 05-09-2024, com a Ref.ª 708095/49753619 e, sobretudo, na Oposição de 24-09-2024, com a Ref.ª 712006/49941653 e respetivo acervo documental, omissão corroborada também na própria Decisão Singular Sumária, proferida como se tal Requerimento de 05-09-2024 e Oposição de 24-09-2024 não tivessem dado entrada nos Autos e dos mesmos não constassem ainda sem contraditório, no caso da Oposição, e ambos sem decisão.
C. A Decisão Singular Sumária julgou procedente o pedido e confirmou a Sentença proferida em 06-04-2022, sem observância das garantias conferidas ao Requerido/Reclamante nos arts. 981.º e 982.º do C.P.C. e sem se pronunciar acerca das razões de facto e de Direito alegadas e em 05-09-2024, com a Ref.ª 708095/49753619 e, sobretudo, na Oposição de 24-09-2024, com a Ref.ª 712006/49941653 de acordo com as quais (cujo teor por razões de economia processual se dá por integralmente reproduzido), não olvidando que se trata de matéria de conhecimento oficioso (Cfr. art.º 984.º do CPC), deveria, ter sido negada a confirmação da Sentença Revidenda em Portugal, em suma, mercê da não verificação do requisito sine qua non previsto na alínea f) do art.º 980.º do CPC, uma vez que salvo melhor opinião, o seu reconhecimento conduziria a um resultado manifestamente incompatível com os Princípios da Ordem Pública Internacional do Estado Português.
D. Deverá ser proferido Acórdão não confirmativo da Decisão Singular Sumária, com apreciação da questão adjetivo-processual de superlativa importância, da preterição/omissão da tramitação prevista nos arts. 981.º e 982.º do C.P.C. e respetiva garantia através da anulação do processado após a Oposição com a Ref.ª 712006/49941653, de 24-09-2024 e retoma da tramitação processual interrompida com a extemporânea prolação da Decisão Singular Sumária.
E. Não se entendendo assim, como por mera cautela a que obriga o Patrocínio se excogita, deverá o Acórdão a proferir versar sobre a questão de fundo, de mérito, substantiva, sobre a qual versou a Decisão Singular Sumária mas concatenada e com apreciação das razões de facto de Direito aduzidas na Oposição do Requerido/Reclamante, de 24-09-2024, com a Ref.ª 712006/ 49941653 e respectivo acervo documental, cujo teor aqui reitera e dá por integralmente reproduzido, que não foi tematizada na Decisão Sumária Substantiva, como podia e devia, não devendo esta ser confirmada pelo Acórdão a proferir.
9 O requerente veio responder pedindo que a reclamação seja indeferida por absoluta falta de fundamento, porquanto a decisão singular proferida não merece qualquer censura ao cumprir todos os requisitos legais que justificam a decisão de procedência da Ação de Revisão de Sentença Estrangeira no caso vertente.
QUESTÕES A DECIDIR
10 À luz do exposto, importa, em conferência, analisar e decidir previamente se existiu erro de julgamento na prolação da decisão singular.
Se reconhecido erro de julgamento, mais deve ser analisada se existe fundamento legal para reconhecer a sentença estrangeira, objeto do pedido formulado. Erro de julgamento na prolação da decisão singular
11 O requerido suscita vício da decisão singular, por ter sido proferida sem atender ao teor da sua oposição, junta em 24/9/2024.
12 Efetivamente, assiste razão ao requerido. A decisão sumária enferma de erro de julgamento quanto à verificação dos pressupostos para a sua prolação, na medida em que foi proferida sem atender a que foi apresentada oposição (e também não tomou posição sobre a tempestividade da oposição).
13 Desta forma, nesta decisão será analisada, antes de mais, a admissibilidade da oposição, importando para tal levar em consideração o que resulta descrito no relatório que antecede. Vejamos.
14 É indiscutível que, nestes autos, o requerido não chegou a ser citado.
15 No dia 5/9/2024, apresentou um requerimento aos autos no qual, sem suscitar formalmente a falta de citação, deu conta de que tomou conhecimento da pendência do processo através do requerente e pediu para ser notificado do teor da petição Inicial e de todo o processado, visando o exercício do contraditório.
16 Apesar do requerido não ter suscitado formal e expressamente a falta de citação no requerimento de 5/9, deve ter-se a mesma por suscitada.
17 A citação constitui o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e este é chamado ao processo para se defender – artigo 219.º, n.º 1., do Código de Processo Civil. Neste caso, foi precisamente da falta desse ato que o requerido se queixou, pelo que deve entender-se que suscitou a falta de citação.
18 Sobre tal requerimento não recaiu qualquer despacho, conforme deveria, tendo, em 24/9/2024, o requerido apresentado requerimento em que suscitou a falta de citação e, não obstante, contestou a ação, pedindo que a mesma fosse considerada em prazo, por nunca ter chegado a ser citado formalmente.
19 A falta de citação determinaria a nulidade de todo o processado, exceto da petição inicial – artigo 187.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
20 No entanto, sendo objetivo da citação dar conhecimento ao réu da pendência do processo, dando-lhe a possibilidade de se defender, há que considerar alcançado o objetivo da citação pela dedução dessa mesma defesa.
21 Além disso, porque a defesa do requerido foi apresentada de forma espontânea, sem que o tribunal se tenha chegado a pronunciar-se sobre a falta de citação suscitada pelo requerimento de 5/9/2024, importa considerá-la tempestiva e, nessa medida, deveria ter sido considerada na decisão singular que recaiu sobre o pedido de reconhecimento de sentença estrangeira.
22 Porque a decisão singular errou ao não atender à oposição, importa proferir nova decisão, em conferência, quanto ao pedido de revisão de sentença estrangeira, na qual se atenderá ao requerimento de oposição.
REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA FUNDAMENTOS DE FACTO
23 Com relevância para a decisão, o tribunal considera provados os seguintes factos:
a) PF. nasceu em Nova Iorque, EUA, em 10/10/1947 e faleceu no Estado da Florida, EUA, em 01 de Maio de 2020.
b) PF morreu no estado de casada com V.
c) O requerente é filho de PF.
d) Em 12/4/2013, PF e V. celebraram convenção antenupcial onde além do mais, acordaram que:
“Sem embargo daquilo especificamente previsto no presente Contrato, as partes acordam entre si que não irão, nem durante a vida da outra nem após a morte da outra ter direito à legítima, reclamar, exigir ou receber e renunciam a todos os direitos, créditos, títulos e juros, atuais, futuros ou contingentes conferidos por lei ou equidade que qualquer uma delas possa ter em razão do seu casamento com o outro (…).”
e) Por sentença proferida em 15/2/2022, pelo juiz do Tribunal do Condado de Broward, na Florida, EUA, foi proferida sentença que decidiu o seguinte:
“(…)
c) A convenção antenupcial celebrada entre a falecida e o requerido V. é válida e aplicável na Flórida e no âmbito desta herança, o requerido renunciou validamente aos seus direitos hereditários sobre a herança da falecida.
d) O único descendente direito da falecida, o requerente P. é considerado o único herdeiro da herança.
(…)”
e) A sentença foi confirmada pelo tribunal de recurso e já transitou.
f) Em 9/3/2013, o requerido e PF. viviam em união de facto desde 2004 na Rua (…) em Dornes.
g) Em 14/10/2021, o requerido residia na Rua aludida em f).
h) Em 9/8/2024 o requerido era o titular do contrato de fornecimento de eletricidade da casa sita no endereço mencionado.
i) O requerido tem o título de residência em Portugal associado ao endereço mencionado.
24 Os factos referidos em a) a e) resultam dos documentos que o requerente juntou aos autos e que são as certidões de registo de nascimento e das decisões proferidas, legalmente certificadas.
25 Os restantes factos resultaram do teor dos documentos 1 a 6 juntos pelos requerido, a partir dos quais ficou o tribunal convencido da sua verificação.
26 De resto, por ausência de prova, não foram considerados provados quaisquer factos respeitantes à casa sita na Rua (…) em Dornes, quanto à titularidade do direito de propriedade, ou quanto à sua utilização como casa de morada de família. FUNDAMENTOS DE DIREITO
Enquadramento legal Artigo 980.º do Código de Processo Civil:
Para que a sentença seja confirmada é necessário:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição; (Cf., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.7.2011, Paulo Sá, 987/10.
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para ação nos termos da lei do país do tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português.»
Artigo 983.º, n.º 1, do Código de Processo Civil
O pedido só poder ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980º, ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g), do artigo 696º». Artigo 980.º, al. f) do Código de Processo Civil
Para que que a sentença seja confirmada é necessário
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português.
Análise e decisão
27 Sendo o modelo de revisão de sentença estrangeira, preconizado no nosso sistema legal, de revisão meramente formal, cabe ao tribunal, em princípio, limitar-se verificar se a sentença estrangeira satisfaz os requisitos de forma tendo em consideração o que resulta do artigo 980.º, do Código de Processo Civil.
28 A propósito, diz-se no Ac. STJ, de 19-02-2008, Pr. 07A4790:
“Assim, em Portugal está consagrado o princípio, segundo o qual as sentenças estrangeiras são admitidas a desenvolver na ordem jurídica do foro os efeitos que lhe são atribuídos no sistema jurídico de origem. Contudo, o Estado Português condicionou, salvo tratado ou lei especial em contrário, a produção de tais efeitos a um conjunto de requisitos sediados nos artigos 1.094.º e ss. do Código de Processo Civil (diploma ao qual doravante pertencerão os normativos citados, se nada se disser em contrário)” - no atual Código de Processo Civil, os requisitos antes enunciados no artigo 1094.º, encontram-se no artigo 980.º.
29 O requerido invoca precisamente a falta de um dos requisitos do artigo 980.º, do Código de Processo Civil, porque o reconhecimento daquela sentença em Portugal conduz a um resultado incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português, justificando assim que o tribunal não pode reconhecer nem confirmar aquela decisão.
30 O requerido argumenta que à data da convenção antenupcial, cuja validade nos Estados Unidos da América foi reconhecida pela Sentença revidenda, os cônjuges, em Portugal, seriam sempre reciprocamente herdeiros legitimários um do outro, regra imperativa, insuscetível de ser afastada por vontade do autor da sucessão, mesmo no caso do regime da separação de bens.
31 Mais argumenta, que a renúncia à condição de herdeiro legitimário na convenção antenupcial no caso de regime de separação de bens apenas passou a ser admissível em Portugal, a partir de 01-09-2018 (data da entrada em vigor da Lei n.º 48/2018, de 14 de Agosto), ou seja, mais de 5 (cinco) anos após a outorga da Convenção Antenupcial cuja validade nos Estados Unidos da América foi reconhecida pela Sentença revidenda.
32 Pelo que, conclui, à luz do regime sucessório português vigente à data da convenção antenupcial, os cônjuges seriam sempre reciprocamente herdeiros legitimários, sendo contrário à Ordem Pública Internacional do Estado Português o reconhecimento da renúncia do requerido à qualidade de herdeiro e às prerrogativas na utilização da Casa de Morada de Família e demais direitos a esta atinentes.
33 Considerando que a recusa de reconhecimento com fundamento em violação dos princípios de ordem pública internacional do Estado Português constitui um desvio ao princípio de reconhecimento de uma decisão estrangeira emanada de um tribunal competente, só excecionalmente deve ser aplicado, e quando se verifique que o reconhecimento produz um resultado intolerável ao sentimento ético-jurídico (bons costumes), ou aos princípios fundamentais do direito português.
34 Citando o Prof. Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2000, 410, é referido no Ac. STJ de 19/2/2008, acima identificado, que “[o] conteúdo da noção de ordem pública internacional é forçosamente impreciso e vago. Ordem pública internacional é um conceito indeterminado, um conceito que não pode ser definido pelo seu conteúdo, mas só pela sua função: como expediente que permite evitar que situações jurídicas dependentes de um direito estrangeiro e incompatíveis com os postulados basilares de um direito nacional venham inserir-se na ordem sócio jurídica do Estado do foro e fiquem a poluí-la”.
35 No mesmo Acórdão do STJ, reconhece-se que apesar da dificuldade de densificar e integrar o conceito, podem considerar-se vários critérios gerais de orientação que têm sido avançados com vista a fixar o conteúdo da ordem pública internacional.
36 Prossegue o Acórdão nos seguintes termos:
“E então, dentro desta linha de orientação, e com vista a orientar o juiz para determinar se a lex fori deve ou não ser considerada de ordem pública internacional, pode dizer-se que são de ordem pública internacional as leis relativas à existência do Estado e essencialmente divergentes (divergência profunda) da lei estrangeira normalmente competente para regular a respetiva relação jurídica, as quais devem ser leis rigorosamente imperativas e que consagram interesses superiores do Estado. E os interesses que estão aqui em causa são os princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa. Mas porque estas características também convêm às leis de ordem pública interna, e nem todas as normas de ordem pública interna são normas de ordem pública internacional, para que possa intervir a exceção de ordem pública internacional será necessário que as disposições da lex fori essencialmente divergentes da lei estrangeira normalmente aplicável sejam fundadas em razões de ordem económica, ético-religiosa ou política (v. MARQUES DOS SANTOS, ob. cit., pp. 580--581).
Continua-se a acentuar que não se está perante uma definição mas antes a procurar encontrar critérios de orientação para o juiz, e com valor aproximativo. Assim, por exemplo, são leis de ordem pública internacional a expropriação sem indemnização (confisco), as leis que proíbem a poligamia e que impedem um segundo casamento sem que o primeiro tenha sido dissolvido (editada por razões morais), e também teria de intervir a reserva de ordem pública internacional se a aplicação do direito estrangeiro atropelasse grosseiramente a conceção de justiça material como o Estado do foro a entende, abalando os próprios fundamentos da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior transcendência e dignidade, que choquem a consciência, como seria o caso de lei estrangeira que admitisse a morte civil ou a escravidão, ou a norma estrangeira que estabelecesse como impedimento à celebração do casamento a diversidade de raça ou de religião, ou a aceitação do repúdio por um marido muçulmano de uma esposa portuguesa, sem que esta tenha prestado o seu consentimento.
Mas já não é uma lei de ordem pública internacional, mas de ordem pública interna, a lei que exige a forma escrita para o contrato de arrendamento urbano que, de acordo com o princípio locus regit actum admitido pelo nosso direito, só interessa aos arrendamentos celebrados em Portugal, e cujo fim a que obedeceu a dita norma em nada é comprometido ou atraiçoado pelo facto de em Portugal ser reconhecido como válido um arrendamento urbano celebrado verbalmente.
(…)
Resta aditar, ao que vem dito, que são características da ordem pública internacional, para além da feição nacional – as exigências da ordem pública internacional variam de Estado para Estado, segundo os conceitos dominantes em cada um deles – a excepcionalidade, a imprecisão e actualidade. A excepcionalidade e a imprecisão já resultam do que ficou dito; as leis de ordem pública internacional são um limite à aplicação da lei normalmente competente para regular as relações jurídicas, consistindo a sua função em desviar a aplicação dessa lei, substituindo-a pela lex fori, a imprecisão da sua noção é um mal sem remédio, e a sua actualidade ou mobilidade, mostra que as leis de ordem pública internacional têm um cunho nacional, são função das conceções no tempo e no espaço do País onde a questão se põe, hão de vigorar na ocasião do julgamento, e podem deixar de o ser e vice-versa, visto que podem variar de acordo com a variação das exigências do interesse geral (V. FERRER CORREIA, obra cit., p. 409 e ss.)”.
37 Como também resulta do Ac. STJ, de 21/02/2006, Pr. 05B4168 “[a] exceção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública prevista na al. f) do art.º 1096º só tem cabimento quando da aplicação do direito estrangeiro cogente resulte contradição flagrante com e atropelo grosseiro ou ofensa intolerável dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional e, assim, a conceção de justiça do direito material, tal como o Estado a entende. Só há que negar a confirmação das sentenças estrangeiras quando contiverem em si mesmas, e não nos seus fundamentos, decisões contrárias à ordem pública internacional do Estado Português — núcleo mais limitado que o correspondente à chamada ordem pública interna, por aquele historicamente definido em função das valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir, mas operando em cada caso concreto para afastar os resultados chocantes eventualmente advenientes da aplicação da lei estrangeira. O cabimento daquela reserva só, por conseguinte, se verifica quando o resultado da aplicação do direito estrangeiro contrarie ou abale os princípios fundamentais da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior dignidade e transcendência, sendo, por isso, de molde a chocar a consciência e a provocar uma exclamação.”
38 À luz do que ficou exposto e analisando o presente caso, consideramos que a decisão estrangeira que reconheceu a validade da convenção antenupcial e o requerente herdeiro universal da herança da falecida PF. não está abrangida pelos princípios de ordem pública internacional a salvaguardar, por não ser com eles incompatíveis, seja qual for a perspetiva de análise.
39 Em primeiro lugar, temos que atender a que a nacionalidade americana da falecida determina a aplicação da lei americana, em matéria de sucessões – artigo 62.º, do Código Civil, o que afastaria a lei portuguesa nesta matéria.
40 Em segundo lugar, a data relevante para aplicar os princípios de ordem pública internacional do Estado Português não é a data em que a convenção antenupcial foi celebrada, como pretende o requerido, mas a data em que a sentença de reconhecimento é proferida, pois é a partir desta data que a decisão estrangeira produzirá efeitos em Portugal, pelo que será por referência a ela que a apreciação dos critérios de ordem pública internacional deve realizar-se.
41 Finalmente, a questão em si também não convoca a aplicação daquele regime excecional de não reconhecimento, por não ter suficiente relevância para ultrapassar o crivo da excecionalidade. Não se trata de uma decisão que viole o sentimento ético-jurídico ou os princípios fundamentais do direito português. Não é uma decisão inconciliável com as conceções jurídicas que alicerçam o sistema. Acrescenta-se, aliás, que a alteração recente do regime português nesta matéria se aproxima precisamente do que subjaz à sentença a reconhecer.
42 É o que também decorre Ac. TRL, de 19/11/2019, Pr. 28325/17.9T8LSB.L1-7, pese embora, a propósito de questão paralela:
“A proteção do ordenamento jurídico português relativamente à vocação sucessória do cônjuge tem vindo a ser alargada, mas, ainda assim, não deve ser tida como um elemento essencial ou nuclear do ordenamento jurídico-constitucional português, tanto mais que a Constituição da República Portuguesa remete a regulação dos efeitos da morte no casamento para a lei ordinária (cf. artigo 36º, n.º 2 da Constituição), permitindo a consagração de várias soluções, sendo a inclusão do cônjuge no elenco dos herdeiros legitimários uma opção recente.”
43 Em concreto, quanto à invocação do regime da Casa de Morada de Família nada se oferece dizer, por não se terem demonstrado factos que convocassem a aplicação de tal regime.
44 Termos em que importa julgar procedente o pedido, já que nada a tal obsta.
45 O requerido deverá suportar as custas porque vencido - artigo 527.º, do Código de Processo Civil
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal em julgar procedente o pedido e, consequentemente, em confirmar a sentença proferida em 15/2/2022, pelo Tribunal do Condado de Broward, na Florida, EUA, pela qual foi reconhecida a validade da convenção antenupcial celebrada entre a falecida PF. e V. e o ora requerente P. foi considerado o único herdeiro.
Custas pelo requerido.
O presente acórdão mostra-se assinado e certificado eletronicamente.
Lisboa, 4 de fevereiro de 2025
Rute Lopes
Micaela Sousa
Diogo Ravara