INCIDENTE DA INSTÂNCIA
INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
INTERVENÇÃO PRINCIPAL ESPONTÂNEA
PRESSUPOSTOS
Sumário

(Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – art.º 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)
1. Não estando em causa uma situação de litisconsórcio necessário, nem a situação a que se reporta o art.º 34.º do CPC, resulta evidente do confronto dos arts. 311.º e 312.º do mesmo código, que o incidente de intervenção principal espontânea só é de admitir, quando o interveniente se proponha fazer valer um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu, ou seja, quando em simultâneo pudesse demandar ou ser demandado com um e outro, nos termos do art.º 32.º do mesmo diploma.
2. Logo, o incidente de intervenção principal espontânea só é de admitir se o interveniente for co-sujeito da própria relação material controvertida.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
C. F., Lda., instaurou ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra Companhia de Seguros G, S.A., alegando, em suma, que «no âmbito da sua atividade comercial, importava, reparava, expunha, comprava e vendia veículos automóveis novos, semi-novos e usados», tendo, para o efeito, ao seu serviço, «dezenas de funcionários entre os quais motoristas, vendedores, experimentadores e mecânicos que faziam o transporte e conduziam os automóveis dos parques da sua concedente ____ Auto Portuguesa para as instalações da Autora, concessionária da ____ e da ____, suas sucursais, oficinas, stands e clientela».
Esses «funcionários levavam a cabo o transporte das viaturas que incluíam todas as movimentações que fossem necessárias à venda, exposição, reparação e experimentação das mesmas até serem vendidas e entregues ao cliente final.
(...)
Sendo impensável realizar seguros um a um por cada viatura transportada e transacionada, tal a logística que importaria num universo de cerca de 900 viaturas vendidas por ano, a Autora dispunha assim de cerca de 32 motoristas devidamente credenciados e habilitados com seguro de garagista para realizar o transporte dos automóveis (vulgo, seguro de carta contra todos os riscos).
No dia 14/08/1999 pelas 23h30m a viatura automóvel semi-nova para venda, marca ____, com a matrícula ____, sofreu um acidente quando circulava no cruzamento da Rua ____, em Lisboa.
Neste dia e hora a viatura ____ era conduzida pelo vendedor da Autora CC (...).
Este vendedor, condutor da Autora tinha seguro de garagista válido com o nº de apólice ____, da Ré Companhia de Seguros G, que o habilitava legalmente a conduzir na via pública e a ter seguro todo e qualquer veículo automóvel até 3500kg peso bruto.
O Tomador do seguro era a Autora C. F., Lda., concessionária automóvel das marcas ____ e ____.
A cobertura da apólice contemplava danos próprios e responsabilidade civil ilimitada, sendo aplicáveis as cláusulas A/J/S do contrato de seguro nos termos do nº 3 do Art.º 2º do DL 522/85, quando conduzido pelo titular da carta nº ____, (excepto se o automóvel estivesse averbado em nome do mesmo).
Sendo como é, não há qualquer causa de exclusão da responsabilidade contratual assumida pela Ré Companhia de Seguros G».
Participado o sinistro à ré, esta declinou “a sua responsabilidade contratual”, não tendo dado ordem de reparação do veículo, nem ressarcido a autora dos prejuízos sofridos em consequência do evento.
(...) o ____ é um raro e cobiçado automóvel de coleção com o valor atual de 150.000€ (...) razões pelas quais a Autora, para garantir a inviolabilidade do bem, deixou o veículo à guarda remunerada de terceiros, que o recolheram em segurança todos estes anos, mas que como é natural pretendem receber o parqueamento acumulado do automóvel para procederem à sua entrega.
Com efeito, a SCS, Lda., proprietária do imóvel onde funcionou a concessão da ____ e da ____ da Autora, aceitou a recolha e guarda do veículo que lá ficou parqueado, aguardando até hoje a ordem de reparação da Ré.
O veículo imobilizado e desmontado, sem ter qualquer condição para a circulação terrestre ficou (até porque não poderia ser de outra forma, dada a falta de instalações da Autora, e o veículo não poder circular) guardado e recolhido a uma taxa diária de 10€+ iva, pelo depósito e parqueamento.
Guarda e recolha que se iniciou em 01/01/2000, data em que a Autora C. F., Lda., abandonou as instalações, deixando lá ficar guardado o veículo ____».
Conclui, nesta parte:
«Assim, é devido o parque desde 01/01/2000 até à presente data pelo que a Ré deve de parqueamento e depósito do automóvel a quantia de 7132 dias à taxa diária de 10€+ iva= 87.723,60€ (...),
Razão pela qual deve a Ré G indemnizar a Autora neste montante e no custo do parqueamento que entretanto se vier a vencer até a reparação efetiva do veículo».
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No dia 25 de maio de 2024, SCS, Lda., apresentou nos autos requerimento com o seguinte teor:
«(...) vem nos termos do Art.º 311º, Art.º 312º e Art.º 313º do NCPC, nos termos dos Art.º 32º, Art.º 33º e Art.º 34º do mesmo diploma, requerer a sua intervenção principal nos presentes autos, nos termos do Art.º 313º, do NCPC, por mera adesão e na posição de Autora, nesta ação proposta pela Autora C. F., Lda, contra a Ré Companhia de Seguros G, aceitando expressamente todos os articulados da Autora, fazendo-os seus, e todos os actos e termos processados, nos seguintes termos:
1. A interveniente, tem em recolha à sua guarda, nas suas instalações o veículo automóvel marca ____ modelo ____, com a matrícula ____, com o nº de chassis ____, objecto desta causa.
2. O parqueamento deste automóvel nas instalações da interveniente, teve início no dia 01/01/2000, onde permanece até aos dias de hoje e permanecerá até cessar a recolha, tendo um custo de 10€/dia +iva.
3. O Custo do parqueamento é um crédito que foi pedido pela Autora C. F., Lda. nesta acção mas para ser liquidado à interveniente SCS, que é a titular efetiva desta divida e deste prejuízo, sendo que é um direito próprio que pretende fazer valer.
4. Deste modo, perante o seu Direito próprio, a Lei concede-lhe e permite-lhe a mesma posição da Autora e desta quanto à lide, assim deve pois, ser admitida como interveniente principal ao lado da Autora originária C. F., Lda, como se Requer».
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No dia 5 de setembro de 2024 foi proferida a seguinte decisão:
«I. Por requerimento datado de 25.05.2022 (Refª 42372189), a SCS veio requerer a sua intervenção principal, nos termos do disposto no art.º 313º do CPC, invocando ter à sua guarda, nas suas instalações, o veículo automóvel interveniente no acidente de viação a que se referem os autos, sendo que o custo do parqueamento é um crédito pedido pela A. C. F., Lda nesta ação mas para ser liquidado à ora Requerente.
Notificadas as partes, apenas a R. se pronunciou-se no sentido do indeferimento da requerida intervenção de terceiros, considerando que não pretende fazer valer um direito próprio contra a R., mas ao invés, alega ser titular de um direito sobre a A..
Apreciando.
As situações em que é admissível a intervenção principal espontânea encontram-se reguladas nos arts. 311º do CPC e seguintes, pressupondo sempre que o interveniente faça valer um direito próprio, paralelo ao A. ou ao R..
No caso concreto, a Requerente veio invocar ser titular de um direito de crédito sobre a A. C. F., Lda, referente ao parqueamento da viatura que foi interveniente no acidente de viação a que se referem os autos.
Assim, não tendo a requerente alegado a existência de qualquer direito próprio sobre a R., entende-se que não se encontram preenchidos os pressupostos legais da requerida intervenção de terceiros e, em consequência, não se admite a mesma».
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A requerente SCS, Lda., recorre deste despacho, concluindo assim as respetivas alegações:
«A) A Autora na causa da referência pediu com foco no seguro contra todos os riscos que celebrou com a Ré para lhe serem relevados todos os custos que derivassem e derivem da circulação rodoviária do automóvel de matrícula ____, que a condenação da seguradora abrangesse o preço não satisfeito ainda do parqueamento da viatura, após o início da reparação (peritada), até ao presente, nas instalações da Recorrente.
B) Foi na verdade a Recorrente quem foi solicitada à recolha do automóvel, hoje uma viatura de elevado preço de mercado, a valer mais de 200 mil euros.
C) Por conseguinte a recorrente tem um interesse direto e legitimo no recebimento do pagamento da indemnização de seguro solicitado pela Autora nas circunstâncias dadas.
D) Porém o despacho recorrido recusou o articulado e no limite o pedido apresentado pela Recorrente em paralelo com a Autora com o motivo em que ela Recorrente não tinha qualquer interesse direto in casu.
E) O despacho recorrido infringe assim os artigos 311º e 32º do CPC.
F) Deve, por conseguinte, ser reformado no sentido da admissão e debate do pedido de intervenção principal espontâneo apresentado pela Recorrente no parâmetro e foco da Petição Inicial».
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A ré contra-alegou. pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida.
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II – ÂMBITO DO RECURSO:
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objeto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Assim, no caso concreto, a única questão que se coloca consiste em saber se estão reunidos os pressupostos para a SCS, Lda., seja admitida a intervir nos autos conforme por si pretendido.
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III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
A factualidade relevante para a decisão do recurso é a que decorre do relatório que antecede.
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3.2 – Fundamentação de direito:
Dispõe o art.º 311.º que «estando pendente causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal aquele que, em relação ao seu objeto, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, nos termos dos artigos 32º, 33º e 34º».
Conforme refere Salvador da Costa, «trata-se da intervenção litisconsorcial espontânea de um terceiro, ou seja, é seu pressuposto em relação aos sujeitos da causa principal, a existência de uma situação de litisconsórcio voluntário ou necessário, incluindo a motivada pelo interesse familiar prevista no art.º 34º. Assim, perante uma ação pendente, o terceiro que podia inicialmente acionar ou se acionado a título de litisconsorte voluntário ou necessário, nos termos dos arts. 32.º a 34.º, pode nela intervir a título principal.
(…).
Este tipo de intervenção litisconsorcial espontânea envolve a pendência de uma ação entre autor e réu, ou autores e réus, e a titularidade por parte de um terceiro de um interesse igual ao do autor ou do réu que inicialmente lhe permitisse o litisconsórcio voluntário ou impusesse a litisconsórcio necessário»[1].
Nos termos do art.º 312º, «o interveniente principal faz valer um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu, apresentando o seu próprio articulado ou aderindo aos apresentados pela parte com quem se associa».
Ainda segundo Salvador da Costa, «resulta deste artigo, por um lado, que os intervenientes principais espontâneos fazem valer um direito próprio paralelo ao do autor ou ao do réu (…).
A expressão direito próprio paralelo ao do autor ou do réu pretende significar a titularidade de um interesse próprio de um terceiro para o efeito, suscetível de envolver direitos subjetivos e outros interessados baseados em factos juridicamente relevantes, como é próprio das ações de simples apreciação.
(…)
O interesse do interveniente espontâneo igual ao do autor ou do réu abrange, designadamente, as obrigações conjuntas, as solidárias, as indivisíveis, os direitos de comunhão conjugal ou hereditária e os potestativos de anulação de deliberações sociais ou de preferência legal».
Lebre de Freitas/Isabel Alexandre assinalam que a lei exige que «o interveniente tenha “um interesse igual” ao da parte com a qual pretende litisconsorciar-se. É o que, sem dúvida, acontece no caso das relações paralelas e das relações concorrentes (...), que englobam, nomeadamente, as obrigações conjuntas, solidárias e indivisíveis, o direito de compropriedade ou a uma comunhão de bens (herança, comunhão conjugar, outra), os direitos potestativos de anulação de deliberação social ou de preferência global (...)»[2].
No caso concreto:
a) não está em causa uma situação de litisconsórcio voluntário.
O incidente só seria de admitir, em conformidade com o condicionalismo legal, se a SCS, Lda., fosse co-sujeita da própria relação material controvertida - art.º 32º, nº 1, 1ª parte, para o qual remete o referido 311.º.
Conforme resulta da lição de Alberto dos Reis[3], na intervenção principal espontânea, o interveniente principal vem a juízo para fazer valer direito seu, que coexiste com o do autor ou do réu. É, portanto, um novo litigante que, como parte principal, vem associar-se ao autor ou ao réu. A intervenção dá, assim, lugar a um litisconsórcio sucessivo.
b) não está em causa uma situação de litisconsórcio necessário.
Nos termos do art.º 33.º a intervenção dos vários interessados na relação controvertida pode resultar necessária (litisconsórcio necessário) por três vias a que correspondem as suas modalidades de:
- Litisconsórcio necessário convencional;
- Litisconsórcio necessário legal;
- Litisconsórcio necessário natural.
As duas primeiras modalidades estão previstas no n.º 1 daquele artigo e a terceira está prevista no seu n.º 2.
Quanto à primeira, inexiste qualquer convenção a impor uma situação litisconsorcial necessária.
Quanto à segunda, o litisconsórcio necessário legal é o que tem lugar por imposição de norma legal. Não se vislumbra norma legal a impor uma situação litisconsorcial necessária.
Quanto à terceira, é natural o litisconsórcio que resulta de, pela própria natureza da relação jurídica, a intervenção de todos os interessados ser necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. E a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado. Inexiste igualmente, in casu, como é bom de ver, uma qualquer situação de litisconsórcio necessário natural.
Para que dúvidas não subsistam: não estando em causa uma situação de litisconsórcio necessário, nem a situação a que se reporta o art.º 34.º, temos que do confronto dos arts. 311.º e 312.º, torna-se evidente que o incidente de intervenção principal espontânea só é de admitir (a sua admissibilidade só é uma realidade), quando o interveniente se proponha fazer valer um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu, quando, em simultâneo, pudesse demandar ou ser demandado com um e outro, nos termos do art.º 32.º.
Por outras palavras: o incidente aqui em causa só é de admitir em conformidade com o condicionalismo legal, se o interveniente for co-sujeito da própria relação material controvertida - art.º 32.º, n.º 1, 1ª parte, para o qual remete o referido art.º 311.º, do mesmo diploma.
Tal equivale por dizer que o referido art.º 311.º exige que o interveniente principal tenha, nos termos do art.º 32.º, n.º 1, do mesmo diploma, interesse igual ao do autor.
Como escreve Antunes Varela, com a clareza e a incisão que lhe era reconhecida, «a simples leitura do art.º 27º [art.º 32º do NCPC], por cuja previsão factual a lei mede o âmbito do incidente da al. a) do art.º 351º [correspondente ao art.º 320º, al. a), do CPC, na sua versão anterior à Lei nº 41/2013, de 26 de junho, artigo este que, por sua vez, correspondente ao art.º 311º do CPC/13] revela desde logo que a intervenção principal, como instituto próprio, se destina a servir os casos de contitularidade de direitos (ou de relação jurídica material com vários sujeitos) a cujo exercício corresponde o regime do litisconsórcio voluntário»[4].
À luz destes considerados, face ao alegado no requerimento com que foi introduzido em juízo o incidente de intervenção principal espontânea suscitado pela SCS, Lda., e ao pedido nele formulado, facilmente se conclui ser manifesto não estarem verificados os pressupostos de que os arts. 311.º e 32.º, n.º 1, fazem depender a admissibilidade do presente incidente.
Por conseguinte, a decisão recorrida não merece censura, devendo ser mantida.
***
IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.

Lisboa, 4 de fevereiro de 2025
José Capacete
Alexandra de Castro Rocha
Paulo Ramos de Faria
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[1] Os Incidentes da Instância, 9.ª Ed., Almedina, 2017, p. 73.
[2] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2014, p. 607.
[3] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, p. 514.
[4] RLJ, Ano 120.º, pp. 26-27.