INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO
CONSTITUIÇÃO
Sumário


O limite de € 100.000,00, tal como se encontra fixado no artigo 23º, n.º 10, do Estatuto de Administrador Judicial, expressa o tecto máximo final aplicável à remuneração variável do administrador da insolvência, entendida globalmente, como um todo, e não apenas o limite parcelar relativo à componente da remuneração sem a majoração que seja devida.

Texto Integral

Revista nº 578/12.6TVLSB-M.L1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção-Cível):

I - RELATÓRIO.

Nos autos de insolvência da foi o proferido o seguinte despacho:

“Reqs. de 06.03.2024 e 31.05.2024:

Por assistir inteira razão à credora E.A.M - Évora Asset Management, S.A., e porque a remuneração variável do senhor Administrador da Insolvência não se pode cifrar em montante superior a € 100 000,00 (acrescido de IVA), este valor como limite máximo absoluto (cfr. artigo 23.º, n.ºs 8 e 10, do CIRE), é a mesma remuneração fixada nessa quantia máxima, devendo o senhor AI retificar o mapa de rateio final em conformidade”.

Inconformado, o administrador de insolvência veio interpor o presente recurso de apelação

Por acórdão do Tribunal da Relação do Lisboa de 29 de Outubro de 2024 foi julgado totalmente improcedente o recurso de apelação.

Veio o administrador da insolvência interpor recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:

Admissibilidade do recurso

I. Em especial, nos termos do art. 14.º, n.º 1 do CIRE, “No processo de insolvência (…), não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.”

II. Por outro lado, nos termos do art. 671.º, n.º 3 do CPC, “Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo” relativamente a acórdãos da Relação que “esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.” (art. 672.º, n.º 2, al. c) do CPC)

III. As normas citadas são conformes com o disposto no art. 629.º, n.º 2, al. d) do CPC, à luz do qual, independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso “Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.”

IV. No caso destes autos, o valor da causa e da sucumbência viabiliza o recurso.

V. Contudo, a circunstância de a tramitação do recurso estar inserida no âmbito de uma ação especial de insolvência e a circunstância de a decisão de 1.ª instância ter sido confirmada pelo Tribunal da Relação (em qualquer caso em consonância com o regime dos recursos que são sempre admissíveis), obrigam o Recorrente a sustentar a admissibilidade do recurso com a existência de decisões contraditórias, o que se propõe fazer.

VI. Nos presente autos discute-se a existência ou inexistência teto máximo para a remuneração variável do administrador da insolvência em caso de liquidação da massa insolvente.

VII. O douto Acórdão recorrido consignou o entendimento segundo o qual aquela remuneração está limitada à quantia de 100.000,00 eur, considerando a interpretação segundo a qual o limite estabelecido no art. 23.º, n.º 10 se aplica ao valor global da remuneração e não apenas ao valor apurado nos termos do art. 23.º, n.º 4, al, b) do Estatuto do Administrador Judicial (EAJ) (aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro).

Contudo,

VIII. O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 7 de dezembro de 2023, sendo relator o Desembargador José Alberto Martins Moreira Dias, proferido no âmbito do proc 2898/14.6TBBTG-W.G1, propugnou o entendimento segundo o qual a remuneração variável é composto por duas componentes, uma respeitante à fixada pelo art. 23.º, n.os 4, 6 e 10 do EAJ e outra de remuneração variável de majoração, não sendo esta segunda componente abrangida pelo limite dos 100.000,00 eur.

IX. Deste Acórdão ressaltam dois entendimentos que são contrários aos do Acórdão que aqui se impugna: (i) por um lado, o entendimento claro de que a remuneração variável é composta por duas componentes autónomas, uma delas regulada pelo art. 23º, n.ºs 4, 6 e 10 do EAJ, a outra (designada “majoração”) regulada pelo art. 23.º, n.º 7 do mesmo diploma; (ii) por outro lado, o entendimento, claro e inequívoco, segundo o qual o limite de 100.000,00 eur só se aplica à primeira componente da remuneração variável.

X. O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 9 de novembro de 2022, sendo relatora a Desembargadora Helena Melo, proferido no processo 462/12.3TJCBR-AF.C1, decidiu de acordo com a posição segundo a qual a limitação a 100.000,00 eur é tida como sendo aplicável apenas à primeira componente da remuneração variável, de tal modo que a Relação sufraga o entendimento de 1.ª instância no sentido de fixar o valor da remuneração na quantia total de 376.725,63 eur, sendo 100.000,00 eur (por aplicação do teto máximo) para a primeira componente da remuneração) e 141.730,65 eur para a segunda componente.

XI. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26 de setembro de 2022, sendo relator o Desembargador Manuel Fernandes, proferido no processo 1211/17.5T8AMT.P1, decidiu de acordo com um sentido contrário ao que foi propugnado na decisão que aqui se impugna, uma vez que optou por aplicar o limite de 100.000,00 eur apenas no que se refere aos 5% do resultado da liquidação e não aos 5% dos créditos satisfeitos.

XII. As três decisões acima referidas foram proferidas por Tribunais da Relação e transitaram em julgado, à luz da mesma legislação que foi aplicada pelo Acórdão aqui recorrido, não havendo, por ora, acórdão de uniformização de jurisprudência sobre o tema (aliás, reitera-se o que anteriormente ficou referido no sentido de ser conhecida apenas uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça sobre esta questão).

XIII. Nessa medida e ao abrigo do disposto nos arts. 14.º, n.º 1 do CIRE, 629.º, n.º 2, al. d) do CPC e 672.º, n.º 1, al. c) do CPC.

Dos fundamentos do recurso

XIV. O recurso visa a impugnação da seguinte douta decisão do Tribunal de 1.ª instância que decidiu sobre os requerimentos de 6 de março de 2024 e 31 de maio de 2024, aplicando a limitação de 100.000,00 eur a toda a remuneração variável do administrador da insolvência.

XV. Isto é, discute-se o cálculo da remuneração variável do administrador da insolvência no âmbito de um processo especial de insolvência que foi tramitado com liquidação da massa insolvente.

XVI. Defende o Recorrente que a remuneração variável é composta por duas componentes autónomas da remuneração, uma delas função da quantificação do produto da venda, a outra função da proporção de credores cujos créditos ficaram satisfeitos devido à liquidação.

XVII. Esta remuneração variável está sujeita a três limites.

XVIII. Um dos limites opera automaticamente estabelecendo um teto máximo para a remuneração que resulta do art. 23.º, n.º 4, al. a); ou seja, os 5% do resultado da liquidação não podem representar um valor superior a 100.000,00 eur devido ao teto máximo imposto pelo art. 23.º, n.º 10 (“A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 (euro).”

XIX. Outro limite opera também automaticamente estabelecendo que os 5% do montante de créditos satisfeitos deve ser calculado na proporção do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos – isto é, os créditos satisfeitos são multiplicados por 5% e, seguidamente, multiplicados pela percentagem do valor dos créditos que obteve pagamento.

XX. O terceiro limite funciona por decisão judicial - ao abrigo do disposto no art. 23.º, n.º 8, sempre que a remuneração variável atingir valores que excedam os 50.000,00 eur, o juiz pode determinar o pagamento de valor inferior, tendo por critérios a importância dos serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções.

XXI. Existem duas diferenças essenciais entre os “travões”.

XXII. Uma delas diz respeito ao impulso - dois dos travões são automáticos, o terceiro depende de decisão e ponderação judicial.

XXIII. A outra diferença diz respeito ao âmbito: (i) o limite relativo ao teto máximo de 100.000,00 eur aplica-se aos 5% do resultado da liquidação, isto é, só se aplica a uma das componentes da remuneração variável; (ii) o limite relativo à proporção do grau de satisfação dos créditos aplica-se aos 5% do montante dos créditos satisfeitos, isto é, só se aplica a uma das componentes da remuneração variável; (iii) o terceiro limite (que decorre de decisão judicial) aplica-se à totalidade do valor da remuneração variável.

XXIV. Trata-se de uma lei cujo texto é perfeitamente claro e conforme ao seu objetivo, sendo este o de responsabilizar / premiar o administrador da insolvência pelo seu desempenho fazendo com que os honorários que aufere sejam função dos resultados atingidos, quer quanto ao valor da liquidação, quer quanto ao grau de satisfação dos credores. Nessa medida, a remuneração é essencialmente composta por uma percentagem do produto desse desempenho.

XXV. Neste contexto de clareza e coerência legislativa, não pode extrair-se do art. 23.º a interpretação segundo a qual o valor total da remuneração variável se limita a 100.000,00 eur - é que este limite consta do art. 23.º, n.º 10, o qual remete expressamente apenas e só para o 23.º, n.º 4, al. b), não podendo abranger o 23.º, n.º 7.

XXVI. Na limitação que estabelece no art. 23.º, n.º 10, o legislador remete apenas para o art. 23.º, n.º 4, al. b). Poderia ter optado por remeter também para o art. 23.º, n.º 7, mas não o fez.

XXVII. Por outro lado, a interpretação propugnada pelo Recorrente é perfeitamente conforme do ponto de vista da consideração do sistema jurídico como um todo, designadamente se se considerarem normas relativas à remuneração de profissões com estatuto próximo.

XXVIII. A inexistência de teto máximo de funcionamento automático é uma característica própria dos sistemas de liquidação judicial que vigoram no ordenamento jurídico português.

XXIX. Por exemplo, os agentes de execução (igualmente profissionais liberais dotados de poderes de autoridade que atuam em contexto de liquidação de ativos) são remunerados de forma variável, sem teto máximo (em caso de venda judicial na modalidade de venda por negociação particular, o agente de execução tem direito a auferir 1% sobre o valor da venda [art. 50.º, n.º 1 e ponto 1.3 do Anexo VII da Portaria n.º 282/2013, de 29 de agosto]; acresce que o agente de execução tem direito a percentagens sobre o valor recuperado ou garantido, em função do momento em que ocorre a recuperação [art. 50.º, n.os 5 e 6 e Anexo VIII da Portaria n.º 282/2013, de 29 de agosto]).

XXX. Neste caso o legislador também optou por não fixar um máximo global e automático para o valor da remuneração.

XXXI. O mesmo se diga dos liquidatários ou entidades encarregadas da venda extrajudicial que auferem uma remuneração correspondente a 5% do valor dos bens vendidos, à luz do art. 17.º, n.º 6 do Regulamento das Custas Processuais.

XXXII. Ou seja, em situações de liquidação judicial, o legislador não considera que seja imprescindível a existência de limites máximos para a remuneração variável dos profissionais envolvidos.

XXXIII. Recorde-se que a atual redação do art. 23.º resultou da alteração introduzida ao EAJ pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, a qual procedeu à transposição da Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019.

XXXIV. No contexto da Diretiva é notória a intenção de implementar um sistema de remuneração variável que seja função do resultado da atuação do administrador da insolvência, isto é, um sistema de remuneração baseado no mérito ou no incentivo ao melhor desempenho da pessoa responsável pela liquidação.

XXXV. Assim, o art. 27.º, n.º 4 da Diretiva estabelece que “Os Estados-Membros asseguram que a remuneração dos profissionais se reja por regras que sejam compatíveis com o objetivo de uma resolução eficiente dos processos”.

XXXVI. O legislador europeu pretendeu que a remuneração fosse fixada em função dos resultados obtidos ou em função do mérito do desempenho profissional.

XXXVII. E o estabelecimento de tetos máximos de funcionamento automático não é compatível com a lógica que deve presidir aos critérios de remuneração, sendo antes a sua antítese, dado que o profissional estaria focado apenas no objetivo de garantir um resultado que lhe permitisse alcançar o teto máximo, sendo irrelevantes os resultados que conseguisse alcançar a partir daquele valor.

XXXVIII. Finalmente, a lei não é suscetível de se prestar a qualquer espécie de abusos.

XXXIX. O legislador cuidou de estabelecer uma norma travão que permite ao julgador do caso concreto limitar o valor da remuneração se lhe parecer que há desproporção manifesta entre os valores resultantes da aplicação dos critérios legais e as concretas características da acção (serviços prestados, resultados obtidos, complexidade do processo e diligência do administrador).

XL. Ou seja, o art. 23.º, n.º 8 do EAJ, sendo aplicável à remuneração variável como um todo (ambas as componentes), permite ao juiz bloquear situações de abuso, determinando valores de remuneração inferiores aos que seriam devidos por aplicação da lei.

XLI. Estamos perante uma norma clara e bem conseguida, que premeia o mérito, não deixando, contudo, de consignar a possibilidade de haver uma ponderação judicial do caso concreto que evite situações manifestamente desproporcionadas ou injustificadas.

XLII. Em função do exposto, a douta decisão de 1.ª instância violou ou fez incorreta interpretação do art. 23.º do EAJ.

Da inconstitucionalidade

XLIII. A norma que aqui se aprecia é clara e bem conseguida – premeia o mérito, não deixando, contudo, de consignar a possibilidade de haver uma ponderação judicial do caso concreto que evite situações manifestamente desproporcionadas ou injustificadas.

XLIV. O grau de clareza da lei e a exímia consonância entre o respetivo teor literal e os objetivos que lhe estão subjacentes torna a interpretação consignada no douto despacho recorrido atentatória do princípio da segurança jurídica, o qual dispõe de consagração constitucional à luz do art. 2.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

XLV. Dito de outro modo, o art. 23.º do EAJ na interpretação segundo a qual o limite estabelecido pelo respetivo n.º 10 se aplica também à componente da remuneração variável prevista no n.º 7 é inconstitucional por violar o princípio da segurança jurídica inerentes do estado de direito democrático e da legalidade, consagrados no art. 2.º da Constituição da República Portuguesa.

XLVI. O art. 2.º da Constituição acolhe o princípio da segurança jurídica em termos tais que tutelam o cidadão garantindo-lhe a possibilidade de antecipar e prever comportamentos e consequências à luz da lei que se encontra em vigor.

XLVII. A clareza do texto da lei não deve deixar de reforçar a importância que deve ser dada ao teor literal no exercício da sua interpretação.

XLVIII. O desrespeito total, injustificado e desnecessário pelo elemento literal conduz à possibilidade de substituição do papel do legislador pelo julgador (são os órgãos políticos que devem estabelecer as regras, limitando-se o poder judicial à sua aplicação).

XLIX. Ao julgador não é lícito interpretar a lei em desconformidade com o seu teor literal (eventualmente ancorado numa perspetiva pessoal e pejorativa de abuso ou desproporção sobre o trabalho que o legislador desenvolveu), de tal modo que já não estaremos perante um exercício de interpretação, mas antes perante uma substituição ilegítima ao pode legislativo, perpetrada pelo poder judicial,

L. Sob pena de violação manifesta do princípio da legalidade ou subordinação à lei (art. 203.º da CRP), do princípio da separação de poderes (art. 111.º da CRP) ou mesmo do princípio da igualdade (art. 13.º da CRP).

Contra-alegou o credor, apresentando as seguintes conclusões:

A- Vem o Recorrente interpor recurso do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que confirmou a decisão proferida em primeira instância, onde ficou inequivocamente plasmado o entendimento segundo o qual a remuneração variável do Exmo. Senhor Administrador de Insolvência está limitada à quantia de 100.000,00 € (cem mil euros), considerando a interpretação de que o limite estabelecido no art. 23.º, n.º 10 se aplica ao valor global da remuneração e não apenas ao valor apurado, nos termos do art. 23.º, n.º 4, al, b) do Estatuto do Administrador Judicial (EAJ) (aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro).

B- Tal como explanado pelo Recorrente, o supramencionado Acórdão não seria passível de recurso, quer por via do art. 14.º, n.º 1, do CIRE, quer por via do disposto no art. 671.º, n.º 3, do C.P.C., por estarmos perante uma situação que configura dupla conforme.

C- No entanto, vem, o Recorrente indicar que tem legitimidade para interpor o presente recurso e sustentar que existem decisões contraditórias no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

D- Nas alegações de recurso apresentadas considera o Recorrente que o limite estabelecido pelo art. 23.º, n.º 10 do EAJ, não se aplica ao valor total da remuneração variável, mas sim apenas ao valor apurado nos termos do art. 23.º, n.º 4, al. b), sendo que é este o objeto do presente recurso.

E- Ora, consideram as Recorridas que, salvo melhor opinião, não deve ser acolhida a argumentação do Recorrente, no que respeita à interpretação dos critérios de cálculo da remuneração variável, previstos no art. 23.º do EAJ

F- O Recorrente entende que estão plasmados no art. 23.º do EAJ três critérios de limites diferenciados, que resulta de uma interpretação literal do preceito sub judice.

G- Salvo melhor entendimento, o art. 23.º do EAJ encerra em si um articulado normativo que define e limita o valor da remuneração variável a receber pelo Exmo. Senhor Administrador de Insolvência como um todo, neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10/01/2024, referente ao processo n.º 14878/16.2T8LSB- G.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt.

H- Nos artigos 60 e 62 das alegações de recurso, vem o Recorrente invocar que a tese por si defendida levaria a uma situação de equiparação ao regime aplicável aos Agentes de Execução que são remunerados de forma variável, sem teto máximo e o regime aplicável aos liquidatários e encarregados de venda que recebem o correspondente a 5% do valor dos bens vendidos.

I- No entanto, a finalidade do processo de insolvência diverge em alguns aspetos da finalidade processo executivo, conforme resulta do art. 1.º, n.º 1, do CIRE, “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.”.

J- Considerando que o fim último do processo de insolvência é em abono da verdade o ressarcimento dos credores, o legislador criou alguns mecanismos de limitação da remuneração além do art. 23.º n.º 10, do EAJ, tais como, o art. 23.º, n.º 1, do EAJ, referente à Remuneração Fixa, o art. 23.º, n.º 8, do EAJ, referente à totalidade da remuneração e o art. 28.º do EAJ, referente à remuneração do fiduciário.

K- Daqui resulta claro que o legislador ao estabelecer os critérios de remuneração no EAJ não buscou criar igualdade aos regimes atuais dos profissionais análogos, mas sim, em última análise, um equilíbrio entre o fim do processo e a remuneração do Administrador de Insolvência.

L- Assim, carece de fundamento a tese defendida pelo Recorrente que limita a aplicação do n.º 10, do art. 23º, do EAJ, apenas uma das parcelas da remuneração variável do administrador de Insolvência, pois este entendimento seria contrário ao que resulta inequivocamente do normativo em análise.

M- Entende o Recorrente que o estabelecimento de tetos máximos de funcionamento automático não é compatível com a lógica que deve presidir aos critérios de remuneração, sendo antes a sua antítese, dado que o profissional estaria focado apenas no objetivo de garantir um resultado que lhe permitisse alcançar o teto máximo, sendo irrelevantes os resultados que conseguisse alcançar a partir daquele valor.

N- A Recorrida não consegue retirar do plasmado no art. 27.º, n.º 4 da Diretiva o entendimento do Recorrente, mais se dirá que, deste normativo não se pode retirar que apenas a remuneração sem limites poderia levar ao cumprimento das funções do Administrador de Insolvência de forma eficiente, sendo que,

O- os diversos travões inseridos no EAJ visam equilibrar o direito dos credores ao seu ressarcimento e o direito à remuneração do Administrador de Insolvência.

P- Por fim, vem o Recorrente ainda alegar que a interpretação segundo a qual o limite estabelecido pelo respetivo n.º 10 se aplica também à componente da remuneração variável prevista no n.º 7 é inconstitucional por violar o princípio da segurança jurídica inerentes do estado de direito democrático e da legalidade, consagrados no art. 2.º da Constituição da República Portuguesa.

Q- Considerando que, ao julgador não é lícito interpretar a lei em desconformidade com o seu teor literal (eventualmente ancorado numa perspetiva pessoal e pejorativa de abuso ou desproporção sobre o trabalho que o legislador desenvolveu), de tal modo que já não estaremos perante um exercício de interpretação, mas antes perante uma substituição ilegítima ao poder legislativo, perpetrada pelo poder judicial, sob pena de violação manifesta do princípio da legalidade ou subordinação à lei (art. 203.º da CRP), do princípio da separação de poderes (art. 111.º da CRP) ou mesmo do princípio da igualdade (art. 13.º da CRP)

R- Ora, tal alegação carece, salvo melhor opinião, de fundamento legal, uma vez que uma interpretação sistemática das normas que constituem o EAJ não é violadora de qualquer princípio constitucional supramencionado

S- Do art. 13.º da CRP, não resulta a proibição de todo e qualquer tratamento desigual entre profissionais com funções semelhantes, em toda e qualquer circunstância, mas sim, um tratamento desigual em razão dos fatores previstos, no art. 13.º, n.º 2, da CRP.

T- Pelo que, no caso concreto a interpretação levada a cabo pelo Tribunal a quo e Tribunal ad quem, não constitui uma violação de qualquer princípio constitucional.

U- Atento o supra exposto, devem as alegações de recurso apresentadas ser recusadas em toda a sua extensão por falta de fundamento legal e por serem legalmente inadmissíveis, uma vez que a decisão proferida nos autos conforme admitido pelo Recorrente seria irrecorrível.

V- Para o efeito, é invocada que a legitimidade para prosseguir a instância recursiva provém da necessidade da prolação um acórdão de uniformização de Jurisprudência, ao abrigo do disposto nos 14.º, n.º 1 do CIRE, 629.º, n.º 2, al. d) do CPC e 672.º, n.º 1, al. c) do CPC.

W- No entanto, analisando o pedido efetuado este refere-se única e exclusivamente à revogação da decisão recorrida por outra que indefira a reclamação do credor, mantendo o valor da remuneração variável do Recorrente em consonância com o valor por este proposto, não sendo feita qualquer menção à necessidade de uniformização de jurisprudência que legitimaria a presente instância recursiva.

X- Assim, não havendo menção nem nas conclusões, nem no pedido efetuado nas alegações de recurso à necessidade de prolação de um acórdão de uniformização de jurisprudência, não pode esta questão em toda a sua extensão ser apreciada, considerando o disposto no art. 3.º, n.º 1 do C.P.C., “O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes…”.

II – FACTOS PROVADOS.

Os indicados no RELATÓRIO supra.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.

Âmbito e alcance do limite consignado no número 10 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial.

Passemos à sua análise:

O acórdão recorrido procedeu, a nosso ver, à correcta interpretação do nº 10 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial, sendo por isso de manter.

(A nossa concordância com o aresto impugnado assenta, no fundamental, nas razões igualmente expressas no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Outubro de 2024 (relatora Maria Olinda Garcia), proferido no processo nº 14878/16.2TBLSB-G.L1.S1; no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2025 (relatora Maria Olinda Garcia), proferido no processo nº 1663/15.8PDL.Y.L1.S1; no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Dezembro de 2024 (relator Luís Espírito Santo), proferido no processo nº 380/12.5TYVNG-N.P1.S1, todos publicados in www.dgsi.pt.).

Vejamos:

A norma em causa (nº 10 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial) ao estabelecer que “a remuneração calculada nos termos da alínea b) do nº 4 não pode ser superior a € 100.000,00”, refere-se ao total da remuneração variável, incluindo, portanto, a sua majoração, o que resulta do facto de o disposto no número 7 do mesmo preceito se encontrar directa e intrinsecamente relacionado com o seu nº 4, onde se prevê a remuneração variável do administrador da insolvência sobre que poderá incidir a dita majoração, não havendo justificação alguma para destrinçar, em termos de limite final e global, entre estas duas vertentes da dita (e única) remuneração variável.

Com efeito, o legislador refere-se ao conceito de remuneração (do administrador da insolvência) reportando-se à sua remuneração global nos termos que constam do artigo 60º do CIRE, onde se prevê precisamente que “O administrador da insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis”; no artigo 23º, nº 1, do Estatuto do Administrador Judicial, onde pode ler-se: “O administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou em processo especial para acordo de pagamento ou o administrador da insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos actos praticados, sendo o valor da remuneração fixa de € 2.000,00”.

E nenhuma dúvida se pode seriamente colocar quanto à circunstância de a majoração da remuneração fazer parte integrante do próprio conceito de remuneração, sem qualquer tipo de autonomia relativamente a esta.

Neste sentido, afigura-se-nos que o nº 10 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial tem exactamente a mesma natureza e alcance, ou seja, o de referir-se à remuneração global, enquanto limite final e absoluto, compreendendo a remuneração variável e a majoração (que também se integra na remuneração variável) que seja devida.

Note-se, aliás, que a própria e sintomática inserção desta regra limitativa (o tecto de € 100.000,00) na parte final do mesmo preceito (o artigo 23º do Estatuto de Administrador Judicial) só pode querer significar que se trata de uma operação a realizar na fase derradeira da sequência de procedimentos utilizados com vista ao apuramento da remuneração global a atribuir ao administrador da insolvência.

No fundo, estamos perante duas realidades (remuneração variável e sua possível majoração) que obedecem, lógica e intrinsecamente, ao mesmo regime jurídico e que se encontram unitariamente subordinadas à mesma limitação final e global (não superior a € 100.000,00).

O que significa que o legislador, actuando em conformidade com a coerência que se impunha, estabeleceu um limite total à remuneração variável acrescida da majoração, ao mesmo tempo em que permitiu ao juiz reduzir, justificadamente, a remuneração variável em si (desde que superior a € 50.000,00).

De resto, como sagazmente se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Outubro de 2024 (relatora Maria Olinda Garcia), proferido no processo nº 14878/16.2TBLSB-G.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt.:

“(…) a alínea b) do n.º 4 não encerra, em si mesma, um critério de cálculo definitivo, já que o critério nela previsto tem de ser completado pelo disposto no n.º 6 (que fornece a noção de resultado da liquidação). E o n.º 7 estabelece um complemento (uma majoração) do valor alcançado por aplicação do n.º 6.

Existe, assim, uma sequência articulada de disposições [n.º 4, alínea b), n.º 6 e n.º 7] que traçam o alcance normativo do que deve ser entendido por remuneração variável em caso de liquidação da massa insolvente.

Neste quadro, do ponto de vista da coerência teleológica da norma, não seria compreensível que o legislador fixasse um limite de 100.000 Euros para a primeira parcela da remuneração variável (a que é calculada nos termos do n.º 6), mas que tal limite já não valesse para a segunda parcela (a majoração prevista no n.º 7), que é um complemento da primeira. Efetivamente, a majoração (atualmente prevista no n.º 7) foi, desde a Lei n.º 22/2013 (então prevista no n.º 5 do artigo 23º), legalmente consagrada como um complemento remuneratório da parcela que correspondia a 5% do resultado da liquidação, permitindo, assim, ao administrador receber um valor mais elevado em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos.

Assim, percebendo a relação entre as duas componentes da remuneração variável, seria incoerente e ilógico fixar um limite máximo à primeira parcela e, depois, continuar a complementar essa parcela com a majoração. E ainda mais ilógico seria entender que esta segunda parcela não teria qualquer limite.

Acresce que, como bem se refere no acórdão recorrido, faria pouco sentido que o legislador não tivesse pretendido aplicar o limite do n.º 10 à parcela da majoração quando, nos termos do n.º 8, o juiz tem o poder de reduzir (de forma justificada) toda a remuneração variável que exceda 50.000 Euros”.

Carece, deste modo, de base legal - e mesmo de razoabilidade - a tese sustentada pela ora recorrente de que o limite previsto no nº 10 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial (€ 100.000,00) se aplica exclusivamente à remuneração variável do administrador da insolvência e não à sua majoração.

Pelo contrário, há que concluir, pelos motivos enunciados que o limite de € 100.000,00, tal como se encontra fixado no artigo 23º, n.º 10, do Estatuto de Administrador Judicial, expressa efectivamente o tecto máximo aplicável à remuneração variável do administrador da insolvência, entendida globalmente, como um todo, e não apenas o limite parcelar relativo à componente da mesma remuneração sem a majoração.

Quanto às variadas invocações de inconstitucionalidades pelo recorrente, as mesmas não têm a menor consistência jurídica.

No fundo, assentam no pressuposto de que a interpretação jurídica perfilhada pelo tribunal, apenas por ser diferente da sua não acolhendo fundamentadamente as suas pretensões e não dando cobertura aos seus interesses particulares, afronta o princípio da segurança jurídica inerente ao estado de direito democrático e da legalidade consagrados no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, quando qualquer jurista sabe e tem plena consciência de que o elemento literal das normas não constitui o único critério a tomar em consideração na tarefa da hermenêutica jurídica.

Vislumbrar neste tipo (insustentável) de argumentação uma qualquer violação do princípio a separação de poderes, em conformidade com o disposto no artigo 111º da Constituição da República Portuguesa e mesmo – imagine-se – do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º do mesmo diploma legal, diz rigorosamente tudo acerca da total ausência de razoabilidade e da óbvia carência de acerto e cabimento da dita invocação de inconstitucionalidades que, a total despropósito, é ainda incluída no presente recurso de revista.

Pelo que a revista é negada, sem necessidade de quaisquer outras justificações ou desenvolvimentos.

IV – DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em negar a revista, mantendo o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2025.

Luís Espírito Santo (Relator)

Cristina Coelho

Teresa Albuquerque

V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.