I. O caso julgado formal, relativo a decisões relativas a questões ou matérias que não são de mérito, tal como previsto no art. 620º, 1, do CPC, constitui-se e produz efeitos «nos precisos limites e termos em que julga» (art. 621º CPC), o que implica a determinação exacta do âmbito objectivo e extensão do conteúdo da decisão a aferir como transitada.
II. A delimitação do conteúdo («limites e termos em que julga») da decisão processual implica que se faça uma adequada interpretação do seu âmbito, de acordo com a sua fundamentação.
III. A decisão processual como caso julgado apenas se constitui no âmbito endógeno do processo desde que – se assim forem identificados num nexo de conexão e instrumentalidade – não se verifique certa condição, o decurso de certo prazo ou a prática de determinado facto, se e na medida em que esses eventos negativos possam ser qualificados como verdadeiros pressupostos dos seus limites objectivos, de acordo com a 2.ª parte do art. 621º, 1, do CPC; se se verificarem, e enquanto se verificarem, a eficácia de caso julgado não se produz e nada obsta a que se decida novamente sobre o objecto da decisão proferida, uma vez que o poder jurisdicional não se encerrou.
IV. Se a condição se verificar supervenientemente, deixando de ser a decisão proferida imodificável dentro do processo, o art. 621º do CPC permite que o alcance do caso julgado dentro do processo caduque, perdendo a sua eficácia intraprocessual, e se possa proferir nova decisão diversa da proferida, afastando-se assim o art. 625º, 2, do CPC, na situação de caso julgado formal; logo, a partir dessa nova decisão, diversa da anteriormente proferida por força da verificação da condição que foi requisito negativo da decisão originária, não temos caso julgado formal anterior que possa ser oposto (e susceptível de ofensa) a essa decisão nova e às decisões subsequentes que nela radicam, pois é perante essa nova decisão, uma vez transitada, que se passa a exigir imodificabilidade nos termos dos art. 620º, 1, e 621º do CPC.
Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, 1.ª Secção
1. No âmbito do apenso de liquidação (“C”) relativa à insolvência de AA (arts. 156º e ss do CIRE), veio a declarada Insolvente apresentar requerimento (28 de Novembro de 2023):
“Tendo sido notificada para se pronunciar quanto à venda da sua casa de habitação, veio requerer que, ouvidos os credores, seja concedido um prazo de 30 dias para que seja apresentada uma proposta de cumprimento dos créditos efetivos e reclamados, o que consta de requerimento junto a estes autos em agosto último.
Até esta data, nenhum dos credores manifestou a sua oposição, mas não foi aberta conclusão para que o requerimento da insolvente pudesse ser apreciado.
Ora, não consta dos autos qualquer despacho na sequência da oportunidade concedida e aproveitada pela insolvente para se pronunciar, como doutamente ordenado. Não obstante, a insolvente foi surpreendida pela colocação em leilão eletrónico cujo conhecimento só ontem foi trazido aos autos pela Sra. Administradora de Insolvência e que está a decorrer.
Salvo o devido respeito, uma vez concedida, por despacho judicial transitado em julgado, a oportunidade da insolvente se pronunciar, não pode o leilão ser lançado sem que o Tribunal decida pela oportunidade solicitada ou pela realização imediata do leilão ou outra modalidade de venda. Isto é, existindo decisão transitada a conceder tal oportunidade, e ainda que seja para indeferir o pedido da insolvente, tem de haver pronúncia judicial, sob pena de violação do caso julgado formal, entretanto consumado. Portanto, o leilão em curso é extemporâneo por antecipação, podendo vir a merecer impugnação se prosseguir e vier a ser concretizada a venda.
Acontece, ainda, que credor e reclamante Montepio Geral cedeu o seu crédito, tendo informado a insolvente que ela nada deve àquela instituição bancária. O cessionário não se mostra habilitado. As negociações estão pendentes do preenchimento desse requisito de legitimidade para que possam chegar a bom termo, como melhor se exporá em requerimento que segue para o processo principal. É, todavia, certo que a dívida total está reduzida em mais de 80% por cento, se não for levado em conta o crédito admitido sob condição, que continua em dia. Ora, impor o sacrifício da perda da sua habitação e da sua família à insolvente, quando existem outras soluções suscetíveis de satisfazer os créditos ainda pendentes, constitui um ato injusto e violento, capaz de levar ao óbito, ainda por cima praticado sobre uma idosa de mais de 70 anos.
Como se escreveu no requerimento que aguarda decisão judicial, seria desumano proceder à venda judicial da casa de morada de família, para depois, caso o crédito viesse a ser pago, se concluir que já não há insolvência e entregar a uma pessoa desalojada, o produto da venda da própria casa.
Nestes termos, vem requerer a V.ª Ex.ª que ordene a imediata suspensão do leilão em curso, apreciando o requerimento pendente, concedendo o requerido prazo de 30 dias para que seja apresentada uma proposta de cumprimento dos créditos efetivos e reclamados.”
“(…) reitera o pedido de suspensão do leilão, o que parece a solução mais recomendada, obviando a discussões à volta da validade do mesmo que, seguramente, não beneficiarão nem a insolvente, nem os credores.
Nestes termos, vem insistir pela declaração imediata da suspensão do leilão, sob pena de se estarem a criar responsabilidades futuras.”
2. O Juiz... do Juízo de Comércio de ... proferiu despacho (4 de Dezembro de 2023), indeferindo o pedido de suspensão do leilão para venda de prédio, nos seguintes termos:
“(…)
29-11-2023, Requerimento da Devedora, que se “ordene a imediata suspensão do leilão em curso (…), concedendo o requerido prazo de 30 dias para que seja apresentada uma proposta de cumprimento dos créditos efetivos e reclamados”
Considerando, para além do mais, o disposto no artigo 8º do CIRE, inexiste fundamento legal para o requerido.
Pelo exposto, indefiro a suspensão.”
Depois, proferiu despacho em 22 de Fevereiro de 2024:
“30-11-2023, Requerimento da Devedora, “imediata suspensão do leilão” até ao trânsito em julgado do despacho de 19-9-2023, notificado em 29-11-2023
Renovo despacho anterior:
“Considerando, para além do mais, o disposto no artigo 8º do CIRE, inexiste fundamento legal para o requerido.
Pelo exposto, indefiro a suspensão.”
3. Inconformada, a Requerente interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa (26 de Dezembro de 2023) do despacho proferido em 4/12/2023, recurso admitido por despacho proferido em 3/6/2024, que, identificada a questão recursiva – “aferir se o despacho recorrido violou o disposto no art. 620.º do CPC (caso julgado formal) e no art. 437.º do CC (alteração das circunstâncias resultantes de alegada redução do passivo)” –, conduziu a ser proferida decisão sumária de improcedência da apelação e, após impugnação para a conferência, acórdão, em conferência (29/10/2024), julgando improcedente a Reclamação, confirmando-se a decisão sumária reclamada.
4. Novamente inconformada, a Requerente e Insolvente veio interpor recurso de revista para o STJ, fundando-se nos arts. 671º, 2, a), e 629º, 2, a), do CPC, visando a revogação do acórdão recorrido no segmento impugnado e a consequente alteração do despacho que indeferiu a requerida suspensão do leilão para venda, com prosseguimento dos autos, finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões:
“I. Viola o caso julgado formal constituído nos próprios autos por decisão transitada, ordenando a suspensão, em obediência a norma legal, ainda que temporária, o lançamento pelo administrador de insolvência de leilão eletrónico de bem imóvel cuja venda era objeto dessa suspensão.
II. Perante isso cumpre ao tribunal ordenar a suspensão da venda em leilão, inutilizando-o, bem como todos os seus efeitos, por extemporâneo, por antecipação.
III. O despacho que indefere esta pretensão deve ser revogado e substituído por outro que a defira.
IV. Os efeitos produzidos no próprio processo por despacho determinando a suspensão da venda cessam com o trânsito em julgado do despacho que ordena a cessação dessa suspensão, não produzindo, até lá, efeitos, designadamente não permitindo à Administradora de Insolvência a prática de atos ofensivos do determinado, como são a abertura e fecho de leilão eletrónico, tendo em vista concretizar a venda suspensa.
V. Mostram-se violados, além dos mais, os artigos 619.º, 620.º e 628.º do Código do Processo Civil.”
5. Nos autos principais, foi decretada a insolvência da Requerente por sentença proferida em 26/8/2020, fixando-se o valor da acção e da causa em € 30.000,00, transitado em julgado.
II) APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS
1. Admissibilidade e objecto do recurso
1.1. O despacho proferido em 1.ª instância, tendo por resultado o indeferimento da suspensão do leilão para venda, corresponde a decisão interlocutória com incidência na relação processual, que, uma vez reapreciada pela Relação, pode esta decisão de 2.º grau ser objecto de revista através do regime da revista “continuada” prevista no art. 671º, 2, do CPC.
Uma vez que estamos perante uma decisão proferida em incidente de liquidação processado em apenso (art. 170º do CIRE), tal decisão de 2.ª instância não é abrangida para a interposição de revista pelo regime atípico e restritivo do art. 14º, 1, do CIRE (cfr. AUJ do STJ n.º 13/2023, de 17/10/2023, publicado in DR 1.ª Série, de 21/11/2023), antes pelo regime ordinário da revista enquanto espécie recursiva (arts. 671º e 674º do CPC).
Assim sendo.
No caso, temos duas decisões conformes das instâncias, mas sem fundamentação coincidente, tendo em conta as questões recursivas da apelação, o que subtrai ao caso a aplicação do art. 671º, 3, do CPC.
Seja como for, sempre o art. 671º, 2, a), remete para as situações previstas nas alíneas do art. 629º, 2 («casos em que o recurso é sempre admissível»), em cuja al. a) se abrange a “ofensa de caso julgado”, formal ou material, sem dependência do valor que fosse de atribuir ou considerar atribuído ao incidente (v., para o efeito, o art. 307º do CPC).
1.2. O objecto do recurso incide sobre a apreciação de “ofensa de caso julgado” na relação da decisão interlocutória “velha” – o despacho proferido em 4/12/2023 – com anterior decisão proferida nos autos e alegadamente constitutiva de “caso julgado formal” para esse efeito – o despacho proferido em 28/6/2021 (descrito, infra).
A Recorrente alega que o primeiro despacho viola o caso julgado constituído pelo segundo despacho, razão pela qual é de admitir o recurso de revista, na exacta medida e tão-somente para conhecer e apreciar se o acórdão recorrido incorreu em tal vício de “ofensa de caso julgado”, tendo em conta a interpretação e aplicação ao caso dos arts. 620º, 1, e 621º do CPC.
2. Factualidade
Para além do que consta no Relatório, atendem-se como relevantes os factos tidos em conta no acórdão recorrido e resultantes dos autos (arts. 607º, 4, 663º, 2, 679º, CPC), a saber:
(i) Por requerimento de 10 de Março de 2021, a Administrador da Insolvência apresentou nos autos de liquidação “anúncio publicado para a venda dos bens apreendidos, na modalidade leilão electrónico” (verba 1 e verba 2 (prédio urbano de ..., “casa de habitação” da insolvente)) e de “encerramento do leilão electrónico” (em 4 de Março de 2021).
(ii) Foi proferido despacho em 28 de Junho de 2021, proferido no processo principal, depois de Requerimento da Insolvente de 3 de Março de 2021 a solicitar a “imediata suspensão das diligências de venda”, assim como do subsequente Requerimento de 9 de Abril de 2021 a solicitar “a suspensão das diligências de venda ao abrigo do disposto no art. 272º/1/CPC”, em que foi decidido:
“(…) com fundamento no artigo 6.º-E/8, da Lei nº 1 A/2020, de 19 de março, na atual redação, conferida pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, declaro a suspensão da prática dos atos de venda do prédio descrito sob o nº 849/19871202, na Conservatória do Registo Predial de ....
Notifique devedora, Sra. Administradora de Insolvência e Credores.
Abra conclusão uma vez cessado o regime processual excecional e transitório estabelecido pela Lei n° 1-A/2020, de 19 de março.”
Na sequência, foi proferido despacho no presente apenso em 28 de Junho de 2021:
“No principal, determinou-se a suspensão da venda do prédio sito em ....
Nada obsta à venda do prédio sito no ....
(…)
Notifique a Sra. Administradora da Insolvência.”
(iii) Em 20 de Março de 2022, foi proferido despacho:
“No principal, foi proferida decisão, transitada: “com fundamento no artigo 6.º-E/8, da Lei n° 1 A/2020, de 19 de março, na atual redação, conferida pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, declaro a suspensão da prática dos atos de venda do prédio descrito sob o nº 849/19871202, na Conservatória do Registo Predial de ....
Notifique devedora, Sra. Administradora de Insolvência e Credores.
Abra conclusão uma vez cessado o regime processual excecional e transitório estabelecido pela Lei n° 1-A/2020, de 19 de março.”
Notifique a Sra. Administradora da Insolvência.”
(iv) Suscitando-se a questão por requerimento da Administradora da Insolvência, solicitando “autorização para colocar à venda o imóvel apreendido para a massa insolvente, uma vez que se encontra levantado o estado de emergência derivado do covid”, foi proferido despacho em 7 de Julho de 2022:
“A decisão em causa fundou-se em norma não revogada, o artigo 6.º-E/8, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.
Pelo exposto, indefiro o requerido.”
Perante novo requerimento da Administradora da Insolvência, foi proferido despacho em 13 de Fevereiro de 2023:
“(…)
Considerando o disposto no artigo 9º/1, do Código Civil, renovo o despacho anterior.”
(v) Em 10 de Julho de 2023, foi proferido despacho em que, invocando-se que o art. 2º, a), da Lei 31/2023, de 4 de Julho, revogou o art. 6.ºE/8 da Lei 1-A/20020, e que o respectivo art. 4º estabelece que a revogação da norma produz efeitos 30 dias após a publicação da Lei, ou seja, 4 de Agosto de 2023, se ordenou, nos termos e para os efeitos previstos no art. 3º, 3, do CPC, a notificação da devedora insolvente para se pronunciar sobre a cessação da suspensão da venda a partir de 4 de Agosto de 2023.
A insolvente apresentou resposta por requerimento de 31 de agosto de 2023, solicitando a concessão de prazo de 30 dias para que seja apresentada uma proposta de cumprimento dos créditos efectivos e reclamados.
Na sequência, foi proferido em 19 de Setembro de 2023, declarando cessada a suspensão da venda, nos seguintes termos:
O artigo 2.º, al. a), da Lei n.º 31/2023, de 4 de julho, revogou o artigo 6.º-E/8, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março:
“Artigo 6.º-E
Regime processual excecional e transitório
(…)
8 - Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária.”.
O artigo 4.º estabelece que a revogação da norma produz efeitos 30 dias após a publicação da Lei, ou seja, em 04-08-2023.
Destarte:
Declaro a cessação da suspensão da venda do prédio descrito sob o n.º 849/19871202, na Conservatória do Registo Predial de ..., sem prejuízo do regime geral constante, designadamente, do disposto no artigo 756.º do Código de Processo Civil.
Notifique Devedora e o(a) Sr.(ª) Administrador(a) da Insolvência.”
Foi cumprida a notificação da devedora insolvente e da Administradora da Insolvência em 29 de Novembro de 2023.
(vi) Em 26 de Outubro de 2023, a Administradora da Insolvência veio aos autos apresentar requerimento com Informação sobre as “diligências de venda em curso relativamente aos bens apreendidos para a massa insolvente” através de leilão electrónico.
(vii) Em 7 de Dezembro de 2023, a Administradora da Insolvência veio aos autos apresentar requerimento com Informação nos seguintes termos:
“O leilão referido no requerimento da devedora já terminou, tendo proveitosamente suscitado uma proposta no valor de € 196.863,35 €, conforme ata de encerramento de Leilão que se junta.
A Administradora Judicial informa que o valor mínimo estabelecido no leilão eletrónico foi de 109.760,02 €.
Aguardam-se as necessárias diligências para se poder então efetuar a escritura de transmissão do imóvel.”
3. Fundamentação de direito
3.1. O art. 620º, 1, do CPC estatui:
«As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.»
Este caso julgado formal, relativo a decisões relativas a questões ou matérias que não são de mérito, tem como corolários fundamentais:
(i) as sentenças, acórdãos e despachos transitados têm força obrigatória de tal forma que são imodificáveis no interior do processo em que são proferidos e é inadmissível (ineficaz: art. 625º, 2, CPC) decisão posterior e/ou decisão contrária ou desrespeitadora sobre a mesma questão ou matéria sobre o qual incidiram (extinção do poder jurisdicional: art. 613º CPC);
(ii) o caso julgado constitui-se e produz efeitos «nos precisos limites e termos em que julga» (art. 621º CPC), o que implica a determinação exacta do âmbito objectivo e extensão do conteúdo da decisão a aferir como transitada.1
Assim sendo, a “ofensa de caso julgado”, como vício na modalidade de caso julgado “formal”, implicaria em termos recursivos a invocação de decisão ou decisões transitadas em julgado que contendam e/ou se sobreponham ao conteúdo e efeitos da decisão que alegadamente desrespeita a questão anteriormente decidida.
Por outro lado, a decisão processual como caso julgado apenas se constitui no âmbito endógeno do processo desde que – se assim forem identificados num nexo de conexão e instrumentalidade – não se verifique certa condição, o decurso de certo prazo ou a prática de determinado facto, se e na medida em que esses eventos negativos possam ser qualificados como verdadeiros pressupostos dos seus limites objectivos, de acordo com a 2.ª parte do art. 621º, 1, do CPC; se se verificarem, e enquanto se verificarem, a eficácia de caso julgado não se produz e nada obsta a que se decida novamente sobre o objecto da decisão proferida, uma vez que o poder jurisdicional não se encerrou2.
3.2. Sobre a questão recursiva, o acórdão recorrido fundamentou como se transcreve:
“Em resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, foi produzida uma panóplia de legislação no nosso ordenamento jurídico, de que se destaca o normativo convocado na decisão proferida no âmbito do processo principal, em 28/06/2021, igualmente confirmada nessa mesma data neste apenso de liquidação: isto é, o art. 6º-E/8, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação, conferida pela Lei n° 13-B/2021, de 5 de abril.
Rezava tal preceito legal que «1 – No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo. (…) 8- Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária. (...)”
Independentemente da bondade da aplicação de tal normativo à situação dos autos, que não está em discussão nesta sede recursiva, certo é que tal normativo foi revogado pelo art. 2., al. a), da Lei n.º 31/2023, de 4 de julho.
E foi então que, nesse enquadramento, por despacho proferido em 19/09/2023, o tribunal recorrido, e bem, declarou a cessação da suspensão da venda do prédio descrito sob o n.º 849/19871202, na Conservatória do Registo Predial de ..., sem prejuízo do regime geral constante, designadamente, do disposto no art. 756.º do Código de Processo Civil.
Tal despacho foi antecedido da notificação da devedora insolvente para se pronunciar sobre a cessação da suspensão da venda, em face do disposto no n.º 3 do art. 3.º do CPC, tendo a insolvente, em requerimento de 31/08/2023, requerido um prazo de 30 dias para que fosse apresentada uma proposta de cumprimento dos créditos efetivos e reclamados, alegando que se mostrava pago mais de 80% do montante objeto [de] reclamação de créditos, o que reiterou nos requerimentos de 29/11/2013 e de 30/11/2023, onde então pediu fosse suspenso o leilão em curso.
Ora, cessada a suspensão da venda, por despacho de 19/09/2023, notificado à recorrente em 29/11/2023, e indeferido o pedido de imediata suspensão do leilão em curso com a concessão do requerido prazo de 30 dias, de nenhuma patologia padece o despacho recorrido.
Ali se consignou, e bem, que considerando o disposto no art. 8.º do CIRE, inexistia fundamento legal para o requerido, razão pela qual foi indeferida a solicitada suspensão. E a prolação de tal despacho, que aprecia o pedido da recorrente, declarada que estava já cessada a suspensão da venda, não viola qualquer caso julgado formal tal como o mesmo se encontra definido pela nossa lei adjetiva, ou seja, como a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão decorrente do seu trânsito em julgado (artigo 628.º do CPC).
Declarada cessada a suspensão da instância, decorrente do despacho de 28/06/2021, por despacho de 19/09/2023, não fere o caso julgado formado com o primeiro despacho o afirmado no despacho recorrido que nega a pretensão da recorrente de ver suspensa a venda.
Com efeito, diz o aludido art. 620.º do CPC legal que «1 – As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo. 2 – Excluem-se do disposto no número anterior os despachos previstos no artigo 630.º».
Ora, como vimos, o despacho recorrido, proferido em 04/12/2023 (que se limitou a indeferir o pedido de suspensão do leilão em curso) não violou qualquer decisão anterior proferida pelo tribunal (pois que, em momento posterior ao despacho de 28/06/2021, foi proferido o despacho de 10/07/2023 e o de 19/09/2023). Ou seja, aquando do despacho recorrido, já tinha sido proferido um anterior, a declarar cessada a suspensão da instância, declarada pelo despacho de 28/06/2021.
Por conseguinte, o lançamento do leilão eletrónico, ainda que iniciado sem que o despacho da decisão da cessação da suspensão tivesse transitado em julgado, não inquina o despacho recorrido nos termos pretendidos pela recorrente no sentido de violar o invocado caso julgado formal.”
[Sublinhados nossos.]
3.3. No contexto da tramitação, o despacho que foi objecto de recurso – indeferimento de suspensão do acto de lançamento de leilão para venda do prédio (art. 164º, 1, CIRE), anunciado pela AI em 26/10/2023 – já não se encontrava condicionado no seu objecto e conteúdo pelo despacho de suspensão da venda do prédio, proferido em 28/6/2021; antes se encontrava legitimado em termos cognitivos e decisórios pelo despacho de cessação da anterior decisão de suspensão da venda, proferido em 19/9/2023, o que fez com que deixasse de estar subsistente no processo a decisão sobre a suspensão da venda que pudesse ser obstáculo às decisões subsequentes, incluindo a venda a cargo do administrador da insolvência.
Logo, a decisão de indeferimento de suspensão da venda, aqui escrutinada, é proferida num arco da tramitação endoprocessual em que não já tem força obrigatória no processo a decisão de 28/6/2021, uma vez que a eficácia desta decisão se tinha esgotado com a prolação do despacho de 19/9/2023, proporcionando eficácia aos demais actos processuais que tiveram como pressuposto a cessação da suspensão de venda e precludindo a ofensa de decisão, que, não obstante ter transitado, cessou os seus efeitos por força de decisão subsequente sobre o mesmo objecto: decisão sobre a venda do prédio apreendido para a massa insolvente e em liquidação.
E por que razão se deve entender que a eficácia de tal decisão de 2021 se esgotara – assim como da decisão de 20/3/2022, tão-só confirmativa –, sendo modificável, motivando que fosse proferida decisão posterior (legítima) sobre a mesma questão?
A delimitação do conteúdo («limites e termos em que julga»: art. 621º) da decisão processual implica que se faça uma adequada interpretação do seu âmbito, de acordo com a sua fundamentação3.
Assim sendo.
Em rigor, a decisão de 28/6/2021 foi baseada em não estar verificada a condição de superação ou de ultrapassagem da «situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19», de acordo com o regime legal transitório da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março», que instituiu então «medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemológica» (v. o respectivo art. 8º, 1). Uma vez preenchida essa condição – a superação da referida situação excepcional causada pela pandemia e suas consequências –, plasmada normativamente na revogação do art. 6.º-E/8 da Lei 1-A/2020 pelo art. 2º, a), da Lei 31/2023 (destinado à «cessação de vigência de leis publicadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, em razão de caducidade, de revogação tácita anterior ou de revogação pela presente lei)», o art. 621º do CPC permite que o alcance do caso julgado dentro do processo caduque e se possa proferir nova decisão diversa da proferida – afastando-se assim o art. 625º, 2, do CPC – para a situação prevista no caso julgado formal.
Com efeito, não foi por acaso que o juiz decisor no processo, desde logo, ordenou, tanto no despacho proferido em 28/6/2021 no processo principal, como no despacho proferido em 20/3/2022 no apenso de liquidação, que se abrisse conclusão “uma vez cessado o regime processual excecional e transitório estabelecido pela Lei nº 1-A/2020, de 19 de março” – ou seja, logo que verificada a condição que não estava preenchida aquando dos despachos proferidos sobre a referida suspensão do acto inerente à liquidação insolvencial.
Logo, a partir dessa nova decisão, diversa da anteriormente proferida por força da verificação da condição que foi requisito negativo da decisão originária, não temos caso julgado formal anterior que possa ser oposto (e susceptível de ofensa) a essa decisão nova e às decisões subsequentes que nela radicam, uma vez que o conteúdo decisório antes mobilizado voltou a estar na disponibilidade decisória do juiz e com novo fundamento4.
Sendo legítima a nova decisão, a única forma de evitar que, caducada a eficácia da anterior, se estabilizem os seus efeitos no processo, é a impugnação; a ter sucesso, esta impugnação erradicaria do processo os actos emergentes dessa decisão.
Em suma:
(i) perante a decisão proferida em 19/9/2023 (cessação da suspensão da venda), uma vez transitada, é perante esta que se passa a exigir imodificabilidade nos termos dos art. 620º, 1, e 621º do CPC, fazendo esgotar por sucessão aquando da sua prolação a imodificabilidade da decisão proferida em 28/6/2021 (suspensão da venda por aplicação de regime excepcional e transitório);
(ii) não pode a Recorrente invocar ofensa do caso julgado formal constituído pela decisão de 28/6/2021, quando o caso julgado perdera a sua eficácia intraprocessual em 19/9/2023;
(iii) perante a decisão de 19/9/2023 – cessação da suspensão da venda –, a insolvente interessada e inconformada teria que impugnar esta decisão, uma vez notificada em 29/11/2023 – o que não fez –, antes optando por impugnar a decisão (com objecto mais circunscrito) de indeferimento da suspensão do leilão destinado a obter propostas de compra – que aqui se discute –, permitindo que, por aplicação do art. 628º do CPC, tal decisão de 19/9/2023 tivesse já transitado em julgado no momento da interposição do recurso de apelação (arts. 638º, 1, CPC, 9º, 1, CIRE).
3.4. Daí que, neste contexto processual, se afigure inútil agora (art. 130º CPC) discutir a sorte da decisão de 4/12/2023, que não pode almejar ser invertida em face do caso julgado formal constituído e eficaz sobre a cessação da suspensão da venda, sob pena de violação do princípio da proibição de duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão (aqui vista em sentido amplo para o procedimento liquidatório de alienação do prédio urbano em causa) que se vislumbra no art. 625º do CPC.
Não há, pois, razões para sufragar a pretensão da Recorrente, antes aderir aos fundamentos do acórdão recorrido, nos termos do habilitado pelo art. 663º, 5, ex vi art. 679º, do CPC, ainda que com argumentação adicional.
III) DECISÃO
Em conformidade, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pela Recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
STJ/Lisboa, 13 de Fevereiro de 2025
Ricardo Costa (Relator)
Maria Teresa Albuquerque
Luís Correia Mendonça
SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)
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2. Sobre a aplicação da doutrina do art. 621º ao caso julgado formal, v., favoráveis e exemplificativos, JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 621º”, ob. cit., pág. 757 (em relação com a pág. 755: “visando a obtenção duma decisão diversa da proferida, quando a condição se verifique, o prazo esteja decorrido ou o facto seja praticado”).↩︎
3. Convergente: Ac. do STJ de 29/10/2024, processo n.º 69/24, Rel. NUNO PINTO OLIVEIRA, in www.dgsi.pt.↩︎
4. Neste sentido, v., para uma hipótese de encadeamento processual com similitude, o Ac. do STJ de 17/10/2023, cit. a nt. (1).↩︎