DESPACHO DE PRONÚNCIA
INDÍCIOS SUFICIENTES
Sumário

I - Na fase da instrução, como na do inquérito, não se exige uma prova plena sobre os factos, antes norteando tais fases processuais um critério meramente indiciário, ainda que de exigência de suficiência indiciária, devendo, para poder/dever ser proferida acusação ou decisão instrutória de pronúncia, ser recolhidos indícios suficientes da prática de ilícito criminal.
II - Para uma decisão de pronúncia, a lei não exige a certeza da existência do crime, bastando-se com a mera existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, ainda que os mesmos devam ser suficientes, no sentido de, em julgamento - momento maior do processo penal -, eles se puderem transformar em prova fora de qualquer dúvida razoável, assim levando a uma condenação.
III - No âmbito de um despacho de pronúncia ou de não pronúncia apenas se deve apurar da referida suficiência de indícios, o mesmo é dizer, longe ainda da prova fora de qualquer dúvida razoável exigida em sede de julgamento.
IV - Na situação sub judice, assentando a prova nas declarações da menor ofendida e confirmando esta, por inteiro, a factualidade que é imputada ao arguido na acusação, não se vê razão para não pronunciar o arguido.

Texto Integral



ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


1. RELATÓRIO

A – Decisão Recorrida

No processo nº 429/22.3GBMFR, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Instrução Criminal de Setúbal, Juiz 1, o MP proferiu acusação pública contra o arguido A, imputando-lhe a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p., pelos Artsº 143 nº1 e 145 nsº1 al. a) e 2, por referência ao Artº 132 nº1 al. a), todos do C. Penal, pelos seguintes factos (transcrição):

1. A é pai de J, nascida a 17 de maio de 2012, atualmente com 10 (dez) anos de idade.
2. No processo de Regulação das Responsabilidades Parentais com o NUIPC 777/21.0T8MFR foi estipulada a guarda partilhada.
3. No dia 8 de julho de 2022, em hora não concretamente apurada, na casa da avó paterna, sita na Rua (……), o arguido A dirigiu-se à Menor J e, porque ela não quis cumprimentar a sua atual companheira, muniu-se de um cinto com o intuito de desferir uma pancada no corpo da Menor, tendo sido dissuadido pela avó paterna.
4. Após, o arguido A, munindo-se com uma raquete de madeira, dirigiu-se à Menor J e desferiu-lhe uma pancada no fundo das costas, o que causou a quebra do referido objeto.
5. No seguimento da conduta do arguido, a Menor sentiu dores, mas não recebeu tratamento hospitalar.
6. Com a prática das condutas descritas, deu causa o arguido a que a sua filha J se sentisse com medo, estado de ansiedade e tristeza.
7. Sabia o arguido que a vítima era sua filha, ainda menor de idade e que atuava em completo desrespeito daquela e da relação familiar que os une.
8. Mais sabia que tinha o dever de respeitar a sua filha, aqui ofendida, pessoa particularmente indefesa em razão da idade e da sua dependência económica em relação ao arguido.
9. O arguido atuou com o propósito alcançado de atingir e lesar o corpo e saúde física da sua filha e, dessa forma, lhe provocar maus-tratos físicos, sabendo que assim lhe causaria dores e lesões.
10. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

Requerida a realização da instrução por parte do arguido, veio a ser proferida a seguinte decisão instrutória (transcrição):

Veio o arguido A, notificado da acusação publica contra si deduzida a fls. 319 a 321, e com ela não conformado, requerer a abertura de instrução suscitando, no essencial, a ilegitimidade de queixa da mãe da menor bem como do Ministério Público para procedimento criminal, nulidade do procedimento criminal, do inquérito e acusação, a incompetência do Juiz de Instrução Criminal para os atos realizados e, finalmente, a inexistência de indícios suficientes dos atos imputados ao arguido que justifica nos termos legais à acusação deduzida.
Não foi requerida a realização de qualquer ato de instrução nem o tribunal a teve como necessária.
Realizou-se debate instrutório.
Cumpre apreciar.
A legitimidade da queixa do Ministério Público para procedimento criminal é determinada pela factualidade tida como indiciada e constante da acusação. Neste contexto, atenta a natureza do crime publico imputado ao arguido, não se vislumbra qualquer ilegitimidade. Da mesma forma não se vislumbra qualquer factualidade ou procedimento suscetível de consubstanciar a invocada nulidade do procedimento criminal de inquérito e acusação. No que respeita à alegada incompetência do Juiz de Instrução Criminal, e como bem aferiu o Ministério Público, é a competência aferida no momento da concretização do respetivo ato e não no da queixa ou em qualquer outro. Neste contexto, tem-se não assistir razão processual ao arguido nas ilegitimidades, nulidades e competências suscitadas e indefere-se, nessa parte, o requerido.
Contudo, já se entende assistir razão ao arguido quando invoca inexistirem indícios suficientes da prática dos factos que lhe são imputados: com efeito, assenta a prova elencada na acusação pública nas declarações para memória futura e daquelas não resulta inequívoco circunstancialismo que extravase uma reprimenda parental. Poder-se-á não concordar que bater com uma raqueta constitua a melhor forma de o exercer, mas na realidade é a concreta forma como a mesma ocorre que pode suscitar uma censurabilidade com dignidade criminal. Ora a ausência de qualquer dor por parte da menor suscita precisamente a ausência daquela censurabilidade – a única que, nesta sede, importa. Como foi referido neste debate instrutório, são muitas e respeitáveis as sensibilidades sobre os atos adequados ou admissíveis na educação de um menor; mas a censura criminal deve abster-se dessa discussão e cingir-se aos comportamentos comumente e inequivocamente censuráveis pela generalidade da comunidade. Não se vislumbra terem eles ocorrido in casu. Desferir uma pancada no fundo das costas com uma raquete pode consubstanciar um comportamento muitíssimo censurável ou uma mera tolice, dependendo de pormenores e detalhes que não se vislumbram nos elementos probatórios angariados.
Assim, tem-se como suficiente indiciada a factualidade constante dos pontos 1, 2 e 3, 4 até à parte que menciona “fundo das costas” - e nada mais. Assim, e sem outra prova, e por ausência de indícios suficientes da prática de factos com relevância criminal, se determina o arquivamento dos autos.
Sem custas.

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o MP, concluindo as suas motivações da seguinte forma (transcrição):

1. Por douta decisão instrutória exarada a fls. 437/437 v.º dos autos supra epigrafados, entendeu o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, «sem outra prova, e por ausência de indícios suficientes da prática de factos com relevância criminal», determinar, a final, o arquivamento dos mesmos autos, não pronunciando o arguido A pela prática, nos termos constantes da acusação pública de fls. 319-321, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos art.ºs 143.º, n.º 1, e 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, por referência ao art.º 132.º, n.º 2 [e não n.º 1, conforme, por lapso, foi mencionado naquele libelo], al. a), todos do Código Penal;
2. Estará aqui em causa, no que ora mais interessa no que tange à douta decisão instrutória recorrida, aquilatar da suficiência dos indícios da prática, por parte do referido arguido A, dos factos ao mesmo imputados no libelo acusatório exarado a fls. 319-321 dos autos supra epigrafados, consubstanciadores do supra aludido crime de ofensa à integridade física qualificada, relativamente ao qual devesse tal sujeito processual ter sido, em conformidade, pronunciado;
3. Deve, para tanto, atentar-se, com particular interesse, no constante dos seguintes elementos probatórios, acima exaustivamente explicitados: Auto de Notícia (Violência Doméstica) de fls. 3-4 v.º (e 13-14 v.º e 76-77 v.º), Informação de fls. 5/5 v.º (e 20/20 v.º, 30/30 v.º e 83/83 v.º), Auto de Interrogatório de Arguido de fls. 50 v.º-52 (e 128-131) (A), Autos de Inquirição de Testemunha de fls. 89-92 (M), 97-98 (e 105-106 e 107-108) (I) e 99-100 (e 110-111 e 112-113) (C), Auto de Declarações para Memória Futura de fls. 305/305 v.º (e suporte físico a fls. 306) (J) e Documento n.º 1 junto a fls. 354-360 (e 383-389) conjuntamente com o requerimento instrutório;
4. Deduzida a supra referida acusação e, mais tarde, tendo tido lugar (em sede de instrução) relativamente à factualidade daquela constante o competente debate instrutório, veio a ser proferida a douta decisão instrutória ora recorrida (de não pronúncia), sendo que merecem-nos censura a valoração dos elementos probatórios carreados para os autos efectuada pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal e, consequentemente, o sentido da mesma decisão então prolatada;
5. Antes de mais, cumpre explicitar acompanharmos o entendimento subjacente à decisão de dar como suficientemente indiciado que ocorreu, efectivamente, o episódio de agressão relatado pela menor J (até «desferiu-lhe uma pancada no fundo das costas»), sendo por demais inverosímil que, privilegiando esta, ostensivamente, o relacionamento com o seu pai, em detrimento da mãe, pudesse a mesma in casu ter mentido, logo incriminando, precisamente, o seu progenitor “favorito” (note-se que a referida menor prestou declarações para memória futura quando já residia com o arguido e que foi este a pessoa notificada para providenciar pela comparência da filha, conforme fls. 292 e 302, bem assim que tais declarações foram prestadas semanas depois da acima referenciada alteração da regulação das responsabilidades parentais, sendo então, aquando da dita alteração, já sobejamente conhecido que aquela «manifesta[va] vontade de estar sempre com o pai», «[r]evela[ndo] ainda que não t[inha] vontade de ver ou estar com a mãe»);
6. Não faz, assim, qualquer sentido alegar, nos moldes explicitados pelo arguido, que a mencionada J mentiu, inventando o dito episódio e aceitando, desse modo, ser «instrumentalizada pela mãe», a qual, aliás, esclareceu que apenas teve conhecimento dos aludidos factos através da sua filha e nada disse então que esta última não tenha vindo a confirmar inequivocamente em momento posterior;
7. Discordamos já, porém, do entendimento subjacente à decisão de não dar como suficientemente indiciados os restantes factos narrados no libelo acusatório, a saber, que a supra descrita agressão «causou a quebra do referido objeto», que «a Menor sentiu dores» e a demais factualidade aí constante, mormente, aquela explicitadora/fundamentadora da especial censurabilidade da conduta do arguido – segundo se retira da douta decisão instrutória, faz o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal ancorar o seu entendimento no suposto facto de se verificar «a ausência de qualquer dor por parte da menor», que «suscita precisamente a ausência daquela censurabilidade», sendo, todavia, certo que não só inexistem quaisquer razões para que não seja de ter como credível a totalidade do depoimento prestado pela ofendida J (isso incluindo a declaração alusiva à quebra da supra aludida raquete de madeira aquando da agressão perpetrada) como também não é verdade que aquela tenha referido tal «ausência de qualquer dor»;
8. Diversamente do sustentado pelo arguido de que a menor ofendida declarou que a acção daquele não a magoou, como consta do requerimento instrutório, não lhe causou dor, conforme repetido, até à exaustão, em sede de debate instrutório, o que depois acabamos por ver o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal seguir, a primeira nada disse relativamente à questão de ter ou não sentido dores, sendo desde logo certo que isso não lhe foi sequer perguntado, segundo entendemos porquanto foi tido, em face do relato da mesma J, como in totum despido de necessidade/sentido, ante a evidência da resposta, questionar “doeu?”/“doeu-te?” (em causa está uma agressão com uma raquete de madeira que foi então partida no corpo daquela menor, a qual, decerto, passe a ironia, não envergava uma armadura em ferro que tornasse possível nada sentir, com relevância médico-legal ou jurídico-penal) – sem prejuízo do ora acabado de exarar não se argui, nesta parte, a verificação de qualquer «[e]rro notório na apreciação da prova» previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, consabido que é que «[o] vício de erro notório na apreciação da prova, bem como os demais enunciados no nº 2, do artigo 410º, do CPP, são vícios relativos à sentença, não tendo aplicação à decisão instrutória a que se reporta o artigo 307º, do mesmo Código», conforme, a título meramente exemplificativo, é, nesse sentido, referido no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03.04.2019, Proc.º n.º 3106/18.6T9LSB.L1-9, Relatora: Filipa Costa Lourenço, acessível in www.dgsi.pt/;
9. O que sucede, antes, é que tendo sido perguntado à menor ofendida se «ficou marcado?» a mesma respondeu «acho que não»; para além da dúvida/incerteza subjacente à resposta dada (nem “acho que não” nem “acho que sim” seriam conclusivos), o que se aceita por estar em causa uma específica zona do corpo de difícil visualização (o fundo das costas), trata-se de uma questão bem diversa da(s) aqui controvertida(s) dor(es), muito embora se admita poderem ter inexistido marcas notórias que perdurassem no tempo em resultado da actuação do arguido, o que facilmente poderia em abstracto justificar qualquer eventual desvalorização dos factos por parte da dita ofendida (a menor não teria ficado marcada com alguma severidade, conseguiu não sofrer por acção de terceiro quaisquer agressões “à força” de cinto e ainda “ganhou” um telemóvel idêntico ao anterior, só que novo);
10. Entendemos que deverá ser especialmente valorada toda a intencionalidade subjacente à conduta levada a cabo pelo arguido, não olhando apenas à «gravidade das suas consequências», o que, como se sabe, releva para efeitos de determinação da medida da pena, nos termos previstos no art.º 71.º, n.º 2, al. a), do Código Penal. É que o bater com um instrumento contundente em alguém, criança ou não, poderá ter em concreto consequências bem dispares em função de motivos algo fortuitos, como o facto de não acertar o agente onde queria ou o ofendido se desviar ou pelo menos evitar a pancada na zona visada, tal podendo ser a diferença entre mãos ou glúteos ruborizados e fracturas ósseas;
11. In casu, temos toda uma explosão de agressividade por parte do arguido (injustificável mesmo em face do aludido não cumprimento à madrasta), que começa por destruir o telefone da menor, partindo depois para a agressão, pretendendo inicialmente fazê-lo “à força” de cinto, no que foi parado pela respectiva mãe, que terá achado tal acção não concebível, por absolutamente desproporcional e desmesurada ser, e, depois, porquanto não se contém sem bater na menor J, para tanto utilizando uma raquete de madeira que parte no corpo daquela, sua filha – tudo sopesado, concluímos no sentido da suficiente indiciação da supra narrada factualidade constante do libelo acusatório e que explicita/fundamenta a especial censurabilidade da conduta ora em apreço, mormente, do facto de «[s]ab[er] o arguido que a vítima era sua filha, ainda menor de idade e que atuava em completo desrespeito daquela e da relação familiar que os une» e «[m]ais sab[er] que tinha o dever de respeitar a sua filha, aqui ofendida, pessoa particularmente indefesa em razão da idade e da sua dependência económica em relação ao arguido», sendo precisamente semelhante exigência acrescida de respeito que deve existir entre ascendente e vítima o pressuposto subjacente à aqui controvertida qualificativa;
12. Repudiamos, pois, em absoluto, a asserção de que «[d]esferir uma pancada no fundo das costas com uma raquete pode consubstanciar um comportamento muitíssimo censurável ou uma mera tolice», sendo que não se concebe semelhante conduta à laia da dita «mera tolice», como se se dissesse que quem assim age é tolo ou tonto, não sabe bem o que faz e, como tal, o seu comportamento é compreendido e aceite pela comunidade, bem assim irrelevante em termos de censura penal, tal como aqueloutra afirmação, como a anteriormente referida também constante da douta decisão instrutória, de que os factos aqui controvertidos admitem enquadramento numa mera «reprimenda parental», sem qualquer efectivo «extravas[ar]» de semelhante cenário;
13. Relativamente a semelhante questão referenciada pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, importa ter em conta que, como se refere, a título meramente exemplificativo, no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.10.2016, Proc.º n.º 413/15.3PFAMD.L1-3, Relatora: Ana Paramés, e no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24.01.2017, Proc.º n.º 710/14.5PBSTR.E1, Relator: João Amaro, ambos esses arestos também acessíveis in www.dgsi.pt/, respectivamente, «[o] poder de correção dos pais e educadores não abrange a aplicação de castigos corporais, inexistindo qualquer disposição legal donde se possa retirar tal conclusão» e «[é] evidente que o castigo físico das crianças (ou dos adolescentes), infligido pelos seus progenitores, é punido criminalmente - o poder de correção dos pais não abrange a aplicação de castigos corporais» – sendo que desenvolve aquele primeiro acórdão que «é indiscutível que, mesmo para as teses que admitem o uso de “palmada” como incluído no poder-dever de educação, só justificam esse uso de “a mão aberta” quando se tratar de um acto complementar à educação por palavras, não permitindo, em nenhum caso, o uso de instrumentos como o cinto, o chicote, o pau que extrapolam o sentido de correcção educativa» e «[e]m Portugal o castigo físico das crianças é ilegal desde 2007, sendo punido pelo Código Penal pelo crime de violência doméstica (art.152º do C.P.) de maus tratos (art.152º -A do C.P.) e de Ofensa à integridade física.» [sublinhados nossos];
14. Sem conceder, podendo persistir alguma dúvida sobre se a actuação do arguido A reveste ou não aquela especial censurabilidade ou perversidade geradora de uma culpa agravada, de que a circunstância prevista no art.º 132.º, n.º 2, al. a), do Código Penal constitui mero exemplo-padrão, na hipótese de ser entendido não se justificar in casu semelhante agravação do comportamento delitivo do mesmo sujeito processual, sempre se estaria, inquestionavelmente, perante a comissão de um crime de ofensa à integridade física, ainda que tal realidade se mostrasse meramente contemplada no tipo base (simples ou fundamental) previsto no art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal;
15. Não perdendo de vista que o arguido A suscitou no seu requerimento de abertura de instrução, entre outras, a questão da ilegitimidade da denunciante para apresentar queixa e consequente ilegitimidade do Ministério Público para promover a acção penal, tendo, todavia, descurado que o crime de ofensa à integridade física qualificada reveste natureza procedimental pública e não semi-pública (sendo que viu improcederem todas as questões que então suscitou), no caso de ter apenas sido praticado um crime previsto e punido pelo acima referenciado art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal estar-se-ia, aí sim, perante ilícito criminal cujo «procedimento criminal depende de queixa», como estatui a 1.ª parte do n.º 2 do mesmo artigo;
16. Retomando aqui tal questão, ainda que sem a exaustividade com que a tratámos em sede de debate instrutório, cumpre consignar inexistir qualquer situação de ilegitimidade, sendo cristalino que a denunciante M podia então queixar-se, tal tendo sucedido, pois que consta do Auto de Notícia (Violência Doméstica) de fls. 3-4 v.º (e 13-14 v.º e 76-77 v.º), elaborado em 11.07.2022, que aquela «deseja procedimento criminal contra o(a) denunciado(a) – Sim» e do respectivo Auto de Inquirição de Testemunha de fls. 89-92, datado de 27.07.2022, que a mesma denunciante «mantém o desejo de procedimento criminal contra o denunciado» – conforme, no sentido ora sufragado, e a título meramente exemplificativo, é mencionado no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17.09.2014, Proc.º n.º 92/13.2TAVZL.C1, Relator: Jorge Dias, igualmente acessível in www.dgsi.pt/;
17. Ora, sendo certo que o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal terá afastado a suficiente indiciação de factualidade que o tivesse levado, a final, a proferir decisão instrutória de pronúncia, enfatizando, designadamente, que é a forma como a agressão ocorre que «pode suscitar uma censurabilidade com dignidade criminal», bem assim «a ausência daquela censurabilidade» em função da «ausência de qualquer dor por parte da menor» e a falta de elementos probatórios sobre pormenores e detalhes que dirimissem a questão de se estar perante «um comportamento muitíssimo censurável ou uma mera tolice», sempre deveria ter tido lugar um melhor esclarecimento relativamente às razões pelas quais foi considerado não relevar a conduta do arguido A penalmente, sendo, por demais, parca a muito singela referência à «reprimenda parental» ou à «educação de um menor», sucedendo que entendemos, em face de todo o explanado supra, que a não ter sido praticado o crime imputado na acusação, precisamente em razão de poder faltar a já aludida «especial censurabilidade ou perversidade geradora de uma culpa agravada», sempre teria sido cometido um crime de ofensa à integridade física simples;
18. Na fase da instrução, como na do inquérito, não se cura de uma prova plena sobre os factos, antes norteando tais fases processuais um critério meramente indiciário, ainda que de exigência de suficiência indiciária, devendo, para poder/dever ser proferida acusação ou decisão instrutória de pronúncia, ser recolhidos indícios suficientes da prática de ilícito criminal, sucedendo que entendemos que, in casu, uma vez cotejados os autos e sopesados todos os elementos probatórios neles recolhidos, com reporte às fases do inquérito e da instrução, indiciarão suficientemente os mesmos autos a prática por parte do arguido A do supra referenciado crime de ofensa à integridade física qualificada;
19. De facto, verificar-se-á uma possibilidade (claramente) razoável de, em julgamento, vir o referido arguido A a ser condenado pela prática de tal ilícito criminal, impondo-se, pois, consequentemente, a prolação, quanto ao mesmo sujeito processual, de despacho de pronúncia, sendo que, conforme, de modo lapidar, se refere no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.11.2022, Proc.º n.º 5670/16.5T9PRT.P1, Relatora: Maria Joana Grácio, ainda acessível in www.dgsi.pt/: «I - O sentido da expressão indícios suficientes na fase de instrução é o mesmo que se verifica para a decisão de acusar, devendo considerar-se que os mesmos existem quando deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. II - A probabilidade razoável mencionada não equivale à certeza para além da dúvida razoável balizada pelo princípio in dubio pro reo exigida na apreciação da prova em julgamento. III - Tão-pouco atinge o grau de exigência imposto pela verificação de fortes indícios de crime para efeitos de aplicação medidas de coação mais gravosas. (…) V - A admitir-se o recurso ao princípio in dubio pro reo na fase de instrução, o mesmo deve ser usado com a consciência de que o grau de dúvida que permite decidir pela pronúncia do arguido é necessariamente diferente daquele que ocorre em fase de julgamento, devendo aceitar-se que seja mais acentuado do que aquele que determina a prova do facto em julgamento, sob pena de estarmos a transferir para a fase de instrução as exigências subjacentes à condenação, mas deixando de fora todo o contexto de prova que permite exigir tal rigor»;
20. Com todo o respeito, mal andou, pois, o Senhor Juiz a quo no que tange a ter considerado inexistirem indícios suficientes da prática, por parte do arguido A, do crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos art.ºs 143.º, n.º 1, e 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, por referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. a), todos do Código Penal, imputado ao mesmo sujeito processual nos termos constantes do libelo acusatório do Ministério Público de fls. 319-321, ou, sequer, sem conceder, pelo menos, de acordo com todo o explanado supra, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido por aquele primeiro preceito legal;
21. Tendo decidido como o fez o mesmo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, foi, assim, violado o preceituado no art.º 308.º, n.ºs 1 e 2, este último número com referência ao art.º 283.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, sendo que se impõe, agora, consequentemente, que seja prolatada a devida decisão (instrutória) de pronúncia;
22. Dever-se-á, assim, desta forma, concluir no sentido de ser dado provimento ao presente recurso e, por consequência, ser a douta decisão instrutória revogada e substituída por outra que, considerando existirem indícios suficientes da prática, por parte do arguido A, do referido crime de ofensa à integridade física qualificada objecto da acusação, pronuncie o mesmo arguido em conformidade, ou, isso não sendo entendido, no mínimo, pela comissão, nos termos acima explicitados, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal.

C – Resposta ao Recurso

Inexiste resposta ao recurso.

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista à Exmª Procuradora-Geral Adjunta, que militou pela manutenção da decisão recorrida.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai das respectivas motivações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim sendo, a questão em causa no recurso prende-se com a pugnada existência de indícios para a pronúncia do arguido pelo crime de ofensa à integridade física qualificada que o MP lhe imputa.

B – Apreciação

Apreciando da bondade do recurso, torna-se evidente que o mesmo deve proceder.
Como é amplamente ensinado pela Doutrina e Jurisprudência e decorre explicitamente do disposto no Artº 286 nº1 do C.P. Penal, a instrução, como fase facultativa e preliminar do processo penal, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, comprovando-se judicialmente a decisão do M.P. no fecho do inquérito, seja de acusação ou de arquivamento.
Ao juiz de instrução incumbe realizar todas as diligências de prova tendentes a carrear para os autos os elementos necessários à formação de uma convicção séria e firme sobre a existência, ou não, em termos indiciários, de um qualquer crime.
Isto mesmo resulta do Artº 308 nº1 do CPP, onde se diz que “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
A noção de indícios suficientes está plasmada no Artº 283 nº2 do CPP - aplicável à decisão instrutória pela remissão nº2 do Artº 308 do mesmo texto legal - pelo qual se consideram aqueles que daí resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.
Após a realização do debate instrutório, a instrução termina com a prolação de um despacho de pronúncia ou de não pronúncia, consoante o juiz entenda que existem, ou não, nos autos, indícios de facto e elementos de direito suficientes, que justifiquem a submissão do arguido a julgamento ou seja, quando os mesmos permitem concluir por uma maior probabilidade da sua condenação do que da sua absolvição.
Com efeito, nos termos do Artº 283 nº2 do CPP, a suficiência de indícios é cristalinamente definida como “…sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Nessa medida, se o juiz de instrução concluir que é maior a probabilidade da absolvição do arguido, então é porque os aludidos indícios não devem ser considerados suficientes, havendo lugar a despacho de não pronúncia.
Pelo contrário, se entender que a probabilidade maior é a da condenação do arguido, então tem o dever de o levar a julgamento, pronunciando-o pelos factos que entender estarem indiciados.
Suficientes serão os indícios, como se disse, dos quais, apreciados na altura da instrução, se possa concluir que é mais provável a condenação que a absolvição, caso em que se justifica que o processo avance para julgamento, havendo assim lugar a uma decisão de pronúncia.
A lei apela, por isso, no juízo da suficiência dos indícios, a uma avaliação de probabilidade da condenação e absolvição, tendo presente os incómodos, pessoais, éticos e morais, que resultam, para qualquer indivíduo, de um julgamento, mesmo que dele venha a ser absolvido.
Neste sentido, veja-se Castanheira Neves, in Sumários de Processo Criminal, págs. 38 e 39, onde aquele professor perfilha a tese segundo a qual na suficiência de indícios está contida “a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final” apenas com a limitação inerente à fase instrutória, no âmbito da qual não são naturalmente mobilizados “os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.
Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal”, vol. III, 2.ª ed., pp. 179, diz que “para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige a prova no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido. Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa (...)”.
Também Figueiredo Dias, a este propósito, diz que existem indícios suficientes quando “a futura condenação do arguido, uma vez submetido a julgamento, seja mais provável do que a sua absolvição” - in Direito Processual Penal, 1974, pp. 133.
In casu, entendeu o Mmº Juiz a quo, numa decisão singela, inexistirem indícios suficientes da prática, pelo arguido, dos factos que lhe eram imputados.
Com o devido respeito, mal se entende tal decisão, tendo em conta a prova constante dos autos.
Na verdade, os factos em causa reportam-se a uma agressão do arguido à sua filha J, assentando a prova, inteiramente, nas declarações para memória futura por esta prestadas.
Ora, em tais declarações, a menor confirma, por inteiro, a factualidade em causa, descrevendo-a nos exactos termos que foram plasmados na acusação pública, com excepção da circunstância de ter sentido dores, matéria que não lhe foi perguntada e que se pode dar por adquirida na medida em que estamos a falar numa pancada no fundo das suas costas, desferida com uma raquete de madeira, que, nesse acto, se partiu…
A evidência de a menor, com tal conduta do arguido, ter sentido dores, desenha-se, por isso, com alta probabilidade…
No mais, todas as considerações explanadas no despacho recorrido, salvo melhor opinião, não tem aplicação no âmbito de um despacho de pronúncia, onde apenas se deve apurar da referenciada suficiência de indícios, o mesmo é dizer, longe ainda, da prova fora de qualquer dúvida razoável exigida em sede de julgamento.
Para uma decisão de pronúncia, a lei não exige a certeza da existência do crime, bastando-se com a mera existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, ainda que os mesmos devam ser suficientes, no sentido de, em julgamento – momento maior do processo penal – eles se puderem transformar em prova fora de qualquer dúvida razoável, assim levando a uma condenação.
Ora, na situação sub judice, assentando a prova nas declarações da menor e confirmando esta, por inteiro, a factualidade que é imputada ao arguido, não se vê razão para não pronunciar o arguido, até porque, como bem nota o recorrente, é “…por demais inverosímil que, privilegiando esta, ostensivamente, o relacionamento com o seu pai, em detrimento da mãe, pudesse a mesma in casu ter mentido, logo incriminando, precisamente, o seu progenitor “favorito” (note-se que a referida menor prestou declarações para memória futura quando já residia com o arguido e que foi este a pessoa notificada para providenciar pela comparência da filha, conforme fls. 292 e 302, bem assim que tais declarações foram prestadas semanas depois da acima referenciada alteração da regulação das responsabilidades parentais, sendo então, aquando da dita alteração, já sobejamente conhecido que aquela «manifesta[va] vontade de estar sempre com o pai», «[r]evela[ndo] ainda que não t[inha] vontade de ver ou estar com a mãe»);”
Inexiste qualquer motivo para não atribuir total credibilidade a tais declarações, o que implica, necessariamente e sem necessidade de complementares considerandos que a simplicidade da questão não demanda, a procedência do recurso, com a pronúncia do arguido pelos factos e crime que lhe são imputados, sem prejuízo de, em sede de julgamento, se apurar, em concreto, se a sua conduta revela, ou não, a especial censurabilidade exigida pelo tipo agravado.

3. DECISÃO
Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e em consequência, revoga-se a decisão recorrida, pronunciando-se o arguido pelos factos e crime constantes da acusação pública.
Sem custas.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 11 de fevereiro de 2025
Renato Barroso
Fátima Bernardes
Maria José Cortes