CONTRATO MISTO DE COMPRA E VENDA E DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
OBRIGAÇÃO DE RESULTADO
REGIME APLICÁVEL
INCUMPRIMENTO
RESOLUÇÃO UNILATERAL DO CONTRATO
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
Sumário

I - O acordo pelo qual uma parte se compromete a fornecer à outra, contra o pagamento de um preço por esta, de um software informático que detinha e, bem assim, a instalá-lo e a diligenciar pela adaptação e pelo ajuste do mesmo às solicitações da segunda, de modo a que esta o integre na sua atividade, constitui um contrato misto de compra e venda e de prestação de serviços.
II - Apesar de as prestações associadas àquelas duas figuras contratuais estarem reunidas num único negócio e de só fazerem sentido no quadro de um só programa negocial, uma dessas prestações, a do fornecimento do software, surge subordinada à outra, a da prestação do serviço inerente à sua implementação, pelo que o regime normativo aplicável ao mesmo é, enquanto parte predominante, o da prestação de serviços e só na medida em que com este ‘não colida’ é que será, porventura, aplicável o da compra e venda.
III - Incumbindo ao fornecedor do software e prestador do serviço inerente à sua implementação, também, adaptá-lo e ajustá-lo às solicitações da outra parte, a obrigação daquele no quadro do programa negocial acordado é, não apenas a de fornecer “meios” para que o beneficiário do serviço logre alcançar os seus objetivos com a aquisição do programa informático, mas a de assegurar que, com o software, aquele “resultado” seja efetivamente alcançado; é, pois, de resultado e não de meios a natureza dessa obrigação.
IV - A declaração dirigida por uma parte à outra de que, em face das vicissitudes do desempenho do software, ‘cessava a relação contratual’ estabelecida entre ambas, constitui um comportamento concludente do declarante no sentido de, independentemente da vontade ou colaboração do segundo e, portanto, por ato unilateral, resolução do contrato celebrado.
V - A resolução, para que seja válida, pressupõe um incumprimento definitivo do contrato, o que não se verifica quando neste não se tenha previsto um termo essencial; se ao faltoso não tiver sido feita uma interpelação admonitória; se não houver impossibilidade objetiva e subjetiva de cumprimento do contrato; e se não há da parte do faltoso a adoção de comportamentos que evidenciem a sua intenção de não mais querer cumprir.
VI - O inadimplemento contratual também não se verifica se não há, da parte do credor, perda do interesse no cumprimento da prestação, apreciada esta objetivamente, ou seja, quando não haja razões que, de acordo com um critério de razoabilidade, permitam duvidar fundadamente de que o faltoso alguma vez venha a cumprir a obrigação a que está adstrito.
VII - O cumprimento do contrato com as características referidas em I a III não é de execução instantânea, mas estende-se pelo tempo, pelo que, dada a sua natureza, é motivo de resolução, também, sobrevindo ‘justa causa’; esta, contudo, não se verifica quando, apesar da violação de deveres contratuais, tal violação não assuma contornos tais que torne intolerável para a parte não inadimplente a continuação da relação contratual.

Texto Integral

Processo n.º 22432/20.8YIPRT.P1 - Recurso de apelação

Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo Local Cível de Felgueiras, Juiz 1

Recorrente: A... – Indústria de Calçado, S.A.

Recorrida: B..., Lda.


***


.- Sumário

………………………………………………..

………………………………………………..

………………………………………………..


**

*


.- Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto,

I.- Relatório

.- B..., Lda. introduziu em juízo requerimento de injunção dirigido à sociedade A..., S.A., pedindo a notificação desta para que lhe pagasse a quantia de € 18.140,08 - sendo € 16.605,00 a título de capital, € 1.382,08 a título de juros de mora vencidos e € 153,00 a título de ‘taxa de justiça paga’ -, acrescida de juros de mora vincendos, sobre o capital devido, até integral pagamento.

Fundamentou a sua pretensão, em síntese, no seguinte.

No exercício da sua atividade de programação informática e de comércio a retalho de computadores, unidades periféricas e programas informáticos, instalou na sede da Requerida, a pedido desta, um programa informático denominado ‘... Versão PRO (11-15 Postos)’.

Inserto o preço do serviço prestado, no valor de € 16.605,00, na fatura n.º 2019/192, datada de 04-01-2019, com vencimento em 04-01-2019 e entregue tal documento à Requerida, esta não procedeu ao respetivo pagamento.


*

Notificada do requerimento de injunção, deduziu a Requerida oposição, pugnando pela improcedência do pedido da Requerente.

Para tanto, e em síntese, alegou o seguinte.

No acordo de instalação de programa informático referido pela Requerente, foi estipulado entre ambas que tal instalação ocorreria a título experimental e que, no primeiro ano de operacionalidade, o programa seria objeto de adaptações às suas necessidades a fim de ser personalizado.

Mais foi acordado, aquando da instalação do programa, que a fatura do serviço prestado seria emitida quando o sistema estivesse a funcionar em pleno, sendo expectável que 2019 fosse suficiente para a fase de experimentação e de correção do programa, de modo a que fosse possível ajustar o software à sua atividade.

Sucedeu que, uma vez instalado, o programa, ou não funcionava, ou apresentava resultados errados, em termos que descreve, sendo que, apesar de todas as intervenções feitas pela Requerente, esta nunca conseguiu adequar o software, que era suposto ser mais intuitivo, mais rápido e mais eficiente e direcionado às necessidades da sua empresa.

Consequentemente, por não servir o fim a que se destinava, perdeu o interesse no programa e, em reunião realizada em 21-01-2020, com representante da Requerente, comunicou-lhe verbalmente que resolvia o contrato, intenção essa reiterada por carta remetida à mesma datada de 12-03-2020.

Nada deve, por conseguinte, à Requerente, a qual litiga de má fé, devendo, por isso, ser condenada em indemnização a seu favor, em valor não inferior a € 2.500,00.


*

Distribuídos, em face da oposição da Requerida, como ação declarativa, sob a forma de processo especial para cumprimento das obrigações pecuniárias, prevista no D.L. 269/98, de 01/09, prosseguiram os autos com a pronúncia da Requerente, sob convite do tribunal a quo, quanto à matéria de exceção deduzida pela Requerida na oposição.

Segundo a Requerente, e em suma, o serviço que prestou à Requerida não foi defeituoso, tendo usado procedimentos similares a outros casos, que apresentam um nível de satisfação acima dos 98%, sendo que a Requerida usou e continua a usar o software nem que seja para cumprir obrigações fiscais e só não o usa em pleno porque requer formação dos utilizadores, que estava a ser ministrada, mas que foi entretanto suspensa face à falta de pagamento da fatura dos autos.

Impugnou, também, que tivesse sido acordado que o software seria instalado a título experimental, pois que se assim fosse a Requerida não o poderia usar para emissão de documentos e a licença emitida teria de ser não nominativa, o que não ocorreu nem foi pedido pela mesma.

Referiu, ainda, que a Requerida invocou ter perdido o interesse no software no dia 21-01-2020, mais de um ano depois de ter o ter adquirido e depois de gastas muitas horas de trabalho na sua implementação e, até ao momento em que lhe foi exigido o pagamento da fatura, nunca fez referência a qualquer problema.

Concluiu, assim, tal como fizera no requerimento inicial e, bem assim, que é a Requerida e não a própria quem litiga de má fé, devendo, consequentemente, ser condenada no pagamento de indemnização a seu favor, em montante a liquidar a final.


*

Foi realizada a audiência de discussão e julgamento.

*

Seguidamente, foi proferida sentença, na qual, além de fixado em € 18.140,08 o valor da causa, foi a ação julgada totalmente procedente e, consequentemente:

.- condenada a Ré a pagar à Autora a quantia de € 16.605,00, acrescida de juros de mora, à taxa comercial, desde a data de 04-01-2019 até efetivo pagamento.

Na sentença, foram também julgados improcedentes os pedidos de condenação como litigantes de má fé formulados por cada uma das partes contra a outra.


*

Inconformada com esta decisão, dela veio a Requerida interpor o presente recurso, batendo-se pela sua revogação e pela sua substituição por outra que julgue a ação improcedente e a absolva do pedido.

Para tanto, formulou as seguintes conclusões:

1 – Assoma o presente recurso da sentença decretada em 1/4/2024 que julgou totalmente procedente a ação, condenando a Recorrente a pagar à Recorrida a quantia de €16.500,00 (dezasseis mil e quinhentos euros), acrescida de juros à taxa comercial até integral pagamento, decisão com a qual a Recorrente não se conforma.

2 – A sentença do Tribunal recorrido não transpõe um correto e assertivo enquadramento dos factos, nem uma correta valoração da prova pericial, documental e testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, tão pouco um criterioso e assertivo concatenar de tal prova com as regras de experiência e da lógica e as máximas da normalidade, nem um acertado enquadramento técnico-jurídico das questões submetidas à apreciação jurisdicional.

3 – A decisão em pronúncia peca de erro de julgamento da matéria de facto e de desacertada aplicação da lei e do direito.

4 -Procede a Recorrente à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, concretamente no que diz respeito à resposta dada à matéria que consta dos Factos provados nos pontos 2, 3, 4, 5, 6, 7, 20 e 36, os quais, foram incorretamente julgados provados e, por isso, têm de ser alterados e consequentemente ser considerados como não provados.

5 – Do mesmo modo, por referência à matéria de facto, foram indevidamente considerados não provadas as alíneas a), c) a t), pelo que, se impõe qua as mesmas sejam alteradas dando-as como provadas.

6 – Pelo menos no entender da Recorrente é isso que resulta de modo irrefutável da análise criteriosa do conjunto da prova produzida em Audiência de Julgamento, tudo conforme infra se evidenciará. Vejamos:

7 – Os pontos 2, 3, 4, 5, 6 e 7 dos Factos Provados não deveriam sequer constar dos factos provados, por se tratar de factos instrumentais não necessários para a boa decisão da causa, e, paralelamente, não deveriam ter influído na formação da convicção do tribunal, pois são apenas suportados nas declarações do legal representante da Recorrida, sem qualquer suporte documental que os comprove.

8 – No que diz respeito ao ponto 20 dos Factos Provados nenhuma prova foi concretizada que demonstre que existiu resistência à adoção dos métodos de trabalho que a utilização do programa implicava, nem tão pouco nenhuma prova foi feita do concreto lapso temporal em que tal teria acontecido.

9 – Dos excertos nas alegações transcritos resultam evidenciados depoimentos subjetivos, vagos, imprecisos e que não concretizam a resistência efetiva dos colaboradores da Recorrente, tão pouco revelam situações específicas em que a mesma se tivesse materializado, muito menos por quanto tempo essa suposta resistência terá durado, de modo que tal ponto tem de ser considerado não provado.

10 – A segunda parte do ponto 36 dos Factos Provados a partir de “(…) solução essa (…)” até ao final não deve constar dos Factos provados uma vez que a matéria fática aí vertida não resulta de qualquer prova sobre si produzida.

11 – Assim, o ponto 36 da matéria de facto provada deverá assumir a seguinte redação “À data de 21.01.2020, a A. não tinha logrado ultrapassar o problema apontado em 34) e 35), tendo proposto a alteração do modo de atuação da Ré com o abandono da utilização das várias estações como forma de resolução do problema.

12 – Por outro lado, deu-se como provado no ponto 9 da fundamentação de facto que a Recorrida forneceu e instalou na sede da Recorrente um programa personalizável.

13 – Sendo um programa personalizável não podia dar-se como provado que a solução existente no programa atalhava os vícios dados como provados nos pontos 34 e 35, dado tratar-se de uma obrigação da Recorrida dar solução a um pedido essencial para a Recorrente, conforme resulta do depoimento da testemunha da Recorrente, AA, com início pelas 10:01h e término às 12:37, da sessão de julgamento do dia 19 de abril de 2023 que, ao minuto 02:13:43, disse, a instância da mandatária da Recorrente:

“E foi isso que explicamos. Eles entenderam, então disseram assim: “Pronto, a única hipótese que vocês têm é esquecer as estações e começarem a trabalhar como se não existissem estações” (…) Chegamos a um ponto e dissemos: “Então e como é que agora nós vamos trabalhar? Como é que nós vamos distinguir agora aqui o que é que é de uma estação, o que é que é outra? Vamos abandonar estações? Como é que vamos tratar aqui a informação”.

14 – As respostas do perito às questões colocadas nos pontos 3), 4), 7) 8), 9 e 10), impunham – e impõem – que se desse como provadas as alíneas f), g), k), l) e n) dos Factos Não Provados.

15 – Na sentença objeto de recurso, nas motivações, refere-se, em suma, que os esclarecimentos do Sr. Perito não se revelaram esclarecedores tanto mais que não era já possível replicar as condições em que o mesmo operava.

16 – Ora, o Sr. Perito em momento algum do seu depoimento refere a impossibilidade de replicar as condições em que o programa operava à data em que o mesmo deixou de ser utilizado, o que se constata pela simples audição das passagens dos esclarecimentos prestados na sessão de julgamento de 24/10/2022, entre o minuto 00:00:01 ao minuto 00:30:03.

17 – Assim, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, fundamentou o não acolhimento das conclusões da perícia e dos esclarecimentos do Sr. Perito, com base num errado pressuposto, de que o facto de o software não ter sido atualizado não permitia replicar as condições em que o mesmo operava no período em referência, o que equivale a dizer que não fundamentou o afastamento das conclusões da perícia.

18 – As respostas dadas às questões que foram colocadas em sede de perícia, são de molde, por si só, com exceção dos quesitos 7) e 10), a dar como provados os factos constantes das alíneas f), g), k), l) e n) dos Factos não Provados.

19 – A alínea a) dos Factos Não Provados deverá ser dada como provada, pois, para a dar como não provada a Meritíssima Juiz a quo, mais uma vez, partiu de uma interpretação errada do que se pretendia dizer com a expressão “a título experimental”.

20 – No contexto dos autos, instalar à experiência significava possibilitar à Recorrente aferir se o mesmo se adequava às suas necessidades, de modo que, decorrido o tempo convencionado, pudesse ter a sua vontade negocial formada em ordem a adquiri-lo ou não.

21 – De igual modo, a decisão recorrida deu como não provada a matéria fática da alínea c) quando na realidade foi produzida prova abundante que impunha decisão diversa, motivo pelo qual tal facto tem que ser dado como provado.

22 – Para tanto, atente-se aos depoimentos das testemunhas arroladas pela Recorrente, AA (sessão de julgamento do dia 19 de abril de 2023, com início às 10:01h e término às 12:37, entre o minuto 00:38:08 e o minuto 00:38:35) e BB (sessão de julgamento do dia 12 de junho de 2023, entre o minuto 00:38:08 e o minuto 00:38:35 e o minuto 01:26:10 e o minuto 01:26:43), que de forma credível, sustentada e lógica, confirmaram em tribunal que o programa da Recorrida causou problemas na produção, obrigando os colaboradores a conferir todas as listagens emitidas pelo sistema informático, causando atrasos no fornecimento do processo produtivo e perdas de tempo na execução de outras tarefas.

23 – No mesmo sentido apontam os documentos 3 e 4 juntos pela Recorrente, os quais são aptos a certificar que, sendo pedida uma listagem de documentos relativamente um determinado cliente, o programa somava os valores quer a débito quer a crédito não apresentando contabilisticamente o real valor que resultava dos documentos lançados a débito e a crédito ou anulados.

24 – Na alínea d) dos Factos Não Provados, a sentença a quo considerou não provado que “Aos problemas que eram reportados pela R., a A. oferecia resolução que passava por soluções provisórias ou por “enganar o sistema”, materialidade fáctica que deveria – como deve – ser dada como provada.

25 – Aliás, neste conspecto, a Meritíssima Juiz do tribunal a quo entra em contradição com os factos provados nos pontos 31 e 32, na medida em que deu como provado que foi necessário criar uma funcionalidade de desdobramento das encomendas, a qual passava pela introdução dos carateres -1 no número de tarifas e posteriormente pela utilização do comando Ctrl + E.

26 – Tais comandos não existiam no display do programa, pelo que não pode deixar de se considerar que a criação de tais funcionalidades, configurou, inegavelmente, uma forma de contornar/“enganar” o sistema ou arranjar soluções provisórias.

27 - De igual modo deveria ter sido dado como provado a alínea e) dos Factos Não Provados, porquanto, a circunstância de o programa, recorrentemente, não permitir a impressão direta em alguns postos de trabalho, obrigando o utilizador a exportar para PDF o documento para o ambiente de trabalho, para depois o imprimir, foi, de forma clara e lógica explicada pelas testemunhas da Recorrente, conforme se pode confirmar pela audição da gravação do depoimento da testemunha AA (vide sessão de julgamento do dia 19 de abril de 2023, início pelas 10:01h e término às 12:37, entre o minuto 00:34:35 e o minuto 00:45:38) e da testemunha BB (vide sessão de julgamento do dia 12 de junho de 2023, entre o minuto 00:24:31 e o minuto 00:28:54).

28 - A versão das testemunhas da Recorrida, neste particular, apresentou-se, com o devido respeito por opinião contrária, descabida e destituída de lógica, evidenciando falta de imparcialidade e isenção, pelo que, não deveria ter merecido a credibilidade que lhe pelo tribunal a quo.

29 - As alíneas f) e g) dos Factos Não Provados devem ser consideradas provados, porquanto a prova pericial, conjugada com a prova testemunhal assim o impunha.

30 - Desde logo, o sr. Perito quando questionado se um artigo fosse faturado por engano e o documento tivesse que ser anulado, o programa não permitia voltar a faturar, a resposta do mesmo foi no sentido de que não seria possível voltar a faturar (questão 3).

31 - Questionado se em caso de resposta negativa à questão 3), para poder faturar novamente, se a encomenda fosse marcada como “em produção”, era possível voltar a faturar, a resposta foi positiva.

32 - Por outro lado, as declarações prestadas pelo legal representante da Recorrida, CC, (sessão de julgamento do dia 21 de novembro de 2022, com início pelas 14:29 e término às 16:07, entre o minuto 00:27:49 e o minuto 01:34:00), confirmam a impossibilidade de voltar a faturar de imediato e a necessidade de se colocar a encomenda no estado de “em produção”.

33 - Tendo, inclusivamente, assumido que seria possível modificar o programa no sentido pretendido pela Recorrente, não o tendo feito, unilateralmente, por considerar que o modo como o programa estava configurado era o mais correto.

34 - Na sua fundamentação para dar como não provado os factos das alíneas f) e g), a Meritíssima Juiz refere, em síntese, que inexistia a impossibilidade de anulação daa faturas, pelo que há uma contradição entre a fundamentação e os Factos Não Provados.

35 – Pois, em contradição com a matéria dada como não provada, a sentença a quo dá como provado no ponto 28 que “Em caso de erro na faturação ou outra situação de necessidade de repetir a faturação, o programa previa a funcionalidade de, estando concluída a faturação da encomenda, passar o estado da encomenda para o estado “em produção” e, deste modo, anulada a primeira fatura, emitir nova fatura correspondente à encomenda em causa”.

36 – O que na prática quer dizer que, não existe qualquer funcionalidade, pois a anulação de faturas não deveria implicar que o utilizador “mentisse” dizendo que a encomenda se encontrava no estado de “em produção”, quando na verdade, a mesma já estava produzida, embalada e pronta para ser expedida.

37 – No que respeita às alíneas h), i) e j) onde se dá como não provado que o desdobramento das encomendas nos moldes descritos em 31), criavam uma falsa subdivisão e depois tinha que ser manualmente alterada para poder faturar a quantidade correta,

38 - Estes factos dados como não provados deveriam ter sido dados como provados, na medida em que a testemunha AA arrolada pela Recorrente depôs de forma irrepreensível e com conhecimento de causa, conforme resulta do seu depoimento da sessão de julgamento do dia 19 de abril de 2023, com início pelas 10:01h e término às 12:37, entre o minuto 01:01:03 e o minuto 01:07:19.

39 - Não tendo sido produzida qualquer prova que infirmasse ou contradissesse o depoimento prestado pela testemunha AA.

40 - A sentença recorrida dá como não provada a alínea k), que as requisições de materiais mostravam o somatório de todas as quantidades, independentemente da unidade de cada um dos artigos (pés/m2 …), ou seja, apresentava o somatório, sem converter numa das unidades, ou em pés ou em metros quadrados e que tal causava problema com os pedidos e requisição de material.

41 - De igual modo a prova pericial, testemunhal e documental impunha que se desse a alínea k) dos factos não provados, como provado, embora com uma redação diversa.

42 - Relativamente a este ponto o Sr. Perito esclareceu que de facto foi possível verificar no software instalado no computador da Recorrente que, em determinadas partes do software quando gerado um inventário de artigos, aparece o somatório de unidades de medida diferentes, ou seja, soma metros quadrados com metros lineares – resposta questão 7), embora não tenha sido possível verificar esse problema quando gerado uma requisição de materiais.

43 - A prova documental junta como documento nº2 também evidencia o que foi detetado na perícia, assim como foi corroborado pela prova testemunhal, AA, no depoimento da sessão de julgamento do dia 19 de abril de 2023, com início pelas 10:01h e término às 12:37, entre o minuto 01:18:51 e o minuto 01:22:10.

44 - Assim, conjugada a prova pericial, documental e testemunhal deveria ter sido dado como provado o facto constante da alínea k) com a seguinte redação: “Os inventários de artigo mostravam o somatório de todas as quantidades, independentemente da unidade de cada um dos artigos (pés/m2 …), ou seja, se fossem introduzidos 100 pés de pele branca e 10 m2 de pele preta, o somatório das quantidades que aparece é de 110, quando deveria estar convertido, em uma das duas unidades de referência, ou em pés ou metros quadrados, o que causava problemas com os pedidos e quantidades de material.

45 - Também a alínea l) dos Factos Não Provados deveria ter sido dada como Provado.

46 - Está em causa saber se o programa permitia pedir um pé de amostra, ou seja, não reconhecia a possibilidade de serem pedidos meios pares, pelo que a indicação de fabrico de amostras de um pé tinha que ser realizada à mão no pedido de amostra.

47 - Desde logo, a prova pericial impunha decisão diversa, já que, a resposta aos quesitos 8) e 9) foi no sentido de que o programa não permitia registar uma encomenda de um pé.

48 - À questão 8 o Sr. Perito respondeu positivamente sustentando que: "De facto o software não permite fazer registo de uma encomenda de apenas 1 pé, podendo apenas serem registados números inteiros de pares"; já à questão 9) foi dada resposta negativa "Tal como descrito na questão 8), não é possível serem pedidos meios pares". .

49 - Ficou provada a essencialidade desta alteração - registar um pé de amostras e já não um pé de cada par de encomendas - para a Recorrida pelo depoimento das pelas testemunhas da Recorrente: AA, sessão de julgamento do dia 19 de abril de 2023, com início pelas 10:01h e término às 12:37, da, entre o minuto 01:28:20 e o minuto 01:35:49 e BB, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, com início pelas 15:24 e término às 17:00, da sessão de julgamento do dia 12 de junho de 2023 que, entre o minuto 00:53:52 e o minuto 01:02:00.

50 - Para além da prova pericial, as próprias declarações do legal representante da Recorrida eram aptas a dar como provado este facto (sessão de julgamento do dia 21 de novembro de 2022, com início pelas 14:29 e término às 16:07, entre o minuto 00:47:57 e o minuto 00:49:37), pois, quando questionado pela Meritíssima Juiz sobre se o programa podia ser configurado para "reconhecer a possibilidade de serem pedidos meios pares", respondeu: [00:48:12] CC: Podia sê-lo. Podia sê-lo. Mas iam complicar todo o processo por conta disso.

51 - Acresce que, na douta decisão recorrida considerou-se como não provada a factualidade vertida na alínea m) dos factos não provados, quando, na perspetiva da Recorrente, tal facto devia integrar o elenco dos factos dados como provados.

52 - Com efeito, resulta cristalino do testemunho de BB que, a circunstância de o programa em menção não possibilitar pedidos de meios pares, se refletiu diretamente nos pedidos de material e na faturação das amostras ao cliente.

53 - Tal resulta inequívoco do depoimento da testemunha da Recorrente BB, gravação com início pelas 15:24 e término às 17:00, da sessão de julgamento do dia 12 de junho de 2023 que, entre o minuto 00:51:58 e 00:53:33, o qual quando chamado a esclarecer a questão do par de amostras referiu: “(…) (…) eu tinha que consultar ficha a ficha, manualmente e ver se realmente o que lá estava eram 2 pares ou 3 pares ou 1 par e se não seria 1 meio par transformado em 1, par e meio, transformava em 2. Portanto, eu tinha sempre que verificar manualmente todas as fichas para não faturar coisas indevidamente.”

54 - Na senda do antedito convém salientar que na fundamentação da sentença recorrida se admite – parágrafo 25 – que a questão dos meios pares teve reflexo no tratamento e gestão de amostras, logo teria de se dar como provada a materialidade fática constante em m) da parte de decisão recorrida denominada “Factos não provados”.

55 - Também os factos constantes das alíneas n) e o) da materialidade fáctica dada como não provada, têm que ser dados como provados, dita-o a prova produzida em Audiência de Julgamento.

56 - Ficou provado que se o artigo fosse lançado numa escala de tamanhos compreendida entre o (36/42) e posteriormente fosse efetuada uma encomenda do tamanho 35 (trinta e cinco), uma vez gerado o relatório de encomendas, os tamanhos alinhavam e somavam todos à direita, sendo somados tamanhos diferentes como sendo iguais.

57 - Logo, contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, é indiscutível que tal situação era suscetível de dar azo a erros e problemas de produção, consubstanciados na informação incorreta disponibilizada pelo programa, e, que a única forma de os evitar seria seguramente um esforço de atenção acrescido/reforçado.

58 - O Sr. Perito confirmou que existiam problemas no software sob escrutínio, o qual apresentava problemas ao nível dos relatórios de encomendas, pois os mesmos alinhavam e somavam todos à direita, fazendo com que fossem somados tamanhos diferentes como sendo iguais, conforme se infere da resposta ao quesito 10).

59 - Ademais, tal resulta evidenciado aos autos através do documento nº. 5, cujo conteúdo foi escalpelizado no decurso da Audiência de Julgamento, durante a inquirição da testemunha AA, ocorrida na sessão de julgamento do dia 19 de abril de 2023, com início pelas 10:01h e término às 12:37.

60 - Acresce que, a prova pericial e documental (Vide Doc. 5), acabadas de referir encontram-se devidamente alinhadas com a prova testemunhal.

61 - Assim, conjugada a prova pericial, documental e testemunhal deveria ter sido dado como provado o facto constante da alínea n) com a seguinte redação: Se um artigo fosse aberto com uma escala de tamanhos (36/42) e se em data posterior surgisse um pedido de encomenda em 35, ao gerar os relatórios das encomendas, os tamanhos alinhavam e somavam todos à direita, fazendo com que o programa somasse tamanhos diferentes como sendo iguais, dando origem a um relatório completamente falacioso.

62 - Acresce que, também a matéria fáctica da alínea p), dos factos não provados foi incorretamente apreciada e consequentemente mal ajuizada, pois resultou perfeitamente provada, devendo em consequência passar a fazer parte do catálogo dos Factos dados como provados.

63 - De resto, a sentença objeto de recurso ao dar a matéria fática da alínea p) não provada, não considerou com a acuidade devida o teor da prova documental junta aos autos, designadamente, os documentos 6 e 7.

64 - Pois, tais documentos demonstram de modo bem evidente que a Recorrida forneceu à Recorrente uma cópia de um programa pré-existente, no qual se encontram inseridos documentos de outros clientes, ou seja, nem sequer se deu ao trabalho de proceder à “limpeza” dos mesmos.

65 - E, portanto, independentemente de se tratar de questões de formatação ou de parametrização – ambas dependentes de ações de Recorrida que as não as implementou – certo é que que o programa apresentava falhas que se materializavam na apresentação gráfica dos documentos gerados.

66 - Também a alínea r) constantes da parte da sentença em crise destinadas aos Factos não provados foi incorretamente julgada, pelo que, a materialidade fática da mesma tem que ser dada como provada. Pois:

67 - A prova produzida em face de tudo o que antecede, com enfoque para os depoimentos da recorrente AA e BB, não podem subsistir dúvidas que a atuação da Recorrida, ou melhor a falta dela, prejudicou gravemente o trabalho diário da Recorrente.

68 - De igual modo a prova produzida no processo é apta para dar como provado que a Recorrente, criou a expetativa de resolução que não logrou alcançar, apresentando, apenas soluções provisórias, que não satisfaziam as necessidades da Recorrente.

69 - Tanto mais que, se deu como provado que o ... teve início de instalação em 15.11.2018 (facto provado 13) e que em 21.01.2020 a Recorrida ainda não tinha conseguido ultrapassar determinados problemas do mesmo (primeira parte do facto provado 35).

70 - Igual raciocínio se tem de aplicar à primeira parte da alínea s) dos factos dados não provados, a qual tem de ser considerada provada, na medida em que a prova testemunhal produzida em Audiência de Julgamento aponta, de modo irrefutável, que o programa não possuía as qualidades que foram asseguradas pela Recorrida à Recorrente, na medida em que, não só não era rápido, como também não era intuitivo, eficaz e personalizável.

71 - Logo, salvo melhor interpretação tem de dar-se como provado que: “O programa instalado não tinha as qualidades asseguradas pela A. e impediu a realização cabal do fim a que se destina.

72 - E igualmente deveria dar-se como provado a segunda parte da alínea s) e a alínea t), ou seja, que na reunião do dia 21 de janeiro de 2020, foi aceite que o contrato se considerava resolvido e consequentemente que a Recorrente aí declarou a resolução do contrato à Recorrida.

73 - Na verdade, compulsada a prova testemunhal produzida pela Recorrente, é possível aferir que na mencionada reunião, foi declarada a resolução do contrato, designadamente da audição dos depoimentos das testemunhas AA sessão de julgamento do dia 19 de abril de 2023, com início pelas 10:01h e término às 12:37, entre o minuto 02:30:56 e o minuto 02:32:50, da testemunha da Recorrente, BB, da sessão de julgamento do dia 12 de junho de 2023, entre o minuto 01:31:53 e o minuto 01:32:20, e da Testemunha, DD, da sessão de julgamento do dia 14 de junho de 2023, entre o minuto 00:12:24 e o minuto 00:33:27,

74 - Porquanto, se trata de depoimentos coincidentes entre si, que não mereciam o descrédito a que foram votados pela Meritíssima Juiz do tribunal a quo, tanto mais que não foram infirmados por qualquer outra prova.

75 - Na motivação de direito considerou-se não existir qualquer situação de incumprimento que legitimasse a resolução por parte da Recorrente.

76 - O Tribunal a quo na decisão que proferiu não interpretou, nem aplicou as normas jurídicas correspondentes, em clara violação dos preceitos referidos nas conclusões precedentes.

77 - Pelo que, padece tal decisão de “error juris” e, por conseguinte, o decidido não corresponde à realidade normativa. Vejamos:

78- No caso sub judice, as partes contratualizaram, em termos globais, a compra e venda, instalação, formação, implementação e personalização de um programa informático, concebido pela Recorrida o qual teria de servir um real propósito – substituir o programa anterior, visando a gestão das encomendas, planeamento e fabricação – estabelecido pela Recorrente.

79 - No contrato em apreço a prestação típica – no caso a cargo da Recorrida – é de resultado e não de meios, quer quanto à conformidade do produto fornecido para os fins visados, quer quanto à sua personalização aos pedidos da Recorrente - o contrato possuía um objetivo específico e determinado que devia ser cumprido na integralidade.

80 - In casu, resulta demonstrado que a Recorrida se revelou perfeitamente incapaz de concluir com êxito a retificação dos erros do programa e a implementação dos pedidos de personalização do software às necessidades e exigências da Recorrente, logo não atingiu o resultado a que se obrigara, sendo evidente o seu incumprimento definitivo.

81 - Consequentemente, estava a Recorrente legitimada a resolver o contrato –como se fez - ao abrigo do disposto no nº. 1 do artº. 432º., nº, 1 do artº. 799º. e nº. 2 801º., todos do Código Civil.

82 - Ao propugnar o inverso a sentença do Tribunal a quo violou o nº. 1 do artº. 432º., nº. 1 do artº. 799º. e nº. 2 do artº. 801º., todos do Código Civil.

83 - Em suma, por todo o supra exposto, a sentença recorrida merece censura, pois, incorre em erro de julgamento de facto e de direito, tudo nos termos sobreditos.


*

A Requerente respondeu ao recurso da Ré, batendo-se por que lhe fosse negado provimento e por que fosse mantida a sentença recorrida, não formulando conclusões.

*

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.

*

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

* *

*


II.- Das questões a decidir

O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art. ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.

Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art. ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).

Neste pressuposto, as questões que, neste recurso, importa apreciar e decidir são as seguintes:

i.- da impugnação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida quanto aos factos provados com os n.ºs 2, 3, 4, 5, 6, 7, 20 e 36 e quanto aos não provados constantes das alíneas a) e c) a t);

ii.- da qualificação do contrato celebrado entre Apelante e Apelada e do regime normativo que lhe é aplicável;

iii.- da resolução do contrato pela Apelante.


* *

*


III.- Da Fundamentação

III.I.- Na sentença proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso foram considerados provados os seguintes factos:

1.- A Autora exerce a atividade de programação informática e comércio a retalho de computadores, unidades periféricas e programas informáticos, em estabelecimentos especializados.

2.- É uma empresa de produção, venda e manutenção de software que se dedica, quase exclusivamente, à indústria do calçado, tendo mais de 24 anos de experiência neste setor de atividade.

3.- É líder em implementações de software na indústria do calçado, com cerca de 50% de quota de mercado, tendo em conta o top 100 volume de negócios, sendo certo que do top 10 resultado líquido, 8 são seus clientes.

4.- Detém uma taxa de fidelização acima dos 98% e conta com mais de 400 clientes activos.

5.- A Autora e o seu software, denominado “...”, são certificados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pela DGERT, pela APCER (ISO 9001- 2015), sendo a primeira, ainda, aderente ao compromisso “pagamento pontual” da ACEGE e fornecedora creditada pela APICCAPS, pelo IAPMEI e Indústria 4.0.

6.- O citado “...” é um software de evolução contínua, tendo em conta as questões legais e as novas funcionalidades solicitadas pelos clientes.

7.- Sendo, portanto, um software capaz de se adaptar aos diferentes clientes, de reconhecida e inegável qualidade e com enorme procura neste setor de atividade.

8.- A Ré é uma empresa que se dedica à atividade de fabrico de calçado.

9.- No exercício da sua atividade, a Autora, a solicitação da Ré, forneceu e instalou na sede da Ré um programa personalizável ..., versão PRO (11 – 15 Postos), pelo preço de 15.000 euros, acrescido de IVA à taxa em vigor.

10.- Autora e Ré acordaram nos termos descritos em 9) em data não concretamente apurada do ano de 2018, mas necessariamente posterior a 18.05.2018 e anterior a 15.11.2018.

11.- A 30.03.2018, foi apresentada à Ré um orçamento nos termos descritos em 9).

12.- Posteriormente, em 18.05.2018, a requerente remeteu novo orçamento, agora com hardware, proposta essa que não foi aceite pela Autora, sendo acordado o vertido em 9).

13.- Por razões de conveniência da Ré decorrentes dos constrangimentos gerados pela ocorrência de um incêndio nas suas instalações, a implementação do programa teve o seu início a 15.11.2018, tendo sido ministradas pela Autora, nas instalações da Ré, de 15.11.2018 a 10.01.2019, 41 horas e 15 minutos de formação aos funcionários/colaboradores da Ré.

14.- Para além do descrito em 13), de 15.11.2018 a 21.01.2020, a Autora prestou à Ré, de forma remota, 6 horas e 15 minutos, de trabalho atinente a atualização e adaptação do programa às solicitações da Ré.

15.- Prestou, de forma remota, 5 horas e 15 minutos de trabalho de ajustes nas configurações do programa às solicitações da R.

16.- Prestou 2 horas e 30 minutos na conceção de soluções e funcionalidades, acolhidas no programa, às solicitações da Ré.

17.- Prestou 58 horas, de forma remota e presencial, de assistência aos funcionários e colaboradores da Ré na utilização do programa.

18.- A Autora, na sequência do descrito em 10), emitiu e entregou a fatura 2019/192, no valor de 16.605 euros, datada de 04.01.2019 e com a mesma data de vencimento.

19.- A fatura foi enviada à Ré e, pese embora o vencimento da mesma e, tendo sido interpelada diversas vezes, encontra-se, à presente data, por liquidar.

20.- Os colaboradores da Ré, no período que decorreu entre a instalação do programa e a rutura das relações comerciais – a 21.01.2020 –, demonstraram resistência na adoção dos métodos de trabalho que a utilização do programa implicava por oposição ao software anteriormente utilizado.

21.- Em cumprimento do acordo celebrado com a Ré, a Autora procedeu ao tratamento das bases de dados do programa anterior, criando uma nova base de dados, com software mais sofisticado – SQL server por oposição à baseada em Microsoft Acess – para otimização na utilização da mesma.

22.- À data da celebração do acordo, a Ré utilizava, para a sua laboração, programa informático que se mostrava lento na gestão da informação e dificuldades na interação com outras instâncias também utilizadas, por exemplo, MS Acrobat 21.

23.- A emissão da licença em nome da Ré, a solicitação da Autora e para utilização do seu programa, viria a ocorrer em 15.11.2018, não sendo permitida, pela AT, a emissão de licenças de software com nome do cliente em modo demonstração, desde logo, para impedir a emissão de documentos fiscalmente relevantes nessas condições.

24.- A fatura referida em 18) apenas foi emitida na data que dela consta a solicitação da Ré e para dela fazer constar menções e data que permitissem à Ré inscrever tal despesa em candidatura de programa de apoio a empresas.

25.- Em 04.01.2019 foi emitida a fatura e sobre a mesma não incidiu qualquer reclamação, existindo várias conversas entre as partes no sentido de justificar o porquê de a fatura não ser paga de imediato, face à alegada candidatura a um projeto do “Portugal2020”, sendo inclusive discutida a possibilidade de creditar a fatura e voltar a faturar numa data mais de acordo com a data da alegada submissão daquele projeto.

26.- Os softwares vendidos pela Autora são objeto de constante adaptação e personalização às necessidades do cliente.

27.- Resultando tal adaptação e personalização da interação com os seus utilizadores que dão conta, justamente em contexto de utilização dos mesmos, dos erros e necessidades específicas e às quais vão dando resposta.

28.- Em caso de erro de faturação ou outra situação de necessidade de repetir a faturação, o programa previa a funcionalidade de, estando concluída a faturação da encomenda, passar o estado da encomenda para o estado “em produção” e, deste modo, anulada a primeira fatura, emitir nova fatura correspondente à encomenda em causa.

29.- A solução descrita em 28) ocorre porque o programa é um software integrado, ou seja, o cliente tem a possibilidade de emitir uma fatura, através de uma encomenda ou ordem de produção, quando essa fatura é emitida produz efeitos na encomenda, nomeadamente, colocando as quantidades como entregues e, no caso da quantidade ser totalmente entregue, pode ou não, pois é uma opção, colocar a encomenda em estado concluído.

30.- Pelo que uma ordem de produção pode ser ou não faturada, sendo recomendação da Autora a todos os seus clientes que, quando uma encomenda é faturada na totalidade, deve ficar no estado concluído - para evitar a emissão redundante de informação fiscalmente relevante -, mas é uma configuração do sistema, pode ou não acontecer, pelo que o estado pode passar para “em pagamento” e só ficar concluída quando é emitido o recibo.

31.- A Ré, em data não concretamente apurada, mas durante o mês de maio de 2019, solicitou à Autora uma funcionalidade de desdobramento das encomendas – divisão da encomenda de grandes quantidades em pedidos mais pequenos –, tendo a Autora oferecido a possibilidade, como já implementada no programa da realização de sortimentos (utilizando um algoritmo já previsto que fazia o agrupamento de forma pré-definida, com utilização de código de distribuição automática por tarifas a 10 pares, colocando – 1 no número de tarifas).

32.- Após o que, e para ir ao encontro das necessidades da Ré, a Autora criou uma funcionalidade no programa, com a utilização combinada de teclas (Ctrl + E), para permitir o desdobramento imediato de encomendas com a indicação, pelo utilizador, do plano de agrupamento de forma personalizada.

33.- Tal funcionalidade acabou por ser integrada no programa, passando a ser característica do mesmo.

34.- O programa não permitia a numeração das ordens de fabrico, pelo que os colaboradores da Ré não sabiam quantas notas de fabrico perfaziam a totalidade da encomenda, gerando sempre dúvidas sobre a quantidade total encomendada, correndo o risco de duplicação, sem registo.

35.- Cada nota de fabrico mostrava, nos consumos, a necessidade total de cada componente da encomenda a que correspondia e não a necessidade daquela ordem de fabrico individualmente, induzindo o utilizador em erro, pois ao separar os materiais para cada ordem de fabrico, estavam na realidade a separar a totalidade.

36.- À data de 21.01.2020, a Autora não tinha logrado ultrapassar o problema apontado em 34) e 35), tendo proposto a alteração do modo de atuação da Ré, com o abandono da utilização das várias estações como forma de resolução do problema, solução essa que o programa previa e atalhava ao problema (contemplando apenas um plano de produção com várias subdivisões e que mantém a interligação nas várias secções de produção com diferentes divisões - no corte e na costura pode ser mais produtivo divisões maiores e agrupadas a 10 e na montagem é necessário respeitar o formeiro).

37.- A 07.01.2020, Autora e Ré reuniram para fazer um balanço da implementação do programa e para acordar nos termos da faturação.

38.- Após o que, em 21.01.2020, e em nova reunião, as partes não alcançaram qualquer acordo quanto ao pagamento da fatura emitida.

39.- A Ré, até à presente data, não liquidou a fatura.


*

III.II.- Na mesma sentença não foram considerados provados os seguintes factos:

a.- Aquando da celebração do contrato, as partes acordaram que o software seria instalado a título experimental.

b.- Durante a formação ministrada foi detetada falta de conhecimentos de gestão dos colaboradores e da própria gerência da Ré, existindo muitas dúvidas sobre os procedimentos básicos (a título de exemplo, a forma como eram tratadas as faturas à consignação que não respeitava minimamente o exigido pela AT ou, até mesmo, a forma como apresentam os supostos defeitos na emissão de faturas pelo “...” e do seu tratamento contabilístico, pois que afirma que recebe uma fatura e no caso de não aceitar a mesma, não comunica isso ao fornecedor nem regista na contabilidade).

c.- A utilização, pela Ré, do programa fornecido pela Autora causou problemas na produção, obrigando os colaboradores a conferir todas as listagens emitidas pelo sistema informático e causando atrasos no fornecimento do processo produtivo.

d.- Aos problemas que eram reportados pela Ré, a Autora oferecia resolução que passava por soluções provisórias ou por “enganar o sistema”.

e.- Existiam vários tipos de documentos que não permitiam impressão direta, obrigando a que o documento fosse exportado para formato PDF e depois impresso manualmente, como por exemplo, faturas, o que com o volume de trabalho da Ré, lhe causava atrasos, pois enquanto o funcionário exportava o documento, gravava o ambiente de trabalho, minimizava o programa, abria o documento e mandava imprimir.

f.- Se um artigo fosse facturado por engano e o documento tivesse que ser anulado, o programa não voltava a permitir voltar a faturar,

g.- Tendo a Autora, para solucionar o problema, proposto “enganar” o programa, colocando a encomenda “em produção”.

h.- O desdobramento das encomendas nos moldes descritos em 31) criava uma falsa subdivisão e depois tinha que ser manualmente alterada para poder faturar a quantidade correta.

i.- As notas subdivididas no sistema com (-1 ou 0) não ficavam registadas, o que permitia duplicações caso o operador não estivesse atento.

j.- E impedia que se faturasse pares subdivididos.

k.- As requisições de materiais mostravam o somatório de todas as quantidades, independentemente da unidade de cada um dos artigos (pés/m2…), ou seja, se fossem introduzidos 100 pés de pele branca e 10 m2 de pele preta, o somatório das quantidades que aparece é de 110, quando deveria estar convertido, em uma das duas unidades de referência, ou em pés ou metros quadrados, o que causava problemas com os pedidos e quantidades de material.

l.- Se os colaboradores da Ré pedissem apenas um pé de amostras, o programa assumia que estava a ser pedido um par de amostras, ou seja, não reconhecia a possibilidade de serem pedidos meios pares, pelo que a indicação de fabrico de amostras de um pé tinha que ser realizada à mão no pedido de amostra.

m.- Sendo que, quando eram efetuados pedidos de material e a amostra era faturada ao cliente, essa situação tinha que ser considerada, o que obrigava a uma maior atenção e perda de tempo por parte dos vários colaboradores que tratavam das diversas situações que estavam relacionadas com aquele pedido.

n.- Se um artigo fosse aberto com uma escala de tamanhos (36/42) e se em data posterior surgisse um pedido de encomenda em 35, ao gerar os formeiros, os tamanhos alinhavam e somavam todos à direita, fazendo com que o programa somasse tamanhos diferentes como sendo iguais, dando origem a um relatório completamente falacioso.

o.- Logo as escalas tinham que ser sempre geradas do 35 ao 42, independentemente das compras no momento, o que mais uma vez implicava perda de tempo, atenção reforçada e dava azo a erros e problemas na produção.

p.- Sendo certo também que, ainda ao dia de hoje, a Ré, quando necessita consultar a informação que ficou armazenada no programa, programa este que já não utiliza mas que está disponível para consulta, é recorrente os colaboradores encontrarem documentos que, ao serem impressos, saem com o cabeçalho de outras empresas.

q.- Aquando da instalação do programa, havia sido combinado que a fatura só seria emitida quando o sistema estivesse a funcionar em pleno, sendo expectável que no ano de 2019.

r.- A atuação da Autora prejudicou gravemente o trabalho diário da Ré, enquanto aguardava por uma solução que supostamente estava a ser tratada, mas que na verdade não estava sequer a ser considerada.

s.- O programa instalado não tinha as qualidades asseguradas pela Autora e impediu a realização cabal do fim a que se destinava, como aliás foi reconhecido pelo legal representante da Autora na reunião havida nas instalações da Ré no dia 21.01.2020, na qual pelo mesmo foi aceite que o contrato se considerava resolvido a partir daquela data.

t.- Resolução que a R. ali declarou à A.


* *

*


III.II.- Do objeto do recurso

1.- Da impugnação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida

.- O presente recurso versa, desde logo, sobre a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida.

Os termos em que a Relação pode conhecer da matéria de facto impugnada em sede de recurso constam, no essencial, do art.º 662.º do Código de Processo Civil.

De acordo com o disposto no n.º 1 deste preceito, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Por seu turno, nos termos do n.º 2, a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:

a) ordenar a renovação da produção da prova quando houve dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;

b) ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;

c) anular a decisão proferida na 1.ª Instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração proferida sobre a decisão da matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;

d) determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

Da leitura de tais dispositivos legais resulta que à Relação é, em sede de recurso em que esteja em causa a impugnação da matéria de facto, conferido um grau de autonomia especialmente relevante.

Na realidade, se, confrontada com a prova globalmente produzida, o seu juízo decisório for diverso do da 1.ª Instância, à Relação incumbe hoje, não a faculdade ou a simples possibilidade, mas um verdadeiro dever de introduzir as alterações que tenha por convenientes ou acertadas.

Por outro lado, se, confrontada com essa mesma prova, reputá-la insuficiente ou mesmo inconsistente, deverá, mesmo sem impulso das partes nesse sentido, o mesmo é dizer oficiosamente, ordenar a renovação de prova já produzida ou mesmo a produção de novos meios de prova.

Em sede de reapreciação da matéria de facto, cabe à Relação, por conseguinte, formar a sua própria convicção quanto à prova produzida, convicção essa que, caso divirja da firmada em 1.ª instância, prevalecerá sobre esta.

Ou seja, e como refere António Santos Abrantes Geraldes, a Relação atua nesta sede com “autonomia decisória” e “como verdadeiro tribunal de instância”, ao qual compete “introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal” (in Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, p. 334).

A posição que a Relação deve adotar quando confrontada com um recurso em matéria de facto deve, pois, ser a mesma da da 1.ª Instância aquando da apreciação da prova após o julgamento, valendo para ambos o princípio da livre apreciação da prova, conforme resulta, aliás, do disposto nos art. ºs 607.º, n.º 5 e 663.º, n.º 2 do CPC.

O mesmo é dizer, com Remédio Marques, que a “Relação tem o poder-dever de formar a sua convicção própria sobre a prova produzida e sobre a correção do julgamento da matéria de facto, não se devendo escusar a fazê-lo com base no princípio da livre convicção do julgador da 1.ª instância” (in Acção declarativa à luz do Código revisto, p. 637-638, apud José Lebre de Feitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, p. 172).

Só assim se garantirá, de resto, a efetiva sindicância, por parte da Relação, do julgamento da matéria de facto levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, o princípio fundamental do duplo grau de jurisdição (v., neste sentido, e entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24-09-2013, de 26-05-2021 e de 04-11-2021, todos disponíveis na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).

.- A autonomia decisória com que a Relação deve encarar a reapreciação da matéria de facto não pode implicar, contudo, a consideração genérica e indiscriminada de todos os factos e meios de prova já tidos em conta pela 1.ª Instância, como se aquela reapreciação impusesse a realização de um novo julgamento.

Dispõe, com efeito, o art.º 640.º, n.º 1 do CPC que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

.- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (alínea a);

.- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida (alínea b);

.- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c).

Por outro lado, de acordo com a alínea a) do n.º 2, sempre que os meios de prova que, nos termos da alínea b) do n.º 1 devem ser especificados, tenham sido gravados, incumbe ao recorrente indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Resulta de tais normativos legais que sobre o recorrente que pretenda ver sindicado pela Relação o julgamento da matéria de facto feito em 1.ª instância recai o ónus de, não só circunscrever e delimitar a concreta matéria de facto de cujo julgamento discorda, como o de enunciar os meios de prova que deveriam ter conduzido a decisão diversa - apontando, neste caso, em se tratando de depoimentos gravados, as passagens da gravação ou procedendo à transcrição dos excertos relevantes - e, ainda, o de indicar o sentido da decisão que, na sua perspetiva, deve ser proferida.

O sistema adotado pelo legislador quanto ao julgamento da matéria de facto pela Relação, ao invés de uma solução pautada pela simples “repetição dos julgamentos” e “pela admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto”, consiste, pois, num sistema caracterizado “por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”, como corolário do “princípio do dispositivo que se revela através da delimitação do objeto do recurso (da matéria de facto) através das alegações” (v., neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, in ob. cit., p. 195 e 341).

Isto, aliás, com reflexos na aferição da própria admissibilidade do recurso em matéria de facto, já que, como decorre expressamente do corpo do preceito que acaba de ser transcrito, o ónus que recai sobre o recorrente deve ser cumprido sob pena de rejeição do próprio recurso.

Do sistema assim concebido pelo legislador podemos entrever, em suma, e como se referiu no Acórdão do STJ de 29-10-2015, um “ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação”, bem como de “um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes” (sublinhados nossos; Acórdão disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).

.- Sublinhe-se, ainda, que com a impugnação da decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância pretende-se, passe a redundância, alterar o julgamento feito quanto aos factos que, por via da impugnação, se reputam mal julgados.

Isto, contudo, não como fim em si mesmo, mas como meio ou instrumento de, mediante a alteração do julgamento dos factos impugnados, se poder concluir que - afinal - existe o direito que em 1.ª instância não foi reconhecido ou, pelo contrário, que não existe o direito que o foi; o mesmo é dizer, como meio de provocar um diverso enquadramento jurídico dos factos do levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, obter uma decisão diversa da nele proferida quanto ao fundo da causa.

A impugnação da decisão da matéria de facto tem, por conseguinte, como referido no Acórdão da Relação de Guimarães de 15-12-2016, “carácter instrumental”, “não se justifica(ndo) a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo um carácter instrumental face à mesma” (Acórdão proferido no processo n.º 86/14.0T8AMR.G1, disponível na internet, no local já antes citado).

O seu fim último é, pois, como também referido no Acórdão da Relação de Coimbra de 24-04-2012, naquele citado, “conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada”, não com esse único intuito, mas sim “de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante”.

Por este motivo, o tribunal de recurso não deve conhecer a impugnação da matéria de facto sempre que, como se escreveu no Acórdão da Relação de Coimbra de 27-05-2014, também citado naqueloutro, “o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (sublinhado nosso).

.- Dos factos provados com os n.ºs 2, 3, 4, 5, 6 e 7

In casu, começa a Apelante por se insurgir contra a consideração como provados dos factos constantes dos n.ºs 2, 3, 4, 5, 6 e 7, factos estes que, na sua perspetiva, deviam ter sido julgados não provados.

Tais factos são do seguinte teor:

2.- É uma empresa de produção, venda e manutenção de software que se dedica, quase exclusivamente, à indústria do calçado, tendo mais de 24 anos de experiência neste setor de atividade.

3.- É líder em implementações de software na indústria do calçado, com cerca de 50% de quota de mercado, tendo em conta o top 100 volume de negócios, sendo certo que do top 10 resultado líquido, 8 são seus clientes.

4.- Detém uma taxa de fidelização acima dos 98% e conta com mais de 400 clientes activos.

5.- A Autora e o seu software, denominado “...”, são certificados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pela DGERT, pela APCER (ISO 9001- 2015), sendo a primeira, ainda, aderente ao compromisso “pagamento pontual” da ACEGE e fornecedora creditada pela APICCAPS, pelo IAPMEI e Indústria 4.0.

6.- O citado “...” é um software de evolução contínua, tendo em conta as questões legais e as novas funcionalidades solicitadas pelos clientes.

7.- Sendo, portanto, um software capaz de se adaptar aos diferentes clientes, de reconhecida e inegável qualidade e com enorme procura neste setor de atividade.”

Quanto a tais factos, há que dizer que, atenta a natureza instrumental da impugnação da decisão da matéria de facto de que acima se deu conta, não há que conhecer da presente impugnação quanto a eles.

Na verdade, aquilo que está (e sempre esteve) verdadeiramente em discussão nos autos é saber se, por um lado, sobre a Apelante recaía a obrigação de pagamento do preço do serviço prestado pela Apelada; por outro lado, se este serviço foi prestado com defeito e não servia o fim a que se destinava e, consequentemente, se havia fundamento para a resolução do contrato pela Apelante.

Ora, os factos em questão dizem respeito, não a quaisquer vicissitudes atinentes à celebração do contrato entre Apelante e Apelada, nem muito menos aos termos da sua execução e (in)cumprimento, mas, ou às características - gerais - da Apelada enquanto empresa, ou às características - gerais - do software que esta detém para venda e instalação aos seus clientes.

Trata-se, assim, de factos que, independentemente da correção ou incorreção do julgamento feito quanto a eles em 1.ª instância, nenhum relevo teriam, quer enquanto contributo para o julgamento dos restantes factos, quer para a definição do direito aplicável ao caso.

A própria Apelante, de resto, é a primeira a reconhecê-lo, ao afirmar expressamente na sua motivação de recurso que se trata de factos “instrumentais, que nada acrescentam ao objeto do processo e à boa decisão da causa”, ainda que, apesar de o dizer, acabe por impugnar o julgamento que deles foi feito.

Pelo exposto, porque inútil, não se conhece da impugnação da decisão da matéria de factos quanto a tais factos.


*

.- Do facto provado n.º 20

O facto em apreço é do seguinte teor:

20.- Os colaboradores da Ré, no período que decorreu entre a instalação do programa e a rutura das relações comerciais – a 21.01.2020 –, demonstraram resistência na adoção dos métodos de trabalho que a utilização do programa implicava por oposição ao software anteriormente utilizado.”

A Apelante bate-se no recurso por que tal facto seja considerado não provado, por, no seu entender, não ter sido produzida prova direta e cabal quanto a ele.

A este respeito, concorda-se com a Apelante assim como que, na realidade, não há prova que sustente a verificação do facto em análise.

Assim, as únicas pessoas que, das inquiridas em julgamento, depuseram com potencial relevo de confirmação do facto foram as testemunhas EE, técnica de informática da Apelada, e FF, comercial da Apelada.

A primeira, à pergunta sobre a razão pela qual na empresa da Apelante não houve adaptação ao programa, respondeu que “pode ser mau uso do programa, pode ser resistência à mudança… só houve reclamações depois da exigência do pagamento”.

A segunda, por seu turno, a propósito da mesma matéria, referiu que “a impressão com que ficou foi que o trabalho [na empresa da Apelante] estava a correr mal, que havia resistência à mudança e tentaram pôr culpa no software”.

De tais segmentos dos depoimentos das testemunhas infere-se que a referência feita por estas à suposta “resistência” dos funcionários da Apelada ao novo software consistiu numa eventual explicação, entre outras, da razão pela qual o software instalado pela Apelada não mereceu aceitação pela Apelante.

A alusão à “resistência” surgiu, assim, no contexto de tais depoimentos, mais como opinião a respeito da questão com que foram confrontadas, do que propriamente como revelação de facto sustentada em conhecimento direto da realidade nela pressuposta.

Por conseguinte, e porque, como se disse na própria sentença recorrida (ainda que não se extraindo daí a consequência que se impunha no que ao facto em apreço diz respeito), ninguém dos “colaboradores da [Apelante] mais próximos das áreas (produção, armazém, contabilidade), com utilização diária e permanente do programa” foi ouvido em julgamento, “para perceber se justamente houve efectiva receção destes às novidades trazidas por um sistema diferente” do anterior, forçoso é, na ausência de prova cabal sobre tal facto, considerá-lo não provado.

Procede, pois, a impugnação da Apelante no que diz respeito a tal facto.


*

.- Dos factos não provados das alíneas a) e q)

Os factos em apreço dizem respeito, respetivamente, a termos do acordo celebrado entre Apelante e Apelada e à data de vencimento da obrigação da Apelante de pagamento do preço do serviço prestado pela Apelada, pelo que, dada a sua ligação intrínseca, procederemos à sua análise em conjunto.

Tais factos são do seguinte teor:

“a.- Aquando da celebração do contrato, as partes acordaram que o software seria instalado a título experimental.

q.- Aquando da instalação do programa, havia sido combinado que a fatura só seria emitida quando o sistema estivesse a funcionar em pleno, sendo expectável que no ano de 2019.

Os factos em apreço inserem-se na linha de defesa da Apelante, segundo a qual, no que ao contrato que serve de fundamento à ação diz respeito, a instalação do software pela Apelada na empresa daquela seria feita a “título experimental” e que só depois de constatado que o programa estava a funcionar em pleno, tendo, portanto, as qualidades que a Apelada asseverou que tinha, seria pago o preço correspondente.

Depuseram no sentido de tais factos, confirmando-os, as testemunhas AA, diretora de serviços da Apelante e DD, diretora-geral da Apelante, que foram, como revelado pelas próprias e confirmado pela legal representante da Apelante, GG, nas suas declarações, as responsáveis pela negociação com a Apelada. A primeira testemunha, salientando que a negociação propriamente dita ocorreu entre o legal representante da Apelada e, da parte da Apelante, a segunda testemunha, referiu que “acordaram avançar com o programa”, mas, quanto ao pagamento, este só seria efetuado “quando estivesse a funcionar a cem por cento e tudo estivesse a correr sobre rodas”. A segunda testemunha, por seu turno, também referiu que “decidiram avançar com o programa”, mas, no âmbito de um “desafio” que lançou ao representante da Apelada e aceite por este, só depois do fornecimento do programa, de ser dada formação e de o programa estar a funcionar “a cem por cento” é que o pagamento seria feito.

Já o legal representante da Apelada, CC, bem como as testemunhas EE e FF (relembre-se, técnico de informática e comercial da Apelada, respetivamente), contrariaram tal versão dos factos. O primeiro referiu que faturam os programas informáticos que fornecem “após instalação e formação”, sendo que, no caso da Apelante, até dilataram o prazo de pagamento, já que esta tinha “um projeto no IAPMEI” e, “tendo em conta as boas relações comerciais (…), facilitaram a faturação, aguardaram algum tempo e faturaram mais tarde”. A segunda, apesar de não ter negociado ou presenciado a negociação do contrato dos autos, referiu, no contexto geral do seu depoimento, que “o cliente tem de ser nosso para implementarem o programa” e que “só há implementação do programa quando há aceitação efetiva do negócio”. A terceira, finalmente, não tendo, também, intervindo na negociação, referiu, contudo, que a fatura do serviço prestado à Apelante foi emitida em “janeiro de 2019” e que assim o fazem “quando acham que o programa já está em funcionamento”, Isto, além de referir que, entretanto, não tendo “recebido um cêntimo” pelo serviço prestado, diligenciou junto da Apelante pelo pagamento da fatura devida.

Nesta dualidade de versões antagónicas, convencemo-nos, do mesmo modo que se convenceu o tribunal a quo, que os termos do acordo celebrado corresponderam, não àquilo que foi referido pelas testemunhas da Apelante, mas à versão dos factos trazida pelo legal representante e pelas testemunhas da Apelada.

Na verdade, e desde logo, foi a Apelante quem, como referido pelas suas testemunhas BB (responsável comercial da Apelante) e DD, teve a iniciativa de, pretendendo adquirir um novo software, já que o que detinha era “obsoleto”, procurar a Apelada, depois de obterem informação de que esta fornecia um software de gestão da indústria do calçado. Ou seja, não foi a Apelada que, num contexto de angariação de clientes, foi ter com a Apelante para apresentar o seu produto, mas foi esta que, carecendo de novo software para a sua organização empresarial e pretendendo adquirir um outro, foi ter com a Apelante. Não é, por conseguinte, de todo verosímil que a Apelante, procurada que foi para fornecimento do seu produto, tenha disponibilizado o seu serviço a título meramente “experimental”, sujeitando-se à contingência de o seu pagamento como que ficar dependente do critério subjetivo da Apelante no que à aceitação do serviço diz respeito.

Acresce que, como salientado pelo legal representante da Apelada e pela testemunha desta EE, o software fornecido pela Apelada era de gestão industrial e contemplava o procedimento contabilístico da Apelante. A sua validade junto da Autoridade Tributária pressupunha, por conseguinte, a sua certificação e essa certificação, por sua vez, pressupunha a faturação do software, o que, em si mesmo, contraria a ideia que as testemunhas da Apelante quiseram transmitir, de que a instalação do programa informático pela Apelada tivesse sido feita a título meramente “experimental”.

Finalmente, tal como resulta da restante factualidade assente (não posta em causa pela Apelante): a negociação entre as partes ocorreu em meados de 2018 (v. facto provado n.º 10); a instalação do programa foi realizada em finais de 2018 (v. facto provado n.º 13); a Apelada, entre 15-11-2018 e 10-01-2019, ministrou 41h15 minutos de formação a colaboradores da Apelante (v. facto provado 13) e, de 15-11-2018 a 21-01-2020, prestou à Apelante, remotamente, 06h15m de trabalho relacionado com o software a instalar (v. facto provado 14), além de mais de 5 horas de ajustes nas configurações do programa, mais de 2 horas na conceção de soluções e funcionalidades e 58 horas de assistência na utilização do programa (v. factos provados n.ºs 14 a 17). Ou seja, a relação entre Apelante e Apelada perdurou durante um período especialmente duradouro, esta disponibilizou àquela tempo e recursos seus especialmente significativos e o serviço prestado contemplou aspetos de adaptação e personalização do software às especificidades da empresa da Apelante. Nenhum sentido faria, assim, que, no contexto de uma relação com tais características, o serviço prestado pela Apelante o tivesse sido a título meramente “experimental” e que o seu pagamento estivesse dependente de uma condição tão vaga e incerta como era a de o sistema estar a funcionar “a cem por cento”.

Ou seja, a versão trazida aos autos pelas sobreditas testemunhas da Apelada contraria as regras da lógica e da experiência comum, pelo que, como se disse já, convencemo-nos que os termos do acordo celebrado, no que aos factos diz respeito, são os consonantes com a versão da Apelada e não com a versão da Apelante.

Nenhuma censura merece, por conseguinte, a decisão do tribunal a quo, ao incluir os factos em apreço no elenco de factos não provados, improcedendo a impugnação da decisão da matéria de facto da Apelante na parte aqui em apreço.


*

.- Do último período do facto provado n.º 36

O facto em apreço diz o seguinte:

.- “36.- À data de 21.01.2020, a Autora não tinha logrado ultrapassar o problema apontado em 34) e 35), tendo proposto a alteração do modo de atuação da Ré, com o abandono da utilização das várias estações como forma de resolução do problema, solução essa que o programa previa e atalhava ao problema (contemplando apenas um plano de produção com várias subdivisões e que mantém a interligação nas várias secções de produção com diferentes divisões - no corte e na costura pode ser mais produtivo divisões maiores e agrupadas a 10 e na montagem é necessário respeitar o formeiro).

A Apelante insurge-se no recurso contra a consideração como provado do segmento do facto correspondente ao seu segundo período, isto é, a partir de: “solução essa que…”. Na sua perspetiva, tal segmento factual não resultou da prova produzida em julgamento, pelo que deve ser considerado não provado.

Devidamente analisada a prova produzida em julgamento e constante dos autos, concluímos que assiste razão à Apelante e que o segmento do facto em apreço deve, na realidade, ser excluído do elenco de factos provados.

Na verdade, o facto em apreço está conexionado com a vicissitude apontada ao software fornecido pela Apelada à Apelante melhor descrita nos n.ºs 34 e 35 dos factos provados, consubstanciada no facto de - grosso modo - o programa não permitir a numeração das ordens de fabrico e de cada nota de fabrico mostrar, nos consumos, a necessidade total de cada componente da encomenda a que correspondia e não a necessidade daquela ordem de fabrico individualmente.

A este respeito, a testemunha EE, depois de confirmar em juízo que a questão do desdobramento das ordens de fabrico não estava solucionada, referiu que estavam a alterar o software de modo a que o sistema passasse a prever essa funcionalidade. Ou seja, a testemunha reconheceu que o aludido problema ainda não estava resolvido, mas que estava em vias de solução, o que, em si mesmo, contraria a possibilidade de o sistema oferecer uma solução alternativa, tal como consta do segmento do facto em apreço. Acresce que, ainda de acordo com a testemunha, aquilo que a Apelante pretendia do sistema era que “nós puséssemos o software a interpretar que [o desdobramento das ordens de fabrico] era um plano dividido por 10”, ao passo que “para nós, enquanto sistema, isso são 10 ordens diferentes”. Ou seja, de acordo com a testemunha, aquilo que a Apelante pretendia – e, portanto, ainda não tinha sido conseguido – era precisamente a consideração das ordens de fabrico enquadradas num “plano de produção”, que é aquilo que, de acordo com o teor dos factos provados n.ºs 34 e 35, ainda não era possível retirar do programa. Além de não confirmado pelo depoimento da testemunha, o segmento do facto em apreço, visto nesta perspetiva, é, inclusive, afastado por ele.

A testemunha FF, por seu turno, a propósito da matéria de facto em questão, depois de confirmar, também, não ser possível o desdobramento das ordens de fabrico tal como pretendia “o cliente”, referiu que já o seria se este “mudasse a sua forma de trabalhar”, com o abandono do sistema das “várias estações”. Se essa alternativa de laboração correspondia, contudo, àquilo que consta do segmento do facto em apreço é algo que não resulta, pelo menos claro, do seu depoimento. Que assim é ilustra-o o seguinte trecho do seu depoimento, em que a testemunha depôs sobre a realidade factual em apreço: “as estações são estâncias do programa, se o cliente estiver a usar as estações, sempre que usar uma estação nova, as numerações das ordens de fabrico vão começar de novo, porque são estâncias diferentes. Se o cliente usar sempre uma estação, não quiser usar aquela tecnologia, usando só uma estância, aí não vai repetir a numeração das ordens de fabrico porque está sempre a trabalhar na mesma estação, nós damos ao cliente essa possibilidade de trabalhar. Não é questão de imporem ao cliente adaptação ao seu software, questão é se cliente pretende que numeração das ordens de fabrico não se repita usando as estações, não devem usar essa tecnologia, podem usar outro caminho. Isto é, têm a possibilidade de trabalhar de outro modo”. Ou seja, do que foi dito pela testemunha não vemos como possível inferir aquilo que a 1.ª instância fez constar do segmento do facto em apreço.

Além destas testemunhas, ninguém mais depôs de forma cabal e consistente sobre a realidade de facto em causa, nem dos autos consta qualquer outro elemento de prova suscetível de o atestar.

O segmento do facto em apreço não está, pois, sustentado na prova produzida em julgamento, forçoso sendo, por conseguinte, a sua eliminação do elenco de factos provados e a sua inclusão nos não provados.


*

.- Do facto não provado da alínea c)

Este facto é do seguinte teor:

“c.- A utilização, pela Ré, do programa fornecido pela Autora causou problemas na produção, obrigando os colaboradores a conferir todas as listagens emitidas pelo sistema informático e causando atrasos no fornecimento do processo produtivo”.

A Apelante pugna por que tal facto seja considerado provado em razão, designadamente, dos depoimentos das testemunhas AA e BB.

O facto em apreço deve, contudo, manter-se no elenco de factos não provados.

Na verdade, além do seu pendor marcadamente conclusivo (está em causa saber se o software causou problemas na produção e se houve atrasos no fornecimento do processo produtivo, mas não se sabe que problemas teriam sido esses, que atrasos teriam ocorrido e a que fase do processo produtivo estaria a Apelante a referir-se), a alusão feita pelas ditas testemunhas a vicissitudes no trabalho realizado foi genérica e, em último termo, reportou-se a incómodos ou dificuldades acrescidas no modo de desempenho do trabalho e não em “problemas de produção”, nem muito menos em “atrasos de fornecimento”.

Acresce que as próprias testemunhas, apesar de terem sugerido dificuldades acrescidas, como referido, no desempenho do seu trabalho, o certo é que afastaram que tais dificuldades tenham originado problemas com a produção ou com satisfação de encomendas. Assim, e nomeadamente, a primeira testemunha, questionada sobre se resolviam o problema, respondeu que sim e à pergunta sobre se houve prejuízo evidenciou que não, “porque tivemos um ‘santo’ que nos ajudou lá de cima que por acaso olhámos e vimos”. Ou seja, para a testemunha, independentemente das razões por que tal ocorreu, não houve problemas com a produção ou com o fornecimento.

Finalmente, nenhuma outra pessoa das ouvidas em julgamento deu conhecimento de que alguma vicissitude do software fornecido pela Apelada tenha originado impactos negativos na produção de concretas encomendas ou de atrasos na sua preparação.

O facto em apreço não está sustentado, assim, em prova cabal, impondo-se a sua consideração como não provado, com a consequente improcedência da impugnação da Apelante nesta parte.


*

.- Do facto não provado da alínea e)

Este facto é do seguinte teor:

e.- Existiam vários tipos de documentos que não permitiam impressão direta, obrigando a que o documento fosse exportado para formato PDF e depois impresso manualmente, como por exemplo, faturas, o que com o volume de trabalho da Ré, lhe causava atrasos, pois enquanto o funcionário exportava o documento, gravava o ambiente de trabalho, minimizava o programa, abria o documento e mandava imprimir.”

Segundo a Apelante, o facto em apreço deve ser considerado provado em função, nomeadamente, daquilo que resultou da prova por declarações e testemunhal produzida em julgamento, da perícia realizada e dos documentos constantes dos autos.

Discorda-se, contudo, desta posição, já que, perante a prova produzida em julgamento e constante dos autos, o facto em apreço não só não resultou provado como, pelo contrário, resultou afastado.

Assim, no relatório pericial elaborado no âmbito da perícia que teve lugar nos autos, o Sr. Perito concluiu expressamente que “ficou demonstrado que é possível imprimir documentos a partir do software, não sendo necessário a sua exportação para PDF para posterior impressão com outro software (por exemplo, Acrobat Reader)”. Mais referiu que “não foi possível identificar um único tipo de documento que não pudesse ser impresso diretamente do software”.

Tal conclusão foi reiterada pelo Sr. Perito nos esclarecimentos prestados em audiência, sendo taxativo a esse respeito ao referir que o “software tinha o comportamento típico esperado em termos de impressão” e que “quando pedia para imprimir documento, o sistema operativo responde, exibindo caixa de diálogo, em que é possível escolher a impressora.”

Ou seja, o Sr. Perito, com o juízo técnico e científico que caracteriza a sua posição, afastou rotundamente a realidade pressuposta no facto em apreço.

Também as testemunhas EE e FF o afastaram, evidenciando, aliás, que os problemas de impressão surgidos disseram respeito, não ao software propriamente dito e à sua conceção, mas a aspetos relacionados com o próprio utilizador no posto da empresa da Apelante.

Ou seja, duas testemunhas, com especial razão de ciência, destacando-se naturalmente a primeira testemunha, que trabalhava diretamente com o software e cuja competência profissional mereceu consenso, inclusive, de quem, em julgamento, depôs a pedido da Apelante, afirmaram que o programa informático não apresentava a vicissitude em causa e que esta, quando se verificou, teve a ver com o ‘utilizador’.

É certo que as testemunhas AA (diretora de serviços da Apelante) e BB (responsável comercial da Apelante) sugeriram que o software causava problemas ao nível da impressão de documentos – segundo a primeira, “as caixas de impressão, em alguns postos, não eram selecionáveis”, o que vedava a possibilidade de impressão, tendo o operador, para este efeito, de, “na caixa de diálogo, fechar ou gravar para PDF” e então imprimir.

De tais depoimentos, contudo, nunca se poderia retirar a convicção segura quanto à verificação do facto. Desde logo, porque a realidade subjacente a tal facto foi categoricamente desmentida pelos sobreditos elementos de prova. Depois porque, bem analisados os depoimentos, as testemunhas não deixaram de associar a vicissitude reportada a concretos “postos” de colaboradores, assim sugerindo ou, pelo menos, não afastando que o problema por elas relatado tivesse como causa, não o software, mas questões relacionadas com o ‘utilizador’.

Em suma, não há claramente prova do facto em apreço, pelo que o mesmo deve manter-se no elenco de factos não provados, com a consequente improcedência da impugnação da Apelante quanto a ele.


*

.- Dos factos não provados das alíneas f) e g)

Tais factos dizem o seguinte:

f.- Se um artigo fosse facturado por engano e o documento tivesse que ser anulado, o programa não voltava a permitir voltar a faturar,

g.- Tendo a Autora, para solucionar o problema, proposto “enganar” o programa, colocando a encomenda “em produção”.

Segundo a Apelante, tais factos devem ser considerados provados em razão, no essencial, do resultado da perícia realizada, associado às declarações de parte e à prova testemunhal produzida em julgamento e à prova documental constante dos autos.

A respeito de tais factos, foram eles incluídos pelo tribunal a quo no elenco de factos não provados em razão, designadamente, do resultado da perícia realizada nos autos.

Concordando-se com o tribunal a quo assim como que o resultado da perícia é elemento probatório determinante para o julgamento de tais factos, já se discorda da interpretação que dele foi feita a esse respeito, entendendo-se antes que, ainda que haja aspetos dos factos em apreço afastados no relatório pericial, outros há que nele são confirmados.

Vejamos.

O Sr. Perito, no relatório pericial, em resposta, designadamente, às questões 3 e 4, afirmou o seguinte no que ao procedimento disponibilizado pelo software da Apelada em caso de anulação de faturas diz respeito.

Depois de faturada uma encomenda, esta “passa para o estado de concluída”. Uma vez “anulado o documento da fatura”, tal não implica alteração do estado da encomenda”, que, como tal, se mantém no estado “concluída”. Por isso, se se tentar faturá-la de novo tal não será possível no imediato, mas sê-lo-á através de uma passo adicional. Isto é, “o utilizador de software necessita de alterar o estado da encomenda para, por exemplo, ‘em produção’, para se poder voltar a faturar.

Este procedimento foi reiterado pelo Sr. Perito nos esclarecimentos que prestou em julgamento. Assim, de forma esclarecedora, referiu que “é possível anular a fatura; porém, a anulação por si só da fatura não permite a emissão imediata de nova fatura. Isso seria o que os utilizadores estariam à espera, mas essas expectativas podem não ser realistas. Implica um passo adicional, que é o de alterar o estado da encomenda, revertê-la do estado ‘concluída’ em que se encontra para ‘em produção’ e, a partir daí, é possível voltar a faturar. Isto é, é possível emitir nova fatura de encomenda que já tenha sido faturada, mas é preciso dois passos: anulação da fatura anterior e alteração do estado da encomenda”.

Ora, reportando as conclusões do Sr. Perito ao que consta dos factos em análise, temos por certo que se um artigo fosse faturado pela Apelante por engano a faturação podia ser anulada. Mas temos por certo, também, que, uma vez anulada, o sistema não permitia nova faturação no imediato e que tal só poderia ocorrer mediante reversão do estado da encomenda para “em produção”. E temos por certo, ainda, que se tratava aqui do mero exercício de uma funcionalidade do sistema informático e não, tal como a Apelante pretendeu dar a ideia, de “enganar” o sistema (o que quer que isso seja…!).

Isto é, há aspetos dos factos constantes das alíneas f) e g) dos factos não provados que se mostram evidenciados pela perícia, ao passo que outros não.

Impõe-se, por conseguinte, por forma a que tais factos passem a retratar fielmente a realidade que pretendem demonstrar, inclui-los no elenco de factos provados, mas introduzindo-lhes uma nota explicativa nos seguintes termos:

f.- Se um artigo fosse faturado por engano e o documento tivesse que ser anulado, o programa não permitia voltar a faturar imediatamente a seguir.

g.- Para o efeito, impunha-se que, previamente à nova faturação, se colocasse a encomenda no estado “em produção”.

De resto, a conclusão a que acaba de se chegar impõe-se até por forma a harmonizar os factos em apreço com aquilo que o próprio tribunal a quo fez constar como provado no facto n.º 28, o que, de outro modo, resultaria, como assinalado pela Apelante, em total contradição.

Procede, assim, nesta medida, a impugnação da Apelante na parte aqui em apreço.


*

.- Do facto não provado da alínea k)

Este facto é do seguinte teor:

k.- As requisições de materiais mostravam o somatório de todas as quantidades, independentemente da unidade de cada um dos artigos (pés/m2…), ou seja, se fossem introduzidos 100 pés de pele branca e 10 m2 de pele preta, o somatório das quantidades que aparece é de 110, quando deveria estar convertido, em uma das duas unidades de referência, ou em pés ou metros quadrados, o que causava problemas com os pedidos e quantidades de material.

Segundo a Apelante, o facto resultaria provado em função do relatório pericial constante dos autos, conjugado com os depoimentos das testemunhas por si arroladas AA e BB.

Discorda-se, contudo, desta posição, reputando-se o facto, à semelhança da 1.ª instância, não provado.

Na verdade, o facto em apreço diz respeito às “requisições de materiais” e não a outra realidade, nomeadamente, a “inventários de artigos”.

Quanto às “requisições de materiais” – que, repita-se, era aquilo a que o facto dizia respeito – o relatório pericial é taxativo a negar a existência do problema. Nele se diz, com efeito, em resposta à questão n.º 7, que “nas requisições de materiais (…) não aparece um somatório com todos os valores, pelo que o problema não se coloca”. E acrescentou-se que “a resposta à questão 7, tal como colocada, é negativa, uma vez que não foi possível detetar o problema nas requisições de materiais”.

Ou seja, contrariamente ao que é dito pela Apelante na sua peça recursória, o relatório pericial, ao invés de confirmar o facto, nega-o de forma categórica.

Certo que nele se diz que a vicissitude alegada se verificou no “inventário de artigos”, com artigos de diferentes unidades de medida, onde, segundo o Sr. Perito, “aparece um somatório que junta todos os valores, independentemente da unidade de medida”. Não era essa, contudo, a realidade que estava em apreciação no facto, o que, sem mais, conduz à sua desconsideração.

A tal conclusão não obsta, naturalmente, os depoimentos das testemunhas mencionadas pela Apelante. Desde logo porque o juízo técnico e pericial emitido pelo Sr. Perito é concludente quanto ao afastamento da vicissitude de que cumpria conhecer, o que sempre retiraria ou, pelo menos, fragilizaria o valor probatório da prova testemunhal. Depois, porque, bem analisados os depoimentos, é impossível concluir com a necessária segurança que a realidade tida em consideração pelas testemunhas fosse aquela que estava em causa (as requisições de materiais) ou outra (os inventários de artigos), sendo que o depoimento da testemunha AA até sugere que se referia a esta última.

O facto em apreço não se mostra, em face do exposto, evidenciado, pelo que se impõe a sua consideração como facto não provado.

Improcede, pois, a impugnação da Apelante nesta parte.


*

.- Dos factos não provados das alíneas l) e m)

Nestes factos refere-se o seguinte:

l.- Se os colaboradores da Ré pedissem apenas um pé de amostras, o programa assumia que estava a ser pedido um par de amostras, ou seja, não reconhecia a possibilidade de serem pedidos meios pares, pelo que a indicação de fabrico de amostras de um pé tinha que ser realizada à mão no pedido de amostra.

m.- Sendo que, quando eram efetuados pedidos de material e a amostra era faturada ao cliente, essa situação tinha que ser considerada, o que obrigava a uma maior atenção e perda de tempo por parte dos vários colaboradores que tratavam das diversas situações que estavam relacionadas com aquele pedido”.

A Apelante bate-se por que tais factos sejam considerados provados, em função do resultado da perícia, bem como do resultado da prova por declarações e da prova testemunhal, produzidas em julgamento.

E com razão.

Assim, quanto à alínea l) e à vicissitude propriamente dita que nela é vertida, o Sr. Perito, na resposta à questão 8, conclui expressamente que “o software não permite fazer registo de uma encomenda de apenas 1 pé, podendo apenas serem registados números inteiros de pares”. Acrescentou, em resposta à questão 9, que, “tal como descrito para a questão 8, não é possível serem pedidos meios pares”, pelo que à pergunta sobre se o software reconhece a possibilidade de serem pedidos meios pares “a resposta é negativa”.

Tratou-se aqui, aliás, de vicissitude cuja verificação se revelou, quanto a nós, pacífica, já que, independentemente dos juízos de valor feitos em julgamento quanto a ela, nomeadamente se constituía “defeito” ou não, o certo é que as testemunhas inquiridas a respeito dela confirmaram-na, como foi o caso, além das testemunhas da Apelante AA e BB, da testemunha, arrolada pela própria Apelada, EE, que referiu que tal vicissitude “nunca foi corrigida (…) porque nunca iria para dar para lançar meios pares, mas para controlar sobra do pé direito ou esquerdo.”

Quanto aos efeitos da vicissitude na execução do trabalho no seio da empresa da Apelante, isto é, naquilo que se reporta ao último período da alínea l) e à alínea m), a testemunha AA referiu que, como se tratava de “muitas amostras”, “mais uma vez recorriam às canetas” e que, “quando era para faturar, dava trabalho ver o que era para faturar do que não era para faturar”, pelo que “algo que devia demorar um minuto, demoraria uma hora”. Já a testemunha BB referiu que, “o facto de o programa não permitir faturar um pé, quando fosse para elaborar fatura, tinha de se consultar ficha a ficha e ver o que lá estava para não faturar erradamente”, sendo que se não verificasse poderiam ser faturados pares de sapatos não consumidos pelo cliente e este ter de pagar a mais.” Ou seja, ambas confirmaram a realidade em apreço, a qual, por outro lado, é consentânea com a vicissitude em causa.

Impõe-se, por conseguinte, considerar provado o que consta das alíneas em apreço, com a consequente procedência da impugnação da Apelante nesta parte.


*

.- Dos factos não provados das alíneas n) e o)

Os factos em apreço dizem o seguinte:

n.- Se um artigo fosse aberto com uma escala de tamanhos (36/42) e se em data posterior surgisse um pedido de encomenda em 35, ao gerar os formeiros, os tamanhos alinhavam e somavam todos à direita, fazendo com que o programa somasse tamanhos diferentes como sendo iguais, dando origem a um relatório completamente falacioso.

o.- Logo as escalas tinham que ser sempre geradas do 35 ao 42, independentemente das compras no momento, o que mais uma vez implicava perda de tempo, atenção reforçada e dava azo a erros e problemas na produção.”

Segundo a Apelante, tais factos mostram-se provados pelo resultado da perícia, bem como pelo resultado da prova por declarações e da prova testemunhal.

Quanto à alínea n), é manifesto que se trata de facto provado.

Desde logo, pelo resultado da perícia, em face, nomeadamente, da resposta do Sr. Perito à questão 10, conjugada com os esclarecimentos prestados pelo mesmo em julgamento. Assim, na resposta conclui expressamente que “o resultado [do ensaio que fez no software] mostrado para o número total de pares de cada tamanho está errado”, ao passo que nos esclarecimentos ilustrou a ideia nos seguintes termos: recorrendo à “imagem mental do Excel, quando [o sistema] lança uma encomenda de um par do 35 ao 40, o software vai colocar na primeira linha do Excel e na primeira coluna o 35, o 36, o 37… até ao 40. Se essa encomenda for, entretanto, alterada, assando a ter-se pés que começam no 34, o que vai acontecer é que vai pôr na 2.ª linha, vai começar no 34; na primeira coluna a primeira célula vai ser 35…”. Por isso, “foi possível detetar este problema”, o qual “não tem a ver com utilizador, mas sim com o software”, cuja “solução é algo relativamente simples de se resolver.”

Depois, pelos depoimentos das testemunhas da AA e BB. A primeira descreveu a vicissitude do seguinte modo: “o cliente lança encomenda, do 35 ao 40. Começam a trabalhar nessa encomenda. Corre bem, mais tarde cliente pede aumento da encomenda e adita tamanhos, do 34 ao 41. O software baralha-se, confunde-se, se começou aqui com 36 e agora com 35, mistura tamanhos 35 com 36, 36 com 37 e 37 com 38 e por aí fora.” A segunda, por sua vez, descreveu o problema nos seguintes termos: “ao abrirem modelo no programa tinham de atribuir uma escala de tamanhos, isto é, o operador atribui escala de tamanhos pedida pelo cliente; ex. cliente depois de aprovar amostra fazia encomenda do 36 ao 41, o operador que está a introduzir o modelo tem de lhe atribuir a escala que o cliente comprou. Passados ¾ meses vem mesmo modelo, mas cliente comprou 35, há problema: modelo existe, introduz-se a encomenda, programa atribui a grelha e encosta todas as quantidades compradas, baralhou as encomendas todas.”

Ou seja, a realidade de facto subjacente à alínea e) está plenamente demonstrada, impondo-se a sua consideração como provada.

Quanto à alínea o), ainda que, de acordo com a testemunha AA, o gerar das escalas contemplando a totalidade dos números, independentemente da concreta encomenda, tenha sido a solução aventada pela Apelada para o problema, o certo é que, de acordo com a mesma, “tal solução não lhes pareceu correta”, pelo que “voltaram à fazer à mão”.

Ou seja, a realidade subjacente à alínea o) não só não foi confirmada, como, pelo contrário, foi infirmada pela testemunha.

Em suma, procede a impugnação da Apelante quanto à alínea n), que deve ser considerada provada, mas improcede quanto à alínea o), que deve ser mantida como não provada.


*

.- Dos factos não provados das alíneas h), i) e j)

Estes factos são do seguinte teor:

h.- O desdobramento das encomendas nos moldes descritos em 31) criava uma falsa subdivisão e depois tinha que ser manualmente alterada para poder faturar a quantidade correta

i.- As notas subdivididas no sistema com (-1 ou 0) não ficavam registadas, o que permitia duplicações caso o operador não estivesse atento.

j.- E impedia que se faturasse pares subdivididos.

A Apelante, mais uma vez, entende que os factos em causa devem ser considerados provados em razão, designadamente, do depoimento da testemunha AA.

E concluímos, ouvido o depoimento e sopesado este com toda a restante prova produzida, que com razão.

Na verdade, a testemunha confirmou aquilo que consta das alíneas em apreço, dizendo, designadamente, que: a solução dada (a descrita no facto provado n.º 31) “foi uma sequência de teclas, tipo um Ctrl E, um Ctrl A”; “nós tínhamos que escrever o valor zero, o valor menos um, era assim uns truques que tínhamos que fazer e automaticamente ele já nos ia deixar subdividir”; as ordens “eram subdivididas no sistema, eram impressas, na hora imprimíamos e vinham as coisas para fora, mas elas desapareciam completamente do sistema”; “nós assim que queríamos faturar e o sistema dizia que não existem ordens de fabrico para este modelo, para este cliente, nesta cor, nesta data. Isto não existe.”; voltavam então “à artimanha do teclado, fazer o Ctrl qualquer coisa e aquele valor que nós tínhamos posto fictício, penso que era nas tarifas, tínhamos que dividir por tarifas negativas”; “o programa, tínhamos que apagar essas tarifas negativas e o programa perdia na mesma a subdivisão, mas nessa altura já não importava”; ficava lá a ordem de fabrico outra vez toda grande, mas como já era só para faturar, já não havia problema”; “mas até então, qualquer coisa que fosse preciso fazer no computador relacionada com essa ordem de fabrico até os sapatos estarem 100% prontos, não existia”; “se fosse pesquisar, o que é que este cliente tem neste momento encomendado ou em fabrico ou não sei o quê? Zero”; “se só tivesse aquela ordem de fabrico, estava com essa falsa subdivisão, não havia menção disso no sistema”; “nós fazíamos assim, a encomenda está inteira, nós fazíamos esse truque e ela desaparecia do sistema, mas a subdivisão era possível ser impressa, estava cá fora e continuava completamente oculta do sistema”; “só quando fôssemos depois para faturar é que tínhamos que desfazer aquele truque que se fez e ela voltava a estar como inteira no sistema.”

A confirmação dos factos está em linha com o que já constava como provado na alínea 31 e o depoimento da testemunha, além de preciso, concreto e revelador de conhecimento de causa, não foi posto em causa por outro elemento de prova produzido em julgamento ou constante dos autos.

Forçoso é, pois, considerar provados os factos em apreço, procedendo a impugnação da Apelante também nesta parte.


*

.- Do facto não provado da alínea p)

Nesta alínea diz-se o seguinte:

“p.- Sendo certo também que, ainda ao dia de hoje, a Ré, quando necessita consultar a informação que ficou armazenada no programa, programa este que já não utiliza mas que está disponível para consulta, é recorrente os colaboradores encontrarem documentos que, ao serem impressos, saem com o cabeçalho de outras empresas.

Para a Apelante, este facto deve ser considerado provado em razão, designadamente, dos documentos n.ºs 6 e 7 juntos pela mesma no decurso da audiência de julgamento.

Discorda-se, contudo, desta posição, entendendo-se, pelo contrário, que o facto deve ser mantido como não provado, em face da manifesta insuficiência de prova a ele respeitante.

Na verdade, desconhece-se, nem foram devidamente esclarecidas, as circunstâncias em que foram extraídos os documentos em causa. Por outro lado, subjacente ao facto em apreço está uma ideia de continuidade no surgimento da vicissitude que nele é descrita e os aludidos documentos mais não reproduzem do que as simples ocorrências nele concretamente relatadas. Finalmente, ninguém em juízo atestou o facto em apreço de forma cabal e sustentada.

Impõe-se, consequentemente, a consideração como não provado do facto em questão e a improcedência da impugnação da Apelante nesta parte.


*

.- Dos factos não provados das alíneas r) e d)

Estes factos são do seguinte teor:

“r.- A atuação da Autora prejudicou gravemente o trabalho diário da Ré, enquanto aguardava por uma solução que supostamente estava a ser tratada, mas que na verdade não estava sequer a ser considerada.”

d.- Aos problemas que eram reportados pela Ré, a Autora oferecia resolução que passava por soluções provisórias ou por “enganar o sistema”.

Segundo a Apelante, dos depoimentos das testemunhas AA e BB teriam ficado bem patentes as dificuldades causadas pelo programa no normal desenvolvimento do seu trabalho.

A este respeito, importa começar por dizer que o primeiro período do facto em apreço, assim como que “a atuação da Autora prejudicou gravemente o trabalho diário da Ré”, é manifestamente conclusivo, constituindo uma afirmação que deve ser retirada dos factos provados, se estes a evidenciarem, e que, por isso, nenhum relevo tem em si mesmo considerado.

Quanto ao mais, assim como que a Apelante aguardou soluções da Apelada que supostamente estavam a ser tratadas mas que, na verdade, não estavam sequer a ser consideradas, tal não só não resultou provado, como, pelo contrário, foi claramente afastado pela prova produzida.

Assim, o documento n.º 1 junto pela Apelada com a sua “resposta” atesta a realização, pela mesma, de incontáveis assistências à Apelante.

A testemunha EE, além de confirmar as assistências e intervenções que fez junto da Apelante, referiu, por exemplo, que foram introduzidas pela Apelada “565 novas funcionalidades” no software da Apelante. E acrescentou que, das vicissitudes apontadas pela Apelante ao software, a única questão que não corrigiram foi a questão “dos meios pés”, que, para a Apelante era defeito, mas que “para nós não”, sendo que, quanto à questão das ordens de fabrico, além de terem resolvido parte da queixa, só não resolveram o restante em virtude do rompimento das relações negociais entre as empresas.

Esta versão dos factos foi, no essencial, confirmada pela testemunha FF, que referiu que a Apelada, das queixas da Apelante, “deu resposta a tudo”.

Ou seja, independentemente de a Apelante ter ficado satisfeita com as intervenções da Apelada e, em último termo, com o software fornecido por esta, o certo é que a Apelada sempre diligenciou pela assistência e pela resolução das questões que lhe eram colocadas, assim se desmentindo o que consta da alínea em apreço. E assim desmentindo também, pelas mesmas razões, o que consta da alínea d).

Trata-se, pois, de factos não provados e que devem ser mantidos como tais, com a consequente improcedência da impugnação da Apelante nesta parte.


*

.- Dos factos não provados das alíneas s) e t)

Estes factos são os seguintes:

s.- O programa instalado não tinha as qualidades asseguradas pela Autora e impediu a realização cabal do fim a que se destinava, como aliás foi reconhecido pelo legal representante da Autora na reunião havida nas instalações da Ré no dia 21.01.2020, na qual pelo mesmo foi aceite que o contrato se considerava resolvido a partir daquela data.

t.- Resolução que a R. ali declarou à A.”

Pugna Apelante pela consideração de tais factos como provados com base na globalidade da prova produzida, mormente dos depoimentos das testemunhas, por si arroladas, AA, BB e DD.

A este propósito, importa começar por dizer que, independentemente do sentido da prova produzida em julgamento quanto à matéria que lhes subjaz, deve ser pura e simplesmente excluído do acervo de factos (provados e não provados) o primeiro período do facto s), assim como que “o programa instalado não tinha as qualidades asseguradas pela Autora e impediu a realização cabal do fim a que se destinava”.

Na verdade, o que aqui está em causa é a decisão da matéria de facto do tribunal a quo, no que diz respeito, designadamente, à enunciação dos factos que o mesmo considerou provados e não provados.

Nessa tarefa, aquilo que importa apurar é única e exclusivamente factos, enquanto acontecimentos ou realidades do mundo exterior, despidos, portanto, de quaisquer juízos conclusivos ou de valoração normativa. Tais juízos, a relevar, relevam sim, mas em sede de subsunção daqueles factos ao direito aplicável, isto é, noutra sede que não nesta. Dito de outro modo, pura matéria de direito, vista enquanto afirmação de valores ou prescrições normativas, não tem lugar no campo que nos movemos, atinente ao da matéria de facto.

Ora, a aludida frase contém, não uma realidade ou acontecimento do mundo exterior, mas um juízo de valor de pendor conclusivo e, inclusive, normativo, confundindo-se, de resto, com um verdadeiro conceito de direito. Não reúne, por conseguinte, os requisitos para que, à luz do disposto no n.º 4 do art.º 607.º do CPC, possa ser vista como enunciação de “factos” juridicamente relevantes.

Impõe-se, pois, a sua exclusão.

Quanto ao facto constante da alínea c), impõe-se dizer o seguinte.

Que, na reunião ocorrida 21-01-2020, se verificou um rompimento da relação estabelecida entre Apelada e Apelante, no sentido de a Apelada deixar de usar o software informático fornecido por aquela e de a Apelante cessar a assistência que vinha prestando é algo notório.

Além de dado praticamente assente nos autos, foi isso o que resultou claramente dos depoimentos das testemunhas, todas elas presentes na dita reunião, AA - que disse que a testemunha DD comunicou que “desistiam do programa” -, BB – que referiu que a testemunha DD “decidiu que chega, não vale a pena esperar mais” – e DD – que confirmou que “tínhamos decidido que era não ficarmos com o programa e falar com ele e tentarmos resolver a coisa a bem”.

Sendo certo que naquela reunião pela Apelante foi cessada a relação com a Apelada, já não é certo que alguém na reunião tenha “declarado a resolução” do contrato, expressão esta que nenhuma das referidas testemunhas reproduziu em julgamento.

Porque assim é, impõe manter o sentido do facto da alínea c), mas, mediante uma nota explicativa, adequá-lo à realidade efetivamente ocorrida na reunião, que foi a de que nesta pela Apelante foi cessada a relação negocial estabelecida com a Apelada.

Além do que acaba de ser dito, nada mais daquilo que consta dos factos em apreço – designadamente, que o legal representante da Apelada tenha aceite, quer os vícios do software, quer a cessação do contrato – resultou provado.

Na verdade, nenhuma das testemunhas o referiu. Por outro lado, a testemunha DD foi clara a dizer que o legal representante da Apelada foi, inclusive, “desagradável” no tom, o que fez com que a própria testemunha abandonasse a reunião. Ou seja, a própria testemunha relatou factos totalmente contrários à postura de quem supostamente teria aceite que o programa padecia de vícios e que aceitara a cessação do contrato.

Temos, pois, e em resumo, quanto aos factos em apreço, que: (i) há que excluir o primeiro período da alínea s); (ii) há que dar como provado que “a Apelante, na reunião de 21-01-2020, cessou a relação negocial estabelecida com a Apelada”; (iii) há que manter como não provado tudo o mais que consta das alíneas em apreço.


*

Em suma, face ao que acaba de ser dito quanto à decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida, impõe-se:

i.- manter os factos provados com os n.ºs 2, 3, 4, 5, 6 e 7;

ii.- incluir no elenco de factos não provados o facto provado n.º 20;

iv.- incluir no elenco de factos não provados o segmento do facto provado n.º 36, correspondente ao seu último período;

v.- manter no elenco de factos não provados os constantes das alíneas a, c), e), k), o), p), q), r) e d);

vi.- incluir nos factos provados os factos constantes das alíneas f) e g), mas alterando-se-lhes a respetiva redação nos seguintes termos:

.- f.- Se um artigo fosse faturado por engano e o documento tivesse que ser anulado, o programa não permitia voltar a faturar imediatamente a seguir;

g.- Para o efeito, impunha-se que, previamente à nova faturação, se colocasse a encomenda no estado “em produção”.

vii.- incluir nos factos provados os factos constantes das alíneas h), i), j), l), m), n);

viii.- excluir o primeiro período do facto não provado da alínea s); incluir nos factos provados o facto da alínea t), mas com a seguinte redação: “a Apelante, na reunião de 21-01-2020, cessou a relação negocial estabelecida com a Apelada”; manter como não provado tudo o mais que consta da alínea s).


*

O elenco de factos provados e não provados que há-de servir de substrato de facto à apreciação jurídica do presente caso será, assim, aquele que, de seguida, se reproduz, com as alterações, inclusive de numeração, que, em face do acima exposto, se impõe fazer:

.- Factos provados

1.- A Autora exerce a atividade de programação informática e comércio a retalho de computadores, unidades periféricas e programas informáticos, em estabelecimentos especializados.

2.- É uma empresa de produção, venda e manutenção de software que se dedica, quase exclusivamente, à indústria do calçado, tendo mais de 24 anos de experiência neste setor de atividade.

3.- É líder em implementações de software na indústria do calçado, com cerca de 50% de quota de mercado, tendo em conta o top 100 volume de negócios, sendo certo que do top 10 resultado líquido, 8 são seus clientes.

4.- Detém uma taxa de fidelização acima dos 98% e conta com mais de 400 clientes activos.

5.- A Autora e o seu software, denominado “...”, são certificados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pela DGERT, pela APCER (ISO 9001- 2015), sendo a primeira, ainda, aderente ao compromisso “pagamento pontual” da ACEGE e fornecedora creditada pela APICCAPS, pelo IAPMEI e Indústria 4.0.

6.- O citado “...” é um software de evolução contínua, tendo em conta as questões legais e as novas funcionalidades solicitadas pelos clientes.

7.- Sendo, portanto, um software capaz de se adaptar aos diferentes clientes, de reconhecida e inegável qualidade e com enorme procura neste setor de atividade.

8.- A Ré é uma empresa que se dedica à atividade de fabrico de calçado.

9.- No exercício da sua atividade, a Autora, a solicitação da Ré, forneceu e instalou na sede da Ré um programa personalizável ..., versão PRO (11 – 15 Postos), pelo preço de 15.000 euros, acrescido de IVA à taxa em vigor.

10.- Autora e Ré acordaram nos termos descritos em 9) em data não concretamente apurada do ano de 2018, mas necessariamente posterior a 18.05.2018 e anterior a 15.11.2018.

11.- A 30.03.2018, foi apresentada à Ré um orçamento nos termos descritos em 9).

12.- Posteriormente, em 18.05.2018, a requerente remeteu novo orçamento, agora com hardware, proposta essa que não foi aceite pela Autora, sendo acordado o vertido em 9).

13.- Por razões de conveniência da Ré decorrentes dos constrangimentos gerados pela ocorrência de um incêndio nas suas instalações, a implementação do programa teve o seu início a 15.11.2018, tendo sido ministradas pela Autora, nas instalações da Ré, de 15.11.2018 a 10.01.2019, 41 horas e 15 minutos de formação aos funcionários/colaboradores da Ré.

14.- Para além do descrito em 13), de 15.11.2018 a 21.01.2020, a Autora prestou à Ré, de forma remota, 6 horas e 15 minutos, de trabalho atinente a atualização e adaptação do programa às solicitações da Ré.

15.- Prestou, de forma remota, 5 horas e 15 minutos de trabalho de ajustes nas configurações do programa às solicitações da R.

16.- Prestou 2 horas e 30 minutos na conceção de soluções e funcionalidades, acolhidas no programa, às solicitações da Ré.

17.- Prestou 58 horas, de forma remota e presencial, de assistência aos funcionários e colaboradores da Ré na utilização do programa.

18.- A Autora, na sequência do descrito em 10), emitiu e entregou a fatura 2019/192, no valor de 16.605 euros, datada de 04.01.2019 e com a mesma data de vencimento.

19.- A fatura foi enviada à Ré e, pese embora o vencimento da mesma e, tendo sido interpelada diversas vezes, encontra-se, à presente data, por liquidar.

21.- Em cumprimento do acordo celebrado com a Ré, a Autora procedeu ao tratamento das bases de dados do programa anterior, criando uma nova base de dados, com software mais sofisticado – SQL server por oposição à baseada em Microsoft Acess – para otimização na utilização da mesma.

22.- À data da celebração do acordo, a Ré utilizava, para a sua laboração, programa informático que se mostrava lento na gestão da informação e dificuldades na interação com outras instâncias também utilizadas, por exemplo, MS Acrobat 21.

23.- A emissão da licença em nome da Ré, a solicitação da Autora e para utilização do seu programa, viria a ocorrer em 15.11.2018, não sendo permitida, pela AT, a emissão de licenças de software com nome do cliente em modo demonstração, desde logo, para impedir a emissão de documentos fiscalmente relevantes nessas condições.

24.- A fatura referida em 18) apenas foi emitida na data que dela consta a solicitação da Ré e para dela fazer constar menções e data que permitissem à Ré inscrever tal despesa em candidatura de programa de apoio a empresas.

25.- Em 04.01.2019 foi emitida a fatura e sobre a mesma não incidiu qualquer reclamação, existindo várias conversas entre as partes no sentido de justificar o porquê de a fatura não ser paga de imediato, face à alegada candidatura a um projeto do “Portugal2020”, sendo inclusive discutida a possibilidade de creditar a fatura e voltar a faturar numa data mais de acordo com a data da alegada submissão daquele projeto.

26.- Os softwares vendidos pela Autora são objeto de constante adaptação e personalização às necessidades do cliente.

27.- Resultando tal adaptação e personalização da interação com os seus utilizadores que dão conta, justamente em contexto de utilização dos mesmos, dos erros e necessidades específicas e às quais vão dando resposta.

28.- Em caso de erro de faturação ou outra situação de necessidade de repetir a faturação, o programa previa a funcionalidade de, estando concluída a faturação da encomenda, passar o estado da encomenda para o estado “em produção” e, deste modo, anulada a primeira fatura, emitir nova fatura correspondente à encomenda em causa.

29.- Se um artigo fosse faturado por engano e o documento tivesse que ser anulado, o programa não permitia voltar a faturar imediatamente a seguir.

30.- Para o efeito, impunha-se que, previamente à nova faturação, se colocasse a encomenda no estado “em produção”.

31.- A solução descrita em 28) ocorre porque o programa é um software integrado, ou seja, o cliente tem a possibilidade de emitir uma fatura, através de uma encomenda ou ordem de produção, quando essa fatura é emitida produz efeitos na encomenda, nomeadamente, colocando as quantidades como entregues e, no caso da quantidade ser totalmente entregue, pode ou não, pois é uma opção, colocar a encomenda em estado concluído.

32.- Pelo que uma ordem de produção pode ser ou não faturada, sendo recomendação da Autora a todos os seus clientes que, quando uma encomenda é faturada na totalidade, deve ficar no estado concluído - para evitar a emissão redundante de informação fiscalmente relevante -, mas é uma configuração do sistema, pode ou não acontecer, pelo que o estado pode passar para “em pagamento” e só ficar concluída quando é emitido o recibo.

33.- A Ré, em data não concretamente apurada, mas durante o mês de maio de 2019, solicitou à Autora uma funcionalidade de desdobramento das encomendas – divisão da encomenda de grandes quantidades em pedidos mais pequenos –, tendo a Autora oferecido a possibilidade, como já implementada no programa da realização de sortimentos (utilizando um algoritmo já previsto que fazia o agrupamento de forma pré-definida, com utilização de código de distribuição automática por tarifas a 10 pares, colocando – 1 no número de tarifas).

34.- Após o que, e para ir ao encontro das necessidades da Ré, a Autora criou uma funcionalidade no programa, com a utilização combinada de teclas (Ctrl + E), para permitir o desdobramento imediato de encomendas com a indicação, pelo utilizador, do plano de agrupamento de forma personalizada.

35.- Tal funcionalidade acabou por ser integrada no programa, passando a ser característica do mesmo.

36.- O desdobramento das encomendas nos moldes descritos em 31) criava uma falsa subdivisão e depois tinha que ser manualmente alterada para poder faturar a quantidade correta.

37.- As notas subdivididas no sistema com (-1 ou 0) não ficavam registadas, o que permitia duplicações caso o operador não estivesse atento.

38.- E impedia que se faturasse pares subdivididos.

39.- O programa não permitia a numeração das ordens de fabrico, pelo que os colaboradores da Ré não sabiam quantas notas de fabrico perfaziam a totalidade da encomenda, gerando sempre dúvidas sobre a quantidade total encomendada, correndo o risco de duplicação, sem registo.

40.- Cada nota de fabrico mostrava, nos consumos, a necessidade total de cada componente da encomenda a que correspondia e não a necessidade daquela ordem de fabrico individualmente, induzindo o utilizador em erro, pois ao separar os materiais para cada ordem de fabrico, estavam na realidade a separar a totalidade.

41.- À data de 21.01.2020, a Autora não tinha logrado ultrapassar o problema apontado em 34) e 35), tendo proposto a alteração do modo de atuação da Ré, com o abandono da utilização das várias estações como forma de resolução do problema.

42.- As requisições de materiais mostravam o somatório de todas as quantidades, independentemente da unidade de cada um dos artigos (pés/m2…), ou seja, se fossem introduzidos 100 pés de pele branca e 10 m2 de pele preta, o somatório das quantidades que aparece é de 110, quando deveria estar convertido, em uma das duas unidades de referência, ou em pés ou metros quadrados, o que causava problemas com os pedidos e quantidades de material.

43.- Se os colaboradores da Ré pedissem apenas um pé de amostras, o programa assumia que estava a ser pedido um par de amostras, ou seja, não reconhecia a possibilidade de serem pedidos meios pares, pelo que a indicação de fabrico de amostras de um pé tinha que ser realizada à mão no pedido de amostra.

44.- Sendo que, quando eram efetuados pedidos de material e a amostra era faturada ao cliente, essa situação tinha que ser considerada, o que obrigava a uma maior atenção e perda de tempo por parte dos vários colaboradores que tratavam das diversas situações que estavam relacionadas com aquele pedido.

45.- Se um artigo fosse aberto com uma escala de tamanhos (36/42) e se em data posterior surgisse um pedido de encomenda em 35, ao gerar os formeiros, os tamanhos alinhavam e somavam todos à direita, fazendo com que o programa somasse tamanhos diferentes como sendo iguais.

46.- A 07.01.2020, Autora e Ré reuniram para fazer um balanço da implementação do programa e para acordar nos termos da faturação.

47.- Após o que, em 21.01.2020, e em nova reunião, as partes não alcançaram qualquer acordo quanto ao pagamento da fatura emitida.

48.- A Ré, até à presente data, não liquidou a fatura.

49.- A Apelante, na reunião de 21-01-2020, cessou a relação negocial estabelecida com a Apelada”.


*

III.II.- Na mesma sentença não foram considerados provados os seguintes factos:

a.- Aquando da celebração do contrato, as partes acordaram que o software seria instalado a título experimental.

b.- Durante a formação ministrada foi detetada falta de conhecimentos de gestão dos colaboradores e da própria gerência da Ré, existindo muitas dúvidas sobre os procedimentos básicos (a título de exemplo, a forma como eram tratadas as faturas à consignação que não respeitava minimamente o exigido pela AT ou, até mesmo, a forma como apresentam os supostos defeitos na emissão de faturas pelo “...” e do seu tratamento contabilístico, pois que afirma que recebe uma fatura e no caso de não aceitar a mesma, não comunica isso ao fornecedor nem regista na contabilidade).

c.- Os colaboradores da Ré, no período que decorreu entre a instalação do programa e a rutura das relações comerciais – a 21.01.2020 –, demonstraram resistência na adoção dos métodos de trabalho que a utilização do programa implicava por oposição ao software anteriormente utilizado.

d.- O programa previa a solução referida em 41 e tal solução atalhava o problema (contemplando apenas um plano de produção com várias subdivisões e que mantém a interligação nas várias secções de produção com diferentes divisões - no corte e na costura pode ser mais produtivo divisões maiores e agrupadas a 10 e na montagem é necessário respeitar o formeiro).

e.- A utilização, pela Ré, do programa fornecido pela Autora causou problemas na produção, obrigando os colaboradores a conferir todas as listagens emitidas pelo sistema informático e causando atrasos no fornecimento do processo produtivo.

f.- Aos problemas que eram reportados pela Ré, a Autora oferecia resolução que passava por soluções provisórias ou por “enganar o sistema”.

g.- Existiam vários tipos de documentos que não permitiam impressão direta, obrigando a que o documento fosse exportado para formato PDF e depois impresso manualmente, como por exemplo, faturas, o que com o volume de trabalho da Ré, lhe causava atrasos, pois enquanto o funcionário exportava o documento, gravava o ambiente de trabalho, minimizava o programa, abria o documento e mandava imprimir.

h.- As requisições de materiais mostravam o somatório de todas as quantidades, independentemente da unidade de cada um dos artigos (pés/m2…), ou seja, se fossem introduzidos 100 pés de pele branca e 10 m2 de pele preta, o somatório das quantidades que aparece é de 110, quando deveria estar convertido, em uma das duas unidades de referência, ou em pés ou metros quadrados, o que causava problemas com os pedidos e quantidades de material.

i.- Logo as escalas tinham que ser sempre geradas do 35 ao 42, independentemente das compras no momento, o que mais uma vez implicava perda de tempo, atenção reforçada e dava azo a erros e problemas na produção.

j.- Sendo certo também que, ainda ao dia de hoje, a Ré, quando necessita consultar a informação que ficou armazenada no programa, programa este que já não utiliza mas que está disponível para consulta, é recorrente os colaboradores encontrarem documentos que, ao serem impressos, saem com o cabeçalho de outras empresas.

k.- Aquando da instalação do programa, havia sido combinado que a fatura só seria emitida quando o sistema estivesse a funcionar em pleno, sendo expectável que no ano de 2019.

l.- A atuação da Autora prejudicou gravemente o trabalho diário da Ré, enquanto aguardava por uma solução que supostamente estava a ser tratada, mas que na verdade não estava sequer a ser considerada.

m.- O legal representante da Autora, na reunião havida nas instalações da Ré no dia 21.01.2020, reconheceu os vícios do software e aceitou que o contrato se considerava resolvido a partir daquela data.


* *

*


2.- Do enquadramento jurídicos dos factos

2.1.- Da qualificação do contrato que serve de fundamento à ação

.- Na sentença recorrida qualificou-se o contrato que suporta a ação como sendo um contrato misto de compra e venda e de prestação de serviços, em que entre os diferentes elementos contratuais de ambos, sendo indissociáveis uns dos outros, intercedia um nexo de subordinação.

Tal qualificação foi aceite pela Apelada. A Apelante, contudo, defende no seu recurso que o contrato celebrado entre ambas reveste a natureza jurídica de um contrato de prestação de serviços “atípico” ou “inominado”, estando, por conseguinte, sujeito às regras constantes dos art.ºs 1156.º do CC.

Considerando esta divergência de posições, importa, pois, começar por analisar que contrato foi efetivamente celebrado entre Apelante e Apelada, por forma a que, e além do mais, se possa aferir qual é o regime normativo aplicável ao caso e à luz do qual devem ser apreciadas as demais questões suscitadas no recurso.

Resulta, a propósito, da factualidade apurada, que, no exercício da atividade de ambas, a Autora/Apelada e a Ré/Apelante fizeram um acordo entre si, no âmbito do qual se comprometeram: a primeira, pelo preço de € 15.000,00, acrescido de IVA, a fornecer, instalar e implementar na sede da segunda um software por si detido, denominado ‘..., Versão PRO (11-15 Postos)’, destinado à gestão da atividade da mesma de indústria do calçado; a segunda a pagar o preço acordado.

No acordo, comprometeu-se a Apelada, também, a proceder ao tratamento das bases de dados do programa anterior, criando uma nova base de dados, com software mais sofisticado, bem como a diligenciar pela configuração e atualização e, sendo o software a fornecer e a instalar personalizável, a diligenciar pela adaptação e pelo ajuste do mesmo às solicitações da Apelante e às especificidades inerentes ao modo de desempenho da sua atividade.

Ora, perante estes dados, descortinamos no acordo celebrado entre as partes, aspetos típicos do contrato de compra e venda, previsto no art.º 874.º do CC, e, bem assim, do contrato de prestação de serviços, previsto no art.º 1154.º do CC.

Na verdade, a Apelada vinculou-se a fornecer à Apelante, transferindo-lhe a respetiva propriedade, um programa informático que detinha e, portanto, pré-existente, contra o pagamento do preço correspondente, no que se afirmam os elementos típicos do contrato de compra e venda tal como previstos no citado art.º 874.º do CC.

Mas vinculou-se, também, a prestar todo um complexo de serviços associados ao fornecimento em vista de um resultado, que era o do uso efetivo do software fornecido na atividade da Apelante, assim se afirmando igualmente os elementos característicos do contrato de prestação de serviços previstos no referido art.º 1154.º do CC.

Como quer que seja, os elementos típicos da figura do contrato de compra e venda surgem, no caso, não como fim em si mesmo, mas como meio de prossecução de um fim que era o de, mediante a disponibilidade advinda da aquisição do programa informático, a Apelante integrá-lo no exercício da sua atividade e, com isso, otimizar o seu produto produtivo.

Vale o mesmo por dizer que, na economia da relação contratual estabelecida entre as partes, os elementos típicos do contrato de compra e venda não fazem sentido vistos isoladamente, mas apenas enquanto instrumento de obtenção de um outro fim – a Apelante, ao adquirir o programa informático detido pela Apelada, não perspetivou necessariamente, com essa aquisição, o incremento patrimonial dali resultante, mas apenas o de, na titularidade do software, empregá-lo no seu processo produtivo.

A relação contratual estabelecida entre as partes reconduz-se, assim, a um único negócio, integrado por elementos de dois negócios típicos, mas em que os elementos de um deles surgem, não como fim em si mesmo, mas subordinado à realização dos fins almejados pela previsão dos elementos do outro negócio.

Perante este quadro, e tendo presentes os critérios gerais de interpretação da declaração negocial previstos no art.º 236.º do CC, concluímos, tal como um declaratário normal concluiria se colocado na posição dos verdadeiros contratantes, que estes celebraram entre si, como, de resto, se concluiu na sentença recorrida, um contrato misto de compra e venda e de prestação de serviços.

A faculdade de celebrar um negócio com estas características emerge do princípio da liberdade contratual previsto no art.º 405.º do CC, o qual, dentro dos limites da lei, faculta às partes a possibilidade, não só de fixarem livremente o conteúdo dos contratos, de celebrarem contratos diferentes dos tipificados na lei e de incluírem nestes as cláusulas que lhes aprouver (n.º 1), como, também, reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios total ou parcialmente regulados na lei.

Nesta última faculdade cabem os denominados contratos mistos, isto é, e como refere Antunes Varela, aqueles em que, “[e]m vez de realizarem um ou mais dos tipos ou modelos de convenção contratual incluídos no catálogo da lei”, constituem contratos com “prestações de natureza diversa ou com uma articulação de prestações previstas na lei, mas encontrando-se ambas as prestações ou todas elas compreendas em espécies típicas reguladas na lei”.

Neste modelo de negociação, ainda segundo o mesmo Autor, podemos encontrar uma “simples justaposição ou contraposição de elementos pertencentes a contratos distintos”. “Pode, todavia, suceder que os termos da convenção revelem que, em vez de uma justaposição ou contraposição dos diversos elementos contratuais, existe entre eles um verdadeiro nexo de subordinação. O que as partes quiseram, fundamentalmente, foi celebrar determinado contrato (típico), ao qual juntaram, como cláusula puramente acessória ou secundária, um ou vários elementos próprios de uma outra espécie contratual”. Finalmente, casos há em que se verifica “antes uma verdadeira fusão desses elementos num todo orgânico, unitário, complexo que é substancialmente diferente da soma aritmética deles; e outras há em que há uma real assimilação de um dos contratos (compreendidos no negócio misto) pelo outro” (in Das obrigações em geral, Vol. I, Coimbra, 1993, p. 281 a 290).

In casu, é exatamente este o modelo negocial com que somos confrontados, isto é, em que as partes reuniram num mesmo negócio prestações associadas a duas figuras contratuais distintas, mas em que, apesar de cada uma das prestações típicas só fazer sentido reunidas num só programa negocial, uma delas, a da aquisição do software, surge subordinada à outra, a obtenção do resultado da implementação desse software no processo produtivo da Apelante.

Ou seja, um contrato misto de compra e venda e de prestação de serviços, em que os elementos daquela primeira figura contratual estão subordinados aos desta.

E isto, com a consequência de que, estando os elementos da compra e venda subordinados aos da prestação de serviços, o regime normativo que lhe será aplicável será, por se tratar da parte “principal, fundamental ou preponderante do contrato”, o da prestação de serviços, só sendo aplicável o da compra e venda “na medida em que [com este] não colida” (v., neste sentido, Antunes Varela, ibidem, p. 281 a 290).

.- Sublinhe-se, ainda, que, como se viu, à Apelada, no âmbito do acordo celebrado com a Apelante, incumbia, não só fornecer o software e de o implementar no seio da empresa da Apelante, mas, também, diligenciar pela sua adaptação e ajuste às solicitações desta e às especificidades do modo de desempenho da sua atividade.

Ou seja, incumbia à Apelada, no quadro do programa negocial traçado com a Apelante, personalizar o software às necessidades desta.

A obrigação da Apelada era, pois, não apenas a de fornecer “meios” para que a Apelante lograsse alcançar os seus objetivos com a aquisição do programa informático, mas a de assegurar que a Apelante, com o fornecimento e implementação do software, lograsse a obtenção daquele “resultado”.

A obrigação a que a Apelada esta adstrita era, pois, como, de resto, parece haver consenso a esse respeito, de meios e de não de resultados.

Na verdade, as obrigações de meios são aquelas em que “o devedor se compromete a desenvolver prudente e diligentemente certa atividade para a obtenção de determinado efeito, mas assem assegurar que o mesmo se produza”. Divergem, por conseguinte, das obrigações de resultado, em que o devedor se compromete a conseguir com a sua atividade um determinado efeito útil (v., neste sentido, João Cura Mariano, in Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 7.ª edição, p. 44, apud Acórdão da Relação de Coimbra de 10-09-2024, proferido no processo n.º 77825/22.6YIPRT.C2, disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).

Consequentemente, no que ao incumprimento diz respeito, se nas “obrigações de meios não é suficiente a não verificação do resultado para responsabilizar o devedor, havendo que demonstrar que a sua conduta não correspondeu à diligência a que se tinha vinculado” (v. o citado Acórdão da Relação de Coimbra”), já nas obrigações de resultado a não obtenção deste importará, por princípio, essa responsabilidade, na certeza de que tal omissão traduz violação do programa negocial delineado pelas partes.

Ora, no caso, incumbindo à Apelada personalizar o software a fornecer à Apelante e implementá-lo na empresa desta, a fim de a mesma passar a usá-lo no seu processo de fabrico, de acordo com as suas necessidades e especificidades de laboração, comprometeu-se a Apelada a assegurar que tal ocorria.

Era, pois, de resultado e não de meios a natureza da sua obrigação.


*

.- Pela presente ação, pretende a Apelada, no pressuposto de ter cumprido a sua obrigação, obter a condenação da Apelante, no pressuposto de esta não lhe ter pago o preço a cujo pagamento estava adstrita no âmbito do contrato dos autos.

Trata-se, assim, de uma ação de cumprimento, no quadro da qual incumbia à Apelada a ónus da prova de que cumpriu a prestação que lhe incumbia, nos termos do contrato celebrado, realizar (art.º 342.º, n.º 1 do CC).

Ora, como flui da factualidade apurada, a Apelada forneceu e instalou, de facto, na sede da Apelante, o programa personalizável ..., versão PRO (11 – 15 Postos), prestou-lhe, quer remotamente, quer presencialmente, assistência no sentido da atualização e adaptação do programa às solicitações da Apelada e procedeu ao tratamento das bases de dados do programa anterior, criando uma nova base de dados, com software mais sofisticado.

Outrossim, como também resulta da factualidade apurada, à Apelante incumbia, não só pagar o preço do fornecimento e do serviço de implementação do software, no valor acordado de € 15.000,00, acrescido de IVA, como fazê-lo na data constante da fatura emitida pela Apelada (v. facto provado n.º 24).

Note-se, a este respeito, que, contrariamente ao alegado e sustentado neste recurso pela Apelante, não ficou demonstrado que o software tivesse sido fornecido e implementado pela Apelada a título experimental e, bem assim, que a fatura só seria emitida quando o sistema estivesse a funcionar em pleno.

Provou a Apelada, assim, como lhe competia, os factos constitutivos do seu direito; por conseguinte, a menos que a Apelada tenha logrado provar algum facto modificativo, impeditivo ou extintivo do direito da Apelada, tem esta, por força do contrato celebrado, direito a que lhe seja pago pela Apelante o preço da coisa fornecida e do serviço prestado.

Saber se há, de facto, fundamento para que a Apelante recuse esse pagamento é, pois, a questão que agora importa apreciar.


*

.- Da resolução do contrato que serve de fundamento à ação

A Apelante, para contrariar a sua obrigação de pagamento do preço estipulado no contrato, invocou a resolução de tal contrato estribada no incumprimento da Apelada. Ou seja, a Apelante, confrontada com o pedido da Apelada de pagamento do preço, invocou como defesa, não, por exemplo, a exceção de não cumprimento do contrato ou qualquer causa de anulação deste, mas especificamente a resolução fundada em incumprimento do contrato.

O cerne da sua defesa está, pois, em saber se, de facto, procedeu a essa resolução e se o fez de modo válido, por forma a que, por efeito dela, se lhe reconheça o direito de recusar o pagamento à Apelada, por, tal como se referiu na sentença recorrida, “destruição do vínculo contratual que o imporia”.

É essa, pois, a questão que aqui importa apreciar.

O direito de resolução, cujo regime está previsto nos art.ºs 432.º a 436.º do CC, é um direito potestativo de extinguir um contrato.

Pode fazer-se, de acordo com o n.º 1 do art.º 436.º do CC, mediante declaração à outra parte, o mesmo é dizer que pode operar por simples comunicação extrajudicial, comunicação essa que, por força do princípio da liberdade de forma previsto no art.º 219.º do CC, poderá ser feita de forma verbal.

Enquanto direito potestativo extintivo, configura, como referia Vaz Serra, um “ato jurídico unilateral que opera através de uma decisão de um dos contraentes e que não carece (nem fica sujeita ao) consentimento da contraparte” (in Resolução do Contrato – Trabalhos Preparatórios do Código Civil, BMJ, n.º 68, 1957, p. 236).

Uma vez operada, e a menos que tal contrarie a vontade das partes ou a sua finalidade, tem, nos termos do n.º 1 do art.º 434.º, efeito retroativo, o mesmo é dizer que implica a destruição do contrato.

A resolução é admitida, de harmonia com o n.º 1 do art.º 432.º do CC, se fundada na lei ou em convenção, ou seja, só pode operar se a parte que pretenda pôr termos ao contrato tiver fundamento para tal.

Como se refere no Acórdão do STJ de 09-11-1999, “[a] resolução, seja fundada na lei, seja fundada na convenção das partes, nunca é ad nutum, é sempre motivada, isto é, só está legitimada desde que demonstrados o fundamento legal ou o evento erigido pelas partes em causa de resolução” (apud Abílio Neto, in Contratos Comerciais, Ediforum, Lisboa, 2004, p. 148).

O fundamento da resolução é o incumprimento do contrato, isto é, como refere Menezes Leitão, “a não realização da prestação devida, por causa imputável ao devedor, sem que se verifique qualquer causa de extinção da obrigação”, definição esta que surge por contraposição com a definição de cumprimento prevista no art.º 762.º, n.º 1 do CC – o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (in Direito das Obrigações, Volume II, p. 223 e seguintes).

Esse incumprimento tem de ser o incumprimento definitivo de uma das partes contratantes e não a simples mora. Perante uma falta contratual de algum dos contratantes, o outro só poderá validamente pôr termo ao contrato celebrado a partir do momento em que essa falta traduza um incumprimento definitivo, não bastando para o efeito que tal falta represente a mora do incumpridor.

O incumprimento definitivo pode advir, em geral, de uma de cinco formas diferentes.

A primeira é aquela em que, não cumprindo o devedor a prestação em tempo oportuno e, portanto, verificada a mora deste, o credor, tendo interesse legítimo em pôr termo ao vínculo contratual, pode, nos termos do n.º 1 do art.º 808.º do CC, fixar ao devedor um prazo para que este satisfaça a prestação em falta, sob pena de considerar definitivamente não cumprida a obrigação.

Trata-se aqui da denominada interpelação ou intimação admonitória, com a qual, como refere Antunes Varela, se concede “ao devedor uma derradeira possibilidade de manter o contrato (e de não ter, além do mais, que restituir a contraprestação que eventualmente tenha já recebido)”, mediante a fixação de “uma dilação razoável, em vista dessa finalidade”, no que se afirma “um ónus imposto ao credor que pretenda converter a mora em não cumprimento definitivo” (in Das Obrigações em Geral, Vol. II, Coimbra, 1992, p. 123 e 124).

Uma outra forma passa pela situação em que há mora do faltoso, mas essa mora acarretou, por força das circunstâncias, objetivamente consideradas, a perda do interesse do credor na satisfação da prestação pela contraparte – v. os n.ºs 1 e 2 do art.º 808.º do CC.

Abrange-se aqui os casos em que o retardamento do cumprimento da prestação retira ao credor qualquer interesse em que ainda venha a ser prestada ulteriormente.

Não é suficiente, contudo, como também refere Antunes Varela, “uma perda subjetiva de interesse na prestação”, pois que, como decorre do n.º 2 do art.º 808.º do CC, impõe-se que “essa perda de interesse transpareça numa apreciação objectiva da situação” (ibidem, p. 122).

Significa isto, como refere Baptista Machado, “que o credor não deve rejeitar a prestação a seu bel-prazer, mas apenas com fundamento em interesses ou motivos dignos de tutela” (in Obra Dispersa, I, p. 151, apud Acórdão do STJ de 20-05-2015, disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).

Na aferição da perda objetiva de interesse do credor decorrente da mora do devedor deve-se, assim, como se referiu no Acórdão da Relação de Lisboa de 29-01-2013, considerar o valor da prestação em falta “em função das utilidades que a prestação teria para aquele, tendo em conta, a justificá-lo, um critério de razoabilidade comummente aceite na devida correspondência com a realidade das coisas, isto é, tendo em atenção elementos capazes de serem valorados pela generalidade das pessoas, evitando-se que o devedor fique sujeito aos caprichos do devedor”.

Não há, por conseguinte, perda objetiva de interesse relevante nos casos de “mera mudança de vontade do credor”, ou em que há “invocação de um motivo que embora o mesmo repute de fundado, não o é em termos razoabilidade numa apreciação objetiva da situação, sempre se impondo o necessário atendimento das circunstâncias do caso concreto, nomeadamente da conduta do devedor até então, se conducente a uma fundamentada e razoável dúvida sobre a atuação futura do obrigado no respeitante ao cumprimento da prestação, conforme o acordado” (Acórdão proferido no processo n.º 3350/07.1TBOER.L2-7, disponível na internet, no sítio acima referido; v., ainda, porque citados no mesmo Acórdão, os Acórdãos do STJ de 20-03-2004, de 08-06-2006 e de 22-09-2005, disponíveis no mesmo local).

Outra situação em que a falta contratual redunda num incumprimento definitivo é aquela em que, no próprio contrato, se estabeleceu um termo certo comummente designado “essencial”.

Será o caso em que as próprias partes contratantes, aquando do contrato, estabeleceram que o contrato deveria ser cumprido num determinado prazo, sob pena de, não o sendo, o contrato ter-se por definitivamente não cumprido, porque violada a essencialidade do termo.

A quarta situação suscetível de gerar a resolução do contrato é aquela em que se verifica uma impossibilidade de cumprimento da prestação, seja ela objetiva - por facto não imputável ao credor (art.º 790.º, n.º 1 do Código Civil) -, ou subjetiva - por facto relativo à pessoa do devedor (art.º 791.º do Código Civil).

Finalmente, o incumprimento do contrato que legitima a resolução também pode advir da recusa perentória do devedor em cumprir o contrato ou da sua declaração de que não o pode cumprir.

Trata-se daquelas situações em que o inadimplemento do contrato não afasta a possibilidade do seu cumprimento, por não se verificar qualquer uma das situações acima referidas, mas em que o devedor adota um comportamento do qual se depreende claramente que não o quer cumprir ou que entende que não o pode fazer.

Como se referiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-01-2012 (disponível na internet, no sítio supra referenciado) “uma das situações que tipificam o não cumprimento do contrato é a declaração, expressa ou tácita, do devedor de não querer ou não poder cumprir, equiparada pela doutrina e jurisprudência à falta definitiva de cumprimento”.

Segundo o mesmo aresto (citando o referido no acórdão do mesmo tribunal de 20-05-2010), “quando o devedor toma atitudes ou comportamentos que revelem inequivocamente a intenção de não cumprir a prestação a que se obrigou, porque não quer ou não pode, o credor não tem de esperar pelo vencimento da obrigação (se ainda não ocorreu), não tem de alegar e provar a perda de interesse na prestação do devedor, nem o tem de interpelar admonitoriamente, para ter por não cumprida a obrigação”.

Nesses casos, o comportamento do devedor basta para que se considere o contrato definitivamente não cumprido, estando então aberta a porta para que, além do mais, o credor possa pôr termo ao contrato, também ele, por resolução.

No caso em apreço, flui da factualidade apurada (v. facto provado n.º 49), que a Apelante, na reunião com a Apelada de 21-01-2020, cessou a relação negocial estabelecida entre ambas.

Tal declaração, apesar de não materializar o emprego da palavra sacramental “resolução”, não tem outro sentido que não o de que, com ela, se pretendia a extinção da relação contratual que vigorava entre as partes.

Tratou-se, por outro lado, de uma declaração unilateral da Apelante, como tal imposta à Apelada, independentemente, pois, do assentimento desta.

A declaração em causa constitui, assim, um comportamento concludente (cfr. art.º 217.º do CC) assim como que, com ela, a Apelante não mais quis do que proceder à resolução do contrato, pondo-lhe termo.

Assente que se tratou de resolução do contrato, importa agora apurar se a mesma foi lícita, o que, considerando o que acima foi mencionado, nos reconduz à questão de saber se havia incumprimento definitivo do contrato dos autos por parte da Apelada que justificasse essa resolução.

Infere-se da factualidade apurada que o programa informático fornecido e implementado pela Apelada apresentou as seguintes vicissitudes de funcionamento, no contexto da específica forma de organização e desenvolvimento do trabalho pela Apelante.

A funcionalidade de desdobramento das encomendas solicitada pela Apelante à Apelada e que esta disponibilizou criava uma falsa subdivisão e depois tinha que ser manualmente alterada para poder faturar a quantidade correta, sendo que as notas subdivididas no sistema com (-1 ou 0) não ficavam registadas, o que permitia duplicações caso o operador não estivesse atento, além de impedir que se faturasse pares subdivididos (v. factos provados n.ºs 33 a 38).

Outrossim, o programa não permitia a numeração das ordens de fabrico, pelo que os colaboradores da Ré não sabiam quantas notas de fabrico perfaziam a totalidade da encomenda, gerando sempre dúvidas sobre a quantidade total encomendada, correndo o risco de duplicação, sem registo (v. facto provado n.º 39).

Acresce que cada nota de fabrico mostrava, nos consumos, a necessidade total de cada componente da encomenda a que correspondia e não a necessidade daquela ordem de fabrico individualmente, induzindo o utilizador em erro, pois ao separar os materiais para cada ordem de fabrico, estavam na realidade a separar a totalidade (v. facto provado n.º 40).

Verificou-se, também, que as requisições de materiais mostravam o somatório de todas as quantidades, independentemente da unidade de cada um dos artigos (pés/m2…), ou seja, se fossem introduzidos 100 pés de pele branca e 10 m2 de pele preta, o somatório das quantidades que aparece é de 110, quando deveria estar convertido, em uma das duas unidades de referência, ou em pés ou metros quadrados, o que causava problemas com os pedidos e quantidades de material (v. facto provado n.º 42).

Finalmente, se os colaboradores da Ré pedissem apenas um pé de amostras, o programa assumia que estava a ser pedido um par de amostras, ou seja, não reconhecia a possibilidade de serem pedidos meios pares, pelo que a indicação de fabrico de amostras de um pé tinha que ser realizada à mão no pedido de amostra (v. facto provado n.º 43); quando eram efetuados pedidos de material e a amostra era faturada ao cliente, essa situação tinha que ser considerada, o que obrigava a uma maior atenção e perda de tempo por parte dos vários colaboradores que tratavam das diversas situações que estavam relacionadas com aquele pedido (v. facto provado n.º 44); e se um artigo fosse aberto com uma escala de tamanhos (36/42) e se em data posterior surgisse um pedido de encomenda em 35, ao gerar os formeiros, os tamanhos alinhavam e somavam todos à direita, fazendo com que o programa somasse tamanhos diferentes como sendo iguais (v. facto provado n.º 45).

Ora, todas estas vicissitudes são anomalias do desempenho do software no contexto específico da atividade da Apelante, não satisfazendo necessidades destas que a levaram a adquirir o software.

Saliente-se, apenas, que estas são as únicas vicissitudes dignas de consideração aqui e não já, também, todas as restantes que a Apelante alegara nos autos e que não provou.

Refira-se, também, que não se vê como anomalia do programa a realidade retratada nos factos provados n.ºs 28 a 32, já que, contrariamente ao que a Apelante quis transmitir nos autos, o sistema não impede, como flui de tais factos, uma nova faturação de um artigo depois de anulada uma primeira, impondo apenas, para tanto, por razões compreensíveis de segurança, a realização de um passo adicional no sistema.

Vicissitudes do programa informativo passíveis de serem consideradas anomalias de processamento são, por isso, as acima apontadas e mais nenhuma outra.

Considerando que a obrigação da Apelada era, como se viu, de resultado e não de meios, as sobreditas vicissitudes constituem incumprimento da obrigação da Apelada. Sobre esta recaía o dever de adaptar o software ... às particularidade de laboração da Apelante, de modo a otimizá-la e aquelas vicissitudes impediram essa otimização, gerando demoras na execução da atividade e riscos acrescidos de erros de produção.

Nada na factualidade apurada permite concluir, contudo, que se tratava de vicissitudes impossíveis de debelar pela Apelada e, portanto, vícios por irremediáveis e definitivos. A não obtenção do resultado pretendido pela Apelante decorrente de tais vícios não ultrapassa, por conseguinte, a mora. A validade da resolução operada pela Apelante pressuporá, pois, saber se, apesar dessa mora, há motivos para que se repute a mora convertida em incumprimento definitivo.

Tendo presentes as cinco causas de inadimplemento acima referidas, há que dizer que: a Apelante não dirigiu à Apelada uma interpelação admonitória; não foi fixado no contrato dos autos um termo essencial; não há nenhum facto que permita concluir que a prestação a cargo da Apelada se tenha tornado impossível; e também não resulta dos factos provados que a Apelada tenha por qualquer forma adotado um comportamento revelador da sua intenção de não cumprir o contrato. A única forma de perspetivarmos uma situação de incumprimento definitivo do contrato pela Apelada será, assim, a da perda objetiva de interesse da Apelante nesse cumprimento.

Não se vê, contudo, que esse seja o caso dos autos.

Na verdade, o software fornecido e implementado pela Apelada destinou-se, como flui da factualidade apurada, a assegurar a gestão de toda a atividade da Apelante. As vicissitudes em causa constituem, contudo, contratempos verificados em específicos setores de atividade da Apelante, não afetando, por conseguinte, a generalidade da atividade da mesma. Trata-se, pois, de vícios que, no quadro geral da atividade da Apelante, se nos afiguram localizados.

Outrossim, não há razões para concluir que se trata de vícios de uma gravidade tal que não possam ser resolúveis, desde que, naturalmente, haja vontade para proporcionar a possibilidade de resolução. Note-se que, do que se trata aqui, é de obrigação, não apenas de implementação de um software, mas da sua personalização e adaptação ao modo como a Apelante desempenha a sua atividade. É aceitável, por isso, que, no quadro da boa fé por que deve ser pautado o cumprimento das obrigações (art.º 762.º do CC), essa adaptação possa não ser imediata e exija antes tentativas acrescidas de introdução, tanto mais que se trata de implementação de um sistema cuja plena eficiência depende de fatores que lhe são alheios, como sejam o hardware (que não foi objeto do negócio das partes), os conhecimentos de quem o manuseia e o modo subjetivo com que se pretende usá-lo.

Acresce que a conduta da Apelada no cumprimento da sua obrigação contratual foi, como é ilustrado pelos factos provados, especialmente positiva.

Assim, logo na fase inicial da relação contratual, sobrestou na implementação do software por causa de um incêndio ocorrido nas instalações da Apelante, retardando, com isso, o recebimento do preço que lhe era devido (v. facto provado n.º 13). Ministrou, por outro lado, dezenas de horas de assistência remota e presencial à Apelante, quer em termos de atualização e adaptação do programa às solicitações da Apelante, quer em termos de conceção de soluções e funcionalidades visando a atividade da Apelante, quer, ainda, em termos de assistência aos colaboradores desta quanto à utilização do programa (v. factos provados n.ºs 14 a 17). Finalmente, ao longo de meses de trabalho dos seus colaboradores, à Apelante não foi paga qualquer quantia pecuniária correspondente ao serviço que estava a prestar, sendo que, inclusive, emitiu a fatura dos autos em data da conveniência da Apelante, isto é, por forma a permitir-lhe inscrever a despesas correspondente em processo de candidatura de programa de apoio a empresas (v. facto provado n.º 24).

De referir, ainda, que nada na factualidade apurada denuncia ou sugere sequer que a Apelada, não só não estivesse em condições de providenciar pela superação dos obstáculos em causa, como que não estivesse disposta a fazê-lo.

Ora, como se viu, a perda do interesse relevante para os efeitos aqui em consideração não se confunde com a “mudança de vontade do credor” ou em que este invoque para fundá-la um motivo que reputa adequado, mas que, numa apreciação objetiva da situação, não o é, sendo que não o será quando, da conduta do devedor até então nada leve a concluir que a atuação futura deste não fosse a do cumprimento da obrigação.

Porque assim é, concluímos que a postura da Apelante ao cessar a relação negocial com a Apelada mais não constituiu do que uma mudança de vontade dos seus legais representantes quando à não continuação do vínculo com a Apelante e não uma perda do interesse assente em motivo sério que o justificasse.

Ou seja, um rompimento contratual assente em perda, não objetiva, mas subjetiva do interesse seu em permanecer ligada ao contrato-promessa dos autos.

A resolução do contrato dos autos pela Apelante operou, pelo exposto, num quadro de mora e não de incumprimento definitivo da Apelada, não tendo surtido, por conseguinte, quaisquer efeitos.

Ainda, a este propósito, há que dizer o seguinte.

.- O contrato que serve de fundamento à ação é um contrato que, pela sua natureza e pelas características próprias das prestações que prevê a cargo de ambas as partes, mormente da Apelada, é fonte de prestações a cumprir ao longo do tempo.

Isto é, o seu cumprimento, mormente pela Apelada, não é de execução instantânea, mas estende-se pelo tempo, à medida em que esta vai diligenciando pela implementação do software, a par da sua personalização e adequação às características da atividade da Apelante e da formação a ministrar aos colaboradores e funcionários desta.

Ora, neste tipo de casos, a avaliação do incumprimento da parte para efeitos de resolução do contrato pela outra deve sempre considerar um outro critério de apreciação que é, como referido no Acórdão STJ de 28-10-2021 (proferido no processo n.º 778/15.2T8CSC.L1 e disponível no mesmo local acima referenciado), o do interesse do credor em manter-se vinculado ao contrato”, segundo “um juízo quanto à exigibilidade da manutenção do contrato em face das circunstâncias do caso e à luz do princípio da boa fé”.

Segundo tal Acórdão a adoção deste critério justifica-se porque, neste tipo de contratos, “emerge uma obrigação (…) que não se esgota no dever de efetuar a prestação principal correspondente, mas que pressupõe uma série de deveres acessórios deste, designadamente, de adoção de certos comportamentos, todos eles ao serviço da realização do fim contratual e resultantes da cláusula geral de boa fé prevista no art. 762º, nº 2, do C. Civil.”. Deles deriva, por isso, uma verdadeira relação obrigacional complexa, cuja resolução está dependente de haver “justa causa” para o efeito.

Essa justa causa é definida no Acórdão nos seguintes termos. Recorrendo aos ensinamentos de Baptista Machado (in “Pressupostos da resolução por incumprimento”, BFD - Estudos em homenagem ao Prof. Dr. J.J. Teixeira Ribeiro, II, p. 361 e ss), refere-se que, enquanto “conceito indeterminado, cuja aplicação exige necessariamente uma apreciação valorativa do caso concreto”, constituirá justa causa de resolução «qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual; todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim; qualquer conduta que possa fazer desaparecer pressupostos, pessoais ou reais, essenciais ao desenvolvimento da relação, designadamente qualquer conduta contrária ao dever de correcção e lealdade (ou dever de fidelidade na relação associativa). Essa justa causa “representará, em regra, uma violação dos deveres contratuais (e portanto, um incumprimento); será aquela violação contratual que dificulta, torna insuportável ou inexigível, para a parte não inadimplente a continuação da relação contratual».

Sobrevindo justa causa para a resolução, não haverá sequer “necessidade de recorrer ao processo de intimação com fixação de um prazo suplementar, nos termos do n.º 1 do art.º 808.º”, sendo que, embora a lei só fale de resolução por justa causa ao regular os contratos com prestações duradouras, o seu regime deve ser alargado por analogia às relações contratuais que, não tendo, embora, por objeto prestações duradouras, perduram no tempo, pelo facto de as respetivas obrigações terem um prazo para o cumprimento».

Perante estes dados, conclui-se no Acórdão que "nas relações contratuais que, pela sua própria natureza, perduram no tempo, é relevante a justa causa em que a violação dos deveres contratuais por parte de um contraente determina a perda de interesse na continuação da relação contratual por parte de outro contraente, caso em que ocorre uma situação de incumprimento definitivo justificativa do exercício válido do direito à resolução, sem necessidade de recurso prévio à interpelação admonitória prevista no art. 808º, nº 1, do C. Civil.

In casu, já se viu que o contrato que serve de fundamento à ação contempla prestações cuja cumprimento, pelas suas características, se prolonga no tempo, pelo que, aplicando a jurisprudência e doutrina que acabam de ser assinaladas, à Apelante assistiria o direito de resolver o contrato dos autos se houve justa causa para o efeito.

Mas não é esse, contudo, o caso, considerando tudo que acima foi dito para afastar a existência de perda objetiva de interesse da mesma na manutenção da relação contratual dos autos.

Com efeito, o incumprimento é, no quadro geral daquilo que foi executado pela Apelada, pontual e localizado; não há quaisquer elementos que permitam concluir que as vicissitudes reportadas não são ultrapassáveis; e a conduta da Apelada foi irrepreensível em termos de cumprimento das suas obrigações. Aliás, neste ponto, com manifesto prejuízo seu, já que dedicou meses do seu tempo e trabalho à Apelada sem que esta, em violação do contrato, lhe pagasse qualquer contrapartida pecuniária.

Não há, pois, perante estes dados, quaisquer circunstâncias que nos permitam concluir que o incumprimento da Apelada ‘dificulte, nem muito menos que torne insuportável ou inexigível’ para a Apelante a continuação da relação contratual.

Em suma, não havia fundamento para que a Apelante resolvesse o contrato dos autos.

E não havendo fundamento, é a mesma responsável pelo pagamento à Apelada do preço estipulado no contrato e juros correspondentes, nos termos constantes da sentença recorrida, cuja manutenção, em face do exposto, se impõe.


*

Porque vencida no recurso, suportará a Apelante as custas da apelação (art.ºs 527.º e 529.º do CPC).

* *

*


IV.- Decisão

Termos em que se nega provimento ao presente recurso e, consequentemente, se mantém a sentença recorrida.

Custas da apelação pela Apelante.

Notifique.


**

*


Porto, 6 de fevereiro de 2025

José Manuel Monteiro Correia

Maria Manuela Machado

Isabel Silva

(assinado eletronicamente)