I - Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do artigo 287.º do Código de Processo Civil.
II) Com a declaração de insolvência da Ré, transitada em julgado, nunca o autor conseguirá lograr obter, através da acção, o efeito pretendido, designadamente, o pagamento dos valores peticionados, deixando assim de ter interesse o prosseguimento da mesma. E este raciocínio mantém-se, quer a acção já estivesse instaurada à data da declaração de insolvência ou apenas tivesse sido instaurada após a sua declaração, como sucede no caso vertente.
III) De resto, de harmonia com o disposto no artigo 146.º do CIRE, já tendo decorrido o prazo para a reclamação de créditos, o titular do direito de crédito, para ver reconhecido o respectivo crédito, terá, reunidos os devidos pressupostos legais, de propor a acção de verificação ulterior de créditos a que alude o artigo 146.º, n.º 1, do referido diploma.
ECLI:PT:TRP:2024:6229/24.9T8VNG.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
A..., S.A., com sede na Avenida ..., ... Lisboa, instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum contra B..., Unipessoal, Lda., com sede na Rua ..., ... ..., Vila Nova de Gaia, onde concluiu pedindo que:
a) seja admitido a verificação do caso julgado material, devendo o Tribunal considerar provados os factos identificados no artigo 66º da petição inicial, sem necessidade de prova adicional por resultarem provados por sentença transitada em julgado, nos termos do artigo 619.º, n.º 1 do CPC;
b) seja a Ré condenada a pagar à Autora o montante global de € 28.931,44, relativamente aos custos que efectivamente suportou, em consequência do acidente de trabalho em apreço, acrescido de juros vincendos, calculados à taxa legal, e contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
c) seja a Ré condenada a pagar à Autora as quantias, que se venham a liquidar em sede de execução de sentença, referentes às despesas supervenientes que serão suportadas pela Autora decorrentes do sinistro, in casu, acrescida dos respectivos juros legais.
No apenso de reclamação de créditos, já foi proferida sentença, transitada em julgado.
“A presente acção declarativa comum foi instaurada no dia 05/08/2024.
De acordo com a certidão comercial da sociedade ré, verifica-se que a mesma foi declarada insolvente por sentença proferida no dia 30/01/2024 - 21H45 - AP. ....
O exposto é causa de inutilidade superveniente da lide.
Entendemos, salvo melhor opinião, que, estando em causa o pedido de condenação em obrigação pecuniária, a declaração de insolvência, transitada em julgado, da ré é motivo de inutilidade superveniente da lide.
Com efeito e seguindo o A.U.J. 1/2014, disponível www.dgsi.pt. - onde se lê “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do artigo 287.º do C.P.C.”.
Defendemos, com base na mencionada jurisprudência, que a inutilidade ocorre seja o fundamento do crédito peticionado a responsabilidade civil contratual ou extracontratual. Isto porque, de entre o mais vertido no aresto citado que reproduzimos, a declaração de insolvência, neste caso, exige a reclamação do crédito no próprio processo especial, esteja ou não previamente reconhecido.
Pelo exposto, declaro extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, artigo 277.º, alínea e) do C.P.C.”
I.Não se conformando com o teor da decisão proferida pelo Tribunal a quo, vem a Recorrente, por via do presente recurso, contestar tal decisão.
II. Concretizando, considera a Recorrente que o Tribunal a quo andou mal ao declarar extinta a presente ação por inutilidade superveniente da lide, em virtude da declaração de insolvência da Sociedade Ré “B..., Unipessoal Lda.”.
III. O que, por seu turno, revela que a Sentença sub judice não consubstancia a justa e rigorosa interpretação e aplicação das normas legais e dos princípios jurídicos competentes in casu.
IV. Na sequência da petição inicial apresentada pela Recorrente, no passado dia 03.08.2024, mediante a qual peticionou a condenação da Ré no pagamento do montante de 28.931,44€ (vinte e oito mil novecentos e trinta e um euros e quarenta e quatro cêntimos), sem prejuízo das quantias que se viessem a liquidar em sede de execução de sentença, foram informados os presentes autos, por requerimento apresentado a 26.09.2024, que a aludida Sociedade se encontrava insolvente.
V. A Sentença de declaração de insolvência foi proferida em 30.01.2024 e, bem assim, transitou em julgado em 29.02.2024, no âmbito do processo de insolvência de pessoa colectiva, a correr termos no Juiz 3 do Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, sob o n.º 794/24.8T8VNG.
VI. Nesse seguimento, o Tribunal a quo declarou extinta a presente instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art. 277.º alínea e) do CPC, com base no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 1/2014, de 25 de Fevereiro, que, por sua vez, determina que “transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.”.
VII. Sucede, porém, que, a questão decidenda em apreço no supra identificado Acórdão incide na possibilidade de ainda subsistir, ou não, qualquer utilidade que justificasse a prossecução de uma acção, após ter sido declarada a insolvência de um Réu, na pendência dessa mesma instância.
VIII. O que, por seu turno, não sucede in casu, dado que, no âmbito dos presentes autos, a declaração de insolvência da Sociedade Ré “B..., Unipessoal Lda.” é precedente à propositura desta ação.
IX. Motivo pelo qual, jamais terá tal Acórdão Uniformizador de Jurisprudência qualquer aplicabilidade ao caso sub judice.
X. Por outro lado, é de entendimento consensual, tanto na doutrina, como na jurisprudência, de que estamos perante uma inutilidade superveniente da lide quando, na pendência de uma instância, ocorre qualquer circunstância que torne irrelevante o conhecimento do mérito da causa, seja em virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, seja pelo facto do Autor, extrajudicialmente, ter logrado satisfazer a sua pretensão.
XI. O que, uma vez mais, não sucedeu in casu, pelo que se encontra afastada a possibilidade da presente ação ser julgada extinta por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art. 287º al. e) do CPC.
XII. Veja-se que, o Venerando Tribunal da Relação de Évora, veio confirmar uma Sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância que, no seguimento de uma situação análoga à dos presentes autos, “considerou não se verificar a inutilidade superveniente da lide e determinou a remessa dos autos para apensação aos autos de insolvência”.
XIII. Efectivamente, esclareceram os Venerandos Juízes Desembargadores que “quanto aos efeitos da declaração de insolvência nas acções declarativas em que o Réu seja o insolvente, e em que se pretende o reconhecimento de um crédito sobre a massa insolvente, há que distinguir entre acções já em curso, ou acções instauradas após o trânsito em julgado da declaração de insolvência.”
XIV. Pelo que, não podendo ser extinta a presente ação por inutilidade superveniente da lide, pelas razões já expostas, sempre se deverá ter em atenção que o art. 146.º do CIRE prevê a possibilidade de ser apresentada uma ação declarativa, com vista ao reconhecimento de créditos existentes que ainda não tenham sido reclamados em sede própria, após a respectiva declaração de insolvência.
XV. Por sua vez, determina o art. 148.º do CIRE que tais ações “correm por apenso aos autos da insolvência e seguem os termos do processo comum”.
XVI. Ora, nas palavras dos, já citados, Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, “como se vê, nenhuma destas especificidades contende com a inutilidade superveniente da lide; ao contrário, resulta expressamente consagrado no art. 146º nº 1 do CIRE, a possibilidade destas acções e a necessidade do seu conhecimento. O conhecimento da acção, e verificação dos respectivos pressupostos, compete ao Tribunal competente, que é aquele onde corre o processo de insolvência, por imposição do art. 148º do CIRE, que determina que tais acções corram por apenso”.
XVII. Assim, e considerando que a presente ação foi intentada em momento posterior à declaração de insolvência da Sociedade “B..., Unipessoal Lda.”, sempre deveria o Tribunal a quo ter remetido os presentes autos, para apensação, para o supra identificado processo de insolvência de pessoa colectiva.
XVIII. A par dessa questão, e independentemente do tribunal competente para conhecer do mérito da presente ação ser, neste caso, o respectivo Tribunal do processo de insolvência em apreço, cumpre, desde já, ressalvar que, dois dos três requisitos previstos no art. 146.º do CIRE, encontram-se, na presente data, devidamente preenchidos.
XIX. Por seu turno, e no que diz respeito ao requisito atinente à legitimidade processual das partes, sempre se deverá dizer que, o caso de ilegitimidade passiva, por preterição do litisconsórcio necessário passivo, é suscetível de ser oficiosa e liminarmente suprido pelo Tribunal competente, ao abrigo do dever de gestão processual, nos termos dos art. 6.º/2, 590/2 al. a) e 261.º todos do CPC, aplicáveis ex vi art. 17.º do CIRE.
XX. Por conseguinte, deverá a Sentença ora em crise ser revogada, e consequentemente ser ordenada a remessa, para apensação, dos presentes autos para o supra identificado processo de insolvência da sobredita Sociedade.
2. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar:
Das conclusões formuladas pela recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que a questão a resolver no âmbito do presente recurso prende-se em saber se, em face da declaração de insolvência da Ré e do objecto do litígio em causa na acção declarativa, tal declaração de insolvência, torna ou não inútil o prosseguimento dos autos.
3. Conhecendo do mérito do recurso:
Presente que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formulado, importando em conformidade decidir as questões nelas colocadas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, tendo presente o dispositivo da decisão proferida e em análise, resulta como questão a apreciar, saber se se pode concluir pela inutilidade de prosseguimento dos presentes autos.
Na decisão recorrida entendeu-se estarem verificados tais requisitos.
Deste entendimento dissente a recorrente.
Vejamos, então.
Dispõe o artigo 1.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas que “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.”
Escreve o Professor Luís Manuel Teles de Menezes Leitão[1] que “a insolvência é um processo que visa a satisfação do direito de crédito sobre o património remanescente do devedor, sendo consequentemente uma execução (artigo 10º, nºs 1 e 4 CPC). É, no entanto, uma execução com larga incidência de elementos declarativos, como a declaração de insolvência, oposição à insolvência, e a verificação e graduação de créditos” e é “uma execução colectiva uma vez que o seu fim é a satisfação dos direitos de todos os credores de um devedor”, visando “o tratamento igualitário de todos os credores do devedor (par conditio creditorum)”. No processo de insolvência, “efectua-se a reunião de todos os credores em assembleia, para os quais se institui a administração do património do devedor através de um administrador de insolvência que, sob a fiscalização do tribunal, procura obter a melhor valorização possível desse património e proceder à sua repartição pelos credores em termos igualitários”.
Sendo a razão de ser do processo de insolvência a de fazer com que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos no âmbito de um único processo e o façam em condições de igualdade (par conditio creditorum), não tendo nenhum credor qualquer outro privilégio ou garantia que não aqueles que sejam reconhecidos pelo Direito da Insolvência e nos precisos termos em que este os reconhece, a declaração de insolvência tem efeitos sobre os créditos.
Estatui o artigo 90.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas que “os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência”, deixando aqueles “de poder instaurar acções independentes ou continuar a prosseguir outros processos à margem do processo de insolvência. Assim se garante a intangibilidade do património do devedor, já que a massa insolvente deixa de poder ser utilizada como garantia geral de outros créditos que não aqueles que sejam exercidos no processo de insolvência”[2].
Em anotação ao artigo 90º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda[3] que “os credores têm de exercer os seus direitos no processo de insolvência e segundo os meios processuais regulados no CIRE”, sendo esta a solução que se harmoniza com a natureza e a função do processo de insolvência, como execução universal, tal como o caracteriza o artigo 1º do Código”. Assim, “para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem, na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, os credores têm de neles exercer os direitos que lhes assistem, procedendo, nomeadamente, à reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles se encontrem já reconhecidos em outro processo. (…). Por conseguinte, a estatuição deste art.º 90.º enquadra um verdadeiro ónus posto a cargo dos credores”.
Estatui o nº 1 do artigo 128.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas que, sob a epígrafe «reclamação de créditos» dá início ao título e capítulo dedicados à «verificação de créditos», dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, “devem os credores da insolvência reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento”, dispondo o nº 3 que “a verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento”.
Resulta da articulação entre os nºs 1 e 3 do artigo 128º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas que o reconhecimento de um crédito por sentença transitada em julgado não dispensa os respectivos titulares, caso pretendam ver satisfeito o seu direito pela massa insolvente, de procederem à reclamação de tais créditos.
Ainda sobre os efeitos da declaração de insolvência sobre as acções declarativas, dispõe o artigo 85.º, n.º 1, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas que, declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa e as acções exclusivamente patrimoniais intentadas pelo devedor, poderão ser apensadas ao processo de insolvência, a pedido do administrador de insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo.
Como refere Maria do Rosário Epifânio[4] “a apensação é uma consequência do carácter universal e concursal do processo de insolvência: uma vez que são apreendidos e liquidados todos os bens penhoráveis do insolvente (universalidade do processo de insolvência), independentemente da verificação do passivo, todos os credores devem se chamados ao processo para nele (e só nele - exclusividade da instância) obterem satisfação dos seus créditos.
Por isso, as acções declarativas intentadas contra o insolvente, pendente à data de declaração de insolvência, poderão seguir uma das seguintes vias: são apensadas ao processo de insolvência, são suspensas ou extinguem-se”.
No caso de não serem apensadas ao processo de insolvência, o Código de Insolvência e Recuperação de Empresas não contém qualquer preceito regulador dessa questão, pelo que a solução deverá resultar dos respectivos preceitos com as normas processuais gerais que disciplinam as acções declarativas de condenação.
Sobre esta questão surgiram, essencialmente, duas correntes jurisprudenciais.
Para uma das posições, “transitada em julgado a sentença que declara a insolvência da demandada, a acção que visa o reconhecimento de um direito de crédito sobre a insolvente, deve ser declarada extinta, por inutilidade superveniente da lide, de harmonia com o disposto no art. 287.º, al. e), do CPC.[5]
Diversamente, para a outra posição, a acção declarativa mantém a sua utilidade, antes da sentença de verificação de créditos. Tal inutilidade apenas ocorrerá a partir do momento em que, no processo de insolvência, é proferida sentença verificação de créditos, momento a partir do qual é essa sentença que reconhece e define os direitos dos credores.[6]
Esta divergência jurisprudencial deu origem ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2014, de 8 de Maio de 2013[7], que fixou o seguinte entendimento: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.”
Como referido no Acórdão de 15 de Dezembro de 2016, proferido pelo Tribunal da Relação de Évora[8]:
“I - Da interpretação expressa no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2014, decorre que, transitada em julgado a declaração de insolvência do devedor e aberta a fase processual de reclamação de créditos, com vista à sua ulterior verificação e graduação no âmbito do respectivo processo de insolvência, deixa de ter qualquer interesse e utilidade o prosseguimento de acção declarativa instaurada com vista ao reconhecimento de eventuais direitos de crédito do demandante, pois estes sempre teriam de ser objecto de reclamação no processo de insolvência, já que aquela declaração obsta à instauração de qualquer acção executiva contra a massa insolvente.
II - Assim, com o trânsito em julgado da sentença que declare a insolvência do devedor, com carácter pleno, a acção declarativa proposta pelo credor contra aquele, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal, cumprindo decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do artigo 277.º do CPC.”
Por último, «o artigo 47º, nº 1, do CIRE estatui que “declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio”, donde decorre que declarada a insolvência, os titulares dos créditos referidos deixam de ser credores do devedor insolvente, passando a ser credores da insolvência.[9]
Transpondo tais princípios para os presentes autos, concorda-se com a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
Dispõe o artigo 277º do Código de Processo Civil que “A instância extingue-se com (alínea e) a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide”.
Em anotação ao artigo 277º do Código de Processo Civil, referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[10] que «a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, (…), a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar - ali, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio. (…) Não deve, porém, confundir a decisão de questão prejudicial (…) nem a ocorrência superveniente de uma excepção, designadamente o pagamento (artigo 573º-2), ambas dando lugar a decisões de mérito, com a impossibilidade ou inutilidade da lide, que dá lugar à extinção da instância, sem apreciação do mérito da causa.»
Apreciada a causa de pedir e o pedido formulado na acção, conclui-se que estamos perante uma situação de inutilidade superveniente da lide, atentos os efeitos da declaração de insolvência, previstos no Código de Insolvência e Recuperação de Empresas. Com a declaração de insolvência da Ré, transitada em julgado, nunca o autor conseguirá lograr obter, através da acção, o efeito pretendido, designadamente, o pagamento dos valores peticionados, deixando assim de ter interesse o prosseguimento da mesma. E este raciocínio mantém-se, quer a acção já estivesse instaurada à data da declaração de insolvência ou apenas tivesse sido instaurada após a sua declaração, como sucede no caso vertente.
Conforme exposto, de harmonia com o disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 128.º, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se quiser obter pagamento, não havendo consequentemente interesse processual na prossecução da presente acção. No caso de já ter decorrido o prazo para a reclamação de créditos, o titular do direito de crédito, para ver reconhecido o respectivo crédito, terá de propor a acção de verificação ulterior de créditos a que alude o artigo 146.º, n.º 1, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas.
Dito de outro modo, ”De nada servirá, assim, a sentença proferida na acção instaurada contra o devedor, se o credor não reclamar o crédito no processo de insolvência, porquanto jamais poderá tal decisão ser dada à execução para cumprimento coercivo, até porque, de acordo com o dito art. 88º, a declaração de insolvência obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência».”[11]
Como referido no atrás citado Acórdão de 15 de Dezembro de 2016, proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, “sendo agora a autora credora da massa insolvente e não da sociedade insolvente, é compreensível que assim seja, isto porque «visando o processo de insolvência a colocação de todos os credores em posição de igualdade jurídica perante o património da insolvente, mediante o chamado concurso universal de credores, a afirmação e reconhecimento de direitos de crédito sobre a insolvente (com efeitos no processo de insolvência, como a consideração da sua verificação) através de acções declarativas de condenação em que apenas um dos vários credores é parte, estaria aberto o caminho a situações de conluio e favorecimento entre alguns dos vários credores ou de falsos credores, por um lado, e a empresa à beira da insolvência ou já insolvente, por outro, através de simples expedientes como a não contestação das acções, omissão de apresentação de prova, confissão dos factos ou do pedido, etc., tudo com prejuízo manifesto dos restantes credores não intervenientes na acção declarativa».
Como se referiu, do artigo 90º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas resulta que os credores têm de exercer os seus direitos no processo de insolvência e segundo os meios regulados nesse código, para obterem a satisfação dos seus créditos, na medida do possível, ou seja, trata-se de um ónus imposto aos credores. Ou seja, o credor tem de o reclamar no processo de insolvência (a) no prazo fixado para tal efeito, na sentença declaratória da insolvência, ou (b) ulteriormente, mediante a propositura de uma nova acção que tem na posição de réus, a massa insolvente, os credores e o devedor.
Tal solução ficou, aliás, estabilizada com a prolação do AUJ do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2014 atrás citado.
De resto, a bifurcação de vias de reclamação de créditos está expressamente vedada pelo artigo 90º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas do qual decorre que “para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, os credores têm de neles exercer os direitos que lhes assistem, procedendo, nomeadamente, à reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles já se encontrem reconhecidos em outro processo (…)”[12].
Esta norma impõe, inelutavelmente, a concentração num único processo das pretensões de todos os credores, o que constitui uma consequência do princípio da “par conditio creditorum”.
Assim, de harmonia com o disposto no artigo 146.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, já tendo decorrido o prazo para a reclamação de créditos, o titular do direito de crédito, para ver reconhecido o respectivo crédito, terá, reunidos os devidos pressupostos legais, de propor a acção de verificação ulterior de créditos a que alude o artigo 146.º, n.º 1, do referido diploma.
Assim, temos que não merece censura a decisão recorrida.
Impõe-se, por isso, o não provimento da apelação.
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Nos termos supra expostos, acorda-se, neste Tribunal da Relação, em julgar não provido o recurso de apelação, confirmando a decisão recorrida.
Porto, 06 de Fevereiro de 2025