FRACÇÃO AUTÓNOMA
UTILIZAÇÃO PARA ALOJAMENTO LOCAL
ADMISSIBILIDADE
TÍTULO CONSTITUTIVO
REGULAMENTO DO CONDOMÍNIO
ASSEMBLEIA DE CONDÓMINOS
PROIBIÇÃO POR DELIBERAÇÃO
Sumário

(Sumário da responsabilidade do relator)
I. Os elementos caracterizadores do alojamento local são (i) o alojamento temporário (nomeadamente a turistas), (ii) a remuneração e (iii) a não-qualificação do alojamento como empreendimento turístico. Da exemplificação com turistas decorre que a figura contratual será também aplicável a estudantes.
II. O Decreto-lei nº 76/2024, de 23.10 (entrado em vigor no dia 1.11.2024) veio alterar o regime da exploração dos estabelecimentos de alojamento local e revogar medidas no âmbito da habitação, sendo que a nova redação dos Artigos 6º-B e 9º é aplicável ao caso em apreço porquanto o novo regime dispõe sobre o conteúdo do direito de propriedade do condómino sobre a sua fração e sua articulação com os direitos dos demais condóminos (Artigo 12º, nº2, segunda parte, do Código Civil).
III. Atento o regime decorrente do novo Artigo 6º-B, nº4 (“ a instalação e exploração de estabelecimentos de alojamento local em fração autónoma não constitui uso diverso do fim a que é destinada, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 1422.º do Código Civil”), a doutrina do AUJ nº 4/2022 caducou porquanto se alterou – em termos essenciais -  o quadro legal subjacente à prolação do dito AUJ.
IV. A prolação do AUJ nº 4/2022 deu azo a uma veemente reação da doutrina, enfatizando alguns equívocos e incompletudes do referido AUJ de molde que - mesmo que não tivesse ocorrido a caducidade do AUJ em decorrência das alterações legislativas emergentes do Decreto-lei nº 76/2024 – haveria ponderosas razões para nos apartarmos do valor persuasivo do referido AUJ.
V. Face ao quadro legal atualmente vigente, a articulação entre o exercício da atividade de alojamento local e o regime da propriedade horizontal tem como traços essenciais:
i. É admissível a exploração de estabelecimento de alojamento local em fração autónoma, independentemente de tal fração se destinar a habitação nos termos do título constitutivo, salvo se o título constitutivo da propriedade horizontal proibir o exercício de tal atividade ou se a mesma for proibida pelo regulamento de condomínio estando este integrado no titulo constitutivo (Artigo 6º-B, nº4, do Decreto-lei nº 128/2014, de 29.8 a redação do Decreto-lei nº 76/2024, de 23.10; proibição originária);
ii. A assembleia de condóminos pode criar ou alterar o regulamento do condomínio, proibindo o exercício da atividade de alojamento local, exigindo-se uma maioria representativa de 2/3 da permilagem do prédio, sendo que essa deliberação só produz efeitos para o futuro (ex nunc), aplicando-se apenas aos pedidos de registo de alojamento local submetidos em data posterior à deliberação (Artigo 6º-B, nº5; proibição superveniente);
iii. A assembleia de condóminos pode, por deliberação fundamentada aprovada por mais de metade da permilagem do edifício, opor-se ao exercício da atividade de alojamento local em fração autónoma com fundamento na prática reiterada e comprovada de atos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos condóminos, solicitando, para o efeito, uma decisão do presidente da câmara territorialmente competente (Artigo 9º, nº 2; proibição superveniente reativa sujeita a condição). Feita essa solicitação, o presidente da câmara das duas uma: (i) após audiência prévia, determina o cancelamento do registo (nºs 5 e 6); (ii) pode convidar os intervenientes à obtenção de um acordo com vista ao arquivamento do procedimento mediante a aceitação de compromissos e condições (nº 12).
iv. A exploração de alojamento local está também sujeita a limitações legais objetivas, nomeadamente: é vedada a exploração, pelo mesmo proprietário ou titular de exploração, de mais de nove estabelecimentos de alojamento local na modalidade de apartamento, por edifício, se aquele número de estabelecimentos for superior a 75/prct. do número de frações existentes no edifício (artigo 11º, nº 4); na modalidade de hostel em edifício em que coexista habitação, é necessário autorização dos condóminos para o efeito (Artigos 4º, nº4 e 6º, nº 2, al. f)); na modalidade de “quarto”, este tem de se integra na residência do titular da exploração e esta tem de corresponder ao seu domicílio fiscal, com o limite máximo de três unidades (Artigo 3º, nº7); o município pode aprovar regulamento que preveja a existência de áreas de contenção e áreas de crescimento sustentável, impondo limites quantitativos à instalação de novos alojamentos locais (cf. Artigos 4º, nºs 5 a 7, 15º-A e 15º-B).

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
HH – Administração de Condomínios, Lda., na qualidade de administradora do Condomínio do Edifício JM, com sede na Estrada (...), N.º 137, (...), freguesia de (...), concelho do (...), BB, intentaram a presente ação declarativa, com processo comum, contra DD e marido FF, peticionando o seguinte:
a) ser declarada ilegal a utilização da fração autónoma, individualizada pela letra “AD”, do prédio urbano denominado JM, sito na Estrada (...), freguesia de (...), concelho do (...), dada pelos réus para estabelecimento de alojamento local;
b) condenando-se, em consequência, os réus a cessar imediatamente a utilização que vêm fazendo da referida fração, reintegrando-a no seu destino específico para a habitação;
c) condenando, ainda, os réus no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no valor de € 250/dia, a contar da data do trânsito em julgado da presente ação até efetiva cessação do alojamento, tudo com as legais consequências, nomeadamente, no pagamento das custas de parte.
Para tanto e em síntese, alegam os autores que a utilização da fração autónoma titulada pelos réus para alojamento local é ilegal à luz do título constitutivo da propriedade horizontal respeitante ao prédio em que se insere, bem como do regulamento do condomínio.
Os réus apresentaram contestação, deduzindo a exceção da ilegitimidade ativa e impugnaram a ilegalidade suscitada pelos autores.
Os autores apresentaram resposta à matéria de exceção invocada.
Em sede de audiência prévia, verificou-se malograda a tentativa de conciliação.
Foi proferido despacho saneador por escrito, tendo a exceção da ilegitimidade ativa sido julgada improcedente.
Após julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julgo a presente acção procedente, por provada, e, em consequência:
a) declaro a ilegalidade da utilização da fracção autónoma, individualizada pela letra “AD”, do prédio urbano denominado JM, sito na Estrada (...), freguesia de (...), concelho do (...), dada pelos réus para estabelecimento de alojamento local;
b) condeno os réus a cessar imediatamente a utilização que vêm fazendo da referida fracção, reintegrando-a no seu destino específico para a habitação;
c) condeno os réus no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no valor de € 250,00 por dia, a contar da data do trânsito em julgado da presente acção até efectiva cessação do alojamento.»
*
Não se conformando com a decisão, dela apelaram os Réus formulando, no final das suas alegações, as seguintes
CONCLUSÕES:
A. O presente recurso é interposto da decisão proferida pelo Tribunal a quo, na sequência da condenação dos Recorrentes na cessação imediata da utilização que vinham fazendo da fração autónoma de que são proprietários; de um pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de €250,00 euros por dia, a contar do trânsito em julgado da presente ação até efetiva cessação do alojamento, e na declaração de ilegalidade de utilização da referida fração.
B. Entendem os ora recorrentes, que a condenação em apreço representa uma crassa violação dos direitos constitucionalmente consagrados, entre eles o disposto no artigo 62º da CRP, ao abrigo do qual “os proprietários gozam de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.
C. As restrições aos direitos fundamentais têm de resultar de lei expressa e devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (artigos 17º, 18º, n.º 2, da Lei fundamental)
D. Sendo a fração utilizada para arrendamentos/alojamentos de curta duração, a finalidade habitacional sempre se mostraria preenchida, porquanto inexiste na lei qualquer indicação, de que para que o fim habitacional se mostre preenchido, urge que se verifique a habitação dos próprios proprietários ou arredamentos habitacionais de maior duração.
E. Em relação à Sentença do Tribunal do (...), em primeiro lugar deve considerar-se que não foi provado ao contrário do que refere a sentença Tribunal que o “condomínio insere-se num Hotel de cinco estrelas (JM)” (alínea v dos factos provados) pois da ata da assembleia geral do Condomínio do Edifício JM de 02/01/2023 (fls. 13 verso a 19 verso), não consta essa “inserção” nem esse documento constitui prova suficiente e bastante para o provar.
F. Conforme resulta do artigo 2º, n.º 1, alínea a), do Código de Registo Predial os empreendimentos turísticos que funcionem em prédios constituídos em propriedade horizontal são registáveis, e na certidão de registo do prédio em causa não consta essa afetação (vide certidão de registo predial do prédio sob o n.º (...) a folhas - --- dos autos).
G. Os interesses turísticos do Hotel nada têm a ver com o prédio onde a fração dos Réus está integrada, não se lhe aplicando o artigo 2º, n.º 2, do RJAL.
H. Acresce que os Recorrentes em momento algum contrariaram o disposto na lei ou no título constitutivo.
I. Para poder afetar uma fração a alojamento local não é necessário alterar a autorização de utilização para habitação que a fração tem.
J. O título constitutivo, e o regulamento do condomínio, que remontam à década de 90, preveem na sua letra, que fica vedado aos condóminos “destinar qualquer fração a atividades ou uso que possa perturbar a tranquilidade dos condóminos; (...) k) utilizar as frações, ainda que a título acessório, para fins comerciais, industriais ou de serviços (...) e que “As frações autónomas destinam-se única e exclusivamente aos fins descritos neste título de propriedade horizontal, ficando, por consequência, vedado aos condóminos destiná-las a outros fins que não sejam o principal”.
K. Essas limitações devem ser interpretadas restritivamente e de forma literal por força do regime jurídico dos direitos fundamentais (artigos 17º e 18º, n.º 2, da CRP).
L. Ora, nenhuma destas imposições/obrigações está a ser infringida pelos ora Recorrentes, porquanto a fração em questão continua a ser utilizada para “fins habitacionais”. Simplesmente, em vez de ser habitada pelos próprios proprietários, é utilizada para arrendamentos de curta duração, vulgo alojamentos locais.
M. Inexiste tanto na lei, como no título constitutivo, qualquer impedimento nesse sentido.
N. A atividade de alojamento local veio a ser regulada pela primeira através do Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de março, ou seja, muito posterior ao título constitutivo do prédio em causa.
O. A introdução da proibição de constituir sobre as frações autónomas direitos que permitam a utilização partilhada das frações por diversos utentes como consta das condições do titulo constitutivo e registadas na competente Conservatória tem em vista impedir a constituição de direitos reais de habitação periódica (vulgarmente também designado por time-sharing) regulado em Portugal pelo Decreto-lei n.º 355/81 de forma pioneira e que no decurso da década de oitenta do século passado proliferou-se nas novas unidades turísticas e em particular na Madeira.
P. O direito de habitação periódica é um direito de natureza real que constitui um regime de propriedade fracionada (vide preambulo do diploma) correspondendo à ideia de “partilha” que resulta das condições em causa.
Q. Nem na sentença nem do julgamento resultou provado que o alojamento local em causa perturbe a tranquilidade dos demais condóminos (os depoimentos referidos são exatamente no sentido oposto), que tivessem sido constituídos direitos permitam a utilização partilhada da fração ou que a destinem a fins comerciais, industriais ou de serviços.
R. O propósito que esteve na génese da redação destas “afetações/limitações” não diz respeito ao Alojamento Local!
S. Mesmo o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (doravante, abreviadamente designado por “AUJ”) datado de 22 de março de 2022, Acórdão que é utilizado como fundamento na douta sentença, já se encontra desatualizado, não fazendo “jus” à realidade dos dias de hoje e do caso concreto.
T. Efetivamente, tanto a doutrina como a jurisprudência têm vindo a pugnar no sentido da admissibilidade do alojamento local nas frações autónomas, quando no título constitutivo apenas se faz referência que determinada fração se destina à habitação. Acresce ainda, que tem vindo a ser entendido pelos nossos tribunais que a atividade de alojamento local não deve ser entendida como um ato de comércio, precisamente em virtude da mesma não configurar um ato de comércio, nos termos do artigo 2º do CCom.
U. Caso assim não se entenda, sempre importaria referir, que se afigurava necessário atender à legislação mais recente, em particular a Lei 53/2016, de 06 de outubro, a qual revoga o Acórdão fundamento, no seu artigo 9º, nº2, determinado que a assembleia de condóminos, por deliberação de pelo menos dois terços da permilagem do edifício, pode opor-se ao exercício da atividade de alojamento local na referida fração, o que não se veio a suceder no caso concreto.
V. Assim, ainda que a tese sufragada no AUJ vingasse, os Recorrentes estariam a ser crassamente privados dos direitos constitucionalmente consagrados, especialmente quando se tem em consideração que nem todas as frações que integram este prédio urbano se destinam a habitação.
Nestes termos, e nos mais de direito, sempre com mui douto suprimento desse venerando tribunal da relação, deve ser dado provimento à presente apelação, e em consequência deve ser revogada a decisão agora em crise, assim se fazendo a acostumada justiça.»
*
Contra-alegaram os apelados, propugnando pela improcedência da apelação.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4, e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
a) Impugnação da decisão da matéria de facto (conclusão E));
b) Saber se a utilização da fração autónoma feita pelos réus para alojamento local é admissível ou não (demais conclusões).
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
A jurisprudência citada neste acórdão sem menção da origem encontra-se publicada em www.dgsi.pt.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
A) A autora HH – Administração de Condomínios, Lda. é uma empresa que se dedica à administração e à gestão e de condomínios.
B) A autora é a empresa responsável pela administração e gestão do Condomínio do Edifício JM, sito na Estrada (...), n.º 137, freguesia de (...), concelho do (...), que corresponde ao prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3667.º, da citada freguesia e concelho e está descrito na Conservatória do Registo Predial do (...) sob o n.º (...), constando a dita constituição da propriedade horizontal registada pela Apresentação (AP.) n.º 10 de 7 de janeiro de 1991.
C) A escritura de constituição de propriedade horizontal do identificado prédio urbano foi outorgada, aos 18 dias do mês de Dezembro de 1990, no (já extinto) Primeiro Cartório do (...), da Secretaria Notarial do (...), da licenciada (...), exarada de folhas 9 a folhas 19 verso, do Livro de Notas para escrituras diversas n.º 75 -C.
D) Acresce que da descrição predial do citado prédio urbano constam, ainda, as “Afetações e Limitações” do mesmo pela AP. 2280 de 3 de fevereiro de dois mil e vinte, correspondendo esta AP. a um averbamento de retificação da AP. 10 de 7 de janeiro de 1991.
E) As mencionadas “Afetações e Limitações” constam na escritura de constituição de propriedade horizontal e foram, ainda, reproduzidas no “regulamento do condomínio” celebrado no mesmo dia da outorga da referida escritura, ou seja, aos dezoito de dezembro de mil novecentos e noventa.
F) O autor BB é dono e legítimo proprietário da fração autónoma, individualizada pela letra “J”, do tipo t-Dois, destinada à habitação, e integrada no segundo andar do Bloco um, do identificado prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, denominado “JM”, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 3667.º-J-BL1 e descrita na Conservatória do Registo Predial do (...) sob o número (...)-J, encontrando-se a aquisição a seu favor registada pela Ap. n.º 73 de 03 de junho de 2005 que tem o valor patrimonial de 203.335,18 euros.
G) Os réus são donos e legítimos proprietários da fração autónoma, individualizada pelas letras “AD”, do tipo T-Dois, destinada à habitação, e integrada no quinto andar do Bloco um, do identificado prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, denominado “JM”, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo (...) - AD-B1 e descrita na Conservatória do Registo Predial do (...) sob o número (...)-AD, encontrando-se a aquisição a favor daqueles registada pela Ap. n.º 84 de 14 de março de 2017, tendo aquela o valor patrimonial de 183.348,72€ (cento e oitenta e três mil trezentos e quarenta e oito euros e setenta e dois cêntimos).
H) O prédio urbano acima identificado é constituído por quatro blocos e possui cinquenta e uma frações autónomas identificas pelas letras maiúsculas de “A” a “AY”.
I) A fração “AD” é uma “(...) – Unidade habitacional, tipo T-dois, contígua da anterior, compondo-se de hall de entrada, sala comum, dois quartos de dormir, cozinha, três instalações sanitárias e lavandaria, com a área de cento e quarenta e quatro metros quadrados, além duma varanda e duas floreiras, com a área somada de vinte e um metros quadrados. Tem direito a um lugar de estacionamento no parqueamento coletivo descoberto. É-lhe atribuído o valor de trinta e quatro mil e quinhentos contos e a permilagem de vinte e três.”.
J) Por não necessitarem da mesma para residência própria, os réus decidiram começar a prestar, na referida fração autónoma de que são proprietários, serviços de alojamento de luxo e temporário a turistas, mediante remuneração, e sob a designação comercial de “JM (...) – Bedroom Apartment”,
K) Os réus cederam a utilização da fração “AD” à sociedade comercial (...) Investimentos, Lda..
L) Essa sociedade constituiu na fração “AD” um estabelecimento de alojamento local, identificado no registo nacional do alojamento local sob o n.º (...)/AL .
M) É sócio e gerente único da sociedade (...) Investimentos, Lda. o réu FF, sendo, ainda, sócio o seu marido, réu DD em que cada um é titular de uma quota com o igual valor nominal de 3.500,00 euros.
N) Tal prestação de serviços encontra-se publicitada nos sites da especialidade, nomeadamente no Booking, e identificados com a referida designação comercial, bem como com a menção que aquela fração constitui um estabelecimento de alojamento local que se encontra no registo nacional do alojamento local (RNAL) identificado sob o n.º (...)/AL.
O) Resulta do RNAL, identificado sob o n.º (...), efetuado junto do Turismo de Portugal aos onze de Abril de dois mil e vinte e três, que a fração autónoma, pertença dos réus, corresponde a um estabelecimento de alojamento local.
P) O dito estabelecimento de alojamento local teve a sua data de abertura ao público a 01 de junho do ano de 2023, sendo titular da respetiva licença a sociedade comercial, do tipo por quotas, (...) Investimentos, Lda., titular do número de identificação fiscal e de pessoa coletiva (...), que tem a sua sede na morada da fração, objeto dos presentes autos, e propriedade dos réus, girando aquela com o capital social de cinco mil euros.
Q) No título constitutivo da propriedade horizontal e nas alíneas c), j), e k) do n.º 4, que respeita às “afetações e limitações”, encontra-se expendido que fica especialmente vedado aos condóminos o seguinte:
“(...) c) destinar qualquer fração a atividades ou uso que possa perturbar a tranquilidade dos condóminos;
...
j) Constituir sobre as frações direitos que permitam a utilização partilhada das frações por diversos utentes;
k) utilizar as frações, ainda que a título acessório, para fins comerciais, industriais ou de serviços (...).” -
R) As limitações das afetações das frações discriminadas no anterior artigo também se encontram vertidas na descrição predial do prédio urbano constituído em propriedade horizontal no qual se integra a fração dos réus, bem como no regulamento de condomínio.
S) Apesar dos apelos e solicitações feitas pela autora HH – Administração de Condomínios, Lda., diretamente ou através de missivas dirigidas aos réus pela sua mandatária, o certo é que estes persistem em prosseguir com a afetação de tal fração para terceiros, ali exercendo uma atividade de alojamento local ou cedência para terceiros da fração que pertence a ambos e que se destina à habitação.
T) O n.º 1 das referidas “Afetações e Limitações” dita que: “As frações autónomas destinam-se única e exclusivamente aos fins descritos neste título de propriedade horizontal, ficando, por consequência, vedado aos condóminos destiná-las a outros fins que não sejam o principal.”
U) Em momento algum e por qualquer forma, foi solicitado aos condóminos, mormente aos autores, qualquer consentimento para que fosse dado aquele destino à fração dos réus.
V) O Condomínio insere-se num Hotel de cinco estrelas (JM), é fechado e considerado de alto nível ou de luxo.
W) O autor BB, bem como os demais proprietários de frações localizadas no edifício em causa, quando tomaram a decisão de investir na compra das mesmas tiveram conhecimento das normas regulamentares, bem como das limitações e dos comportamentos que lhes estão vedados e que foram inclusivamente levados a registo predial.
X) Os réus conhecem as práticas e atividades proibidas aos condóminos.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Impugnação da decisão da matéria de facto.
Os apelantes pretendem que o facto provado sob v) (“O Condomínio insere-se num Hotel de cinco estrelas (JM), é fechado e considerado de alto nível ou de luxo”) seja revertido para não provado porquanto da ata da assembleia geral do Condomínio do Edifício JM de 2.1.2023 não consta a inserção do Condomínio num Hotel de cinco estrelas, nem o referido documento constitui prova suficiente de tal.
O tribunal a quo fundamentou a resposta ao facto provado sob v) nestes termos:
«(…) acta da assembleia geral do Condomínio do Edifício JM de 02/01/2023 (fls. 13 verso a 19 verso) – factualidade em B), S) e V)»
Apreciando.
Os apelantes deram cumprimento suficiente aos ónus do Artigo 640º do CPC.
Há que assinalar que a coincidência da designação JM na denominação do Condomínio e do Hotel (...) JM (...) não é casual, estando o primeiro na Estrada (...) nº 137 e o segundo na mesma Estrada (...) nº 139. Consoante resulta da ata, a própria assembleia de condóminos realizou-se na Meeting Room do Hotel (...) JM (...). Dos documentos anexos à ata, também resulta que os condóminos têm acesso aos denominados Cartões Privilege, pagos, pessoais e intransmissíveis, que dão acesso às piscinas, aos campos de ténis, ao Fun at JM Kids bem como ao ginásio, instalações estas do Hotel porquanto não é de crer que os condóminos paguem para ter acesso à área própria do Condomínio.
O verbo inserir tem como um dos significados possíveis «integrar-se num conjunto ou num grupo» (cf. Dicionário da Língua Portuguesa, 2013, Porto Editora, p. 910).
Assim sendo, a formulação utilizada no facto v) (“Condomínio insere-se num Hotel de cinco estrelas”) peca por excesso, devendo ser objeto de nova redação de acordo com a prova documental referida e analisada.
Assim, altera-se a redação do facto v) para:
O Condomínio confina com Hotel de cinco estrelas (JM), é fechado e considerado de alto nível ou de luxo, tendo os condóminos acesso - pago, pessoal e intransmissível - a algumas infraestruturas do hotel.
 A utilização da fração autónoma feita pelos réus para alojamento local é admissível?
O Tribunal a quo julgou a ação procedente, assentando essencialmente nestas considerações:
«À luz dos aflorados artigos 1418.º, 1419.º e 1422.º do Código Civil, artigos 2.º, 4.º e 9.º do Regime Jurídico da Exploração de Estabelecimentos de Alojamento Local e AUJ n.º 4/2022, salvo melhor entendimento e in casu, temos que os réus, na qualidade de condóminos, ao explorarem um estabelecimento de alojamento local na fracção autónoma que titulam, a qual consubstancia uma unidade habitacional, desrespeitam as limitações ao exercício do seu direito de propriedade.
Com efeito, consta do título constitutivo da propriedade horizontal, das “Afectações e Limitações” vertidas na descrição predial e do regulamento do condomínio, documentos cujo teor os réus não ignoram, que fica especialmente vedado aos condóminos: “(...) c) destinar qualquer fracção a actividades ou uso que possa perturbar a tranquilidade dos condóminos (...) j) Constituir sobre as fracções direitos que permitam a utilização partilhada das fracções por diversos utentes (...) k) utilizar as fracções, ainda que a título acessório, para fins comerciais, industriais ou de serviços (...).” Mais dita o n.° 1 das referidas “Afetações e Limitações” que: “As fracções autónomas destinam-se única e exclusivamente aos fins descritos neste título de propriedade horizontal, ficando, por consequência, vedado aos condóminos destiná-las a outros fins que não sejam o principal.”
Ora, neste específico contexto normativo condominial, afere-se que os réus estão a dar uso diverso à sua fracção do fim (principal) a que é destinada (habitação, seguindo-se de perto a doutrina firmada no AUJ n.º 4/20221) e estão a praticar uma actividade proibida no título constitutivo (artigos 1422.º, n.º 2, alíneas c) e d) e n.º 4, este a contrario sensu, do Código Civil), sendo que, neste particular e por tal, queda dispensada qualquer superveniente deliberação da assembleia de condóminos nos termos e para os efeitos dispostos no artigo 9.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Exploração de Estabelecimentos de Alojamento Local (não se descurando que o cancelamento do registo é matéria a ser apreciada pela competente entidade administrativa).
Escalpelizando, o estabelecimento de alojamento local em apreço pode perturbar a tranquilidade dos condóminos (ainda que, até à data e pelo menos no concreto uso da fracção dos réus, não se tenha verificado, conforme factualidade não assente, o que evidentemente não equivale a afirmar que, de futuro e mormente noutras fracções que repliquem tal actividade, a perturbação inexista), consubstancia um direito que proporciona a utilização partilhada da fracção por diversos – dir-se-á variadíssimos - utentes (o que, de harmonia com a experiência comum e a normalidade das coisas, não se confunde com o arrendamento, de carácter mais estável; por outro lado, ainda assim de carácter mais estável que o alojamento local, a vedação sub judice sequer parece permitir o direito real de habitação periódica) e significa a utilização da fracção, ainda que a título acessório, para fins de serviços (vide artigos 2.º e 4.º Regime Jurídico da Exploração de Estabelecimentos de Alojamento Local).
E, se dúvidas subsistissem na interpretação e alcance do teor dos mencionados documentos (título constitutivo da propriedade horizontal, “Afectações e Limitações” vertidas na descrição predial e regulamento do condomínio), cabe não olvidar que o prédio urbano que integra a fracção propriedade dos réus trata-se de um condomínio inserido num Hotel de cinco estrelas (JM), é fechado e considerado de alto nível ou de luxo.
Por último, importa notar que, numa patente colisão de direitos (direito ao repouso e protecção da saúde / à qualidade de vida / à efectiva tutela do direito de personalidade dos demais condóminos vs direito ao exercício da actividade económica / direito à fruição do direito de propriedade dos réus), prevista no artigo 335.º do Código Civil, não se afigura que deva prevalecer tal direito dos réus, antes o dos demais condóminos2. Sendo certo que não é colocado em crise o conteúdo essencial do direito à habitação dos réus.
Destarte, tem acolhimento o pedido dos autores no sentido da declaração da ilegalidade da utilização da fracção autónoma, individualizada pela letra “AD”, do prédio urbano denominado JM, sito na Estrada (...), freguesia de (...), concelho do (...), dada pelos réus para estabelecimento de alojamento local e da condenação dos réus a cessar imediatamente a utilização que vêm fazendo da referida fracção, reintegrando-a no seu destino específico para a habitação.»
Cumpre apreciar.
Esta ação foi intentada em 19.10.2023, datando a sentença de 10.7.2024.
Respigando os factos essenciais para a apreciação de mérito, temos o seguinte:
i. A fração autónoma (T2) dos réus localiza-se num Condomínio cuja escritura de constituição de propriedade horizontal foi outorgada em 18.12.1990, nela constando que a fração autónoma dos réus é «destinada à habitação»;
ii. Na escritura de constituição da propriedade horizontal, na descrição predial  e posteriormente no Regulamento do Condomínio ficaram a constar “Afetações e limitações”, ficando vedado aos condóminos designadamente: c) destinar qualquer fração a atividades ou uso que possa perturbar a tranquilidade dos condóminos; j) Constituir sobre as frações direitos que permitam a utilização partilhada das frações por diversos utentes; k) utilizar as frações, ainda que a título acessório, para fins comerciais, industriais ou de serviços;
iii. O n.º 1 das referidas “Afetações e Limitações” dita que: “As frações autónomas destinam-se única e exclusivamente aos fins descritos neste título de propriedade horizontal, ficando, por consequência, vedado aos condóminos destiná-las a outros fins que não sejam o principal”;
iv. Por não necessitarem da mesma para residência própria, os réus decidiram começar a prestar, na referida fração autónoma de que são proprietários, serviços de alojamento de luxo e temporário a turistas, mediante remuneração, e sob a designação comercial de “JM (...) – Bedroom Apartment”;
v. Os réus cederam a utilização da fração “AD” à sociedade comercial (...) Investimentos, Lda.;
vi. Essa sociedade constituiu na fração “AD” um estabelecimento de alojamento local, identificado no registo nacional do alojamento local sob o n.º (...)/AL, o qual funciona desde 1.6.2023;
vii. O Condomínio confina com Hotel de cinco estrelas (JM), é fechado e considerado de alto nível ou de luxo, tendo os condóminos acesso - pago,  pessoal e intransmissível - a algumas infraestruturas do hotel.
O tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos, sendo que as partes não impugnaram tal factualidade não provada:
1) Acresce que com a grande rotatividade e frequência de clientes “turistas” que entram e saem do prédio onde se localiza a fracção utilizada e comercializada pelos réus como alojamento local, verifica-se, naturalmente, um aumento significativo do desgaste, bem como de sujidade nas partes comuns, o que, implica uma desvalorização do património.
2) Isto para não falar na insegurança que resulta da circulação e presença de pessoas estranhas ao Condomínio.
3) A perturbação do descanso e da tranquilidade do autor BB, e dos restantes condóminos, também se mostra afetada pela entrada e permanência dos clientes do alojamento local que ficam instalados na fração que é propriedade dos réus.
4) Clientes esses que, não raras vezes, adotam comportamentos barulhentos e a horas menos próprias, sobretudo à noite em que falam bastante alto, arrastando as malas pelas zonas comuns, bem como no interior da fração.
5) O acesso ao Condomínio de todos aqueles que usam a fração dos réus a título de alojamento local, tem resultado no incómodo permanente, insegurança e invasão da privacidade do autor BB, bem como dos demais condóminos residentes.
6) O destino da fração dos réus à prática do alojamento local tem significado uma maior rotatividade de pessoas que utilizam os espaços comuns, designadamente a zona da piscina, resultando em infelizes situações como aquelas em que os próprios residentes não têm disponível qualquer espreguiçadeira e, nessa medida, acabam por se deitar na relva ou, até mesmo, por abandonar a dita zona comum, não usufruindo do que é deles por direito.
7) Acrescendo, ainda, repita-se, o barulho, alguma sujidade nas zonas comuns, que se traduz em papéis no chão e em paredes sujas, com o encostar das mãos e das malas de viagem, comportamentos que são demonstrativos da falta de civismo dos hóspedes que utilizam, indevidamente, a identificada fração.
8) E todos aqueles comportamentos traduzem-se no acréscimo de despesas para o condomínio, quer ao nível da limpeza, quer de pequenas reparações que são também fruto do aumento da utilização dos transeuntes que vão utilizando a fração que pertence aos réus por via do alojamento local.
Convocando as normas do Código Civil em sede de propriedade horizontal, temos que:
- o título constitutivo da propriedade horizontal pode conter a “menção do fim a que se destina cada fração” (Artigo 1418º, nº2, al. a));
- é vedado aos condóminos dar à sua fração “uso diverso do fim a que se destina”, bem como “praticar quaisquer atos ou atividades que tenham sido proibidos no título constitutivo ou, posteriormente, por deliberação da assembleia de condóminos aprovada sem oposição” (Artigo 1422º, nº 2, als. c) e d));
- “Sempre que o título constitutivo não disponha sobre o fim de cada fração autónoma, a alteração ao seu uso carece da autorização da assembleia de condóminos, aprovada por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio, com exceção do previsto no artigo 1422.º-B” (Artigo 1422º, nº 4, do Código Civil).
 A par desta figura dos direitos reais (propriedade horizontal), surgiu na realidade social e económica outra figura contratual que veio a ser submetida  ao regime jurídico de exploração de estabelecimentos de alojamento local regulado, inicialmente, pelo Decreto-lei nº 39/2008, de 7.3, que veio instituir o regime jurídico da instalação, exploração e funcionamento dos empreendimentos turísticos, diploma esse alterado pelos Decretos-Leis nºs 228/2009, de 14.9, e 15/2014, de 23.1, para permitir a prestação de serviços de alojamento temporário em estabelecimentos que não reunissem os requisitos legalmente exigidos para os empreendimentos turísticos.
Em 2014, foi editado o Decreto-lei nº 128/2014, de 29.8, que elevou “a figura do alojamento local de categoria residual para categoria autónoma, reconhecendo a sua relevância turística e inaugurando um tratamento jurídico próprio» de forma a que “as figuras dos empreendimentos turísticos e do alojamento local passam a ser duas figuras devidamente autónomas e recortadas, vedando-se a possibilidade de colocação sob a figura e regime do alojamento local de empreendimentos que cumprem com os requisitos dos empreendimentos turísticos”.
Nos termos do Artigo 2º, nº 1, do Decreto-lei nº 128/2014, “Consideram-se estabelecimento de alojamento local aqueles que prestam serviços de alojamento temporário, nomeadamente a turistas, mediante remuneração, e que reúnam os requisitos previstos no presente decreto-lei”.
Os elementos caracterizadores do alojamento local são (i) o alojamento temporário (nomeadamente a turistas), (ii) a remuneração e (iii) a não-qualificação do alojamento como empreendimento turístico (cf. Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 8ª ed., Almedina, p.  609).  Da exemplificação com turistas decorre que a figura contratual será também aplicável a estudantes (Op. Cit., p. 609).
Nos termos do Artigo 4º, nº 1, “Para todos os efeitos, a exploração de estabelecimento local corresponde ao exercício, por pessoa singular ou coletiva, da atividade de prestação de serviços de alojamento”.
A Lei nº 56/2023, de 6.10 (Medidas no âmbito da habitação), teve como um dos propósitos o “incentivo à transferência de apartamentos em alojamento local para o arrendamento habitacional” (Artigo 1º, nº2, al. g)).
A Lei nº 56/2023 (com entrada em vigor no dia seguinte ao da sua publicação- Artigo 55º) alterou a redação do Decreto-lei nº 128/2014, de 29.8, passando o Artigo 9º, nº2, a dispor o seguinte:
2 - No caso de a atividade de alojamento local ser exercida numa fração autónoma de edifício ou parte de prédio urbano suscetível de utilização independente, a assembleia de condóminos, por deliberação de pelo menos dois terços da permilagem do edifício, pode opor-se ao exercício da atividade de alojamento local na referida fração, salvo quando o título constitutivo expressamente preveja a utilização da fração para fins de alojamento local ou tiver havido deliberação expressa da assembleia de condóminos a autorizar a utilização da fração para aquele fim.
A mesma Lei nº 56/2023 alterou os nºs 4 e 5 do Artigo 5º do Decreto-lei nº 128/2014 nestes termos:
4 - Sempre que o estabelecimento de alojamento local seja registado em fração autónoma de edifício em regime de propriedade horizontal que se destine, no título constitutivo, a habitação, deve o registo ser precedido de decisão do condomínio para uso diverso de exercício da atividade de alojamento local.
 5 - A decisão é tomada nos termos do n.º 1 do artigo 1419.º do Código Civil.
Essa nova redação apenas se aplica aos registos efetuados após a entrada em vigor da Lei nº 56/2023 (cf. Artigo 52º). Como o registo do alojamento local dos réus é anterior, não se lhe aplica esta nova redação.
Posteriormente, o Decreto-lei nº 76/2024, de 23.10 (entrado em vigor no dia 1.11.2024 – cf. Artigo 7º) veio alterar o regime da exploração dos estabelecimentos de alojamento local e revogar medidas no âmbito da habitação, republicando o Decreto-lei nº 128/2014. O propósito deste diploma foi o de «(…) criar condições para que a atividade do alojamento local se consolide de forma equilibrada com o ambiente habitacional, com respeito dos direitos de iniciativa privada, de propriedade privada e de habitação, constitucionalmente consagrados, conciliando os impactos económicos e urbanísticos daquela atividade em Portugal
No que para o caso releva, as alterações mais relevantes são:
Artigo 6º-B [aditado]
Utilizações válidas e compatíveis com alojamento local
(…)
4 - Sem prejuízo da eventual proibição do exercício da atividade de alojamento local no título constitutivo da propriedade horizontal ou em regulamento de condomínio que dele faça parte integrante, ou ainda através de deliberação posterior da assembleia de condóminos a aprovar nos termos do número seguinte, a instalação e exploração de estabelecimentos de alojamento local em fração autónoma não constitui uso diverso do fim a que é destinada, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 1422.º do Código Civil, devendo coexistir no quadro dos usos urbanísticos dominantes admissíveis para a respetiva zona territorial, salvaguardando a harmonia e a coexistência das atividades que decorrem nas outras frações.
5 - A deliberação posterior de criação ou alteração do regulamento de condomínio, prevista no número anterior, com o objetivo de proibir o exercício da atividade do alojamento local, deve ser aprovada pela assembleia de condóminos por maioria representativa de dois terços da permilagem do prédio e produz efeitos para futuro, aplicando-se apenas aos pedidos de registo de alojamento local submetidos em data posterior à deliberação.
Artigo 9º
Cancelamento do registo
(…)
2 - No caso de a atividade de alojamento local ser exercida numa fração autónoma de edifício, ou parte de prédio suscetível de utilização independente, a assembleia de condóminos pode opor-se ao exercício da atividade de alojamento local na referida fração, através de deliberação fundamentada aprovada por mais de metade da permilagem do edifício, com fundamento na prática reiterada e comprovada de atos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos condóminos, solicitando, para o efeito, uma decisão do presidente da câmara municipal territorialmente competente, nos termos dos números seguintes.
 3 - (Revogado.)
 4 - Uma vez recebida a deliberação da assembleia de condóminos aprovada nos termos do disposto no n.º 2, o presidente da câmara municipal pode ordenar a realização do procedimento previsto nos nºs. 12 e 13.
(…)
12 - Em alternativa ao cancelamento do registo do estabelecimento, o presidente da câmara municipal pode convidar os intervenientes à obtenção de um acordo, acompanhado, quando exista, por um provedor do alojamento local, com vista ao arquivamento do procedimento mediante a aceitação de compromissos e condições.
(sublinhado e bold nossos)
Esta nova redação dos Artigos 6º-B e 9º do Decreto-lei º 128/2014 é aplicável ao caso em apreço.
Com efeito, a nova redação destes preceitos veio dispor sobre o conteúdo de certas relações jurídicas (a saber:  o conteúdo do direito de propriedade do condómino sobre a sua fração - cf. Artigo 1420º do Código Civil - e sua articulação com os direitos dos demais condóminos), abstraindo dos factos que lhes deram origem, razão pela qual se aplicam às relações jurídicas já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor (segunda parte do nº 2 do Artigo 12º do Código Civil).
 «Tem-se, assim, que aí onde, por determinação da primeira parte do nº2, as leis que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos ou sobre os efeitos de quaisquer factos só se aplicam aos factos novos, já sucede, por indicação da segunda parte do nº2, que as leis dispondo diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas são aplicáveis às relações jurídicas constituídas antes da entrada em vigor da lei nova as subsistentes ou em curso à data do seu início de vigência. Seja uma lei que vem alterar o regime das relações pessoais dos cônjuges ou o regime de administração dos bens do casal, ou o conteúdo do direito de propriedade (…)» (Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, p.62).  Também Inocêncio Galvão Telles, Introdução ao Estudo do Direito, 11ª ed., pp. 293-294, afirma que as relações ou situações abarcadas pela segunda parte do nº 2 do Artigo 12º «são as de execução duradoura, ou, mais concretamente, de execução continuada ou periódica, como as relativas ao direito de propriedade ou outros direitos reais (…)». «A LN aplica-se a todos os factos jurídicos (…) que se tenham iniciado na vigência da LA e que ainda estejam em curso no início da vigência da LN» (Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Direito, Almedina, p. 282).
Atento o regime decorrente do novo Artigo 6º-B, nº4 (“ a instalação e exploração de estabelecimentos de alojamento local em fração autónoma não constitui uso diverso do fim a que é destinada, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 1422.º do Código Civil”), a doutrina do AUJ nº 4/2022 caducou porquanto se alterou – em termos essenciais -  o quadro legal subjacente à prolação do dito AUJ. Nos termos desse AUJ foi fixada esta jurisprudência: “No regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fração se destina a habitação, deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local.” Consoante é assumido pelo próprio AUJ, o regime legal que foi atendido para a prolação do AUJ foi o decorrente dos Decreto-Leis nº 39/2008 e 128/2014, antes das alterações introduzidas pela Lei nº 62/2018, de 22.8.
Conforme é sabido, os AUJ são vinculativos para o STJ enquanto este os não alterar e constituem um precedente persuasivo para os demais tribunais (cf. João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. II, AAFDL, 2022, p. 202). «(…) a discordância [dos AUJ] deve ser antecedida de fundamentação convincente, baseada em critério rigorosos, em alguma diferença relevante entre as situações de facto, em contributos da doutrina, em novos argumentos trazidos pelas partes e numa profunda e serena reflexão interior» (Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., p. 542). A linha interpretativa fixadas nos acórdãos uniformizadores só deverá ser objeto de desvio, no âmbito do mesmo quadro legal, perante diferenças fácticas relevantes e/ou (novos) argumentos jurídicos que não encontrem base de ponderação nos fundamentos que sustentaram tais arestos (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.5.2022, Graça Amaral, 1562/17).
Ora, a prolação do AUJ nº 4/2022 deu azo a uma veemente reação da doutrina, enfatizando alguns equívocos e incompletudes do referido AUJ. Neste âmbito, merece destaque Pedro de Albuquerque, Alojamento Local e Propriedade Horizontal, Almedina, 2022, monografia totalmente dedicada à crítica do AUJ nº 4/2022. Da extensa análise aí desenvolvida, merecem a nossa adesão as seguintes críticas ao AUJ:
§ O Artigo 236º do Código Civil não é aplicável à interpretação do título constitutivo da propriedade horizontal. O AUJ, em rigor, não aplicou o Artigo 236º à interpretação do título constitutivo, mas sim de uma norma legal (Artigo 1418º, nº2, al. a), do CC). «Na verdade, o acórdão sustenta, face ao caráter facultativo da menção do fim revista neste último preceito, não poder um declaratário normal deixar de inferir ser o sentido do termo habitação necessariamente uma morada estável. Todavia, os preceitos legais não são suscetíveis de serem interpretados segundo as diretivos do artigo 236º do Código Civil.» Os critérios para a interpretação de atos ou negócios organizativos não são os do Artigo 236º, mas os usados para a interpretação da própria lei, tratando-se de um fenómeno igual ao da interpretação do estatuto das sociedades ou do seu contrato social (pp. 84-86, 112-117,  228; sobre a interpretação dos estatutos societários, cf. STJ 29.10.2024, Rosário Gonçalves, 2464/22).
§ O AUJ assenta num pressuposto de facto indemonstrado, qual seja o de que o alojamento local é necessariamente mais turbador para as relações de vizinhança do que a morada permanente (p. 228), sendo essa presunção hominis infirmado pela presunção legal do Artigo 1347º, nº2, do Código Civil (pp. 147-173, 229).
§ Ao pressupor que o termo normativo habitação é uma morada estável, o acórdão ab-roga o repristinado Artigo 1095º, nº3 (“O limite mínimo previsto no número anterior não se aplica aos contratos pra habitação não permanente ou para fins especiais transitórios, designadamente pro motivos profissionais, de educação e formação ou turísticos, neles exarados”), onde expressamente, se refere e utiliza a expressão normativa habitação, não para significar domicílio permanente, mas precisamente o inverso: habitação não permanente para fins transitórios especiais, designadamente para fins turísticos» (pp. 107,  119-125, 140-143, 229).
§ Ao assentar a solução numa simples aplicação a contrario do Artigo 1418º, nº2, al. a), o AUJ faz uma interpretação enunciativa, praeter legem de uma norma sujeito ao princípio da tipicidade imperativa do Artigo 1306º do CC, ofendendo a tipicidade dos direitos reais (pp. 82, 88, 175-180, 189, 230).
§ A expressão normativa habitação jamais teve o significado normativo de habitação permanente ou morada estável (cf. Artigo 1083º, nº2, da versão inicial do CC, Artigo 5º, nº2, al. b) do RAU e atual artigo 1095º, nº3) (pp. 180-184, 231).
§ Várias normas do regime do alojamento local utilizam, expressamente, a expressão normativa habitação com um sentido completamente oposto ao dado pelo acórdão, precisamente para prever forma de habitação não permanente, v.g., Artigos 3º, nº1 e  nº3, 9º, nº2, 15º-A e 20ºA do Regime do Alojamento Local (pp. 197-202, 233-234).
Maria Raquel Rei, “Os acórdãos uniformizadores de jurisprudência e a interpretação do negócio jurídico (a propósito dos AUJ 4/2022, de 22.3.2022 e 9/2022, de 24.11.2023)”, in Revista de Direito Civil, Ano VIII (2023), nº2, pp. 443-452, sustenta que «um acórdão uniformizador em matéria de interpretação negocial tem de restringir-se à interpretação ou aplicação das normas legais sobre interpretação» (p. 444) e que «cada negócio jurídico é um facto jurídico e é tratado pela lei, também quanto á sua interpretação, como um facto» (p. 446). Nessa senda, afirma que é forçoso concluir que não é possível afirmar, pura e simplesmente, «que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário de todos e cada um dos atos de constituição de propriedade horizontal conclua da indicação no título constitutivo de que certa fração se destina a habitação, que nela não é permitida a realização de alojamento local» (p. 446). Mais adiante, enfatiza que um número significativo de negócios de constituição de propriedade horizontal é formado por negócios unilaterais não recipiendos, sendo que o disposto no Artigo 236º se aplica a declarações com um declaratário. «Isto significa que os critérios consagrados no art.º 236º não são aplicáveis aos negócios unilaterais de constituição de propriedade horizontal. À interpretação das declarações não recipiendas aplica-se, por analogia, o disposto no art.º 2187º acerca dos critérios de interpretação dos testamentos (…)» (p. 449). Em síntese final, concluir que «A interpretação de preceitos negociais não é suscetível de uniformização através de AUJ, atendendo ao carácter único de cada negócio jurídico, transposto para as regras de interpretação através da consideração, em cada negócio, das vontades, perspetivas/posições, conhecimentos das partes no negócio» (p. 452).
Por sua vez, António Menezes Cordeiro, “Propriedade horizontal e alojamento local”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ano LXIV, 2023, Nº 1, Tomo I, pp. 241-276, também endereça fortes críticas ao AUJ nº 4/2022.
Nas suas palavras:
“I. A orientação do AUJ n.º 4/2022 suscita perplexidade. Antes de atentar nos pontos concertados ponderados pelo Supremo, interessa referir seis aspetos prévios. Assim:
(1) é passado em claro o papel universitário do AL, assente na lógica da propriedade e da própria hospedagem;
(2) esta orientação vai provocar uma litigiosidade elevada, já que se podem multiplicar as ações individuais destinadas a fazer cessar alojamentos locais: da ordem das dezenas de milhar, em todo o País; houve muitos milhões de euros em investimentos no AL que ficariam perdidos, com detrimento do princípio da confiança;
(3) o artigo 9.º/2 do Decreto-Lei n.º 128/2014, na redação dada pela Lei n.º 62/2018, fica, na prática, derrogado: não vale a pena, num condomínio, exigir-se a maioria, numa deliberação justificada, quando, sem razões e apenas invocando o título constitutivo “habitação”, qualquer condómino pode, sozinho, conseguir o mesmo efeito.
(4) não pode haver uma regra geral para interpretar um título constitutivo; este, tendo (como tem) natureza negocial, segue os parâmetros do artigo 236.º/1, podendo ter alcances diferentes, conforme as situações;
(5) a PH fica desvalorizada, caso os condóminos percam a possibilidade de optar pelo AL;
(6) abdica-se de um relevante instrumento capaz de flexibilizar, para efeitos de habitação, a rigidez da PH e do arrendamento urbano vinculístico.
II. Quantos títulos constitutivos de PH, por todo o País, permitem expressamente o AL? Quantas situações de AL existem, em todo o País e quantas provocaram queixas justificadas? Ao vedar, genericamente, o AL nos edifícios em PH, quais as consequências para os estudantes e o turismo? Tudo isto deveria ser estudado e ponderado por um gabinete de estudos, munido de dados estatísticos, económicos e sociológicos, que apoiasse o Governo ou o Parlamento. O Supremo não tem (não tem de ter) tais apetrechos. Sempre defendemos os assentos e sempre criticámos a (infeliz) reforma de 1995 que, por pruridos ditados por um hoje inaufragável positivismo constitucional, veio revogar o artigo 2.º do Código Civil e os próprios assentos. Mas prevenimos: em certos casos, o Supremo não tem (nem deve ter) meios para regular, em termos gerais, a convivência social.
III. Complementarmente, cabe esclarecer outros três pontos:
(1) a pretensa natureza comercial do AL: nenhuma lei o considera como tal; logo, teríamos de caminhar por analogia; só que não vemos qualquer lacuna; além disso, o regime do comerciante não se aplica aos donos de frações; eles não têm de adotar firma e não se sujeitam ao registo comercial, como exigiria o artigo 18.º do Código Comercial;
(2) a pretensa natureza do AL como “prestação de serviço”: embora esse termo seja usado pelas leis turísticas, estas não vinculam, quando façam meras qualificações; o cerne do alojamento de coisa é o gozo da coisa, proporcionado ao beneficiário; logo, temos aqui um direito pessoal de gozo, reconduzível ao arrendamento ou à hospedagem;
(3) quer no seu uso corrente, que no uso técnico-jurídico, “habitação” abrange o AL: recordem-se os arrendamentos (...) para habitação, por curtos períodos, em praias, termas ou outros lugares de vilegiatura, ou para outros fins especiais transitórios, nos termos do artigo 1083.º/2, b), versão original, do Código Civil.
IV. Em suma: quer por razões exógenas, quer pelas endógenas, o AUJ n.º 4/2022 não foi, com a devida vénia, conseguido. Prolatado sob a influência de concretas situações em que o AL tenha provocado problemas de vizinhança, ele generalizou. Ora tais problemas têm solução:
(1) individualmente, através do artigo 1346.º, reforçado pelos direitos de personalidade, com relevo para o direito à saúde, ao repouso e ao bom ambiente;
(2) coletivamente, com recurso ao artigo 9.º/2 do Decreto-Lei n.º 128/2014, na redação dada pela Lei n.º 62/2018 ou, ainda, pela majoração da quota para condomínios;
(3)  por via do título constitutivo da PH, sempre que proíba, lícita e legitimamente, o AL» (pp. 274-276).
Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 8ª ed., pp. 613-614, afirma que:
«A Lei 62/2018 parecia ter vindo legitimar, embora não de forma expressa, o exercício da atividade em condomínios habitacionais, questão que era bastante discutida anteriormente.
O DL 128/2014 exige a “autorização de utilização ou título de utilização válido do imóvel”, não especificando qualquer uso (habitação, comércio, serviços, etc.). Se, na versão originária do diploma, já parecia dever entender-se que qualquer autorização de utilização, nomeadamente a habitacional, permitia a instalação de um AL, o reforço dos poderes do condomínio, pela Lei 62/2017, veio tornar ainda mais clara, na nossa perspetiva, esta conclusão, sendo estes poderes acrescidos pressuposto claro da referida autorização.»
Resulta deste breve excurso pela doutrina crítica (reativa) ao AUJ nº 4/2022 que - mesmo que não tivesse ocorrido a caducidade do AUJ em decorrência das alterações legislativas emergentes do Decreto-lei nº 76/2024 – haveria ponderosas razões para nos apartarmos do valor persuasivo do referido AUJ, as quais não foram ponderadas pelo Tribunal a quo.
No que tange à argumentação utilizada pelo tribunal a quo radicada na perturbação da tranquilidade dos condóminos, bem como derivada da limitação referida em ii. c) (destinar a fração a atividades ou uso que possa perturbar a tranquilidades dos condóminos), esse raciocínio é infirmado pela circunstância de os autores terem alegado adrede factos, os quais foram julgados não provados. Tratando-se de uma atividade devidamente licenciada em termos administrativos, a reação a efeitos nocivos só é admitida a partir do momento em que o prejuízo se torne efetivo (cf. Artigo 1347º, nºs 1 e 2, do Código Civil, por analogia).
Quanto à limitação constante do título constitutivo atinente à proibição de constituição sobre as frações de direitos que permitam a utilização partilhada por diversos utentes (al. j)), esta terá de ser interpretada face à realidade legal e social existente à data da constituição da propriedade horizontal, em 1990. Como bem referem os apelantes, o sentido útil da proibição é o precludir a constituição de direitos reais de habitação periódica sobre as frações, sendo que o Decreto-lei nº 355/81, de 31.12, havia regulado tal regime, afirmando-se que «O que se pretende com o presente diploma é criar um novo direito real - o direito de habitação periódica - que, na prática, equivale a um regime de propriedade fracionada, já não por segmentos horizontais, mas por quotas-partes temporais, garantindo melhor os investidores, que neste momento, através da modalidade vulgarizada pelos títulos de férias, têm apenas acesso à proteção legal precária de tipo obrigacionista.» Com tal proibição , bem como com a proibição de utilizar as frações, ainda que a título acessório, para fins comerciais ou de serviços, não podia a outorgante da constituição da propriedade horizontal, em 1990,  reportar-se a uma realidade social e jurídica (o alojamento local) que ainda não existia e que só veio a ter a primeira regulação legal volvidos dezoito anos através do Decreto-lei nº 39/2008, de 7.3. (elementos literal e histórico aplicados à interpretação do título constitutivo da propriedade horizontal).
 Conforme já foi acima referido, as referências feitas ao alojamento local como “prestação de serviço” não são vinculativas quanto à natureza do seu regime. O cerne do alojamento local assenta no facultar o gozo do imóvel, proporcionando ao beneficiário um direito pessoal de gozo, reconduzível ao arrendamento ou à hospedagem.
Mesmo que se entenda que a atividade de alojamento local integra a prestação de serviços em sentido estrito (o que não se aceita), certo é que a norma imperativa decorrente do nº4 do Artigo 6º-B aditado pelo Decreto-lei nº 76/2024 sempre prevaleceria e afastaria uma disposição do título constitutivo da propriedade horizontal ou de regulamento de condomínio que proibisse genericamente a prestação de serviços na fração, ocorrendo supervenientemente a atividade de alojamento local na fração (cf. Artigo 294º do Código Civil). Na verdade, a proibição do exercício da atividade de alojamento local no título constitutivo tem de ser expressa e reportada especificamente ao alojamento local e não a uma genérica prestação de serviços (cf. nº4 do Artigo 6º-B).
Em síntese, face ao quadro legal atualmente vigente, a articulação entre o exercício da atividade de alojamento local e o regime da propriedade horizontal tem como traços essenciais:
i. É admissível a exploração de estabelecimento de alojamento local em fração autónoma, independentemente de tal fração se destinar a habitação nos termos do título constitutivo, salvo se o título constitutivo da propriedade horizontal proibir o exercício de tal atividade ou se a mesma for proibida pelo regulamento de condomínio estando este integrado no titulo constitutivo (Artigo 6º-B, nº4, do Decreto-lei nº 128/2014, de 29.8 a redação do Decreto-lei nº 76/2024, de 23.10; proibição originária);
ii. A assembleia de condóminos pode criar ou alterar o regulamento do condomínio, proibindo o exercício da atividade de alojamento local, exigindo-se uma maioria representativa de 2/3 da permilagem do prédio, sendo que essa deliberação só produz efeitos para o futuro (ex nunc), aplicando-se apenas aos pedidos de registo de alojamento local submetidos em data posterior à deliberação (Artigo 6º-B, nº5; proibição superveniente);
iii. A assembleia de condóminos pode, por deliberação fundamentada aprovada por mais de metade da permilagem do edifício, opor-se ao exercício da atividade de alojamento local em fração autónoma com fundamento na prática reiterada e comprovada de atos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos condóminos, solicitando, para o efeito, uma decisão do presidente da câmara territorialmente competente (Artigo 9º, nº2; proibição superveniente reativa sujeita a condição). Feita essa solicitação, o presidente da câmara das duas uma: (i) após audiência prévia, determina o cancelamento do registo (nºs 5 e 6); (ii) pode convidar os intervenientes à obtenção de um acordo com vista ao arquivamento do procedimento mediante a aceitação de compromissos e condições (nº12).
iv. A exploração de alojamento local está também sujeita a limitações legais objetivas, nomeadamente: é vedada a exploração, pelo mesmo proprietário ou titular de exploração, de mais de nove estabelecimentos de alojamento local na modalidade de apartamento, por edifício, se aquele número de estabelecimentos for superior a 75/prct. do número de frações existentes no edifício (artigo 11º, nº4); na modalidade de hostel em edifício em que coexista habitação, é necessário autorização dos condóminos para o efeito (Artigos 4º, nº4 e 6º, nº2, al. f)); na modalidade de “quarto”, este tem de se integra na residência do titular da exploração e esta tem de corresponder ao seu domicílio fiscal, com o limite máximo de três unidades (Artigo 3º, nº7); o município pode aprovar regulamento que preveja a existência de áreas de contenção e áreas de crescimento sustentável, impondo limites quantitativos à instalação de novos alojamentos locais (cf. Artigos 4º, nºs 5 a 7, 15º-A e 15º-B).
Conforme foi analisado, o caso em apreço subsume-se ao cenário enunciado em (i) na parte permissiva, não estando demonstrado que o título constitutivo da propriedade horizontal proíba o exercício do alojamento local ou que este esteja proibido pelo regulamento de condomínio integrado no título constitutivo.
Termos em que, sendo desnecessárias outras considerações, deve a apelação ser julgada procedente.
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art.º 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a sentença impugnada, sendo a ação julgada improcedente com absolvição dos réus dos pedidos.
Custas pelos apelados na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 4.2.2025
Luís Filipe Pires de Sousa
Micaela Sousa
Carlos Oliveira
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20, de 11.5.2023, Oliveira Abreu, 26881/15, de 25.5.2023, Sousa Pinto, 1864/21, de 11.7.2023, Jorge  Leal, 331/21, de 11.6.2024, Leonel Serôdio, 7778/21, de 29.10.2024, Pinto Oliveira, 5295/22. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).