ACIDENTE DE VIAÇÃO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
RECONSTITUIÇÃO NATURAL
PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA
JUROS MORATÓRIOS
TAXA APLICÁVEL
Sumário

1. Não é a natureza da prestação (pecuniária ou outra) que determina a natureza da via ressarcitória presente – reconstituição natural ou indemnização por equivalente –, mas sim o fim perseguido com essa prestação.
2. A prevalência da reconstituição in natura, estabelecida no n.º 1 do art.º 566.º do Cód. Civil, apenas significa que o lesante está obrigado – quando a reconstituição natural é possível, repara integralmente os danos e não é excessivamente onerosa – a custear o restauro da coisa parcialmente destruída.
3. Quando o lesado reclama o pagamento do custo da reparação do bem não está a reclamar uma indemnização “fixada em dinheiro”, com o sentido previsto no n.º 1 do art.º 566.º do Cód. Civil, isto é, calculada de acordo com a teoria da diferença. Está, sempre e só, a exigir que a reconstituição in natura seja feita à custa do lesante.
4. No âmbito da responsabilidade civil extracontratual, não cabe à empresa seguradora escolher livremente o meio para satisfazer a sua obrigação, mesmo contra a vontade do lesado credor.
5. Quando a prestação pecuniária satisfaz o fim da indemnização in natura, não é o credor que tem de justificar a razão pela qual não quer que a coisa danificada seja objeto de nova intervenção por parte do lesante (ainda que esta vise a sua reparação). É o lesante que tem de justificar o seu interesse em intervir sobre a coisa alheia, por si ou adjudicando a reparação a terceiro, e que é fundada a sua recusa em satisfazer a indemnização in natura por meio de uma prestação pecuniária direta ao lesado.
6. Tratando-se da obrigação da empresa seguradora surgida no contexto de um seguro de responsabilidade civil automóvel, a lei identifica a prestação pecuniária como meio de satisfação da obrigação de indemnização – embora nos movimentemos sempre nos quadros da reconstituição natural, como fim.
7. A conduta do lesado que, à revelia da empresa seguradora, repara diretamente a sua viatura não tem um efeito extintivo do direito à indemnização, mas condiciona o seu ulterior exercício judicial.
8. Os prazos estabelecidos na al. b) e segs. do n.º 1 do art.º 36.º do RSORCA refletem o tempo que uma empresa seguradora necessita para, atuando diligentemente, tomar uma posição conscienciosa, desde que lhe seja permitido realizar a peritagem (quando esta deva ter lugar). Se o lesado inviabilizar a realização da peritagem, a empresa seguradora não pode ser sancionada pela ultrapassagem destes prazos.
9. O (suposto) acordo celebrado entre a ANTRAM e a Associação Portuguesa de Seguradores não é um facto notório, pelo que deve ser provado e constar da fundamentação de facto da sentença, para que possa ser considerado pelo tribunal no julgamento do mérito da causa (arts. 5.º e 412.º do Cód. Proc. Civil).
10. A taxa de juro moratório legalmente prevista para atrasos de pagamento nas transações comerciais não é aplicável aos pagamentos de indemnizações por responsabilidade civil, incluindo os efetuados por companhias de seguros.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

A. Relatório
A.A. Identificação das partes e indicação do objeto do litígio
AAA – Transportes, S.A., instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra BBB – Seguradora (anteriormente, YYY – Seguradora, anteriormente XXX – Seguradora), pedindo a condenação da ré no pagamento de:
“A) € 112.838,75 (…);
“B) Juros de mora, de 14% ao ano, em dobro da taxa legal como decorre do n.º 1 e 3 do art.º 43.º do DL 291/2007 sobre o montante da condenação até efetivo e integral pagamento, ou, caso assim não se entenda, juros de mora à taxa comercial, desde a mesma data até efetivo e integral pagamento, a que acresce a obrigação de pagamento de juros à taxa de 5% ao ano desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescem aos juros de mora referenciados nos articulados 49.º e 50.º da presente PI;
“C) O pagamento à autora das penalizações impostas pelo incumprimento do decreto-lei 291/2007;
“D) E a notificação para ainda no âmbito do processo, se assim o entender, comunicar a assunção ou não assunção da sua responsabilidade como fixado na alínea e) do artigo 36.º do Decreto-Lei 241/2007 a fim de parar com a penalização imposta por força do decorrente deste incumprimento € 100,00 o qual se requer continue a contar e seja a ré condenada a pagar até à data da sua assunção de responsabilidade”.
Para tanto, alegou que, em consequência direta de um acidente de viação causado por um veículo segurado pela ré, um pesado de que é proprietária sofreu danos, tendo a sua reparação sido executada pela própria demandante, suportando um custo de € 3 316,79. Com a paralisação temporária da sua viatura, a autora teve um prejuízo de € 257,03 diários, durante 11 dias, num total de € 2 827,33. Com a realização de uma peritagem, despendeu € 200,00. Tem direito a receber a quantia diária de € 100,00, durante 800 dias, num total de € 80 000,00, por força do disposto no n.º 2 do art.º 40.º do Decreto-Lei n.º 291/2007. Tem direito ao pagamento de juros moratórios à taxa de 14%, no montante total de € 26 494,63, na data da propositura da ação.
Citada a contraparte, ofereceu esta a sua contestação, defendendo-se por impugnação e por exceção.
Após realização da audiência final, o tribunal a quo julgou a ação parcialmente procedente, concluindo nos seguintes termos:
“1. Condeno a ré “YYY – Seguradora”, a pagar à autora a quantia de 900,00 Euros (novecentos euros), a título de indemnização pela privação do uso da viatura de matrícula 00-##-00, montante este acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa supletiva legal para obrigações civis, devidos desde a data da citação e até integral pagamento;
“2. Absolvo a ré do demais pedido”.
Inconformada, a autora apelou desta decisão, concluindo, no essencial:
[Vícios processuais]
“17. (…) [Ocorreu] manifesto erro na apreciação da prova, gerador de nulidade que ora expressamente se invoca (…)”.
[Impugnação da matéria de facto]
“65. O facto considerado como não provado sob o n.º 1, deverá (…) transitar para a matéria dada como provada (…).
“66. Deverá ainda ser aditada à matéria dada como provado (…) [que] o segurado da ré (…) participou à ré, através da agente da mesma (…), o acidente dos autos, com a entrega a esta da declaração amigável preenchida e assinada por ambos os condutores”.
[Impugnação do julgamento de direito]
“70. Da matéria de facto dada como provada resulta que a autora se encontrou privada da utilização do veículo por um período de 6 dias úteis (…). (…)
“79. (…) [A] reparação levada a cabo pela recorrente não se mostrou mais onerosa do que uma reparação efetuada em qualquer oficina que a ré designasse, bem pelo contrário. (…)
“87. Pelo exposto mal andou ao tribunal a quo a considerar que a autora, quando procede à peritagem e posterior reparação do seu veículo apenas devido à inércia da ré impediu a reconstituição natural, devendo tal matéria ser alterada na presente fase de recurso”.
 “38. (…) [A] seguradora ré não comunicou com a autora ou com alguém em sua representação até julho de 2019. Logo, não contestou atempadamente a sua responsabilidade nem apresentou qualquer proposta razoável de indemnização. (…)
“39. (…) Verificam-se assim os pressupostos de condenação da ora recorrida na taxa de juros agravada a que se reporta o art.º 38.º, n.º 2, do DL 291/2007, de 21 de agosto, e demais penalizações prescritas pelo indicado diploma. (…)”.

A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida.

A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar

Começaremos por tomar posição sobre a reclamação de nulidade presente na 17.ª conclusão.
Seguir-se-á a apreciação das questões suscitadas pela apelante, nos limites por esta enunciados (sublinhado nosso):
“A primeira das questões que a recorrente entende ter sido objeto de deficiente apreciação e valoração da matéria de facto prende-se com o facto considerado como não provado sob o n.º 1. (…)
Em segundo lugar deveria a douta sentença recorrida ter apreciado a prova de forma correta no que se refere à participação do sinistro pelo segurado da ré aos serviços desta nos dias imediatos ao acidente. (…)
Em terceiro e último lugar, merece igualmente censura a douta sentença recorrida quanto à decisão referente à privação de uso. (…)
Em último lugar a decisão recorrida merece igualmente reparo no que se refere à reconstituição natural”.
Importa, no entanto, ter presente que, entre o “segundo lugar” e o “terceiro”, a apelante insurge-se, ainda, contra a decisão do tribunal a quo respeitante ao pedido de condenação da ré em determinadas prestações sancionatórias, incluindo em juros moratórios agravados.
*
B. Fundamentação
B.A. Factos provados (como decidido pelo tribunal a quo, com diferente numeração)
1. Dinâmica do sinistro
1 – No dia 29 de dezembro de 2017, pelas 11:30 horas, (…) na rotunda de Santo Antão do Tojal, ocorreu um embate envolvendo o pesado com a matrícula 00-##-00, conduzido por (…), motorista da autora, e ainda o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ##-##‑00, conduzido por (…), com registo a favor de FP & PF, L.da.
2 – À data do embate, o pesado especial para transporte de automóveis com a matrícula 00‑##‑00 propriedade da autora, encontrava-se a circular na rotunda (…), pela faixa do meio e é embatido, na sua lateral traseira direita, pelo veículo com a matrícula ##-##-00 (…).
3 – O embate ocorreu em consequência de o condutor do veículo (…) ##-##-00 não ter reduzido a velocidade a que circulava ao aproximar-se da rotunda e, para não embater num veículo que estava à sua frente, à entrada da rotunda, desviou-se, entrou pela rotunda, em que já circulava o veículo matrícula 00-##-00, indo embater no mesmo (…).
4 – Do acidente foi feita “declaração amigável de acidente automóvel” e a mesma assinada por ambos os condutores.
2. Danos sofridos
5 – Na sequência do embate ocorrido a 29 de dezembro de 2017 (…), o veículo de matrícula 00-##-00, apresentava:
a) destruição do suporte do farolim traseiro direito e sinalética direita, do farolim traseiro direito;
b) deformações na corrediça traseira direita da extensiva, no macaco hidráulico da extensiva, no para-choques traseiro lado direito, na chapa de piso direita da extensiva, na tampa da rampa direita de subida e descida de veículos, no fecho da tampa anterior, na rampa direita de subida e descida de veículos;
c) danos na pintura das partes do veículo [embatidas].
6 – A autora, por indicação da sua representante, a empresa SSS – Gestão de Acidentes, L.da, após o acidente contactou a empresa TTT – Avaliação de Acidentes, L.da, para proceder à realização da peritagem aos danos verificados no seu veículo.
7 – Após o acidente, o veículo de matrícula 00-##-00 deu entrada nas oficinas que a AAA, S.A., tem nas suas instalações, em 12 de janeiro de 2018, para peritagem, o que ocorreu sem o conhecimento e autorização da ré.
8 – Em 12 de janeiro de 2018, nesta oficina foi feita uma primeira vistoria, para avaliação e discriminação genérica dos danos no veículo da autora e para avaliação dos custos de reparação, através da TTT – Avaliação de Acidentes, L.da, o que ocorreu sem o conhecimento e autorização da ré.
9 – Com data de 22 de janeiro de 2018, pela TTT – Avaliação de Acidentes, L.da, foi emitido relatório de vistoria, avaliação e orçamento, ao qual se referem os pontos 8 – factos provados – a 11 – factos provados – e documento constante de fls. 19 dos autos, que se dá por integralmente reproduzido (…).
10 – Da vistoria, resultou, em sede de avaliação e orçamento, a identificação das seguintes peças a substituir, trabalhos a realizar e respetiva avaliação:

##ObjetoInterven.
a) Farolim traseiro direito38,54
b) Conjunto de chapas sinaléticas da traseira direita17,25
c) Macaco hidráulico da extensiva traseira725,50
d) Para-choques traseiro lado direitoReparar
e) Corrediça traseira direita da extensivaDesempenar
f) Chapa de piso direita da extensivaReparar
g) Tampa da rampa direita de subida e descida de veículosReparar
h) Fecho da tampa da rampa direita de subida e descida de veículosReparar

11 – A reparação dos danos que antecedem foi avaliado em € 781,29 (…) relativos a peças e em € 2 535,50 relativos a “mão de obra”, “material de pintura” e “Diversos”, no total de € 3 316,79 (…).
12 – As peças aplicadas na reparação foram “peças usadas”, que a autora tinha nas suas oficinas, recuperadas de outros veículos sinistrados da sua frota, que tiveram acidentes noutras partes do veículo, tendo a autora ficado com aquelas peças para aplicação em reparações na sua oficina.
13 – O valor constante na vistoria e avaliação a que se refere o ponto 8 – factos provados – e seguintes não inclui IVA, por a reparação ter ocorrido nas instalações oficinais da autora.
14 – O veículo de matrícula 00-##-00 foi arranjado pela autora nas oficinas que tem nas suas instalações e pelos seus funcionários, o que ocorreu sem o conhecimento e autorização da ré.
15 – A autora iniciou a reparação da viatura em 12 de janeiro de 2018 e ficou reparada em 22 de janeiro de 2018, tendo sido fixado o período de 6 dias úteis para a reparação, com impossibilidade de circulação.
16 – A TTT – Avaliação de Acidentes, L.da, pela realização da vistoria e avaliação a que se refere o ponto 8 – factos provados – e seguintes, com data de 22 de novembro de 2019, emitiu uma fatura em nome da autora, em que incluiu o valor liquido de € 200,00, acrescido de IVA à Taxa de 23%, relativo ao veículo de matricula 00-##-00, P. n.º 0000/00, tendo aposto como data de vencimento a da sua emissão, 22 de novembro de 2019.
3. Comunicações inicialmente efetuadas
17 – Em 5 de fevereiro de 2019, a empresa SSS – Gestão de Acidentes, L.da, representante da autora, enviou um email à ora ré, para o endereço de email geral@yyyseguros.pt, comunicando (…) que ”…dado o tempo decorrido…”, já tinham mandado efectuar uma peritagem ao seu veículo acidentado, que a autora já tinha procedido à reparação dos danos; e que “…oportunamente…” enviariam a quantificação dos prejuízos sofridos pela autora.
18 – Em anexo a este email, foi enviado um escrito em papel timbrado da SSS – Gestão de Acidentes, L.da, datado de 3 de janeiro de 2018, endereçado a YYY – Seguradora, A/C Direcção ramo Automóvel, Av. Avenida Lisboa, onde deu conhecimento ter recebido informação da autora quanto à ocorrência do embate referido nos presentes factos provados, dando a identificação dos intervenientes e matriculas dos veículos, a descrição dos prejuízos causados e a solicitação da realização da peritagem.
19 – A ré teve, pela primeira vez, conhecimento da reclamação de danos e pedido de pagamento de indemnização apresentada pela autora, em consequência do sinistro, com o recebimento do email referido no ponto 17 – factos provados – e carta anexa.
4. Diligências efetuadas pela ré
20 – Na sequência do recebimento do email referido no ponto 17 – factos provados –, a ré solicitou a uma empresa de averiguação de sinistros (a sociedade QQQ – Peritagens) que procedesse a peritagem para o apuramento da existência do sinistro, dos danos que do mesmo pudessem ter ocorrido e responsabilidade pela ocorrência.
21 – A perita da sociedade QQQ – Peritagens fez contactos junto do segurado da ré para obter informação sobre as circunstâncias em que o sinistro teria ocorrido e quais os danos que poderiam ter resultado.
22 – A perita da sociedade QQQ – Peritagens fez também vários contactos telefónicos para a autora, para obter documentação referente ao sinistro em causa e para que disponibilizassem o relatório de peritagem, e fotos dos danos no veículo 00-##-00 invocados pela autora, não tendo recebido qualquer documentação.
23 – Em 21 de março de 2019, às 18h14m, em consequência do que antecede, a empresa QQQ – Peritagens, em representação da ré, enviou um email à autora, comunicando à autora que,
“(…) conforme conversa telefónica, serve o presente para solicitar a V.Exa. o relatório de peritagem + fotos dos danos referentes ao veículo de matrícula 00-##-00 (processo de sinistro 0000/2018), bem como cópias das comunicações remetidas à seguradora (…)”.
24 – Em 3 de abril de 2019, a ré enviou uma carta à autora, que esta recebeu, apondo um carimbo com a data de 9 de abril de 2019, confirmando à autora que era a seguradora do veículo de matrícula ##-##-00, e com, entre o mais, o seguinte teor:
“(…) A informação disponível não é suficiente para determinar quem causou o acidente.
“Os dados de que dispomos ainda não são suficientes para determinar quem foi o responsável pelo acidente.
“Estamos a aguardar que nos sejam entregues os elementos de prova necessários para chegar a uma conclusão sobre qual dos condutores foi responsável. Assim que tenhamos mais informação voltaremos a entrar em contacto (…)”.
25 – Em 15 de abril de 2019, às 09h06m, QQQ – Peritagens remeteu à autora, em representação da ré, um email comunicando à autora que:
“(…) Assunto 2.º pedido de documentação sinistro AAA (…) Alerto que continua em falta a documentação solicitada no email infra.
Solicito o envio com a màxima urgência possível (…)”;
26 – Em 17 de abril de 2019, a autora remeteu à QQQ – Peritagens um email, respondendo aos emails/carta acima referidos, dizendo:
“(…) Conforme a sua solicitação datada de 21.03.2019 e relembrada em 15.04.2019, serve a presente para enviar…documentos “pdf” relativos ao relatório de peritagem – incluindo fotos dos danos provocados ao equipamento matrícula 00-##-00 (Doc1), e à reclamação inicial remetida à vossa companhia em 03.01.2011 (doc2) cuja recepção é acusada apenas na vossa correspondência datada de 03.04.2019).
Sem outro assunto de momento, agradeço que aguardem a nossa reclamação final a qual seguirá oportunamente (…)”.
27 – Na sequência do recebimento do email a que se refere o ponto 26 – factos provados –, a empresa QQQ – Peritagens fez uma vistoria ao veículo segurado pela ré, o qual já se encontrava reparado, não demonstrando a existência de quaisquer danos que tivessem resultado do acidente em causa nos autos.
28 – Pela análise das únicas quatro fotografias fornecidas pela autora à ré, não foi possível à empresa QQQ – Peritagens concluir quais os danos que o veículo da autora teria efetivamente sofrido no referido acidente e qual o valor e tempo necessários para a sua reparação.
5. Comunicações subsequentes
29 – Em 8 de julho de 2019, a ré enviou uma carta à autora, comunicando a recusa de responsabilidades no acidente de viação;
30 – Na carta referida no ponto 29 – factos provados –, a ré comunicou, entre o mais, o seguinte:
“(…) Apólice n.º: 123456789F Lesado: AAA, LDA
Processo n.º: 20193000016309/1 Local: Lisboa
Recusa de responsabilidades no acidente de viação
8 de julho de 2019
Caros Senhores,
Recebemos a sua comunicação de sinistro com data de ocorrência a 29-12-2017 envolvendo o seu veículo de matrícula 00-##-00.
Informamos que a YYY – Seguradora é a Seguradora do veículo com a matrícula ##-##-00. No entanto, não aceitamos qualquer responsabilidade pela reparação dos danos decorrentes do acidente.
Não se provou que o veículo do nosso cliente tenha estado envolvido no acidente.
Na sequencia da participação de sinistro que nos foi apresentada, cumpre-nos informar que, com base nos dados facultados, nas diligencias, entretanto, efetuadas e nos elementos recolhidos para instrução do processo, a peritagem/averiguação do sinistro concluiu que os danos reclamados nos veículos não tem enquadramento na dinâmica do acidente participado, visto que não se afiguram resultantes da colisão entre veículos e o veiculo seguro não apresenta danos compatíveis com a dinâmica apresentada.
Por favor contacte-nos se tiver alguma questão
Se precisar de algum esclarecimento, ligue-nos ou escreva-nos para os contactos indicados no cabeçalho desta carta.
Com os nossos cumprimentos
(…)
Direção de Operações Sinistros Automóvel sinistros@yyyseguros.pt Tel.: ...
YYY – Seguradora (…)”.
31 – Em 29 de julho de 2019, a SSS – Gestão de Acidentes, L.da, em representação da autora, enviou uma carta à ré, com o assunto “Reclamação de prejuízos de forma quantificada”, em relação ao acidente ocorrido em 29 de dezembro de 2017, a que dizem respeito os presentes autos (…), a comunicar à ré o montante dos prejuízos decorrentes deste sinistro e a pedir o pagamento, com, entre o mais, o seguinte teor:
“(…) Assim e de acordo com a informação de que dispomos, levamos ao vosso conhecimento que de acordo com a declaração Amigável de acidente Automóvel assinada por ambos os condutores que anexamos como documento n.º 1, a responsabilidade na produção do sinistro é exclusivamente do condutor do veículo com a matrícula ##-##-00 na medida em que, o veículo Vosso segurado entrou na rotunda e foi embater no veículo da nossa representada na via mais à direita.
É exactamente atenta esta factualidade que nos cumpre enviar-vos a presente reclamação quantificada, em nome e em representação da empresa AAA, S.A., no sentido de vos manter informados acerca do quantum indemnizatório e do modo como o mesmo foi obtido.
Os prejuízos que agora, se reclamam são a quantificação objectiva dos danos já invocados nas correspondências que Vos foram enviadas datadas de 03-01-2018 e 05-02-2019 correspondentes à reclamação do sinistro e respectivo reminder, que se anexam à presente reclamação como documentos nº 2 e 3.
Afigura-se-nos então legitimo (…) solicitar à Vossa companhia o pagamento célere da verba de € 6.344,12, cujo valor foi obtido (…)
1. Indemnização correspondente ao custo de reparação do veículo… matrícula 00-##-00 no valor de € 3.316,69 (ponto “1” da carta datada de 03-01-2018 endereçada à ré) (…), conforme peritagem ao veículo, efectuada por uma empresa da especialidade, que ora se junta à presente como documento nº 5 (…).
2. Indemnização correspondente aos custos de paralisação do veículo matrícula 00-##-00, no valor de € 2.827,33 (ponto “3” da carta datada de 03-01-2018 endereçada …)…, teve por base os seguintes pressupostos:
- o acidente ocorreu no dia 29-12-2017.
- o veículo …deu entrada nas instalações oficinais da AAA, S.A., em 12-01-2018.
- (…) reparação iniciou-se a 15-01-2018 e para realização da mesma, foi determinado pelo perito um período de 6 dias úteis (…), foi concluída em 22-01-2018 (…).
- o valor relativo ao prejuízo da paralisação, encontra-se justificado pelo facto do veículo da nossa representada estar afecto a serviços já anteriormente contratados, determinando esta situação, a necessidade de obter um veículo idêntico para dar continuidade aos referidos serviços (...) que se estimam em € 235,00/dia (…).
- (…) o veículo ficou impossibilitado …de prestar quaisquer serviços…no período que decorreu entre a data na entrada na oficina 12-01-2018 e a data da conclusão da reparação, 22-01-2018, num total de 11 dias (…).
3. Indemnização correspondente aos custos decorrentes da necessidade de contratar a empresa TTT para proceder à peritagem do veículo … acidentado no valor de € 200,00 (ponto “3” da carta datada de 03-01-2018 endereçada à ré).
(…) Ficamos a aguardar a emissão do recibo de indemnização pelo valor de € 6.344,12 tão breve quanto possível (…)”.

6. Outros factos
32 – A autora, é uma sociedade comercial, com o objeto que se prende com o transporte rodoviário de mercadorias por estrada.
33 – A autora é proprietária do pesado especial para transporte de automóveis com a matrícula 00-##-00, pesado este afeto ao desenvolvimento do objeto social da autora.
34 – A autora é titular da licença n.º 00000 emitida para o pesado matrícula 00-##-00, a qual a legitima a utilizar o pesado com a matrícula 00-##-00 no transporte rodoviário internacional de mercadorias por conta de outrem, licença esta emitida pela Delegação de Évora do IMT – Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., a 03 de Outubro de 2017 e válida de 19 de Outubro de 2017 a 18 de outubro de 2022.
35 – A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ##-##-00, encontrava-se à data do embate referido no ponto 1 – factos provados – transferida para a ré, através de contrato de seguro titulado pela Apólice do Ramo Automóvel n.º 123456789F, com o teor constante do documento 3, junto com a petição inicial, que a autora deu por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
36 – Os contactos da ré, para a comunicação de sinistros, estão disponíveis no seu sítio na Internet, sendo o indicado sinistros@yyyseguros.pt.
37 – A autora não participou a ocorrência deste sinistro à sua seguradora, por entender que a sua participação levaria ao agravamento do prémio do seguro.
38 – O segurado da ré não reclamou o pagamento de qualquer indemnização à ré.
39 – A SSS – Gestão de Acidentes L.da, faz a consultoria e gestão dos processos de regularização de sinistros da frota da autora, com cerca de 300 veículos, desde 1997/1998.
B.B. Arguição de nulidades (vícios processuais)
Na 17.ª conclusão da sua alegação, afirma a apelante que ocorreu “manifesto erro na apreciação da prova, gerador de nulidade que ora expressamente se invoca”. Nada mais acrescenta o apelante sobre esta putativa nulidade adjetiva.
A reclamação de nulidade é incompreensível. Não explica a apelante em que medida um erro de julgamento – error in judicando – gera uma nulidade processual – error in procedendo –, nem indica qual é a norma processual supostamente violada.
Não pode a apelante manifestar o entendimento de que uma atividade processual é inválida e adjudicar ao tribunal ad quem a tarefa de percorrer as páginas do processo e a lei processual civil para descobrir uma base de facto e de direito que sustente a opinião que parte despreocupadamente manifestou.
Pelo exposto, julga-se manifestamente improcedente a reclamação de nulidade.
B.C. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Tal como referimos na enunciação das questões a resolver, a apelante pretende, no essencial, que se dê por provada a matéria constante do n.º 1 do leque dos factos não provados. Desta prova resultaria a demonstração da falta de diligência da apelada no processo de avaliação dos danos e das causas do sinistro; processo que só vem a terminar 18 meses depois do acidente, em 28 de junho de 2019, com a conclusão da tentativa de peritagem pela empresa contratada pela ré – com a afirmação da responsabilidade do veículo segurado, mas negando ser possível verificar a existência de danos –, e em 8 de julho de 2019, com a comunicação de não assunção de responsabilidade.
Vejamos se com razão.

1. Matéria de facto dada por não provada relevante
O tribunal a quo deu por não provado o seguinte facto:
 “1. Em 3 de janeiro de 2018 a autora enviou à ora ré, por correio normal, para a Direção do Ramo Automóvel na Av. Avenida Lisboa, através da empresa sua representante, a sociedade SSS – Gestão de Acidentes, Lda., a sua “Reclamação Inicial” sobre o acidente na qual, para o que ao processo importa, tendo nessa data transmitido à ré o seguinte:
A sua referência para o acidente como sendo 2017-12-29 2180/18 00-##-00 002; A identificação do acidente; a identificação dos intervenientes; A descrição da sua versão relativamente à forma como o mesmo ocorreu; A indicação da localização dos danos; A solicitação para a quantificação dos danos a fim de que pudessem ser prontamente reparados para que o conjunto circulante pudesse rapidamente continuar a laborar; A solicitação da ora ré para realização da peritagem ao camião porta automóveis; A indicação do local onde a ora ré deveria fazer deslocar o seu perito com o intuito de avaliação dos prejuízos materiais; A indicação de que decorridos 5 dias úteis sem notícias da ora ré, devidamente comprovadas, a empresa SSS – Gestão de Acidentes, L.da., tomaria a iniciativa de dar indicações à sua representada para requisitar imediatamente uma peritagem ao veículo sinistrado;
A indicação de uma 1.ª lista de 7 prejuízos a reclamar em consequência direta do acidente, tudo, conforme Doc. 5 que se junta e que aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, alertando a representante da autora que, decorridos que fossem 5 dias úteis, sem notícias da ré, tomaria a iniciativa de requisitar imediatamente uma peritagem ao veículo em causa”.
Está, pois, em causa, no essencial, o apuramento da data da (primeira) participação do sinistro à ré.
O tribunal a quo motivou a sua convicção, no que respeita ao descrito facto não provado, referindo que apenas uma testemunha o afirmou, sendo que esta, por ter sido incumbida de remeter a carta em causa, tinha interesse na questão. Sustentou, ainda, o tribunal a sua decisão nas regras da experiência: não é normal que um profissional (na regularização de sinistros) não registe os seus contactos e que aguarde mais de um ano para insistir na reclamação da indemnização. Por último, é mencionado na decisão impugnada o depoimento de uma testemunha (funcionário da ré) que afirmou que o sinistro não foi participado antes de fevereiro de 2019.

2. Análise da prova processualmente adquirida
A motivação apresentada pelo tribunal a quo é irrepreensível.
Por um lado, é inegável que a testemunha produzida sobre este facto (Testemunha 1) tem interesse na resolução desta questão de facto. Tendo sido encarregada de fazer a participação do sinistro, é o seu desempenho que é questionado, podendo, no limite, responder contratualmente pelas suas falhas.
Note-se que não resulta seguro da prova produzida que a testemunha tenha lido a carta – que confessadamente não redigiu. Ora, assim sendo, nunca se poderá saber se a carta que, supostamente, entregou nos correios tem o conteúdo alegado pela autora. Se não abriu a suposta correspondência dirigida à autora, fica por explicar como pode saber qual era o conteúdo do sobrescrito que depositou no correio, nunca se podendo afirmar que se refere a um determinado sinistro, e não a um outro.
Na verdade, compreendendo a atividade da testemunha a entrega de correio respeitante a inúmeros sinistros – a sociedade para a qual trabalha presta serviços para diversas transportadoras, como o afamado grupo Barraqueiro –, é mesmo de estranhar que se lembre de um concreto subscrito que tenha entregado numa determinada data.

Por outro lado, as referidas regras da experiência contrariam a suposta atuação da testemunha. De todos os métodos de participação do sinistro, a sociedade prestadora de serviços para a qual a testemunha trabalha (SSS) escolheu o menos seguro. Até a comunicação verbal, considerando que as chamadas de telefone são normalmente gravadas pelas grandes prestadoras de serviços, como as seguradoras, seria mais segura. E não se pode dizer que a SSS assim tenha procedido por contenção de custos, quer porque a mensagem de correio eletrónico é menos dispendiosa, quer porque atuava por conta de terceiro (a autora), sobre quem podia facilmente repercutir o custo do registo.
A SSS, atuando racionalmente, teria todo o interesse em registar a sua comunicação, até porque, perante a autora mandante, teria de prestar contas da sua atuação. É, pois, insólito que um profissional efetue uma participação de sinistro pelo meio menos seguro, tendo ao seu dispor meios que oferecem mais garantias e que são mais céleres – e menos dispendiosos. E desta singularidade nasce a incerteza quanto à ocorrência do facto.
Finalmente, podemos ainda acrescentar que as regras da experiência impedem que o facto em causa seja dado por provado por outra ordem de considerações. É que na suposta mensagem enviada em 3 de janeiro de 2018, como a testemunha referida sublinhou, a SSS não reclama uma indemnização; solicita, sim, o agendamento de uma perícia.
Ora, tendo a autora realizado a perícia e efetuado a reparação, seria normal que, ato contínuo, informasse a seguradora de que a perícia inicialmente pretendida já não seria possível, passando a sua pretensão a ser, diretamente, o imediato os prejuízos sofridos – cujo valor passou a ser totalmente conhecido. No entanto, no fim de janeiro de 2018, a autora quedou-se silente.
Com isto não se está a dizer que a autora tinha a obrigação ou o ónus de reclamar o ressarcimento dos danos sofridos logo que deles tomou conhecimento – para tanto ainda dispunha de todo o prazo de prescrição. Apenas se diz que esta inércia não é própria de uma sociedade comercial que afirma ter tido a diligência de participar o sinistro no segundo dia útil subsequente à sua ocorrência.
Ouvidos os registos áudio da prova produzida, não podemos deixar de confirmar a decisão de facto impugnada. Se os meios de prova invocados pelo tribunal a quo sustentam a decisão vertida na sentença, já o depoimento invocado e transcrito pela autora não permite, com a necessária segurança, considerar a matéria em causa como estando provada.
3. Matéria de facto não apreciada
Entende a recorrente que o tribunal a quo deveria ter dado por provado que o segurado da ré lhe participou, através da sua agente, o acidente dos autos, com a entrega a esta da declaração amigável preenchida e assinada por ambos os condutores. Não indica a apelante em que artigo da petição inicial satisfez o seu ónus de alegação deste facto nem por que (outro) modo foi ele processualmente adquirido (art.º 5.º do Cód. Proc. Civil). Também não esclarece a autora qual é a relevância deste facto. Entenderá, porventura, que a ré tinha o dever de, sem reclamação, lhe propor uma indemnização.
Começamos por notar que este facto não contraria o facto essencial acima descrito no ponto 19 – facto provado não objeto de impugnação. A ré pode ter tomado conhecimento da ocorrência do sinistro (em resultado da participação do seu segurado) e não ter tomado conhecimento da reclamação de ressarcimento de danos pela autora.
Também importa sublinhar que este facto – afirmado pela testemunha Testemunha 2 – foi processualmente adquirido por via da instrução, tendo sido, neste contexto, admitido pela ré e produzida prova sujeita ao contraditório – cfr. o teor do requerimento da ré de 5 de novembro de 2021 (refs. 11562834 e 40368686), ao qual a apelada anexa uma imagem de uma via da declaração amigável distinta da detida pela apelante. Ou seja, estamos perante um facto processualmente adquirido – art.º 5.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, quer se tenha este facto por instrumental, quer se tenha por essencial (complementar ou concretizador).
No entanto, também resulta da prova produzida – testemunho de Testemunha 2 – que a participação do lesante, cuja data não foi apurada, se destinou a apurar da possibilidade de acionamento da cobertura de danos próprios. Na sequência dos contactos iniciais, constatou-se que a viatura segurada pela ré não possuía esta cobertura – pelo que não terá sido necessário realizar a sua peritagem (o que explica que, na averiguação feita na sequência da relação da autora, não existissem dados sobre os danos sofridos pela viatura abalroante).
Em face do exposto, deve ser aditado ao leque dos factos provados:
40 – Sem prejuízo do teor do ponto 38 – factos provados –, em data não apurada, o segurado da ré participou-lhe a ocorrência do sinistro, com vista ao eventual acionamento da cobertura de danos próprios, tendo sido informado que o seguro da sua viatura, à data, não possuía tal cobertura, não tendo sido realizada peritagem aos danos desta.
B.D. Análise dos factos e aplicação da lei
São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar:
1. Objeto da apelação
2. Obrigação de indeminização de que o segurador é sujeito passivo
2.1. Posição adotada pelo tribunal “a quo”
2.2. Do que se fala, quando se fala “reconstituição natural”
2.3. Prevalência “reconstituição natural” e sua efetivação
2.4. Natureza e propósito da prestação do segurador
2.5. Consequências do restauro promovido pelo lesado
2.6. Indemnização devida pela ré
3. Dano da privação do uso
3.1. Termos da controvérsia
3.2. Inaplicabilidade do putativo acordo ANTRAM/APS
4. Sanções legais aplicáveis à empresa seguradora
4.1. Sanção prevista no art.º 40.º do Decreto-Lei n.º 291/2007
4.2. Juros moratórios devidos
5. Responsabilidade pelas custas
Objeto da apelação
Não se encontra controvertida a responsabilidade da ré, enquanto empresa seguradora, pelo ressarcimento dos danos sofridos pela apelante, em resultado do acidente de viação objeto da ação. O âmbito da apelação encontra-se limitado ao apuramento das indemnizações devidas.
Reclamou a autora a condenação da ré no pagamento das seguintes quantias:

Dano/Sanção
Valor €
reparação executada pela própria
3 316,79
paralisação temporária da viatura
2 827,33
peritagem
200,00
sanção prevista no art.º 40.º do Decreto-Lei n.º 291/2007
80.000,00
juros moratórios vencidos, à taxa de 14% (vincendos ilíquidos)
26.494,63
Total
112.838,75


O tribunal a quo condenou a ré a pagar à autora as seguintes quantias:

Dano/Sanção
Valor €
reparação executada pela própria
0
paralisação temporária da viatura
900,00
peritagem
0
sanção prevista no art.º 40.º do Decreto-Lei n.º 291/2007
0
juros moratórios vencidos e vincendos, à taxa de 4%
não liquidado
Total
900,00


Conforme acima adiantámos, quando enunciámos as questões a resolver, são três os alvos do inconformismo da apelante, no que à decisão do mérito da causa diz respeito. Depois de se insurgir contra a decisão absolutória do tribunal a quo respeitante ao pedido de condenação da ré em determinadas prestações sancionatórias, incluindo juros moratórios agravados, a apelante destaca:
“(…) [M]erece igualmente censura a douta sentença recorrida quanto à decisão referente à privação de uso. (…)
Em último lugar a decisão recorrida merece igualmente reparo no que se refere à reconstituição natural”.
Verifica-se, pois, que a apelante não se ocupa da impugnação da decisão negatória de uma indemnização correspondente ao custo da peritagem por si ordenada. Seguindo a ordem inversa da adotada na alegação, a cada uma das mencionadas pretensões ressarcitórias dedicaremos um capítulo deste aresto: subsistência da obrigação de reconstituição natural a cargo da ré; dano da privação do uso; sanções legais aplicáveis à empresa seguradora.

1. Obrigação de indeminização de que o segurador é sujeito passivo

Resultou provado no ponto 5 – fundamentação de facto – que:
5 – Na sequência do embate ocorrido a 29 de dezembro de 2017 (…), o veículo de matrícula 00-##-00, apresentava:
a) destruição do suporte do farolim traseiro direito e sinalética direita, do farolim traseiro direito;
b) deformações na corrediça traseira direita da extensiva, no macaco hidráulico da extensiva, no para-choques traseiro lado direito, na chapa de piso direita da extensiva, na tampa da rampa direita de subida e descida de veículos, no fecho da tampa anterior, na rampa direita de subida e descida de veículos;
c) danos na pintura das partes do veículo.
Resultou, ainda, provado que “[o] veículo de matrícula 00-##-00 foi arranjado pela autora nas oficinas que tem nas suas instalações e pelos seus funcionários, o que ocorreu sem o conhecimento e autorização da ré”.
Finalmente, consta dos factos provados que esta reparação foi extrajudicial e unilateralmente avaliada nos seguintes montantes:

Dano/Sanção
Valor
Farolim traseiro direito
38,54
Conjunto de chapas sinaléticas da traseira direita
17,25
Macaco hidráulico da extensiva traseira
725,50
Mão de obra, material de pintura e diversos
2.535,50
Total
3.316,79

Perante esta factualidade, na sentença impugnada concluiu-se pela improcedência do pedido formulado, nesta parte. Vejamos se com razão.

1.1. Posição adotada pelo tribunal “a quo”

Em apertada síntese, é a seguinte a posição adotada na sentença impugnada:
“Assim, a ré (seguradora), face à verificação de todos os pressupostos legais enunciados, estava vinculada à reconstituição natural da situação anterior ao evento que provocou o dano, que se traduzia na reparação do veículo (por ela realizada, ou por terceiro).
“A questão resume-se a saber se a autora, com a sua conduta após o acidente, inviabilizou ou não a reconstituição natural a que a ré se encontrava adstrita. (…)
 “No caso concreto, resultando da matéria de facto provada que a autora procedeu à reparação do seu veículo nas suas oficinas, entre 15/01/2018 e 22/01/2018, com a aplicação de peças recondicionadas que detinha, sem a prévia peritagem da ré Seguradora, sem esta ter escolhido a oficina para a realização da reparação (…). // A atuação da autora violou as exigências da colaboração intersubjetiva impostas pelo princípio geral da boa-fé (…). (…)
“Assim, e não se encontrando, como dissemos, a reconstituição natural na disponibilidade das partes, sendo essa a reparação a que a autora tinha direito, há que julgar improcedente o pedido deduzido pela autora nesta parte”.
O tribunal recorrido acolhe, assim, as conclusões de qualificada doutrina – que cita indiretamente –, com o seguinte conteúdo:
i) a reparação impõe-se à vontade do lesado;
ii) não pode o lesado optar pela indemnização em dinheiro, em vez da reparação do veículo;
iii) não pode converter-se o lesante, obrigado à reparação do veículo (reconstituição natural), em mero devedor da importância necessária a essa reparação;
iv) a prioridade da reconstituição natural implica que o lesante não pode ser remetido ao papel de quem simplesmente “paga a fatura”;
v) é o lesante quem deve encarregar-se da reparação, efetuando-a ele próprio, ou mandando efetuá-la, pois é nisso que consiste a reconstituição natural;
vi) cabe ao devedor a escolha da oficina, sem prejuízo de o lesado se poder, justificadamente, opor à reparação na oficina escolhida.
É com base neste entendimento que o tribunal a quo nega totalmente provimento à pretensão da autora em análise. O mesmo é dizer que o tribunal atribui à iniciativa da autora – a reparação da viatura à revelia da ré – o drástico efeito de extinguir a obrigação da empresa seguradora.
1.2. De que se fala, quando se fala de “reconstituição natural”
O (único) princípio geral que, especificamente, rege a obrigação de indemnização é enunciado no art.º 562.º do Cód. Civil nestes termos: “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”. A concreta tessitura da obrigação de indemnização está, pois, sempre ordenada a este fim.
A plena reconstituição – ou, melhor, a criação – da realidade que existiria, e que a efetiva existência o ato danoso impediu, é, logicamente, impossível. A reparação do dano nunca poderá ter lugar reiniciando-se o devir histórico no momento imediatamente anterior à ocorrência do facto danoso nem, menos ainda, transportando-se o lesado para um momento histórico atual hipotético que nunca chegou a ocorrer, numa realidade alternativa na qual o dano nunca existiu. A maior aproximação a esta realidade alternativa (livre do dano) que se poderá atingir é obtida mediante o restauro da coisa materialmente danificada – isto é, a reposição da integridade da coisa parcialmente destruída.

Na segunda metade do sec. XX, teve curso doutrinal praticamente pacífico o entendimento de que a reconstituição natural (restauração natural ou indemnização em forma específica) prevalece sobre a indemnização por equivalente, sendo esta prevalência consagrada na lei, quer em benefício do credor, quer em benefício do devedor. Tal entendimento sustentava-se, essencialmente, num argumento que se poderia apelidar de a contrario, quer extraído no n.º 1 do art.º 566.º do Cód. Civil, quer resultante da comparação deste enunciado legal com as soluções previstas noutros ordenamentos – designadamente, o transalpino e o teutónico –, revelando, ainda, um forte apego aos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966 de Vaz Serra.
Assim, onde na lei consta “a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor”, doutrina e jurisprudência liam: quando a reconstituição natural é possível (repara o dano e não seja excessivamente onerosa), apenas tem o lesado direito a esta forma de indemnização. No entanto, não é exatamente isto que consta no texto da lei. Na verdade, o enunciado do n.º 1 do art.º 566.º do Cód. Civil é compatível com o entendimento de acordo com o qual não está vedado ao lesado optar por qualquer uma das modalidades de indemnização, salvo quando a “reconstituição natural não seja possível” – qualquer que seja a atividade pretendida pelo lesado, não repara ela o dano, pelo que não tem direito à mesma –, “não repare integralmente os danos” – podendo o lesado, obviamente, optar pela reconstituição natural, prescindindo da reparação não coberta por esta – ou “seja excessivamente onerosa para o devedor”, casos em que só poderá obter uma plena indemnização se esta for fixada em dinheiro.
Porque a realidade insiste em contrariar as construções dogmáticas, observando-se que a indemnização do lesado, estando em causa a responsabilidade civil emergente de acidente viação, é invariavelmente satisfeita através de uma prestação pecuniária, a doutrina do primeiro quartel do sec. XXI vem questionando aquele entendimento, ora por via da aceitação de uma “alternatividade imperfeita”, permitindo ao lesado, à partida, a opção pela indemnização em dinheiro, ora por via da ampliação do conceito de “reconstituição natural”, entendendo-se que algumas formas de indemnização em dinheiro ainda se inscrevem na restauração natural – sendo certo que as duas vias não são inconciliáveis.
A primeira via é adotada, por exemplo, por Sousa Antunes (na esteira de Nuno Pinto Oliveira), assentando na ideia de que a lei consagra a referida “alternatividade imperfeita”, reconhecendo ao lesado a faculdade de optar pela indemnização em dinheiro (com os limites previstos no art.º 762.º, n.º 2 do Cód. Civil), podendo o lesante opor-se à modalidade escolhida provando, consoante o caso, a excessiva onerosidade da reconstituição natural ou “a suficiência da restauração em espécie para uma reparação integral dos danos” (tendo interesse legítimo na recusa de diferente via, acrescentamos nós, pois também está sujeito ao disposto no art.º 762.º, n.º 2 do Cód. Civil) – cfr. Henrique Sousa Antunes, Um Ensaio Sobre a Reconstituição Natural, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2022, pp. 126 a 133 (com apertada síntese a pp. 321 e 322), e em Anotação ao artigo 562.º do Código Civil e Anotação ao artigo 566.º do Código Civil, in Comentário ao Código Civil: Direito das Obrigações, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, pp. 551, 552, 566 e 567.
A segunda via – que acolhemos, adiantamos – é percorrida, por exemplo, por Graça Trigo, admitindo esta autora que o pagamento do custo de reparação ao terceiro que a realizou – caso paradigmático da seguradora que paga o preço à oficina reparadora – e a entrega ao lesado do valor necessário à reparação (tenha ou não esta já sido efetuada) ainda se inscrevem na reconstituição natural – cfr. Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil – Temas Especiais, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2017, pp. 43 e 44. Essencial é que o objetivo da prestação pecuniária seja o aproveitamento da viatura sinistrada, isto é, o seu restauro – o que coloca fora desta modalidade de indemnização, por exemplo, a entrega da quantia necessária à aquisição de uma viatura equivalente (também usada). Alguma doutrina admite mesmo que a entrega da quantia necessária à aquisição de uma viatura equivalente ainda constitui uma forma de reconstituição natural – cfr. Rui Mascarenhas Ataíde, Direito da Responsabilidade Civil, Coimbra, Gestlegal, 2023, pp. 522 e 523. Esta última questão não se coloca no caso de que tratamos, pelo que não se justifica o seu desenvolvimento.
Reconhece-se, assim, que não se pode continuar aceitar como regra uma realidade que é hoje absolutamente excecional; realidade descrita por Vaz Serra deste modo: “o devedor é, por exemplo, operário e pode fàcilmente consertar a coisa deteriorada” – cfr. Adriano Vaz Serra, «Obrigação de indemnização», BMJ, n.º 84, março de 1995, p. 143. E ainda que esta hipótese tenha concretização, choca o sentimento jurídico atual que o lesante (até por ato doloso) tenha a prerrogativa de impor restauração natural – pense-se, no limite, no caso do cirurgião que causa um dano estético e que pretende ser o próprio a repará-lo in natura. Conforme sustenta Mascarenhas Ataíde (na esteira de Maria de Lurdes Pereira), “o lesado pode exigir ao devedor da indemnização a entrega dos meios monetários necessários à restauração natural de que ele próprio se poderá encarregar ou a um terceiro por si contratado, por não ser razoável impor ao lesado que aceite a intervenção pessoal do responsável pela lesão ou de alguém por este escolhido” – cfr. Rui Mascarenhas Ataíde, Direito da Responsabilidade Civil, Coimbra, Gestlegal, 2023, pp. 523 e 524.
1.3. Prevalência “reconstituição natural” e sua efetivação
Podemos aceitar que se extrai do n.º 1 do art.º 566.º do Cód. Civil que o meio prevalecente de indemnização do lesado é o restauro em substância da coisa parcialmente destruída – ou, melhor, a sua colocação no estado em que se encontraria se o ato danoso não tivesse sido praticado (não no stato quo ante). No entanto, tal prevalência não pode significar que o lesado está obrigado a sujeitar-se à restauração natural pela mão do lesante.
Já foi entre nós evidenciado que a reconstituição natural é estabelecida em benefício do lesado, de modo a garantir o integral restauro da sua posição jurídica (nem sempre obtido com a indemnização em dinheiro, calculada mediante a mera comparação do valor patrimonial) – cfr. David Magalhães, «A primazia da reconstituição natural sobre a indemnização por equivalente. Contributos jurídico-históricos para a análise do direito português», Revista de Direito da Responsabilidade, Ano 1, 2019, pp. 485-492. É, pois, insólito que se aceite pacificamente um entendimento que transforma este benefício num gravame
A prevalência da reconstituição natural apenas pode significar que é esta que deve nortear a reparação do dano – sendo o seu escopo primeiro e critério (quantitativo) prevalecente. Ora, esta prevalência é totalmente respeitada quando o lesado reclama o pagamento do custo da reparação do bem, pois não está, manifestamente, a reclamar uma indemnização “fixada em dinheiro”, com o sentido previsto no n.º 1 do art.º 566.º do Cód. Civil, isto é, calculada de acordo com a teoria da diferença. Está, sempre e só, a exigir que a reparação da coisa (reconstituição in natura) seja feita à custa do lesante.
Por seu turno, o obrigado a indemnizar, para extinguir pelo cumprimento a sua obrigação, não tem de efetuar uma prestação de facto pessoalíssima de reparação da coisa. A prevalência da reconstituição in natura apenas significa que está obrigado – quando a reconstituição natural é possível, repara integralmente os danos e não é excessivamente onerosa – a proporcionar ao lesado o restauro da coisa parcialmente destruída – resolvendo-se a afetação negativa do seu património numa prestação pecuniária (ao lesado ou ao terceiro reparador).
E desta prevalência norteadora se deverá retirar que mesmo a indemnização por equivalente – como, admita-se, é a entrega da quantia necessária à aquisição de uma viatura equivalente – não deve ser totalmente estranha ao direito do lesado à reconstituição natural. Esta indemnização deverá poder proporcionar a reintegração da utilidade que o lesado retirava do bem danificado, e não corresponder apenas ao seu valor venal, assim se libertando das baias de uma “teoria da diferença” que apenas seja sensível a este valor – cfr. Júlio Vieira Gomes, «Custo das reparações, valor venal ou valor de substituição?», CDP, n.º 3, p. 55 e segs.
Importa, pois, assentar nesta ideia: enquanto a prestação a cargo do obrigado a indemnizar estiver ao serviço deste fim – “o aproveitamento da viatura sinistrada”, isto é, o seu restauro (Graça Trigo) –, encontrar‑nos‑emos, sempre e só, no domínio da “reconstituição natural”. Isto significa que este meio de ressarcimento do dano não se resolve numa prestação de facto: uma prestação em dinheiro também se inscreve na reconstituição in natura, se se destinar apenas à reparação da coisa materialmente danificada.
Não é a natureza da prestação (pecuniária ou outra) que determina a natureza da via ressarcitória presente – reconstituição natural ou indemnização por equivalente –, mas sim o fim perseguido com a atribuição dessa prestação. Qualquer outro fim que não seja o restauro material da coisa parcialmente destruída – como seja a atribuição do valor de substituição da coisa usada (por outra idêntica) ou a atribuição do seu valor venal – já não dirá respeito à indemnização por “reconstituição natural”, visando, sim, a reposição do valor do património do lesado – em conformidade com o que se entenda ser tal valor –, isto é, o restabelecimento da sua “situação patrimonial” (art.º 566.º, n.º 2, do Cód. Civil). Neste sentido, podem as duas vias ressarcitórias conviver, ambas satisfeitas mediante uma prestação em dinheiro – por exemplo, com o pagamento do custo da reparação somado ao pagamento de uma compensação pela desvalorização da viatura.
Não se encontra na lei, ao menos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, nenhuma disposição que estabeleça que o obrigado (v.g., o segurador) pode, por regra, escolher livremente o meio para satisfazer a sua obrigação, mesmo contra a vontade do credor. Desde logo, a coisa danificada não lhe pertence, não tendo o direito de sobre ela intervir.
Não se pode procurar neste ponto nenhum paralelismo com o regime do cumprimento das obrigações emergentes de contrato – ou da mora do credor em tal contexto. O lesado não escolheu contratar com aquele de quem é vítima, até por ato doloso. Não existe, pois, justificação bastante para que a vontade do credor seja contrariada – recusando-se a indemnização in natura satisfeita por meio de uma prestação pecuniária, fazendo-se prevalecer a vontade do lesante –, quando o devedor não tem um interesse legítimo na escolha daquele meio.
O lesante pode ter um interesse digno de tutela na escolha do meio a ser adotado no cumprimento da obrigação, se, por exemplo, for um profissional da arte apropriada ao restauro da coisa danificada, pretendendo efetuá-lo pessoalmente, assim poupando os custos de mão-de-obra. Neste caso, a vítima poderá ver-se forçada a consentir que o agressor intervenha sobre a coisa por este parcialmente destruída, se não tiver fundamento para duvidar da competência nem do empenho do obrigado (art.º 762.º, n.º 2, do Cód. Civil). No entanto, mesmo neste caso, se o lesado pretender receber a indemnização in natura por meio de uma prestação pecuniária, descontado do custo de mão-de-obra, já não se vê que o lesante tenha algum tipo de interesse digno de tutela que caucione o constrangimento da vontade do credor.
Não acompanhamos, pois, praticamente nenhuma das conclusões citadas na sentença apelada, apresentadas por qualificada doutrina, acima transcritas. No essencial, todas elas enfermam do mesmo equívoco sobre âmbito e o sentido da prevalência da “reconstituição natural”.
Em conclusão, afirmamos sem tibieza que, contrariamente ao que comummente vinha sendo defendido até ao início do séc. XXI, o lesado tem a prerrogativa de exigir ao lesante uma indemnização a ser satisfeita por meio de uma prestação pecuniária, na exata medida do necessário à reconstituição natural. Quando a prestação pecuniária satisfaz o fim da indemnização in natura, não é o credor que tem de justificar a razão pela qual não quer que a coisa danificada seja objeto de nova intervenção por parte do lesante (ainda que a nova intervenção vise a sua reparação). O lesado é o dono da coisa danificada, não podendo ser constrangido a tolerar ações de terceiro, quando os interesses que estas visariam satisfazer podem ser satisfeitos sem tal ingerência não consentida e sem agravamento da posição do obrigado. É o lesante que tem de justificar o seu interesse em intervir sobre a coisa alheia, por si ou adjudicando pessoalmente a reparação a terceiro, e demonstrar que é fundada a sua recusa de satisfazer a indemnização in natura por meio de uma prestação pecuniária.
1.4. Natureza e propósito da prestação do segurador
Se assim se deve entender, em geral, por maioria de razão assim se deve entender quando a indemnização deve ser satisfeita por um segurador. Tratando-se da obrigação da empresa seguradora surgida no contexto de um seguro de responsabilidade civil automóvel, a lei é clara na identificação da prestação pecuniária como meio de satisfação da obrigação de indemnização – embora nos movimentemos sempre nos quadros da reconstituição natural, como fim.
Em geral, a prestação devida pelo segurador pode ser pecuniária ou não pecuniária (art.º 102.º, n.º 3, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril). Isto não significa que a prestação possa consistir numa prestação de facto. As sociedades seguradoras não têm, identitariamente, um objeto que compreenda qualquer indústria – cfr. a al. a) do n.º 1 do artigo 5.º do regime jurídico de acesso e exercício da atividade seguradora e resseguradora, constante do anexo I da Lei n.º 147/2015, de 9 de setembro –, não sendo reparadoras de automóveis nem sendo os seus funcionários mecânicos, pelo que não surpreende que o RJCS seja atravessado pela ideia de que a sua prestação é satisfeita através do pagamento de uma indemnização. [Numa impertinente, admitimos, pequena nota a latere, veja-se que os CAE da ré (NIPC 980630495) são, unicamente, “seguros não vida” (65120) e “seguros de vida” (65111)].
E é a esta prestação pecuniária ressarcitória que a lei se refere quando estabelece que “o lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização diretamente ao segurador” (art.º 146.º, n.º 1, do RJCS) – sublinhado nosso. Ou seja, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil, a prestação pecuniária a ser satisfeita pelo segurador pode ser exigida pelo lesado, sem que a empresa seguradora possa opor um putativo direito próprio e imotivado de reparação do dano por meio dos seus funcionários ou de um terceiro por si escolhido.
No específico âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, regulado pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto (RSORCA), é também claro que a prestação a cargo das empresas de seguros se resolve no pagamento de uma quantia pecuniária – cfr., por exemplo, os arts. 31.º e 43.º do RSORCA –, quer seja ao lesado, quer seja a “terceiros prestadores de serviços”, no montante apurado na avaliação da reparação do dano realizada (quando a reparação seja viável). Aliás, é por ser este o conteúdo da sua obrigação que a empresa seguradora está obrigada à apresentação de uma proposta de indemnização (pecuniária) “no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte” (art.º 38.º do RSORCA).
Assente que, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a prestação a cargo do segurador se resolve, essencialmente, no pagamento de uma quantia em dinheiro – seja de uma indemnização em dinheiro ao lesado, seja do preço da reparação ao terceiro prestador de serviços – importa perceber se o restauro do veículo pelo lesado perturba a existência da obrigação da empresa seguradora, e em que medida. Em especial, importa perceber se esta conduta do lesado extingue a obrigação do segurador, como foi entendido pelo tribunal a quo.
1.5. Consequências do restauro promovido pelo lesado
Não resulta da lei geral civil que a empresa seguradora tenha um direito próprio de escolher a oficina reparadora nem de dar a ordem de reparação. O que a lei civil dispõe é que o lesado credor tem o dever de praticar “os atos necessários ao cumprimento da obrigação” (art.º 813.º do Cód. Civil) e que ambas as partes, “no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem (…) proceder de boa-fé” (art.º 762.º, n.º 2, do Cód. Civil).
O direito de ordenar a reparação é sempre do titular do direito de gozo (bastante) sobre a viatura – máxime, do direito de propriedade ou do direito de usufruto. A seguradora não é proprietária, não podendo, pois, intervir sobre a viatura sem autorização do dono desta.
No âmbito do RSORCA, estes ónus e deveres encontram-se previstos, no essencial, no seu art.º 36.º. Tendo a empresa seguradora o dever de proporcionar um resultado – a reconstituição natural –, tem também o dever de proporcionar o meio que o garante. Assim, tem a empresa seguradora o dever de indicar (pelo menos) uma oficina na qual garante juridicamente que tal resultado será obtido, sendo nela adequadamente realizada a peritagem e realizada a reparação. Caso o lesado aceite a indicação, a este cabe autorizar a peritagem e dar a ordem de reparação da sua viatura, adjudicando a empreitada à sociedade exploradora da oficina indicada.
No entanto, embora a relação contratual identitária (empreitada) se estabeleça entre o lesado e a sociedade que explora a oficina, a lei considera que a empresa seguradora mantém a “direção efetiva da reparação”, sempre que a peritagem (e subsequente reparação) tenha lugar na oficina por si indicada (art.º 36.º, n.º 3, do RSORCA). O lesado tem a faculdade de não aceitar a indicação feita pela empresa seguradora (art.º 36.º, n.º 2, do RSORCA), mas esta sua decisão terá efeitos sobre o âmbito da responsabilidade desta, designadamente, quanto à satisfação dos prazos previstos na lei.
Estando a empresa seguradora obrigada a garantir a reconstituição natural, deve assumir originariamente perante a sociedade reparadora a obrigação de pagamento do preço (arts. 767.º, n.º 1, e 1211.º, n.º 2, do Cód. Civil), em conformidade com a peritagem realizada. Se assim não proceder, incumprirá a sua obrigação de indemnização.

Tendo por pano de fundo este enquadramento legal, temos de concluir que a reparação da viatura (reconstituição natural) diretamente realizada pelo lesado não tem sobre a obrigação de indemnização as consequências extintivas defendidas pelo tribunal a quo. Dir-se-á mesmo que não tem nenhuma repercussão significativa, se tiver lugar após a conclusão da peritagem prevista no art.º 36.º do RSORCA.
Ocorrendo a reparação pelo lesado antes de ter sido dada oportunidade à empresa seguradora de proceder à peritagem da viatura, é a faculdade desta de avaliar o dano que é frustrada (art.º 102.º, n.º 2, do RJCS e art.º 36.º do RSORCA). Recorde-se que a seguradora é responsável pelo ressarcimento do dano (como garante) desde o momento em que este ocorre, mas o vencimento da obrigação não se verifica antes de realizada (tempestivamente) a avaliação assente na peritagem (art.º 104.º do RJCS) – sobre o vencimento da obrigação, cfr., ainda a norma especial enunciada no n.º 1 do art.º 43.º do RSORCA.
O mesmo é dizer que, se a reparação precipitada impedir a empresa seguradora de quantificar as “consequências do sinistro”, a sua obrigação de indemnização não se vence sem que tenha lugar a citação (art.º 805.º, n.º 3, do Cód. Civil) – na qual o lesado liquida aquele que entende ser o valor do dano. Até lá, não existe atraso culposo no cumprimento da obrigação de indemnização, podendo resultar inaplicáveis todas as sanções legais previstas para a violação do dever de diligência.

Acresce que a impossibilidade de realização de uma perícia ao veículo do lesado também se verificará na ação instaurada, sendo certo que o risco do fracasso da prova que onera o autor não pode correr por conta da ré. E aqui, não poderá a peritagem extrajudicial promovida pelo lesado ter o valor de uma perícia judicialmente determinada – se é que algum valor instrutório favorável ao lesado pode ter.
Podemos aceitar que, no âmbito da regularização de sinistros, a peritagem realizada por iniciativa da empresa seguradora não se confunde com uma (extraprocessual) perícia judicial – só esta estando regulada no art.º 388.º do Cód. Civil –, desde logo, porque pode dizer respeito à perceção de factos para a qual não “sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem” (aproximando-se mais de uma verificação não judicial qualificada extraprocessual: art.º 494.º do Cód. Proc. Civil). Por esta razão, e por ser imposta por lei (não sendo um expediente menos probo do segurador), a peritagem pode ter valor instrutório, sem ofensa das regras de direito probatório material e processual –, ao menos quanto ao capítulo dedicado à inspeção objetiva da coisa (que não se confunde com o juízo pericial). Igual valor probatório pode ser reconhecido à peritagem realizada por iniciativa do lesado, quando a empresa seguradora não satisfaz o seu dever de diligência ou quando não concorda com a posição por esta assumida – no respeito, aliás, pela “igualdade de armas” (art.º 4.º do Cód. Proc. Civil).
No entanto, não sendo este o caso, não pode o lesado, não tendo proporcionado ao segurador a realização da peritagem, e contornando as referidas regras de direito probatório, juntar aos autos um relatório de peritagem (unilateralmente) produzido fora do processo – ainda que sob a designação de documento –, pretendendo que seja valorado (no seu juízo pericial), em seu favor – isto sem prejuízo de o “perito” poder ser testemunha de factos por si percecionados. E, repisa-se, o risco de insucesso da prova dos factos que seriam objeto da peritagem corre por sua conta.
Em suma, ainda que não tenha um efeito extintivo do direito à indemnização – como não tem –, a conduta do lesado (que, à revelia da empresa seguradora, repara diretamente a sua viatura) condiciona significativamente o seu ulterior exercício judicial. Não se pode, pois, dizer que a solução que adotamos constitua um incentivo ao desrespeito pelos ónus e deveres previstos na lei por parte do titular do direito de indemnização.
1.6. Indemnização devida pela ré
Consta dos factos provados que a reparação da viatura da autora foi extrajudicial e unilateralmente avaliada nos seguintes termos:

Dano/Sanção
Valor
Farolim traseiro direito
38,54
Conjunto de chapas sinaléticas da traseira direita
17,25
Macaco hidráulico da extensiva traseira
725,50
Mão de obra, material de pintura e diversos
2.535,50
Total
3.316,79

Escusado será dizer, porventura, que o facto que resultou provado não é o valor da reparação, mas sim que a mesma foi avaliada (por uma sociedade contratada pela autora) num determinado valor. São factos distintos.
Temos, pois, de concluir que não foi apurado o valor exato dos danos – para o que terá contribuído a conduta da autora já apreciada –, pelo que o tribunal deverá julgar “equitativamente dentro dos limites que tiver por provados” (art.º 566.º, n.º 3, do Cód. Civil). Os limites provados são relevantes.
Por um lado, temos os factos contidos no já citado ponto 5 – factos provados:
5 – Na sequência do embate ocorrido a 29 de dezembro de 2017 (…), o veículo de matrícula 00-##-00, apresentava:
a) destruição do suporte do farolim traseiro direito e sinalética direita, do farolim traseiro direito;
b) deformações na corrediça traseira direita da extensiva, no macaco hidráulico da extensiva, no para-choques traseiro lado direito, na chapa de piso direita da extensiva, na tampa da rampa direita de subida e descida de veículos, no fecho da tampa anterior, na rampa direita de subida e descida de veículos;
c) danos na pintura das partes do veículo.
Por outro lado, temos a avaliação feita pela sociedade terceira, a qual deverá constituir o limite máximo a considerar, por ter sido invocada pela autora. Sobre esta avaliação, devemos dar a devida relevância ao facto 12 – foram aplicadas na reparação “peças usadas” pertencentes à autora – e ao facto 13 – o valor constante da avaliação não inclui IVA.
No entanto, não é só o IVA que deve ser desconsiderado. A indemnização in natura por meio de uma prestação pecuniária corresponde ao exato custo efetivo da reparação, e não ao custo que teria no mercado – sendo este custo de mercado aquele que subjaz a uma avaliação por uma empresa que se dedica a peritagens. O lesado que proceda à reparação da viatura não pode embolsar o lucro que uma sociedade que explora uma oficina de reparações embolsaria – nem aquele que embolsaria um comerciante de peças usadas.
Num estudo da Comissão Europeia já com uma década (Study on the operation of the system of access to vehicle repair and maintenance information (2014)), é referido que as margens brutas das concessionárias automóveis atingem os 60% nas reparações, tendendo ser mais altas em comparação com as margens obtidas pelos reparadores independentes. Já o Banco de Portugal (“Análise do setor automóvel”) revela que o indicador “taxa de variação anual do EBITDA” em 2023 regista para as microempresas do setor automóvel o valor de 21,92%. Os valores, são, pois muito dispares, embora se possa assentar que a atividade de reparação automóvel é uma atividade lucrativa – assim como o comércio de peças usadas –, pelo que os preços praticados compreendem sempre uma margem de lucro.
Encerramos este ponto sublinhando que a circunstância de a autora, na reparação que efetuou, se ter socorrido dos seus trabalhadores e ter usado peças usadas, que já possuía, não altera os dados da questão. Tais recursos próprios tinham um valor patrimonial próprio, tendo este sido “gasto” na reparação da viatura – reparação esta que a ré está obrigada a garantir.
Na posse destes factos, podemos com segurança afirmar ser equitativo reconhecer à autora o direito a uma indemnização no valor reclamado, a título de danos emergentes, abatido de 20% (valor aproximado de um lucro comercial seguramente obtido pelo reparador profissional, ao qual não tem direito) – € 2.653,43.

2. Dano da privação do uso

O instituto da responsabilidade civil tutela, antes do mais, as funções do bem que se revele ser necessário proteger. A aferição do valor patrimonial do bem é, então, feita de acordo com o valor da sua utilização, de tal sorte que qualquer limitação a esta utilização, ainda que não afete a substância do bem, é suscetível de causar dano. “Efetivamente, o que está aqui em jogo são, afinal, as conceções das funções do património durante muito tempo concebidas (...) em termos exclusivamente de crescimento deste e acumulação de valores (...); ora a essência e o significado do património não se esgotam na sua existência (e no mero «ter») mas há também que ter em conta as possibilidades nele incorporadas e que ele concede ao seu titular para a realização das necessidades...” - crf. Júlio Vieira Gomes, «O dano da privação do uso», RDE, n.º 12 (1986), p. 235. O dano em causa resulta, pois, da indisponibilidade do bem para a sua utilização habitual, relevando a natureza desta para efeitos de cálculo do valor da indemnização sempre devida - cfr. Abrantes Geraldes, Indemnização do Dano da Privação do Uso, Coimbra, Almedina, 2001, pp. 52 a 54.
Sendo a coisa usada (danificada) uma viatura comercial, explorada lucrativamente, o dano da privação do uso confunde-se facilmente com os lucros cessantes. Embora se possa aceitar que aquele dano pode existir, ainda que nenhum concreto negócio se tenha frustrado, nunca se poderá admitir que, neste caso, tal dano seja liquidado em montante superior ao lucro normalmente obtido com a exploração da viatura – por exemplo, a partir do preço por hora cobrado pelo dono, abatido dos custos inerentes. Tudo isto pode ser facilmente alegado e provado por empresas que têm contabilidade organizada, deixando a sua atividade económica significativo lastro documental.

2.1. Termos da controvérsia
Na sentença apelada, depois de se constatar que esta prova não foi realizada, concluiu‑se que, na liquidação do dano da autora, se justifica o recurso à equidade (art.º 566.º, n.º 3, do Cód. Civil). Neste contexto, o tribunal a quo afastou a aplicação do “invocado [pela autora] acordo entres as APS-ANTRAM”, pois “não vincula o tribunal”, para além de que a autora “não alegou ser associada da ANTRAM”.
A apelante sustenta que o acordo que invoca para a liquidação do dano sofrido com a privação do uso “foi celebrado entre a APS e a ANTRAM, sendo que esta entidade representa grande parte do setor dos Transportes Rodoviários Pesados de Mercadorias e afigura-se razoável que os valores indemnizatórios aí previstos para situações de paralisação de veículos pesados de mercadorias surjam como equitativos, atendendo à similitude de situações e à qualidade e representatividade dos outorgantes no setor dos transportes em questão, sendo indiferente ao caso que a autora tenha outorgado ou não o referido acordo ou seja associada ou não da ANTRAM. // Devendo, por conseguinte, ser fixado pelo tribunal ad quem a verba requerida pela paralisação no valor de € 257,03/dia para o ano de 2017, conforme melhor se alcança pela atualização do acordo entre a ANTRAM e APS”.
Definidos os termos da controvérsia, resta-nos tomar posição.
2.2. Inaplicabilidade do putativo acordo ANTRAM/APS
O suposto acordo celebrado entre a ANTRAM – Associação Nacional de Transportadores Públicos Rodoviários de Mercadorias (ANTRAM) e a Associação Portuguesa de Seguradores (APS) não é fonte de direito, não sendo, ainda, um negócio jurídico celebrado entre as partes nestes autos. A sujeição das partes a este alegado acordo só poderá, pois, resultar de uma ulterior manifestação de vontade própria nesse sentido, a qual, a ter lugar no processo, configura um negócio jurídico-processual, caucionado pelo princípio dispositivo.
No caso dos autos, tal autovinculação ao putativo acordo invocado pela autora não ocorreu. A autora pretende contornar esta dificuldade através da defesa da adoção da tabela de liquidação do dano prevista em tal suposto acordo como critério a seguir na fixação equitativa do valor da indemnização (art.º 566.º, n.º 3, do Cód. Civil). Sem razão.
A lei é clara: “Se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados” – naturalmente o sublinhado é nosso. Ora, em parte alguma do leque dos factos provados consta a existência de tal putativo acordo (nem, consequentemente, os seus termos). O dito acordo ANTRAM/APS (com os seus concretos termos) não é um facto notório, pelo que carece de alegação e de prova para que possa ser processualmente adquirido, conhecido pelo tribunal e considerado na sentença final (arts. 5.º e 412.º do Cód. Proc. Civil).
Não constando dos factos provados a existência e o teor do suposto acordo ANTRAM/APS, não pode este ser considerado na fixação da indemnização devida. Improcede nesta parte o recurso interposto.

3. Sanções legais aplicáveis à empresa seguradora
Entende a apelante que, com a sua conduta, a apelada incorreu nas sanções previstas nos arts. 38.º e 40.º do RSORCA: taxa de juro moratório agravada e sanção pecuniária compulsória de € 200,00 por cada dia de atraso no cumprimento dos seus deveres.
Os valores pedidos a este título são, reportando-se à data de entrada da ação:

Dano/Sanção
Valor
sanção prevista no art.º 40.º do Decreto-Lei n.º 291/2007
80.000,00
juros moratórios vencidos (vincendos ilíquidos)
26.494,63
Total
106.494,63

O tribunal a quo entendeu que “a ré não violou, nas circunstâncias concretas, o seu dever de colaboração e diligência”. Em conformidade, concluiu o tribunal que se encontram “afastados os pressupostos de aplicação das requeridas sanções legais, pelo que, por falta de fundamento legal, há que concluir pela improcedência da ação neste segmento”.
A apelada acusa mesmo a autora de ser reincidente nesta sua prática: não proporcionar à empresa seguradora a possibilidade de realizar a peritagem para, no passo seguinte, exigir o pagamento das sanções devidas pelo putativo atraso na satisfação dos deveres de diligência que sobre esta impendem. A conduta recorrente objeto desta acusação não resultou provada, mas a jurisprudência dos tribunais superiores revela a existência de diversos casos com uma inquietante semelhança com o vertente – cfr. os Acs. do STJ de 23-04-2024, Rodo Cargo vs. Generali (7772/20.4T8LSB.L1.S1), de 08-02-2024, Rodo Cargo vs. Seguradoras Unidas (5149/20.0T8STB.E1.S1), e de 08-02-2024, Rodo Cargo vs. Generali (987/20.7T8STR.E1.S1).
Apenas referimos arestos do Supremo Tribunal de Justiça; destes, os que passaram nas malhas da anonimização da jurisprudência publicada e; destes, apenas os que foram proferidos no último ano. Apesar da drástica limitação da amostra, são, como vemos, diversos os casos idênticos ao que agora apreciamos – para que não se pense que estamos perante uma aberração estatística, veja-se, fora da amostra, o Ac. do TRL de 26-10-2023, Rodo Cargo vs. Ageas (2053/20.6T8ALM.L1-8).
Vejamos se, no presente caso, assiste razão à autora.
3.1. Sanção prevista no art.º 40.º do Decreto-Lei n.º 291/2007

Dispõe a al. e) do n.º 1 do art.º 36.º (diligência e prontidão da empresa de seguros) do RSORCA que, “sempre que lhe seja comunicada (…) pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro (…), a empresa de seguros deve (…) comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade (…) por escrito ou por documento eletrónico”. O teor da comunicação no caso de “não assunção da responsabilidade” encontra-se previsto no n.º 1 do art.º 40.º (resposta fundamentada) do RSORCA. Por força deste número, deve tal comunicação dar resposta fundamentada a todos os pontos abrangidos pelo pedido do lesado, nos casos em que “a responsabilidade tenha sido rejeitada”, “a responsabilidade não tenha sido claramente determinada” ou “os danos sofridos não sejam totalmente quantificáveis”.
Da articulação entre estes dipositivos, conclui-se que a “comunicação da não assunção da responsabilidade” deve ser dirigida ao lesado “no prazo de 30 dias úteis”, decorrido que esteja o “prazo de dois dias úteis” para o estabelecimento do “primeiro contacto com (…) o terceiro lesado”. No total, o prazo para a “comunicação da não assunção da responsabilidade” é, pois, de 32 dias úteis. No entanto, a parcela maior do prazo de comunicação (30 dias) é reduzida a metade (15 dias) “havendo declaração amigável de acidente automóvel” (al. a) do n.º 1 do art.º 36.º do RSORCA) – hipótese em que o prazo total é de 17 dias úteis.
Dispõe o n.º 2 do art.º 40.º do RSORCA que, no que agora releva, em caso de atraso no cumprimento dos deveres fixados no n.º 1 do mesmo art.º 40.º e na al. e) do n.º 1 do art.º 36.º, a sociedade seguradora “constitui-se devedora para com o lesado e para com o Instituto de Seguros de Portugal, em partes iguais, de uma quantia de (euro) 200 por cada dia de atraso”. É a quantia pecuniária resultante da aplicação desta sanção que a autora pretende embolsar.

No caso dos autos, o sinistro foi participado à ré em 5 de fevereiro de 2019, conforme consta do ponto 17 – factos provados –, tendo esta comunicado à autora que declinava a sua responsabilidade em 8 de julho de 2019, nos termos referidos no ponto 29 – factos provados. Durante este período decorreram 105 dias úteis.
Como é evidente, inexiste atraso culposo no cumprimento da obrigação de comunicação da assunção, ou a não, de responsabilidade pela ré, até à data em que esta ficou a saber que a avaliação do dano seria inviável com outros elementos (para além dos já disponibilizados pela autora). Até essa data, mais do que um problema de mora do credor (art.º 813.º do Cód. Civil), é a comprovada falta de culpa do devedor que enfrentamos (arts. 798.º e 799.º do Cód. Civil). Embora a norma prevista no n.º 2 do art.º 40.º do RSORCA não consagre um caso de responsabilidade civil contratual, a exigência feita à empresa seguradora de atuação diligente revela que a censura legal recai sobre a falta de zelo ou cuidado; isto é, apenas sobre o incumprimento culposo dos prazos legais.
Não atuando a empresa seguradora culposamente, não se encontra sujeita à sanção prevista no n.º 2 do art.º 40.º do RSORCA. O mesmo é dizer que, até 17 de abril de 2019 – veja-se o facto 26 –, o atraso na comunicação da assunção, ou a não, de responsabilidade pela ré não é, patentemente, a esta imputável.
Ainda assim, deste esta data, e até 8 de julho de 2019, decorreram 54 dias úteis. Poder-se-ia, pois, sustentar que, a partir dela, a ré passou a estar na mesma situação em que, por regra, se encontra, depois de efetuado contacto previsto na al. a) do n.º 1 do art.º 36.º do RSORCA, podendo facilmente, usando da devida diligência, programar a sua atividade, de modo a poder cumprir o prazo previsto na al. e) do mesmo número deste artigo, com a redução a metade prevista na al. a) do seu n.º 6 – por existir declaração amigável.

No entanto, afigura-se-nos ostensivo que os prazos estabelecidos na lei refletem critérios de normalidade e regras da experiência em torno do tempo que uma empresa seguradora necessita para, atuando diligentemente, tomar uma posição conscienciosa, admitindo a ocorrência de uma determinada realidade pressuposta pela lei. E esta realidade pressuposta é a possibilidade de, designadamente, realizar a peritagem que permite a avaliação do dano, quando esta deva ter lugar – e mesmo a confirmação da ocorrência do sinistro (art.º 102.º, n.º 2, do RJCS). Evidenciando esta conclusão, os enunciados de todas as alíneas do n.º 1 do art.º 36.º do RSORCA que antecedem a alínea que fixa o prazo pertinente (a al. e)) mencionam a realização da necessária peritagem.
Não vale aqui dizer que a empresa seguradora pode sempre declinar, sem mais, a sua responsabilidade. É que não é esta atitude displicente que o legislador pretende, mas sim a conciliação das partes. Também não se diga que a empresa seguradora pode, mantendo-se a dúvida insanável sobre os factos relevantes respeitantes à ocorrência do sinistro e ao valor dos danos, oferecer ao lesado uma compensação “conservadora”, pois tal atitude pode custar-lhe uma pesada indemnização (art.º 38.º, n.º 3, do RSORCA).
A conclusão impõe-se: o enunciado da al. e) do n.º 1 do art.º 36.º do RSORCA deve ser interpretado restritivamente, tendo o seguinte sentido, no que para o caso importa: quando “lhe seja comunicada (…) pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro (…), a empresa de seguros deve (…) comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis (…)”, sempre que possa promover as peritagens que devam ter lugar.

Retornando ao caso dos autos, devemos também concluir que a ultrapassagem dos prazos previstos no n.º 1 do art.º 36.º do RSORCA não significa a violação do seu dever de diligência pela ré (veja-se que só em 28 de junho de 2019 foi possível à empresa contratada pela ré concluir a peritagem). A dessintonia entre o fundamento invocado pela ré para a sua decisão – a responsabilidade pelo sinistro é rejeitada: facto 30 – e o fundamento constante do relatório de peritagem – impossibilidade de apuramento e quantificação dos alegados danos: facto 28 – é inconsequente. A posição da ré sempre estará substantivamente justificada.
Daqui decorre que não se encontra demonstrada a violação deste dever por parte da ré, não lhe sendo aplicável a sanção compulsória (de € 200,00 por cada dia de atraso) prevista no n.º 2 do art.º 40.º do RSORCA. Deve, pois, o pedido correspondente improceder.
3.2. Juros devidos por força dos n.ºs 1 e 3 do art.º 43.º do RSORCA
No que respeita aos juros moratórios devidos pela ré, o desacerto da pretensão da apelante é total. Recorde-se que um dos pedidos de condenação da ré formulados pela autora tinha o seguinte teor:
“B) Juros de mora, de 14% ao ano, em dobro da taxa legal como decorre do n.º 1 e 3 do art.º 43.º do DL 291/2007 sobre o montante da condenação até efetivo e integral pagamento, ou, caso assim não se entenda, juros de mora à taxa comercial, desde a mesma data até efetivo e integral pagamento, a que acresce a obrigação de pagamento de juros à taxa de 5% ao ano desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescem aos juros de mora referenciados nos articulados 49.º e 50.º da presente PI”
Ora, o art.º 43.º do RSORCA dirige-se aos casos em que a empresa seguradora assumiu (pontualmente) a responsabilidade pelo pagamento de uma indemnização, atrasando-se depois na satisfação desta. Rezam os n.ºs 1 e 3 este artigo
1 – Salvo acordo em contrário, a empresa de seguros responsável deve proceder ao pagamento ao lesado da indemnização decorrente do sinistro no prazo de oito dias úteis a contar da data da assunção da responsabilidade, nos termos das disposições identificadas nos n.ºs 1 dos artigos 38.º e 39.º, e mediante a apresentação dos documentos necessários ao pagamento.
(…)
3 – No caso em que a empresa de seguros não proceda ao pagamento da indemnização que por ela seja devida no prazo fixado no n.º 1, esta deve pagar ao lesado juros de mora, no dobro da taxa legal, sobre o montante devido e não pago, desde a data em que tal quantia deveria ter sido paga, nos termos deste artigo, até à data em que esse pagamento venha a concretizar-se.
No caso dos autos, a ré não assumiu a responsabilidade pelos danos decorrentes da ocorrência do sinistro – veja-se o facto 30 –, pelo que estas normas não são aqui aplicáveis. Pela mesma razão, não é diretamente aplicável a norma enunciada no n.º 2 do art.º 38.º do RSORCA, pois esta também se dirige imediatamente aos casos nos quais é apresentada uma proposta razoável.
Ao presente caso poderia ser, sim, aplicável o disposto no n.º 2 do art.º 40.º, em articulação com o disposto na al. e) do n.º 1 do art.º 36.º, ambos do RSORCA. Por força do n.º 2 do art.º 40.º do RSORCA, no que releva para esta questão, em caso de atraso no cumprimento dos deveres fixados no n.º 1 do mesmo art.º 40.º e na al. e) do n.º 1 do art.º 36.º do RSORCA, são devidos pela empresa seguradora juros no dobro da taxa legal prevista na lei aplicável ao caso sobre o montante da indemnização fixado pelo tribunal, a partir do termo do prazo para a empresa de seguros, atuando diligentemente, comunicar ao lesado a decisão de não assunção da responsabilidade (sem que o tenha feito).
No entanto, pela mesma razão que não há lugar à aplicação da sanção acima analisada no capítulo 4.1 deste acórdão, também não há lugar à aplicação de uma taxa de juro sancionatória (e compulsória). Os prazos previstos na lei pressupõem que a peritagem, quando viável, seja permitida à empresa seguradora, o que não ocorreu no caso dos autos, inexistindo, pois, insatisfação do dever de diligência por parte desta empresa.

Entende, ainda, a apelante que a taxa de juro legal aplicável ao caso dos autos é a que se encontra prevista para as transações comerciais. Afirma-se no art.º 48.º da petição inicial (e recupera-se na 14.ª conclusão) que “considera a autora juros de 7%, como previsto nos artigos 7.º do Regime Anexo ao Decreto Lei 269/98, de 1 de setembro, artigos 2.º e 30.º dos Decretos Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro e Decreto-Lei 62/2013, de 10 de maio, art.º 13.º do Decreto-Lei 62/2013 de 10 de maio [e] artigos 99.º e 102.º do Código Comercial”. O que faltou à apelante sinalizar é onde se encontra a transação comercial da qual emerge o crédito sobre o qual pretende que sejam contados juros a esta taxa.
Também terá faltado à apelante atentar numa das leis que citou, na sua totalidade. Reza a al. c) do n.º 1 do art.º 2.º do Decreto-Lei 62/2013, de 10 de maio: “São excluídos do âmbito de aplicação do presente diploma (c) Os pagamentos de indemnizações por responsabilidade civil, incluindo os efetuados por companhias de seguros” – cfr. o Ac. do TRL de 22‑02-2018 (2606/16.7T8CSC.L1-6).
A falta de fundamento da pretensão da apelante é manifesta, raiando a litigância de má‑fé.

4. Responsabilidade pelas custas

A responsabilidade pelas custas da apelação cabe à apelante, na proporção de 97,5%, e à apelada, na proporção de 2,5%, por ser esta a proporção do decaimento (art.º 527.º do Cód. Proc. Civil).

C. Dispositivo
C.A. Do mérito do recurso
Em face do exposto, na procedência parcial da apelação, acorda-se em alterar o dispositivo da sentença apelada e decide-se, para além do que já consta deste segmento decisório, condenar a ré, BBB – Seguradora, a pagar à autora, AAA – Transportes, S.A., a quantia de € 2 653,43 (dois mil setecentos e cinquenta e três euros, quarenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora, contados desde a data de citação e até efetivo pagamento, sendo devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da portaria prevista no art.º 559.º do Cód. Civil.
No mais, mantém-se integralmente o dispositivo da sentença apelada.
C.B. Das custas
Custas da apelação a cargo do apelante, na proporção de 97,5%, e da apelada, na proporção de 2,5%.
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Notifique.

Lisboa, 04-02-2025
Paulo Ramos de Faria
João Bernardo Peral Novais
Rute Alexandra da Silva Sabino Lopes