SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO
Sumário

Durante o período de transição indicado no artigo 59 n.1 da Lei n.174/99, mantém-se a obrigação de prestar serviço militar previsto na Lei n.30/87.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Na 3ª Secção do 1º Juízo Criminal do Porto, em processo comum com intervenção do tribunal singular, foi julgado o arguido Bruno... acusado de um crime p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 24.º, n.º 3 e 40.º, n.º 1, a), da Lei n.º 30/87, de 07 de Julho, com a redacção dada pela Lei n.º 89/88, de 05/08 e agora pelos artigos 34.º e 58.º, n.º 3 da Lei n.º 174/99, de 21/09.

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Efectuado o julgamento foi proferida sentença que declarou extinto o procedimento criminal contra o arguido e ordenou o arquivamento dos autos, por considerar que após entrada em vigor da Lei 174/99 de 21-9 os factos os factos imputados ao arguido na acusação deixaram de constituir crime.
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Desta sentença interpôs recurso o MP.
A única questão suscitada é a de saber se o regime da anterior Lei 30/87 se mantém em vigor para os cidadãos conscritos ao serviço militar no âmbito do serviço efectivo normal (SEN).
Não houve resposta ao recurso.
Nesta instância, o sr. procurador-geral adjunto apôs o visto a que alude o art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos, procedeu-se à realização da audiência com observância do formalismo legal.
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I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:

1) O arguido, depois de recenseado, classificado e se-leccionado para prestação do Serviço Militar Obrigatório, foi notificado editalmente, por anúncios afixados em 14 de Dezembro de 1999 pela Junta de Freguesia de..., para se apresentar na Escola Prática de Transmissões, sito nesta cidade do Porto, em 03 de Abril de 2000 a fim de ser incorporado nas Forças Armadas;
2) Acontece, porém, que o arguido não só não se apresentou naquele quartel nem justificou a sua falta, agindo desta forma com a intenção, concretizada, de se furtar à prestação do Serviço Militar Obrigatório.
3) O arguido agiu livre e conscientemente, bem sa-bendo a sua conduta proibida e punida por lei.
4) O arguido aufere em média, cerca de 400,00 por mês, vivendo com a mãe;
5) Confessou no essencial os factos de que vinha acusado;
6) Tem como habilitações literárias o 9.º ano de escolaridade;
7) Ao arguido não se conhecem antecedentes criminais;
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FUNDAMENTAÇÃO
Sobre a questão de saber se a falta não justificada à incorporação ainda constitui o crime p. e p. pelos arts. 24 nº 3 e 40 nº 1 al. a) da Lei 30/87 de 7/7, já decidiu o acórdão desta secção proferido no Proc. 990/01, de que foi relator o sr. des. Manuel Joaquim Braz.
Porque nada há a acrescentar às considerações aí feitas, serão citadas as partes mais significativas dessa decisão.
No regime da Lei 30/87 (anterior Lei do Serviço Militar), o serviço militar, que é obrigatório (art. 1 nº 2), abrange, além do mais, o serviço efectivo (al. b) do art. 2) que é a situação dos cidadãos enquanto permanecem em serviço nas Forças Armadas (art. 4 nº 1).
O serviço efectivo abrange, entre outros, o serviço efectivo normal (SEN), que “compreende a prestação de serviço nas Forças Armadas por cidadãos conscritos ao serviço militar, com início no acto da incorporação e até à passagem à disponibilidade” (nºs 2 al. a) e 3 daquele art. 4).
O recruta que não se apresente à incorporação e não justifique a falta no prazo de 30 dias é considerado refractário (art. 24 nº 3) e punido com prisão até 1 ano e multa até 30 dias (art. 40 nº 1 al. a) – redacção dada pela Lei 81/88).
É esta a conduta do arguido que na sentença se considerou provada: em 3 de Abril de 2.000, faltou à incorporação, não se apresentando no quartel que lhe fora determinado, nem justificou a sua falta, agindo com a intenção de se furtar à prestação do Serviço Militar Obrigatório.
Posteriormente, no dia 20-11-00, entrou em vigor a Lei 174/99, que regulou o serviço militar em moldes diferentes e revogou, com ressalvas, a Lei 30/87.
Na sentença recorrida entendeu-se que os factos praticados pelo arguido não são punidos como crime pela nova Lei do Serviço Militar. – a Lei 174/99. Embora esta continue a considerar crime determinadas faltas ao cumprimento dos deveres de prestação de serviço militar, foi operada uma “reformulação do tipo legal de crime, atinente à notação de refractário”, tendo sido introduzidas “alterações relevantes na factualidade típica”.
Porém:
É certo que a Lei 174/99 não prevê como crime a falta à incorporação. O que bem se compreende, uma vez que no seu regime o serviço efectivo não é obrigatório.
Mas esta Lei, ao revogar a Lei 30/87, salvaguardou a vigência das normas que nesta punem o incumprimento da obrigação de apresentação à incorporação.
Diz, com efeito, o art. 62 da Lei 174/99:
Sem prejuízo do estabelecido no art. 59, ficam revogadas, na data da entrada em vigor da presente lei, as Leis nºs 30/87, de 7 de Julho (...).
E dispõe, por sua vez, esse art. 59:
1- A obrigação de prestar serviço efectivo normal – SEN – é gradualmente eliminada num prazo que não pode exceder quatro anos, contado a partir da data da entrada em vigor da presente lei.
É, assim, claro que a Lei 174/99 deixou intocada transitoriamente uma parte da Lei 30/87, que continua a vigorar durante o período a que alude o nº 1 deste art. 59.
E a parte da Lei 30/87 que se mantém em vigor durante esse período de transição é a referente ao serviço efectivo normal, figura não contemplada no regime da Lei 174/99.
Durante o período de transição indicado no art. 59 nº 1 da Lei 174/99 mantém-se, pois, a obrigação de prestar o serviço efectivo normal, prevista na Lei 30/87.
E mantém-se nos termos em que se encontra desenhada nesta última lei: uma obrigação a cujo não cumprimento corresponde uma sanção. Com efeito, a Lei 174/99 não transformou a obrigação de prestar o serviço efectivo normal da Lei 30/87 numa mera obrigação moral. Manteve-a como obrigação jurídica, uma obrigação que, por definição, implica uma forma de compelir ao seu cumprimento.
E como a Lei nº 174/99 se limitou a manter, durante o mencionado período de transição, a obrigação de prestar o serviço efectivo normal da Lei 30/87, não estabelecendo para o seu incumprimento qualquer sanção, só pode entender-se que se mantém a sanção prevista na Lei 30/87 para tal incumprimento.
E no regime desta Lei esse incumprimento, concretizado na falta à incorporação e na sua não justificação, constitui o crime p. e p. pelos arts. 24 nº 3 e 40 nº 1 al. a).
Ou seja, a acusação não qualifica correctamente os factos quando considera que eles são agora punidos pelos arts. 34 e 58 nº 3 da nova Lei 174/99. Tem razão a sentença, na parte em que considera que o tipo de crime da nova lei é distinto do da lei antiga, por terem sido introduzidas “alterações relevantes na factualidade típica. Mas a sentença não poderá ser mantida porque, pelas razões indicadas, a Lei 30/87 mantém-se em vigor na parte relativa ao serviço efectivo normal. Antes e depois da entrada em vigor da Lei 174/99, o comportamento do arguido é subsumível à previsão das normas dos arts. 24 nº3 e 40 nº1 al. a) da Lei 30/87.
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Como se referiu o crime cometido pelo arguido é punível com a pena de prisão de prisão até 1 ano e multa até 30 dias.
A determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, far-se-à em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes - art. 71 do Cód. Penal «Culpa» e «prevenção» são assim os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo de medida da pena (ou de determinação concreta da pena) -. Figueiredo Dias, As Consequências do Crime, pág. 214.
Sendo o grau de culpa médio, as exigências de prevenção, geral e especial, não são particularmente significativas, considerando quer a cada vez menor relevância que vem tendo o serviço militar obrigatório, quer a confissão e a inexistência de antecedentes criminais
A pena concreta deverá assim ser fixada um pouco abaixo do meio moldura legal, mostrando-se ajustada a de 120 dias de prisão e 12 dias de multa, sendo a prisão substituída por igual tempo de multa, nos termos do art. 44 do Cód. Penal, porque a execução duma pena privativa da liberdade não se mostra necessária para a prevenção do cometimento de futuros crimes.
Quanto ao quantitativo de cada dia de multa: ao referi-lo à situação económica e financeira do condenado e aos seus encargos pessoais (art. 47 nº 2 do Cód. Penal), o legislador visou dar realização, também quanto à pena pecuniária, ao princípio da igualdade de ónus e de sacrifícios - ob. cit. pág. 128. Não deverá perder-se de vista que a multa não é uma pena «menor», devendo, antes, representar para o delinquente um sofrimento análogo ao da prisão correspondente, embora dentro de condições mais humanas. “É indispensável que a aplicação da pena de multa não represente uma forma disfarçada de absolvição ou o Ersatz de uma dispensa ou isenção de pena que se não teve a coragem de proferir, impondo-se, pelo contrário, que a aplicação da multa represente, em cada caso, uma censura suficiente do facto e simultaneamente uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada” - ac. R.C de 5-4-00, CJ tomo II, pág. 61.
O arguido vive com a mãe, não tem pessoas a seu cargo e aufere 400 € por mês.
Deve, assim, ser fixada em 5 € a taxa para cada dia de multa.

DECISÃO
Os juizes do Tribunal da Relação do Porto concedendo provimento ao recurso condenam o arguido Bruno... como autor de um crime p. e p. pelos arts. 24.º, n.º 3 e 40.º, n.º 1, a), da Lei n.º 30/87, de 07 de Julho, em 120 (cento e vinte) dias de prisão substituídos por igual tempo de multa à taxa diária de 5 € (cinco euros) e em 12 (doze) dias de multa à mesma taxa.
O arguido pagará 2 UCs de taxa de justiça.
Honorários: os legais.


Porto, 17 de Setembro de 2003
Fernando Manuel Monterroso Gomes
José Carlos Borges Martins
Jorge Manuel Arcanjo Rodrigues
Joaquim Costa de Morais