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CRIME CONTINUADO
CONDUTA MAIS GRAVE
CONDENAÇÃO SUPERVENIENTE
Sumário
I - Para aferir do conceito de “conduta mais grave” previsto no artigo 79º nº 2 do CP relativo à punição do crime continuado é indiferente a moldura penal abstrata prevista para cada uma das condutas que irão integrar a continuação criminosa. II – Sendo mais grave, o tribunal tem que reanalisar toda a conduta do agente dentro da nova moldura penal e à nova pena a estabelecer é descontada a pena (ou a parte da pena) já anteriormente cumprida.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães.
I - Relatório
Decisão recorrida
No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 167/23...., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães, foi proferida sentença, no dia 18 de junho de 2024, cuja parte decisória se transcreve:
“Pelo exposto, julga-se a acusação, parcialmente, procedente, por, parcialmente, provada, e, consequentemente, decide-se: a) Absolver as arguidas da prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma agravada p. e p. 105.º, nº 5 e 107.º, n.º 1 e 2 do RGIT.. b) Condenar a arguida “EMP01..., Lda”, pela prática de um crime de abuso de confiança em Relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos art.ºs 7º, 105.º, nºs 1º, 4º e 7º e 107.º, n.º1 e 2 do RGIT., na pena de 400 (quatrocentos) dias de multa à taxa diária de €7,00 (sete) euros - (pelos factos destes autos e os do processo n.º 42/20.... do Juízo Local Criminal de Guimarães - Juiz ...) – sem prejuízo do, eventual, desconto. c) Condenar a arguida AA, pela prática de um crime de abuso de confiança em Relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelo art.º 105.º, nºs 1, 4 e 7, e, e 107.º, n.º1 e 2 do RGIT., na pena de 01 (um) ano e 03 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 05 (cinco) anos, condicionada ao pagamento, no prazo de 05 (cinco) anos a contar do trânsito em julgado da presente sentença, do remanescente das prestações aludidas nos factos provados (pontos 6º e 25º, sem prejuízo dos valores já pagos) e demais acréscimos legais - (pelos factos destes autos e os do processo n.º 42/20.... do Juízo Local Criminal de Guimarães - Juiz ...) –sem prejuízo do, eventual, desconto. d) Condeno as arguidas no pagamento de 03 UC´s de taxa de justiça, e nas demais custas do processo”.
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Recurso apresentado
Inconformado com tal decisão, a arguida AA veio interpor o presente recurso e após o motivar, apresentou as seguintes conclusões e petitório, que se reproduzem[1]:
“PRIMEIRA: Por se considerar ser relevante para efeitos de censurabilidade da conduta do agente a circunstância de fazer ingressar os quantitativos retidos no seu próprio património e por se considerar que esta temática terá influência na escolha e determinação concreta da pena, vai invocado o erro de julgamento que se encontra na decisão recorrida, a respeito da matéria de facto considerada, e que consiste em ter sido indevidamente dado como provado que a arguida, ora recorrente, integrou no seupatrimónio os montantes que deduziu do valor das remunerações. – sic. n.º 6, 9 e 10 dos Factos Provados.
SEGUNDA: É que tal factualidade foi total e frontalmente desmentida e não admitida pela arguida, na confissão que fez de forma integral e sem reservas quanto à demais factualidade de que vinha acusada.
TERCEIRA: Para além disso, as duas testemunhas – únicas e ambas funcionários da Autoridade Tributária - ouvidas na sessão de julgamento que se realizou no dia 14 de maio de 2024, no caso a BB, cujo depoimento ocorreu entre as 10:41 e as 10:45 horas, e CC, cujo depoimento ocorreu entre as 10:49 e as 10:54 horas, não se pronunciaram sobre essa concreta factualidade, como se alcança facilmente da audição de cada um dos depoimentos (sem que seja de exigir à recorrente que proceda à transcrição dos seus depoimentos, pois que implicaria a sua transcrição por inteiro).
QUARTA: Acresce que não há prova documental que permita dar como provada essa concreta factualidade.
QUINTA: E da própria motivação – única – apresentada pelo Tribunal de 1.ª Instância para dar como provada a concreta matéria factual cuja decisão se pretende impugnada haverá de se depreender que inexistiu qualquer meio probatório que permitisse ao tribunal dar como provada essa concreta matéria de facto.
SEXTA: Sendo certo que essa inusitada justificação mais não é do que um mero juízo de valor, sem o mínimo de suporte probatório.
SÉTIMA: Como tal, por não demonstrada, por total e absoluta falta de prova, - que não se basta com a justificação – única – dada pelo Mm.º Juiz a quo – não podia o tribunal dar como provados os n.ºs 6 e 7 dos Factos Provados, mormente que a arguida ingressou os montantes que deduziu do valor das remunerações pagas aos trabalhadores e à sócia gerente no seu próprio património pessoal, nem podia dar como provada a factualidade vertida no ponto 10 dos Factos Provados, mormente que a arguida agiu com o propósito de obter para si uma vantagem patrimonial e que se apossou em proveito próprio desses quantitativos.
OITAVA: Esta concreta factualidade, cuja decisão vai impugnada, impõe-se seja dada como indemonstrada e por isso deverá ser levada à matéria de facto não provada, com relevância para a decisão. – sic. artigo 412º/3 do Código de Processo Penal.
NONA: Consequentemente, impõe-se considerar que esta nova factualidade: o da arguida não ter-se apropriado, em proveito próprio, das quantias que reteve, acrescenta, em boa medida, as circunstâncias a depor a favor da arguida para efeitos de escolha e determinação da medida concreta da pena.
DÉCIMA: E paralelamente acresce o facto de se haver de concluir que a arguida
confessou, integralmente e sem reservas, a totalidade da factualidade de que, vindo acusada, lhe era exigível confessar, o que depõe bastante a seu favor e bem mais do que o que foi considerado e relevado pelo Tribunal de 1ª instância, em que apenas apreciou como sendo uma confissão parcial.
DÉCIMA PRIMEIRA: Chegados à fase da escolha e determinação da medida de pena, teremos ainda a depor a favor da arguida a circunstância da mesma ter atuado sempremotivada pelas dificuldades económico-financeiras da sociedade que geria – sic. n.º 11 dos Factos Provados, primeira parte.
DÉCIMA SEGUNDA: Ainda a depor a favor da arguida a circunstância da mesma ter beneficiado da falta de fiscalização dos serviços da Segurança Social. – sic. n.º 11 dos Factos Provados, segunda parte.
DÉCIMA TERCEIRA: Mas também a favor da arguida temos todos os pagamentos feitos pela arguida e ainda os quantitativos que lhes foram penhorados, por conta, e que permitiram a amortização da dívida. – sic. n.ºs 13, 14, 15, 16, 17, 18 e 19 dos Factos Provados.
DÉCIMA QUARTA: Para além disso, temos a depor a favor da arguida, em medida elevada e de forma muito considerável, ter resultado da factualidade dada como provada que a “arguida actuou em representação da sociedade arguida, retendo e não entregando as cotizações, de forma consecutiva sem quebrar a mesma linha psicológica continuada, tendo em conta a conduta dos meses subsequentes, agindo sempre de idêntico modo, com as suas actuações facilitadas pela inércia do I.S.S. e com o intuito de manter a empresa em actividade, devido às dificuldades económicas e financeiras que atravessava, dando prioridade ao pagamento de salários e a fornecedores”.” – sic. pág.14 da sentença recorrida.
DÉCIMA QUINTA: Porem, ao invés do que assinalou o Mm.º Juiz a quo, a continuação criminosa, cujo pressupostos o Tribunal de 1.ª Instância considerou preenchidos, não durou apenas cerca de quatro anos (de novembro de 2018 a maio de 2022) – sic. n.º 3 dos Factos Provados), mas antes cerca de 6 anos (de setembro de 2016 a maio de 2022) – sic. n.ºs 29 e 2 dos Factos Provados).
DÉCIMA SEXTA: O que faz diminuir mais consideravelmente a censurabilidade docomportamento da arguida por não agir de acordo com o Direito.
DÉCIMA SÉTIMA: Posto isto, analisados, considerados e avaliados os factos de ambos os processos, havemos de considerar que as condutas que, no caso dos presentes autos, integram o tipo legal semelhante ao da condenação transitada, e que protege essencialmente o mesmo bem jurídico, não apresentam uma moldura penal mais grave.
DÉCIMA OITAVA: Logo, as condutas praticadas pela arguida no período a que se reportam os presentes autos não assumem uma gravidade maior do que aquelas praticadas no período reportadas no processo comum singular n.º 42/20.....
DÉCIMA NONA: Daí que não consigamos compreender o porquê do Mm.º Juiz a quo, na determinação da medida concreta da pena - por referência a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra a arguida - ter considerado no processo n.º 42/20...., “um grau de ilicitude do facto, médio, aferido pelo montante do prejuízo causado, e pela correspondente vantagem obtida”, e nos presentes autos ter decidido por “um grau de ilicitude do facto, elevado, aferido pelo montante do prejuízo causado, e pela correspondente vantagem obtida”, na medida em que, a gravidade da conduta não pode ser aferida em função da quantia global mais elevada não entregue à Segurança Social, individualizando os processos perante um quadro de continuação da atividade criminosa.
VIGÉSIMA: A tudo isto acresce que, num e noutro processo, os antecedentes criminais são exatamente os mesmos. Pois que, se à luz do princípio da exasperação, os factos objeto do aludido processo n.º 42/20.... e os dos presentes autos integram a mesma continuação criminosa, teremos de desconsiderar, como circunstância a depor contra a arguida, a condenação que a mesma sofreu naquele processo comum singular, praticado em 01.09.2016 e condenada em 18.05.2023.
VIGÉSIMA PRIMEIRA: E uma vez que a unicidade da continuidade criminosa passa a incidir sobre os dois momentos temporais, o dos presentes autos e do anterior processo comum singular, impunha-se, por coerência, que o Mm. Juiz tivesse aproveitado para os presentes autos as mesmas considerações que teceu no anterior a respeito dos antecedentes criminais da arguida: “a aplicação de uma pena não privativa da liberdade, ainda, será suficiente para responder às exigências de prevenção, não obstante a arguida tenha já antecedentes criminais, mas uns factos de 2010, e outros em data contemporânea com as em apreço, tendo, ainda, em conta o carácter criminógeno das penas curtas de prisão.” – sic. pág.
16 da respetiva sentença.
VIGÉSIMA SEGUNDA: Logo, por incoerente, ilógico e contraditório, incorreu o Mm. Juiz no erro de julgamento, que se assinala, ao considerar que “o facto da arguida ter já vários antecedentes criminais relacionados com a violação do mesmo bem jurídico, tendo já sido condenada em várias penas de multa, impõe-se a opção por uma pena privativa da liberdade, entendendo o tribunal que a sanção pecuniária já não se revela suficiente (como não se revelou) para realizar as finalidades da punição (…)”.
VIGÉSIMA TERCEIRA: É que, para além do mais, não podemos esquecer-nos que a arguida no anterior processo foi julgada e condenada em 18.05.2023, isto é, em momento posterior ao último dos atos praticados nestes presentes autos (maio de 2022), pelo que não é apropriada nem aplicável ao caso em apreço a consideração vertida pelo Julgador de que a sanção pecuniária não se revelou suficiente para realizar as finalidades da punição.
VIGÉSIMA QUARTA: Assim, atendendo à semelhança das circunstâncias ponderadas pelo Mm.º Juiz a quo em ambos os processos, impunha-se que a pena a aplicar à arguida nos presentes autos teria de ser a de multa, por identidade de razão com a pena aplicada no processo n.º 42/20.....
VIGÉSIMA QUINTA: Consequentemente, deverá ser revogada a sentença proferida, a qual deverá ser substituída por douto Acórdão que, em vez da pena privativa da liberdade, aplique à arguida a pena de multa, a fixar em 345 dias de multa (correspondente ao acréscimo de metade da pena anteriormente aplicada), à taxa de €7,00, sem prejuízo do desconto da pena multa aplicada à arguida no processo 42/20.....
VIGÉSIMA SEXTA: Sem prescindir, e apenas por mero dever de patrocínio, considera a recorrente que a decisão recorrida também labora em erro de julgamento ao condicionar a suspensão da execução da pena privativa da liberdade ao pagamento do remanescente das prestações tributárias em falta e acréscimos legais.
VIGÉSIMA SÉTIMA: É que, atendendo às condições socioeconómicas da arguida dadas como provadas nos n.ºs 20 a 23 é manifesto que a condição imposta de suspensão de execução da pena é desproporcional, não sendo de prever a existência de capacidade económica, presente e futura, da arguida para cumprir o dever imposto, nos termos estipulados na sentença recorrida.
VIGÉSIMA OITAVA: O tribunal recorrido, aquando da escolha da fixação da pena, ao não ter realizado o tal juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição legal imposta à suspensão por parte do condenado, incorreu em omissão de pronúncia, geradora de nulidade da sentença, no segmento em causa referente à escolha e fixação da pena – art. 379º, nº 1, al. c), do C.P.P.,
VIGÉSIMA NONA: O que expressamente se invoca e argui e se propugna seja reconhecido e determinado por V/ Exas, Juízes Desembargadores. TERMOS EM QUE, PROCEDENDO O PRESENTE RECURSO, DEVERÁ A SENTENÇA RECORRIDA SER REVOGADO POR DOUTO ACÓRDÃO QUE SUBSTITUA A PENA PRIVATIVA DE LIEBRDADE APLICADA À ARGUIDA PELA PENA DE MULTA FIXADA EM 345 DIAS À TAXA DIÁRIA DE 7,00€, ASSIM FAZENDO, V/ EXAS, JUÍZES DESEMBARGADORES, A COSTUMADA E SÃ JUSTIÇA. POR MERA CAUTELA, POR DEVER DE PATROCÍNIO, E APENAS PARA O CASO – QUE SINCERAMENTE NÃO SE ESPERA – DA PENA PRIVATIVA DA LIBERDADE NÃO SER SUBSTITUÍDA PELA PROPUGNADA PENA DE MULTA, VAI ARGUIDA A NULIDADE DA SENTENÇA, POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA, NO SEGMENTO EM CAUSA REFERENTE À ESCOLHA E FIXAÇÃO DA PENA”.
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Resposta ao recurso por parte do Ministério Público.
Na primeira instância, o Ministério Público, apresentou resposta ao recurso pugnando pela improcedência do mesmo.
Considera em síntese que não existiu erro na fixação da matéria de facto ao ser dado como provado que a arguida integrou e ingressou no seu património os valores dos vencimentos dos trabalhadores que não integrou ao ISS.
Entende ainda que quanto às necessidades de prevenção que se fazem sentir, mostra-se adequada a escolha de uma pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução e que a suspensão da execução da pena de prisão está obrigatoriamente condicionada, nos termos do disposto no art.º 14.º, n.º1, do RGIT, ao pagamento das prestações tributárias em falta e acréscimos legais, sendo que o eventual incumprimento da condição não importará automaticamente a revogação da suspensão da execução da pena de prisão.
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Tramitação subsequente
Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o processo foi com vista ao Ministério Público, tendo a Exmª. Senhora Procuradora-Geral Adjunta, emitido douto e esclarecido parecer, defendendo, muito em síntese, que:
- a sentença recorrida não enferma de nulidade por omissão de pronúncia.
- cabe razão à recorrente e que se impõe a alteração dos factos impugnados, de molde a deles se expurgar as referências à intenção e apropriação em beneficio pessoal das referidas quantias, por parte daquela.
- deve manter-se a escolha da pena de prisão, que deverá ser fixada em 1 ano e 2 meses de prisão, atenta a confissão integral da recorrente e a circunstância de não ficar provado que esta arguida ingressou os montantes que deduziu do valor das remunerações pagas aos trabalhadores e à sócia gerente no seu próprio património pessoal, considerando porém que deve manter-se suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, mediante a condição imposta.
Considera ainda existir um lapso de escrita na parte decisória da sentença, que deverá ser corrigido, ao abrigo do art.º 380.º 1 b) do CPP, passando aí a consignar-se que o pagamento será do remanescente das prestações aludidas nos factos provados nos pontos n.ºs 6 e 29 e não nos pontos n.ºs 6 e 25.º.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº 2 do CPP não tendo sido apresentada resposta.
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Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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II – Fundamentação.
Cumpre apreciar o objeto do recurso.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas essas questões, as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, bem como as nulidades previstas no artigo 379º do mesmo Código, que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso [2].
A ordem das questões a apreciar começa pelo conhecimento das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão, nomeadamente as nulidades previstas no artigo 379º do CPP e os vícios contidos no artigo 410º nº 2 do CPP; em seguida as questões que se referem à matéria de facto, quando impugnada e por último às questões de direito.
Assim, no caso em apreço, considerando o recurso interposto, são por esta ordem as questões que se colocam à apreciação deste tribunal:
- nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
- erro de julgamento da matéria de facto.
- escolha e determinação da medida concreta da pena.
- condição aposta à suspensão da execução da pena de prisão.
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É a seguinte a matéria de facto dada como provada pelo tribunal “a quo” (transcrição):
1. A administração de facto e de direito da referida sociedade era exercida pela arguida AA, a quem competia a gestão, administração e representação de toda a actividade exercida, a decisão de afectação dos seus recursos financeiros à satisfação das respectivas necessidades, a responsabilidade pelo pagamento aos fornecedores, pelo pagamento de contribuições e impostos, bem como salários aos trabalhadores e respectivas cotizações ao Instituto da Segurança Social.
2. Nessa qualidade, a arguida estava obrigada a descontar nas remunerações pagas aos trabalhadores e à sócia-gerente as cotizações de 11%, bem como a entregar o seu valor nos serviços da Segurança Social.
3. Sucede que, nos meses de Novembro de 2018 a Julho de 2019, Setembro de 2019 a Dezembro de 2019, Fevereiro de 2020 a Dezembro de 2021, Fevereiro de 2022 e Maio de 2022, a sociedade EMP01..., Lda entregou, através da arguida, no Instituto da Segurança Social as declarações de remunerações dos trabalhadores e da sócia-gerente.
4. Todavia, embora tivesse auto-liquidado as cotizações devidas à Segurança Social nas remunerações pagas aos trabalhadores e à sócia-gerente, a arguida, em representação daquela, não procedeu à entrega dos respectivos valores, que ascendem à quantia global de 50.595,98 € (cinquenta mil, quinhentos e noventa e cinco euros e noventa e oito cêntimos),entre os dias 10 e 20 do mês seguinte àquele a que respeitam.
5. Nem regularizou a dívida nos 90 dias volvidos aquelas datas.
6. Assim, a arguida deveria ter entregue à Segurança Social os montantes a seguir melhor discriminados que deduziu do valor das remunerações pagas aos trabalhadores e à sócia-gerente e que integrou no seu património e no património da sociedade EMP01..., Lda:
7. Em 03.02.2023, a arguida e a sociedade arguida foram notificadas pela Segurança Social para procederem ao pagamento da quantia em dívida, no prazo de 30 dias, nos termos do artigo 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT, não o tendo feito integralmente.
8. A entrega das contribuições à Segurança Social configura uma obrigação legal que nasce no acto do pagamento dos salários, sendo pela sua retenção e pagamento responsável a entidade empregadora.
9. Após efectuar a retenção das cotizações acima indicadas, a arguida ingressou os respectivos valores no património da sociedade e no seu próprio património, bem sabendo que não eram sua pertença mas sim da Segurança Social.
10. Pelo que a arguida agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de obter para si uma vantagem patrimonial a que sabia não ter direito, apossando-se em proveito próprio e da sociedade que representava do valor das cotizações supra indicado, actuando de forma homogénea e no quadro da mesma solicitação exterior, bem sabendo ser as suas condutas proibidas e punidas por lei.
11. Acresce ainda que a arguida actuou sempre motivada pelas dificuldades económico-financeiras da sociedade que geria, beneficiando ainda da falta de fiscalização dos serviços da Segurança Social.
12. A arguida actuou sempre na qualidade de representante da sociedade EMP01..., Lda, em seu nome e no interesse colectivo da mesma.
13. Após a dedução do PIC, as arguidas pagaram a totalidade da divida de cotizações referente aos períodos de 09/2019, 10/2019, 04/2020, 10/2020 e 01/2021, mantendo em divida juros de mora por pagamento fora do prazo, no valor de €39,84, e €7,82, referente ao mês de 10/2019 e 04/2020, respectivamente.
14. Foram efetuadas penhoras, e imputado o valor de €5.050,21, em 11.04.2023, no pagamento de contribuições de 03/2020 e 04/2020, e cotizações de 03/2020 e 04/2020 no valor de €950,28 (€16,30 e €928,30);
15. Em 21.04.2023 do valor de €5.68 foi imputado ao pagamento de cotizações de 04/2020; e os restantes valores alocados à penhora (€56,61, €7,22 e €1,55) foram imputados a custas; Assim, as cotizações do mês de 04/2020, encontra-se totalmente liquidado; e do mês de 03/2020, ascende a €1.480,24 em divida.
16. Através de DUC nº ...59 no valor de €1.059,41, no âmbito do acordo prestacional nº 508/22), liquidaram contribuições do período de 12/2019;
17. Através de DUC nº ...97 no valor de €4.204,16, no âmbito do acordo prestacional nº 3902/23), liquidaram: juros de mora de contribuições do período de 06/2020, no valor de €36,71, juros de mora cotizações de 06/2020, no valor de €171,56, juros de mora de contribuições de 2020/07 no valor de €341,62, contribuições de 08/2020, no valor de €3.260,69, e cotizações de 2020/08 no valor de €393,58.
18. No dia 21.05.2024, as arguidas através do DUC nº ...24, liquidaram contribuições no período de 2019/12 no valor de €873,73, e juros de mora contribuições de 2019/12, no valor de €192,14.
19. E através do DUC nº ...32, no âmbito do acordo nº 9400/19, liquidaram contribuições de 2018/03, no valor de €613,01, e juros de mora de cotizações de 2018/01 no valor de €176,95.
20. A arguida AA trabalha como comercial, e aufere cerca de €1.170,00 mensais.
21. Vive com o marido, o qual trabalha como operário e aufere pelo menos o salário mínimo, e uma filha estudante.
22. Vivem em casa própria, pagando ao banco cerca de €840,00 referentes a empréstimo a habitação.
23. A arguida frequentou licenciatura em gestão.
24. A arguida sociedade mantém-se em laboração, tendo 19 trabalhadores ao seu serviço.
25. A arguida sociedade no ano de 2023, faturou cerca de €250.000,00.
26. No ano de 2022, apresentou declaração modelo 22 de IRC, e declarou €263.149,49 de rendimentos do período, e €9.428,71 de lucro tributável.
27. A arguida sociedade tem antecedentes criminais: 1 crime de abuso confiança fiscal, praticado em 15.11.2016, condenada em 07.02.2019, na pena de 200 dias de multa à taxa de €9,00; 1 crime de abuso confiança ao ISS, praticado em 01.09.2016, condenada em 18.05.2023, na pena de 350 dias de multa à taxa de €10,00.
28. A arguida AA tem antecedentes criminais: 1 crime de abuso confiança fiscal, praticado em 01.10.2010, condenado em 16.06.2014, na pena de 160 dias de multa à taxa de €6,00; 1 crime de abuso confiança fiscal, praticado em 15.11.2016, condenado em 07.02.2019, na pena de 170 dias de multa à taxa de €6,50; 1 crime de abuso confiança ao ISS, praticado em 01.09.2016, condenada em 18.05.2023, na pena de 230 dias de multa à taxa de €7,00.
29. No PCS n.º 42/20...., JLC Guimarães, J..., foram dados como provados os seguintes factos, com relevo para a presente decisão: “A 1ª arguida é uma sociedade por quotas, com inicio de actividade em 11 de Novembro de 2015 e registo na Segurança Social em 16 de Novembro de 2015, cujo objecto social é “fabrico de calçado”. Os arguidos, AA e DD, exerceram de direito e de facto de facto o giro comercial daquela empresa, prestando serviços a título oneroso e mediante a contrapartida monetária dos mais variados clientes, desde pessoas colectivas e particulares, desenvolvendo a sua actividade pela área desta comarca e concelhos limítrofes. A partir de dado momento, que não foi possível concretizar, mas no decurso dos meses de Setembro 2016, Outubro de 2016, Dezembro de 2016 a Junho de 2017, Agosto de 2017, Setembro de 2017, Novembro de 2017 e Dezembro de 2017, Janeiro de 2018 a Outubro de 2018 os arguidos decidiram fazer suas e não entregar nos cofres da Segurança Social Portuguesa, as quantias em dinheiro provenientes dos descontos que efectuaram nos salários devidos e que pagaram aos trabalhadores. Assim, em obediência a esse mesmo desígnio e no decurso daquele período de tempo (Setembro 2016, Outubro de 2016, Dezembro de 2016 a Junho de 2017, Agosto de 2017, Setembro de 2017, Novembro de 2017 e Dezembro de 2017, Janeiro de 2018 a Outubro de 2018) os arguidos, no exercício do giro comercial da 1.º arguida, no seu interesse e representação apropriaram-se da quantia global de €21 042,89 (vinte e um mil e quarenta e dois euros e oitenta e nove cêntimos) provenientes dos descontos relativos às cotizações de salários pagos aos trabalhadores que tinham a seu cargo – cfr. quadro de fls. 222:
Mês de
Referência
Total de
Remunerações
Taxas
Montante Declarado
Montante Saldo - Pago dívida
Cotiza ções Trabalhador
Total
Cotizações do trabalhador
3.395,40
11,00
373,49
1.179,90
373,49
0,00
outJ16
4.146,99
11,00
456,17
1.441
456,17
0,00
dez/16
8.274,22
11
910,16
2.875,29
910,16
0,00
jan/17
4.695,02
Il,oo
516,45
1.631
516,45
0,00
fev/17
4.980,49
11
547,85
1.730,72
547,85
0,00
mar/17
4.750,88
11
522,60
1.650,93
522,60
0,00
4.712,32
11
518,35
1.637
518,35
0,00
mai/17
5.955,68
11
655,13
2.069,60
655.13
0,00
juni17
9.954,62
11
1.095,01
3.459,23
1 .095J01
0,00
ago/17
5.969,41
11
656,64
2.074,37
656164
set/17
7.491 ,28
11,00
824,04
2.603,22
824,04
0,00
nov/17
10.068,26
11
1.107,51
3.498,72
1.107,51
0.00
dei17
14.332,03
11
1.576,52
4.980,38
1.576,52
Jan/18
9.888,83
11
1.087,77
3.436,37
1.087,77
fev/1 8
9.222,42
11
1.014147
3.204,79
1.014,47
mar/18
9.864,66
11
1.085,11
3.427.97
1.085,1 1
abr/18
9.507,51
11
1.045,83
3.303,86
1.045,83
mai/18
9.408,83
11
1.034,97
3.269,57
1 .034,97
jun/1 8
9.209,55
11
1.013,05
3.200,32
1.013,05
julil 8
1 1.525,70
11
1.267
4.005,18
1.267183
ago/1 8
14.190,56
11
1.560,96
1.560,96
set/18
10.189,04
11
1.120,79
3.540,69
1.120,79
out/1 8
9.565,32
11
1.052,19
3.323,95
1.052,19
TOTAIS
191.299,02
21.042,89
66.476,41
7.526,77
13.516,13
Com efeito, uma vez que os arguidos não entregaram tais quantias à Segurança Social Portuguesa, que receberam a título de meros depositários, por titulo não translativo de propriedade, como podiam e deviam, fizeram-nas suas, integrando-as nos seus patrimónios, locupletando-se à custa do património daquela entidade. No período compreendido entre 11/11/2019 e 24/11/2020, os arguidos procederam a pagamentos para regularização dos vários meses de cotizações de período de divida, encontrando-se, presentemente, em divida o valor de €13.516,13 (treze mil, quinhentos e dezasseis euros e treze cêntimos), encontrando-se a Segurança Social, patrimonialmente lesada, sem qualquer causa justificativa. E, apesar de, regularmente, notificados nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), do n.º4, do artigo 105.º, do RGIT, com a redacção introduzida pelo artigo 95.º, da Lei n.º53-A/2006, de 20/12, para efectuar o pagamento da quantia supra mencionada, com os acréscimos legais e coimas aplicáveis pela falta de entrega daquelas prestações tributárias, não o fizeram, após o decurso do prazo de 30 dias, nem posteriormente. Agiram deliberadamente, em comunhão de esforços e sintonia de vontades e, em obediência ao mesmo desígnio, com intenção de fazerem suas e de integrarem nos respectivos patrimónios as quantias em dinheiro que receberam e retiveram, por titulo não translativo de propriedade e por via do pagamento de salários aos seus trabalhadores, invertendo, assim, o título de posse em relação ao dinheiro e quantias que retiveram ou receberam e comportantos e em relação a ela como se fossem os seus legítimos proprietários, não obstante saberem que aquela quantia de €13.516,13 não lhes pertencia e que actuavam contra a vontade e em prejuízo da dona. Bem sabiam que tinham de entregar nos cofres da Segurança Social as quantias em dinheiro relativas às cotizações que cobraram aos respectivos trabalhadores e ilegitimamente retiveram. Agiram ainda livres e lucidamente, com perfeita consciência de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei”.
*
Para tanto motivou a decisão de facto do seguinte modo (transcrição):
O Tribunal formou a sua convicção com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, designadamente nos documentos juntos aos autos, nomeadamente Participação de fls. 1, Conta corrente de fls. 17 – 19, 47 – 51, Extracto de remunerações de fls. 29 – 40, Certidão de matrícula de fls. 137 – 143, Notificações nos termos do artigo 105.º, n.º4 do RGIT, fls. 4 – 17 e 81 – 82, Parecer do ISS de fls. 256 – 271, certidão de fls. 395 a 410, e seguintes; conjugados com a confissão parcial da arguida e depoimentos das testemunhas.
Feita esta breve súmula da prova produzida, concluímos que devem ser dados como provados os factos que mereceram resposta positiva. Com efeito, verifica-se da conjugação da prova produzida que a arguida AA, em nome da sociedade, porque gerente, preteriu a entrega das aludidas cotizações à Segurança Social. E é assim, porquanto admitiu tal factualidade, o que foi corroborado pelas testemunhas BB e CC, aquela relatando os valores e períodos em divida, e esta relatando que a sociedade arguida continua em laboração, a fazer divida, que passou por dificuldades económicas, e que existiram planos de pagamentos, ainda, que em regra incumpridos.
Ademais, a arguida AA, confirmou ser ela quem, como gerente, decidia os destinos da empresa (o que decorre também da certidão comercial, que retrata ser a única sócia e gerente), que esta passou por dificuldades económicas, e assim admite a falta de entrega dos valores e períodos imputados na acusação.
Alegou, contudo, que não se apropriou de tais valores para o seu património. Contudo, tal alegação não passa de uma falácia, visto que se é única sócia, gerente de facto e direito, não pode haver dúvidas que ao reter as aludidas quantias, o faz também em benefício do seu património pessoal.
No que se refere à motivação da conduta, valoraram-se as declarações da arguida, e bem assim sobre as dificuldades económicas e o que a levou a deixar de entregar as prestações ao ISS.
A demonstração dos pagamentos parciais, resultaram do depoimento da primeira testemunha, conjugado com os documentos juntos aos autos.
O tribunal tomou em consideração, as declarações da arguida sobre as condições sócioeconómicas que nos pareceram sinceras e verosímeis, conjugadas com os documentos juntos aos autos.
Quanto à existência de antecedentes criminais, relevaram os certificados de registo criminal juntos aos autos.
***
Antes de começarmos a apreciar as questões que resultam do recurso interposto pela arguida AA, há que apreciar um vício de que padece a sentença recorrida.
Compulsados os autos verifica-se que consta do ponto 1º da acusação deduzida pelo Ministério Público, o seguinte:
“1. A sociedade EMP01..., Lda é uma sociedade comercial por quotas, encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial ..., com o contribuinte n.º ...26, com o contribuinte da Segurança Social n.º ...69, tem sede na Rua ..., em ..., e tem como objecto social a fabricação de calçado”.
Ora, nos factos dados com provados no ponto 1º da sentença recorrida consta “da referida sociedade”, mas esta não se mostra identificada, pois que aquela matéria constante da acusação ficou omissa, não tendo sido vertida para os factos provados (e naturalmente também para os factos não provados).
Trata-se de uma situação que se enquadra no vício previsto no artigo 410º nº 2, alínea a) do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o qual como supra se referiu é de conhecimento oficioso.
Tal acarretaria em princípio o reenvio dos autos à 1ª instância para ser colmatado tal vício, mas tal não se mostra necessário, pois que do processo constam todos os elementos de facto necessários para que seja modificada a sentença recorrida – artigos 426º nº 1 431º al. a), ambos do CPP.
Efetivamente a identificação da sociedade co-arguida constava da acusação, a arguida AA confessou os factos constantes da acusação, (com exceção de ter integrado no seu património os montantes não entregues à Segurança Social) e a certidão relativa a essa sociedade comercial “EMP01..., Lda” também foi junta aos autos em 14 de novembro de 2023[3], cuja fidelidade e autenticidade não foi posta em causa.
Assim, decide-se sanar o vício que enferma a sentença recorrida, passando o ponto 1º dos factos provados a ter a seguinte redação:
“A administração de facto e de direito da sociedade “EMP01..., Lda”, sociedade comercial por quotas, que se encontra matriculada na Conservatória do Registo Comercial ..., contribuinte n.º ...26, com o nº da Segurança Social n.º ...69, com sede na Rua ..., em ..., e que tem como objecto social a fabricação de calçado, era exercida pela arguida AA, a quem competia a gestão, administração e representação de toda a actividade exercida, a decisão de afectação dos seus recursos financeiros à satisfação das respectivas necessidades, a responsabilidade pelo pagamento aos fornecedores, pelo pagamento de contribuições e impostos, bem como salários aos trabalhadores e respectivas cotizações ao Instituto da Segurança Social”.
*
Da nulidade da sentença por omissão de pronuncia.
Considera a arguida AA que “o tribunal recorrido, aquando da escolha da fixação da pena, ao não ter realizado o tal juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição legal imposta à suspensão por parte do condenado, incorreu em omissão de pronúncia, geradora de nulidade da sentença, no segmento em causa referente à escolha e fixação da pena – art. 379º, nº 1, al. c), do C.P.P.”[4].
Atento o disposto no artigo 379º nº 1 al. c) do CPP, é nula a sentença “quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Como de uma forma reiterada tem vindo a ser entendido na jurisprudência dos tribunais superiores, a omissão de pronúncia significa, essencialmente, que existiu uma ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias relativamente às quais se impõe que o juiz tome uma posição expressa, quer essas questões tenham sido colocadas pelos diversos intervenientes processuais quer, ainda que não tenham sido alegadas, sejam de conhecimento oficioso.
Ora, o juízo de razoabilidade acerca do pagamento ao Estado das quantias em falta enquanto condição para a execução da pena de prisão foi considerada pelo tribunal a quo, constando expressamente da sentença recorrida: “Quanto ao juízo de razoabilidade sobre a imposição legal de condicionar a suspensão ao pagamento da prestação tributária e demais acréscimos legais, cremos que, ante a factualidade provada, mormente a situação económica das arguidas, bem como os montantes das prestações tributárias, é possível concluir que não é inexigível à arguida o pagamento das aludidas quantias, sem prejuízo, claro está, da fixação de um prazo proporcional ao esforço que a arguida terá que fazer”, adiantando-se ainda que “A suspensão da pena de prisão será, então, condicionada, nos
termos do artigo 14º, nº 1, do RGIT, ao pagamento do remanescente das prestações tributárias em falta e acréscimos legais, no prazo de 05 (cinco) anos, a contar do trânsito da condenação, por se considerar que, tendo em conta o rendimento da arguida, é o prazo adequado para que pague as prestações, ainda, em divida, devendo a mesma comprovar nos autos o referido pagamento em idêntico prazo”.
O tribunal a quo, não deixou assim em claro tal questão, pronunciando-se relativamente a ela, tendo em conta as condições económicas e ao rendimento auferido pela arguida, levando inclusive o tribunal a quo, a fixar, atendendo aos montantes em dívida, o prazo máximo de 5 anos para que tal pagamento pudesse ser satisfeito.
Não enferma assim a sentença recorrida da invocada nulidade por omissão de pronúncia.
*
Do erro de julgamento da matéria de facto.
Alega a recorrente a existência de erro de julgamento da matéria de facto dada como provada nos pontos 6, 9 e 10, no segmento em que foi dado como provado ter integrado no seu próprio património as quantias que eram devidas à Segurança Social.
Refere para tanto que que tal factualidade foi total e frontalmente desmentida e não admitida por si, que as duas únicas testemunhas, ambas funcionárias da Autoridade Tributária, ouvidas em audiência de julgamento não se pronunciaram relativamente a tal matéria e que inexiste qualquer prova documental que permita dar como provada essa factualidade.
O tribunal a quo, para fundamentar essa matéria teceu a seguinte consideração, referindo-se à arguida AA: “Alegou, contudo, que não se apropriou de tais valores para o seu património. Contudo, tal alegação não passa de uma falácia, visto que se é única sócia, gerente de facto e direito, não pode haver dúvidas que ao reter as aludidas quantias, o faz também em benefício do seu património pessoal”.
Assim e em boa verdade, o tribunal “a quo” não fundamentou essa matéria, em qualquer depoimento ou prova documental produzida nos autos, tendo concluído e desde já se diga mal, que a arguida por considerar ser a única sócia da “EMP01..., Lda”, reteve as quantias em benefício do seu próprio património pessoal.
Ora, para além da distinção do que é o património pessoal e o que é o património de uma sociedade comercial, que não se confundem, há ainda a atender, como bem realça a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta no seu douto parecer, que o assumido na sentença que a arguida era a única sócia daquela sociedade “não encontra sustentação probatória na certidão matricial referente à sociedade arguida ( junta aos autos em 14 de Novembro de 2023) e da qual se infere que a arguida AA, muito embora seja a gerente da sociedade arguida “EMP01..., Lda”, não é a sua única sócia, detendo a quota de 900,00 Euros, pertencendo a outra quota, no valor de 100,00 Euros a EE”.
Por outro lado, e como também muito lucidamente se refere nesse Parecer nenhuma prova foi efetuada que, num cenário de dificuldades financeiras que atravessava aquela sociedade, que resultam dos factos provados nºs 11 e 12, a arguida AA tivesse utilizado os valores não entregues à Segurança Social, para pagamento das suas despesas pessoais.
Não podia assim concluir-se como fez erroneamente a sentença recorrida que a arguida AA integrou no seu património pessoal as quantias que eram devidas à Segurança Social.
Há assim que ser alterada tal matéria dada como provada, face ao erro de julgamento evidenciado, procedendo assim este segmento do recurso.
Deste modo os pontos 6º, 9º e 10º dos factos provados passam a ter a seguinte redação:
Ponto 6º:
“Assim, a arguida deveria ter entregue à Segurança Social os montantes a seguir melhor discriminados que deduziu do valor das remunerações pagas aos trabalhadores e à sócia-gerente e que integrou no património da sociedade EMP01..., Lda:
Ponto 9º:
“Após efetuar a retenção das cotizações acima indicadas, a arguida ingressou os respetivos valores no património da sociedade, bem sabendo que não eram desta, mas sim da Segurança Social”.
Ponto 10º:
“Pelo que a arguida agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de obter uma vantagem patrimonial a que sabia não ter direito, apossando-se em proveito da sociedade que representava do valor das cotizações supra indicado, actuando de forma homogénea e no quadro da mesma solicitação exterior, bem sabendo ser as suas condutas proibidas e punidas por lei”.
E consequentemente, dão como não provada a seguinte matéria:
I – “A arguida AA integrou no seu património pessoal as quantias referidas no ponto 6º”.
*
Da escolha e determinação da medida concreta da pena.
Alega a recorrente que as condutas em causa nestes autos integram o tipo legal
semelhante, que protege essencialmente o mesmo bem jurídico relativamente às condutas apreciadas no processo comum singular n.º 42/20...., pelo qual foi condenada pelo que, ao não apresentarem uma moldura penal mais grave, as suas condutas praticadas no período a que se reportam os presentes autos não assumem uma gravidade maior do que aquelas praticadas no período reportado nesse outro processo.
Apreciemos.
Dispõe o artigo 79.º do Código Penal com a epígrafe “Punição do crime continuado”:
1 — O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.
2 — Se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação, a pena que lhe for aplicável substitui a anterior.
Quer neste processo, quer no processo comum singular n.º 42/20...., está em causa a prática pela arguida de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelo art.º 105.º, nºs 1, 4 e 7, e, e 107.º, n.º1 e 2 do RGIT.
Assim, a questão coloca-se em saber o que entender por “conduta mais grave”.
Face à existência de uma condenação transitada em julgado relativa a um crime continuado, há que apreciar se o crime em causa nesse processo é, ou não, mais grave do que os demais já julgados, independentemente da moldura penal abstrata de cada um.
Ora, quer considerando todo o período temporal em que decorreu a retenção e não entrega à Segurança Social dos montantes devidos, quer considerando que a conduta mais grave que integra a continuação criminosa em causa é a correspondente à concreta prestação mensal que se apurou ter sido retida e não entregue à Segurança Social, de todas as que estão em discussão em ambos os processos, há que concluir que a conduta mais grave foi a dos presentes autos.
Sendo mais grave, o tribunal tem que reanalisar toda a conduta do agente dentro da nova moldura penal e à nova pena a estabelecer é descontada a pena (ou a parte da pena) já anteriormente cumprida.
Assim, por força do disposto no artigo 79º, n.º 2 do CP, sendo descobertas posteriormente à condenação algumas condutas que se integram na continuação criminosa, deve proceder-se a julgamento no que concerne a essas novas condutas, a fim de as integrar na continuação e ser reformulada a pena, ponderando-se para o efeito o alargamento da ilicitude dos factos e da sua consequente censurabilidade, fixando-se uma pena mais grave que vai substituir a pena anterior, ainda que os “novos factos” não impliquem uma alteração da moldura penal abstrata do crime. [5]
*
O crime pelo qual a arguida AA foi condenada é punível com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias – artigo 107º nº 1 ex vi artigo 105º, nº 1, ambos do RGIT.
*
Dispõe o artigo 70º do Código Penal: “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Nos termos do disposto no artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal, a aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
As finalidades das penas, na previsão, na aplicação e na execução, são assim a proteção de bens jurídicos e a integração do agente do crime nos valores sociais afetados.
Na proteção de bens jurídicos está ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afetem tais bens e valores (prevenção geral) como também a realização de finalidades preventivas que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes (prevenção especial negativa).
As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objetivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.
Salienta Souto de Moura[6] “Na medida em que o art.º 70º do C.P. elege como critério da escolha da pena a melhor prossecução das finalidades da punição, na aplicação deste preceito importa, naturalmente, ter em atenção o disposto no art.º 40º do mesmo C.P.. O qual, como se verá adiante, atribui à pena, sempre, um fim utilitário, pelo menos de acordo com a leitura largamente maioritária que é feita do preceito.
Assim sendo, a culpa, ou o grau de culpa, não são realidades a ponderar
especificamente na tarefa de escolher a espécie da pena, antes têm o seu campo de incidência, privilegiado, na escolha da medida da pena. Daí que importe ver, se a opção pela pena de prisão se mostra necessária, adequada e proporcionada, ao serviço dos objectivos da prevenção geral e especial”.
Temos deste modo que as finalidades da punição a atingir em sede de escolha da medida da pena são essencialmente preventivas; prevenção especial sob a forma de atingir a ressocialização, e de prevenção geral sob a forma de satisfação do sentimento jurídico da sociedade.
A propósito da escolha da pena, consta o seguinte na sentença recorrida:
“No caso vertente, as fortes exigências de prevenção geral e especial, mormente o facto da arguida ter já vários antecedentes criminais relacionados com a violação do mesmo bem jurídico, tendo já sido condenada em várias penas de multa, impõe-se a opção por uma pena privativa da liberdade, entendendo o tribunal que a sanção pecuniária já não se revela suficiente (como não se revelou) para realizar as finalidades da punição, porque não obstante as aludidas advertências solenes que sofreu não a fizeram afastar da criminalidade.
Importa a nosso ver, ainda, ter em atenção que são abstractamente elevadas as exigências de prevenção geral, atento o tipo de crime em apreço. A comunidade precisa de ver reafirmada a norma jurídica violada, sob pena de se gerar um sentimento de impunidade relativamente a um crime vulgarmente cometido e que afecta todos os cidadãos, quer pelo facto de terem que pagar mais impostos/cotizações devido a condutas delituosas de terceiros, quer por afectar a concorrência, nomeadamente as empresas que cumprem”.
Insurge-se a recorrente referindo que tem de se desconsiderar a condenação que a mesma sofreu no processo comum singular n.º 42/20.....
Ora, naturalmente que essa condenação não pode ser atendida pois que a factualidade aí constante passou a integrar toda a factualidade alvo nos presentes autos.
Porém, não é seguro que o tribunal recorrido tenha atendido a tal condenação, quer na escolha da pena, quer na concretização desta.
De qualquer modo, o que interessa para efeito de aferir das exigências de prevenção especial que se colocam a este tribunal de recurso é atender ao facto de a arguida já antes ter sido condenada em duas outras ocasiões pela prática de crimes de natureza análoga: um crime de abuso de confiança fiscal, praticado em 01.10.2010, condenada em 16.06.2014, na pena de 160 dias de multa à taxa de €6,00 e um outro crime de abuso confiança fiscal, praticado em 15.11.2016, condenada em 07.02.2019, na pena de 170 dias de multa à taxa de €6,50[7].
Essas condenações em penas de multa não foram suficientes para a afastar da prática do crime em causa nos autos.
Às exigências de prevenção especial acrescem também de forma bastante acentuada as exigências de prevenção geral que fazem sentir num crime como o praticado pela recorrente, atenta a frequência com que este tipo de crimes é praticado e a distorção que provoca, entre as empresas que cumprem as suas obrigações fiscais e parafiscais e aquelas que as não cumprem.
Conforme bem se salienta no Ac. da Relação de Lisboa de 24 de junho de 2020[8]: “as exigências de prevenção geral são muito fortes, neste tipo de crimes, em face da enorme proliferação de crimes de natureza idêntica e considerando o bem jurídico tutelado na norma incriminadora – já que, seja a credibilidade das relações entre a Administração Tributária e os contribuintes, na perspectiva da revelação da sua verdadeira capacidade contributiva, seja, na da globalidade das receitas tributárias, do que não se duvida é que se trata de um relevante instrumento do Estado de Direito Democrático, ao nível da redistribuição da riqueza e da prossecução de ponderosos interesses de ordem social - e o sentimento generalizado de impunidade que os agentes económicos têm em relação àquilo que é comummente chamado de «fuga ao Fisco» e que urge combater e neutralizar, valores estes que têm igual valor e eficácia, eventualmente, até acrescida quando estejam em causa, as prestações devidas à Segurança Social, dada a sua incidência directa na prossecução das finalidades do Estado Social”.
Salienta por sua vez Anabela Rodrigues[9] no artigo “Contributo para a fundamentação de um discurso punitivo em matéria penal fiscal”, referindo-se aos crimes de natureza fiscal: “a pena de prisão é, em abstracto, a pena mais adequada por ser a única capaz de responder às necessidades de promover a consciência ética fiscal, não se lhe podendo assacar os efeitos criminógenos que normalmente andam ligados a este tipo de pena”, adiantando ainda que “é contra este modo de conceber as coisas que se impõe reagir, fazendo sentir aos agentes do crime económico e fiscal que abusam da confiança que neles é depositada, que os seus comportamentos ilícitos típicos são crimes e não simples irregularidades. E isso consegue-se de modo particularmente adequado e eficaz com as penas de prisão”.
Em súmula, no caso em apreço em que não foram entregues à Segurança Social valores que ascenderam a um total de € 71.638,87, temos que só a pena de prisão (ainda que suspensa na sua execução) realiza, de forma adequada, as finalidades da punição, pois que só ela se mostra suficientemente dissuasora de novas reiterações criminosas e fará com que a arguida interiorize, por uma vez, a gravidade da sua conduta e também salvaguarda a satisfação do sentimento jurídico da comunidade na validade da norma.
*
Por sua vez, face ao disposto no artigo 71º nº 1 do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Sendo que por força do seu nº 2 na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência:
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
No que concerne à medida concreta da pena, refere Maria João Antunes [10] que “Se finalidade da pena é a proteção de bens jurídicos e, sempre que possível, a reintegração do agente na sociedade, e se a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa (artigo 40-, n.°’ 1 e 2, do CP), então a medida da pena há de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, sem ultrapassar a medida da culpa, atuando os pontos de vista de prevenção especial de socialização entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de tutela de tais bens”.
No caso dos autos há a considerar, para além das exigências de prevenção geral e especial já referidas, que o dolo é direto, que é a modalidade mais grave e o grau de ilicitude é elevado, face ao montante global que não foi entregue à Segurança Social - € 71.638,87 (€ 21.042,89 + € 50.595,98), e ao largo período temporal em que tais entregas não foram efetuadas, que mediou entre setembro de 2016 a maio de 2022.
Milita a favor da arguida, para além de se enquadrar social e profissionalmente integrada, a circunstância de ter confessado integralmente os factos dados agora como provados, embora a confissão neste tipo de crimes não tenha um especial valor, porquanto a prova é sobretudo de natureza documental, a circunstância de ter atuado sempre motivada pelas dificuldades económico-financeiras da sociedade que geria, beneficiando ainda da falta de fiscalização dos serviços da Segurança Social (facto provado nº 11) e ter sido ressarcida a Segurança Social, embora num valor muito diminuto, como resulta da matéria dada como provada (factos provados nºs 13 a 19).
Milita ainda a favor da arguida a circunstância de contrariamente ao afirmado na sentença recorrida, não resultar que a mesma se aproveitou em proveito próprio das quantias que não foram entregues à Segurança Social.
E embora a apropriação não faça parte deste tipo legal de crime é sempre de relevar na concretização da medida da pena.
Deste modo, atendendo à confissão integral da arguida e não ter ficado provada a apropriação para o património pessoal da arguida AA, entende-se ser de reduzir a pena de prisão aplicada para um ano e um mês, que se mostra assim a mais adequada.
*
Da condição aposta à suspensão da execução da pena de prisão.
No que concerne à condição aposta à suspensão da execução da pena de prisão, nenhuma censura há a fazer à sentença recorrida.
Insurge-se a recorrente pelo facto de a suspensão da execução da pena de prisão ter ficado condicionada ao pagamento, no prazo de cinco anos das prestações ainda em falta à Segurança Social e demais acréscimos legais.
Conforme resulta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência nº 2/2015 [11] “tratando-se do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, o bem jurídico protegido pela norma do artigo 107º do RGIT mais não é que o erário das instituições de Segurança Social e o interesse directo desta, enquanto titular do direito de crédito das quotizações e bem assim enquanto garante do regular funcionamento do respectivo sistema, de arrecadar as prestações contributivas que, deduzidas, por retenção na fonte, pelas entidades empregadoras, no valor das remunerações pagas aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais, devem ser entregues”.
É inequívoca a importância que o pagamento das prestações à Segurança Social reveste, sendo um meio prioritário na prossecução dos fins do Estado Social, mormente tendo em atenção o número de cidadãos reformados em situação de dependência económica do pagamento dessas prestações.
Daí não é de estranhar que estipule o artigo 14.º, n.º 1 do RGIT [12]: “A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa”.
O legislador impõe que caso a pena de prisão aplicada seja suspensa na sua execução, esta tem obrigatoriamente ser sujeita ao pagamento integral da prestação tributária e acréscimos legais e do montante dos benefícios indevidamente obtidos, operando assim ope legis.
Não pode o julgador deixar de condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento desses valores.
Neste sentido o Ac. da Relação do Porto de 11 de outubro de 2017 [13], onde se escreve: “a lei não dá qualquer margem de manobra ao julgador, impondo o artigo 14º/1 do RGIT, que a suspensão da execução da pena de prisão é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de 5 anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos” e o Ac. da Relação de Lisboa de 10 de janeiro de 2018[14], onde consta que a norma do artigo 14.º do RGIT “estabelece uma correspondência automática entre o montante da quantia em dívida e o montante da quantia a pagar como condição de suspensão da execução da pena de prisão, sem possibilidade de graduação, tendo de ser a totalidade do devido sem possibilidade de uma qualquer redução”.
A circunstância deste condicionamento ser obrigatório situa-se no âmbito da margem de liberdade das diretrizes de política legislativa criminal, tendo em vista os valores e princípios fundamentais, com relevo constitucional, em matéria tributária, que se procuram salvaguardar com tal imposição.
Por diversas ocasiões, o Tribunal Constitucional tem sido a chamado a pronunciar-se sobre esta questão, tendo sempre afirmado a inexistência de inconstitucionalidade na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em dívida e respetivos acréscimos.
Assim, o Ac. do TC nº 556/2009[15], : “Sobre esta questão, à luz da nova redacção do artigo 50.º do CP, pronunciou-se a 3.ª Secção deste Tribunal Constitucional, em Acórdão n.º 327/08, que julgou não inconstitucional a norma do artigo 14.º do RGIT, quando interpretada no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de duração da pena de prisão concretamente determinada, a contar do trânsito em julgado da decisão, da prestação tributária e acréscimos legais, com fundamento, em síntese, no seguinte:
«Continuam a ser válidas as três razões pelas quais nesta jurisprudência se afasta a objecção de que se está a impor ao arguido um dever que se sabe de cumprimento impossível e, com isso, a violar os princípios da proporcionalidade e da culpa: (i) o juízo quanto à impossibilidade de pagar não impede legalmente a suspensão; (ii) sempre pode haver regresso de melhor fortuna; (iii) e a revogação não é automática, dependendo de uma avaliação judicial da culpa no incumprimento da condição”.
Mais recentemente, o Tribunal Constitucional veio novamente decidir no acórdão nº 51/2020, de 16 de janeiro de 2020: “Não julgar inconstitucional a interpretação do artigo 14.º do RGIT, conjugado com os artigos 50.º e 51.º do Código Penal, no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão fica obrigatoriamente condicionada ao pagamento das prestações tributárias em dívida e respetivos acréscimos legais, limitado ao pedido de indemnização civil formulado pelo Estado, sem que o Tribunal proceda a um juízo de prognose de razoabilidade acerca da possibilidade da satisfação dessa condição” [16] e também no acórdão nº 546/2024, de 11 de julho de 2024, foi decidido: “Não julgar inconstitucional o artigo 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05.06, interpretado no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão é sempre condicionada ao pagamento da prestação tributária, independentemente da ponderação das circunstâncias do caso concreto”[17].
Efetivamente, mesmo que pareça pouco provável o cumprimento no momento da imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode suceder que, mais tarde, se altere a situação económica e financeira do condenado e, como tal, venha a ser possível o cumprimento da condição.
No caso em apreço, o prazo de 5 anos de suspensão da execução da pena de prisão e concomitantemente de tal pagamento, é suficientemente longo para que o mesmo se possa concretizar.
Por outo lado, a revogação da suspensão da pena de prisão não é automática, mas antes está dependente de avaliação judicial, nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 2, alínea c), do RGIT, e nos artigos 55.º e 56.º do Código Penal, pois que embora o RGIT seja lei especial, não deixa de ser aplicável aos crimes tributários o disposto no art.º 56º do Código Penal, que apenas permite a revogação da suspensão da execução da pena nos casos de infração grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta impostas ou o cometimento de crime pelo qual o agente venha a ser condenado durante o período de suspensão da execução da pena, reveladoras que as finalidades que estiveram na base dessa suspensão não foram por ela alcançadas, tendo falhado o juízo de prognose favorável ao condenado.
Bem andou assim o tribunal recorrido ao condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das quantias em falta e acréscimos legais, também devidos, pelo que improcede este segmento recursório.
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Por último, há a dizer que efetivamente, como se refere no Parecer, a parte decisória da sentença recorrida, na sua alínea c) enferma de um evidente lapso de escrita, pois que onde refere que o pagamento será do remanescente das prestações aludidas nos factos provados “nos pontos nºs 6 e 25”, pretenderia escrever-se nos “nos pontos nºs 6 e 29”.
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III – Decisão.
Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em:
I - alterar a matéria de facto provada e não provada nos termos supra decididos.
II - proceder à correção do lapso de escrita constante do dispositivo da sentença recorrida, passando a constar que o pagamento será do remanescente das prestações aludidas nos factos provados nos pontos nºs 6 e 29.
III - julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela arguida, reduzindo a pena aplicada à arguida AA para 1 (um) ano e 1 (um) mês de prisão, mantendo-se suspensa na sua execução pelo período de 05 (cinco) anos, condicionada ao pagamento, no prazo de 05 (cinco) anos a contar do trânsito em julgado do remanescente das prestações aludidas nos factos provados (pontos 6º e 29º, sem prejuízo dos valores já pagos) e demais acréscimos legais, sem prejuízo do, eventual, desconto.
IV – no demais, manter a sentença recorrida.
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Sem tributação.
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Notifique.
Guimarães, 28 de janeiro de 2025. (Decisão elaborada pelo relator com recurso a meios informáticos e integralmente revista pelos subscritores, que assinam digitalmente).
Os Juízes Desembargadores,
Pedro Freitas Pinto (Relator)
Paula Albuquerque (1ª Adjunta)
Florbela Sebastião e Silva (2ª Adjunta)
[1] Transcrição expurgada das notas de fim de página e dos negritos. [2] Cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995 e, na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 3ª Edição Atualizada, Universidade Católica Editora, 2009, anot. 3ª, 5ª e 6ª ao artigo 402º, págs. 1027/1028. [3] Refª citius 187639638. [4] Conclusão vigésima oitava. [5] vd. o recente Ac.da Relação do Porto de 30 de outubro de 2024, procº 94/23.0IDPRT.P1. Relator: Carla Carecho. [6] A Jurisprudência do S.T.J. sobre Fundamentação e Critérios da Escolha e Medida da Pena. https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/soutomoura_escolhamedidapena.pdf [7] Sentenças proferidas respetivamente nos processos nºs 6312/11.0IDPRT do JLC de Felgueiras e JLC de Guimarães, como resulta do CRC junto a fls. 300 e 301. [8] Procº 873/17.8T9SNT.L1-3, Relator: Cristina Almeida e Sousa. [9] in Direito Penal Económico e Europeu, Coimbra Editora, Vol. II, pág.484. [10] Penas e Medidas de Segurança, Almedina, pág. 45. [11] Publicado no DR, Iª série, nº 35 de 19 de fevereiro de 2015 [12] Regime Geral das Infracções Tributárias. [13] Procº 380/13.8IDAVR.P1 Relator: Ernesto Nascimento, consultável in www.dgsi.pt [14] Procº 63/07.8TELSB.L1-3. Relator: Nuno Coelho, consultável in www.dgsi.pt. [15] Processo n.º 1005/08, Relator: Joaquim de Sousa Ribeiro, consultável in www.tribunalconstitucional.pt [16] Procº nº 1384/17, Relator: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita, consultável in www.tribunalconstitucional.pt [17] Procº n.º 1132/2023, Relator: Conselheira Maria Benedita Urbano, consultável in www.tribunalconstitucional.pt