I. A atenuação especial da pena só tem lugar quando, na imagem global do facto e de todas as circunstâncias que o envolvem, a culpa do arguido ou a necessidade da pena se apresentam acentuadamente diminuídas portanto, quando o caso concreto é menos grave que o complexo ‘normal’ de casos pressuposto pelo legislador quando fixou a moldura penal abstracta aplicável ao tipo de ilícito praticado.
II. As circunstâncias de ter o arguido praticado o homicídio quando estava prestes a completar 77 anos de idade e de não ter antecedentes criminais, apontando para uma desadequação do facto à personalidade do agente, esbatem as exigências de prevenção especial, com reflexo nas próprias exigências de prevenção geral, pela menor ressonância no sentimento securitário da sociedade, sem prejuízo de estas últimas permanecerem elevadas.
III. Não obstante, o arco punitivo resultante da moldura penal abstracta aplicável ao crime de homicídio qualificado apresenta uma amplitude capaz de acomodar a pena concreta a decretar, em quantum adequado e proporcional, isto é, permite ainda fixar uma pena de prisão consentida pela culpa e imposta pelas exigências de prevenção, sem necessidade de recorrer ao instituto da atenuação especial da pena.
Acordam, em audiência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
No Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo Central Criminal de ... – ..., O Ministério Público requereu o julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, do arguido AA, com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nº 2, a), d), e) e j) do C. Penal.
Por acórdão de ... de ... de 2023, foi o arguido condenado, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nº 2, a) e e) do C. Penal, na pena de dezassete anos de prisão.
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Inconformado com a decisão, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de ... de ... de 2024, negou provimento ao recurso.
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Novamente inconformado, recorre o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
1. Por decisão proferida em 1ª instância, foi o Arguido condenado na pena de 17 anos de prisão pela prática de 1 crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelo art.º 131º, 132º, n.º 1 e n.º 2, al. a) e e), todos do Código Penal, a qual foi confirmada pelo T.R.L. por intermédio de Acórdão que negou total provimento ao Recurso do Recorrente e do qual ora se recorre para este Altíssimo Tribunal.
2. O Recorrente não pode conformar-se com as decisões contra si proferidas, por entender que as mesmas padecem de evidentes erros-vício, de errada qualificação jurídico-penal
3. No caso concreto e no que toca à factualidade atinente ao alegado cometimento, pelo Arguido, do homicídio da sua filha, consideramos que se verifica o vício de erro notório na apreciação da prova (art.º 410º n.º 2 al. c) do C.P.P.) – o qual, especificamente, incide sobre os factos dados como provados em ........15 a ........20, ........30 e ........34 a ........37.
4. Isto porque atendendo à dinâmica dos factos dados como provados e à respectiva fundamentação (e aqui seja aquela que foi apresentada em 1ª Instância, seja a que foi seguida pelo T.R.L.), mas sempre observando a bitola das regras da experiência comum, sobrevem-nos manifestamente inverosímil que o Recorrente tenha praticado tal factualidade.
5. Com efeito, foi evidente que, na ausência de prova directa que o Recorrente tivesse matado a sua filha, foi a convicção íntima do julgador reflectida nas presunções judiciais que erradamente extraiu (e muito embora o tribunal aqui recorrido tenha pretendido nega-lo) que sustentou a decisão de facto proferida em 1ª Instância e chancelada pela Relação de Lisboa.
6. Nesse particular, sendo certo que das presunções judiciais resulta claramente violado o princípio da presunção da inocência, mais certo é ainda que provas directas de que foi o Arguido quem matou a sua filha não existem, nem foram produzidas!
7. Como o tribunal de 1ª Instância reconhece (e o tribunal aqui recorrido confirma ao manter inalterada a decisão condenatória anterior), a prova dos factos essenciais para que se tivesse decidido condenar o Recorrente pelo crime que lhe foi imputado foi feita através das sobejamente conhecidas presunções judiciais.
8. A questão que o Recorrente colocou no recurso que submeteu ao T.R.L. e que, por acabar por desvelar o vício que ora nos ocupa de erro notório na apreciação da prova e que não pode deixar de suscitar perante este Altíssimo Tribunal é que, por um lado, algumas das premissas atendidas não correspondem ou aos factos provados ou à prova produzida e, por outro lado, ainda que assim não fosse, atendendo aos demais factos provados, o ter sido o Recorrente a matar a filha NÃO É a única solução plausível ou possível – o que, como já mencionámos, implica que ao decidir como decidiu, o tribunal recorrido violou de forma grosseira o princípio com assento constitucional da presunção de inocência.
9. Em primeiro lugar, e mesmo atentas as limitações existentes nesta sede recursiva quanto à análise da matéria de facto e da prova produzida, não pode o Recorrente, por uma questão de rigor e seriedade (rigor e seriedade que, salvo o devido respeito, faltaram nos anteriores acórdãos) deixar de se rebelar quanto à conclusão de que a causa de morte de BB houvesse sido esganadura! – conclusão alcançada pelas Instâncias por intermédio do relatório de autópsia constante de fls. 390 e 398 (com a correcção constante de fls. 822 e 824).
10. Este relatório NÃO foi considerado prova pericial pelo que não tem um valor probatório especial, estando no exacto patamar da demais prova produzida e constante dos autos (art. 127º C.P.P.)
11. Acresce que do próprio texto do relatório (e mesmo desconsiderando que no relatório “original”, no 1º parágrafo conclusivo, aquilo que consta é “tudo obsta a morte de CC foi devida a asfixia mecânica” – depois rectificado pelo perito para “tudo indica”), se suscitam enormes dúvidas sobre a certeza da conclusão ali alcançada…
12. É que tanto se faz constar que a causa de morte teria sido asfixia mecânica, como se diz que essa causa de morte é APENAS compatível com os dados necrópsicos encontrados – tal como estes dados são meramente compatíveis com etiologia homicida.
13. Até porque a expressão “tudo indica” não comporta, em si mesma, uma convicção totalmente absoluta (ou, melhor dito, uma certeza absoluta, mas apenas um grau eventualmente elevado de probabilidade/possibilidade) …
14. Não se desconhecendo a jurisprudência que tem entendido que a morte por asfixia mecânica é determinada por exclusão de outras causas de morte, a verdade é que no caso dos autos, como o Recorrente procurou colocar em evidência no seu anterior recurso (e do que, lamentavelmente, o T.R.L. acabou por fazer tábua rasa), o relatório de autópsia elaborado NÃO excluiu todas as demais possíveis causas do decesso da filha do Recorrente!
15. Aliás, a análise efectuada pelo médico-legista que subscreveu o relatório em apreço foi tudo menos rigorosa e meticulosa, em manifesto desrespeito pelas leges artis, como bem ilustra o relatório de análise ao relatório de autópsia, junto por requerimento datado de .../.../2023 (com ref.ª CITIUS ...), e no qual estão enumerados diversos procedimentos que deveriam ter sido observados pela entidade que procedeu à autópsia de CC e que, por motivo que se desconhece, não o foram (devidamente discriminados no corpo da motivação do presente recurso).
16. Em face de todos os procedimentos que comprovadamente deveriam ter sido feitos mas não foram e considerando que a conclusão de morte por asfixia mecânica só pode ser alcançado se todas as demais causas estiverem excluídas, forçoso será concluir que não foi esse o caso dos autos!
17. Dito de outra forma, o relatório de autópsia existente não permite concluir (como o tribunal recorrido erradamente concluiu e, já antes, a 1ª Instância também havia considerado) que tenha sido aquela a causa de morte de CC.
18. Não deixa de ser curioso que, apesar de “subscrever” as considerações tecidas pelo tribunal de 1ª Instância sobre esta matéria – nomeadamente no que concerne a reconhecer que “o estudo post mortem até poderia ter sido mais exaustivo” –, venha o tribunal aqui recorrido a desconsiderar tal afirmação, argumentando que se a causa de morte estava encontrada, então esse estudo mais exaustivo seria irrelevante…
19. Com o devido respeito, o busílis da questão é exactamente esse: POR NÃO TEREM SIDO REALIZADAS TODAS AS ANÁLISES/ESTUDOS/PROCEDIMENTOS QUE DEVERIAM TER SIDO FEITAS NÃO É POSSÍVEL EXCLUIR TODAS AS CAUSAS DE MORTE QUE NÃO A ASFIXIA MECÂNICA!
20. E se não é possível excluir perentoriamente todas as outras possíveis causas de morte, então NÃO SE PODE CONCLUIR QUE A CAUSA DE MORTE FOI ASFIXIA MECÂNICA!
21. O tribunal recorrido (como já antes a 1ª instância) deixou-se enredar num raciocínio viciado em que parte da conclusão final sobre a causa da morte para negar a relevância de outros estudos e análises (os quais, de acordo com as boas práticas da medicina legal deveriam ter ocorrido) que, precisamente, poderiam ter levado a que se concluísse que a causa de morte era outra que não a asfixia mecânica…
22. Observa-se uma claríssima violação das regras da lógica e do próprio bom-senso que têm que nortear a função de julgador, bem como o processo lógico-dedutivo que respalda a formação da convicção séria e imparcial que se exige!
23. Mas, mais grave, constata-se que, na ânsia de alcançar a condenação do Recorrente, se desvalorizam claras falhas do relatório de autópsia e se dá como válida uma conclusão que, de acordo com os ditames científicos (e que, como atrás mencionámos, até já têm assento jurisprudencial), não podia ter sido atingida…
24. Pelo que a premissa considerada pelo tribunal recorrido em iv) e atrás exposta (“A vítima foi esganada, sendo essa a causa direta e necessária da sua morte”), por não resultar da prova produzida, não poderia ter sido considerada como facto conhecido para a conclusão final sobre o facto desconhecido…
25. Quanto a valorar, como facto-base de molde a alcançar a certeza de que o Recorrente matou a filha, o facto de existirem vestígios biológicos daquele na camisola que aquela envergava, novamente se violam as regras da experiência comum!
26. Considerando que foi dado como provado (porque resultou da prova inequívoca) que, após o falecimento da filha, o Recorrente lhe mexeu, não cremos que possa servir para se fundar a convicção de que foi o Recorrente quem tirou a vida a CC e, ainda mais grave do que isso, e, portanto, mais gritantemente contrário às regras da experiência comum é o ter o tribunal recorrido ignorado que NAS CALÇAS DA FALECIDA NÃO HAVIA QUALQUER VESTÍGIO BIOLÓGICO DO RECORRENTE!
27. Ora, se, como se deu como provado, o Recorrente teria surpreendido a sua filha quando esta estava sentada na sanita – com certeza com as calças para baixo – e se quando a mesma foi encontrada pelas pessoas que o Recorrente chamou e que transitavam na rua estava com as calças e cuecas vestidas, então como se explica que nas ditas calças não existisse qualquer vestígio biológico do Recorrente?! Pura e simplesmente, de acordo com as mencionadas regras da normalidade da vida, isso não faz qualquer sentido…
28. No que concerne ao facto-base consubstanciado em terem sido verificadas, no corpo do Arguido, “lesões no seu corpo que são compatíveis tanto com o evento defensivo da vítima, como com outras justificações, e que se podem situar quer no dia do evento, quer em outro”, também entendemos que não tem, nem pode ter, o relevo que lhe foi dado pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
29. Como resulta dos elementos dos autos, tais lesões tanto podem ser compatíveis com uma actuação defensiva da falecida CC, como com outra justificação, e ainda que a produção dessas lesões tanto pode situar-se no dia do falecimento da filha do Recorrente, como em qualquer outro…
30. Ou seja, este facto conhecido (a existência de lesões no corpo do Arguido), apesar de resultar de forma inequívoca, não aponta de forma manifesta para que tenha sido o Recorrente a provocar a morte da sua filha, nem mesmo se compaginado com os outros factos conhecidos levados em consideração pelo tribunal recorrido…
31. Assim, considera o Recorrente que os factos conhecidos dos quais o tribunal recorrido extrai (na esteira do que já havia feito a 1ª Instância) a convicção de que a falecida foi morta por estrangulamento e de que tal estrangulamento foi efectivado pelo Recorrente são manifestamente insuficientes para se alcançar tal conclusão.
32. Como atrás referimos, as presunções judiciais só podem operar se, com base nos factos que resultem directamente da prova produzida, apenas se puder extrair uma determinada conclusão (precisamente, sobre o facto que se desconhece e cujo esclarecimento se procura em juízo).
33. Quando, ao invés, dos factos-base é possível retirarem-se diferentes conclusões (in casu, que a morte de CC se deveu a uma qualquer outra causa que não asfixia mecânica/esganadura e, primordialmente, que pode não ter sido o Recorrente quem provocou tal decesso), então, por imposição do princípio da presunção da inocência, não se poderia ter concluído que foi o Recorrente o autor da morte da sua filha!
34. Os factos efectivamente conhecidos são manifestamente insuficientes para que, por presunção, se possa concluir que a causa de morte foi homicídio e que esse homicídio foi perpetrado pelo Arguido!
35. Com efeito, resulta dos autos que o Recorrente, nascido em .../.../1945, tinha, à data dos factos (.../.../2022), setenta e sete anos (estava a pouco mais de um mês de completar 78 anos).
36. Resulta também dos autos e foi dado como provado em 2.1.3 que, na mesma data, a sua filha, CC, era cerca de 23 anos mais nova – tendo a idade de 54 anos.
37. Foi também dado como provado que, naquela altura, a falecida pesava 91kg e media 1,61m (facto provado em ........14).
38. Provado foi também que o alegado homicídio, por estrangulamento, terá sido levado a cabo quando a suposta vítima se encontrava sentada na sanita (facto provado em ........13), resultando do texto da decisão recorrida (concretamente de página 84 do acórdão aqui em crise) que a casa de banho onde esse evento se teria desenrolado era exígua (leia-se, de reduzidas dimensões ou, nas palavras da decisão aqui escrutinada “estamos perante um espaço rectangular muito reduzido”).
39. Tendo sido dado como provado que “o arguido aproximou-se de CC, colocou as duas mãos à volta do pescoço desta, apertando-o com extrema força, durante vários segundos, ininterruptamente” (facto ........16).
40. Provado foi ainda que, apesar de a dita vítima se ter tentado defender (e até ter, supostamente, provocado lesões defensivas no Arguido), o “arguido impedia que CC se mexesse, fazendo força contra a mesma” e que essa força teria prevenido que a filha do Recorrente conseguisse que este parasse a sua conduta (factos provados em ........17 a ........19).
41. Não obstante, foi dado como NÃO provado (em 2.2.6) que “o arguido tivesse uma compleição física superior à da vítima”.
42. Ora, tendo em linha de conta que, como vimos, resulta não provado que o Recorrente fosse fisicamente superior à vítima, mas levando em consideração que a vítima era uma pessoa muito pesada, que, apesar de poder ter sido “surpreendida” pela suposta actuação do Recorrente, tendo em conta que estava acordada e desperta quando os factos se desenrolaram, é impossível que não tivesse visto o Recorrente aproximar-se de si, como impossível é que não tivesse percepcionado o que este se prepararia para lhe fazer…
43. Tudo isto resulta da análise objectiva dos factos provados e não provados à luz das regras da experiência comum.
44. Das regras da experiência comum resulta também que o esganamento, para que produza a inconsciência da vítima e a sua morte, tem que ser mantido, de forma ininterrupta, por larguíssimos segundos, diríamos até alguns minutos.
45. Atento tudo o que acima se escreveu, é fácil concluir que aplicando as regras da experiência comum à descrição do evento homicida constante da factualidade provada e não provada, a conclusão de que o Recorrente teria conseguido sobrepor-se fisicamente à sua filha, impedindo-a de eficazmente o afastar e logrando apertar-lhe o pescoço durante o tempo necessário para lhe provocar a morte NÃO FAZ QUALQUER SENTIDO!
46. Muito menos faz sentido que tivesse logrado assim proceder sem que existissem, no próprio espaço da casa de banho, quaisquer indícios de uma conduta violenta, e sobretudo considerando que CC estava acordada e desperta e por isso teria tido tempo mais que suficiente para perceber o que o Recorrente iria fazer e opor-se a essa conduta!
47. Ou seja, atentas as regras da experiência comum (e tendo meramente em consideração o texto da decisão recorrida), não é plausível, diríamos até mesmo possível, que os factos tenham ocorrido como considerou o tribunal recorrido que decorreram!
48. Na verdade, um homem comum de quase 80 anos (como era o Recorrente) não é crível que conseguisse dominar fisicamente uma mulher com cerca de 55 anos de idade, com um peso de 91kgs e que tinha ampla capacidade de perceber o que ia acontecer, nas circunstâncias em que se deu como provado que o Recorrente teria dominado a sua filha…
49. Com efeito, bastaria, por exemplo, que se jogasse para cima do Recorrente, fazendo valer os seus 91kg, para que este não conseguisse continuar a apertar-lhe o pescoço…ou bastaria que, até instintivamente, tivesse pontapeado ou esmurrado o Recorrente na zona genital (o que seria especialmente fácil atendendo a que estava sentada num plano mais baixo que o Recorrente…) e este imediatamente cessaria a sua conduta!
50. Insiste-se e insistir-se-á ad nauseam, a descrição dos factos constante da decisão recorrida (visto que esta manteve inalterada a factualidade assente em 1ª Instância) não é lógica, nem é minimamente credível que possa ter correspondido ao que realmente se passou – isto, como vimos dizendo, de acordo com as regras da experiência comum!
51. De acordo com as mesmas regras da experiência comum, não tem qualquer nexo que a filha do Recorrente tenha perecido como se considerou que pereceu – esganada pelo seu pai, enquanto se encontrava sentada na sanita e no demais circunstancialismo dado como provado…
52. A saber, foi julgado provado um acontecimento da vida (em concreto, que o Recorrente matou a sua filha) numa versão que é claramente ilógica, contrariada pelas regras da física e das máximas da experiência!
53. Assim, resulta óbvia a verificação do vício de erro notório na apreciação da prova (art. 410º/2/c) CPP) que incide sobre os factos acima identificados (factos provados em ........15 a ........20, ........30, ........32 e ........34 a ........37) – vício que deve ser reconhecido por V. Exas.
54. Reconhecida a existência do vício aqui em causa, como é por todos consabido, duas possibilidades se perfilam: ou se considera existir matéria probatória suficiente nos autos para que seja o tribunal ad quem a saná-lo (entenda-se, a corrigir, em conformidade, a matéria de facto provada e/ou não provada); ou se entende que a prova produzida é manifestamente insuficiente para tal desiderato, caso em que terá que se ordenar o reenvio do processo nos termos do art. 426º/2 CPP.
55. In casu, consideramos, com toda a honestidade, que a prova produzida e constante dos autos não é suficiente para se resolver definitivamente a factualidade sobre que incide o convocado vício e atinente a se o Recorrente matou a sua filha e em que termos o poderia ter feito.
56. Pelo que terá que ser determinado o reenvio do processo para o Tribunal da Relação de Lisboa, que deverá ordenar o reenvio do processo para novo julgamento em 1ª Instância – novo julgamento esse que entendemos tem que ser integral, ou seja, versando sobre a totalidade do objecto do processo.
57. A decisão recorrida, que confirma a decisão de 1ª instância, padece ainda de vícios de insuficiência da matéria de facto dada como provada para a decisão e de contradição insanável no que respeita a ter o Recorrente alegadamente actuado por motivo fútil ou torpe.
58. No que respeita à alínea e) do n.º 2 do art.º 132º do C.P., pela qual foi o Arguido condenado, está em causa o “motivo torpe ou fútil” a que se refere à saciedade a motivação do acórdão proferido pelo Tribunal a quo, bem como o acórdão proferido pelo Tribunal de 1ª instância, e de que é exemplo o excerto do Acórdão recorrido transcrito na motivação supra, que se sumariza numa alegada necessidade de dinheiro da vítima e à recusa daquele em, tendo condições económicas para o efeito, dar-lhe o dinheiro por ela pedido.
59. Sucede que, compulsada a factualidade dada como provada, não se identifica um único facto que, directa ou implicitamente, enforme o motivo do Arguido Recorrente para a alegada conduta que terá praticado, e, muito menos, que demonstre que tal motivo seja torpe ou fútil!
60. O alegado móbil do Arguido (e quanto ao qual entendeu o Tribunal recorrido qualificá-lo pela alínea e) do n.º 2 do art.º 132º do Código Penal, com todas os efeitos daí decorrentes) não passa de uma convicção daquele Tribunal, e do de 1ª instância, que não encontra sustento na factualidade dada como provada.
61. Não constando da matéria dada como provada, nenhum motivo, razão ou causa para o Arguido ter praticado o crime que o tribunal recorrido considera que praticou, é evidente que tal matéria é manifestamente exígua para fundamentar a solução de direito encontrada, porquanto os factos omitem elementos essenciais para suportarem o juízo de condenação que veio a ser feito pelo Tribunal recorrido.
62. Os factos provados 2.1.6; 2.1.7; 2.1.9; ........15; ........34; ........35; ........36 e ........37 – quanto aos quais se esperava encontrar o aludido móbil que vem, depois, a ser enquadrado na al. e) do n.º 2 do art.º 132º do C.P. – não corporizam absolutamente nenhum dado ou elemento que demonstre aquilo que vem, depois, a ser defendido na motivação da decisão recorrida e que conduz à qualificação do crime de homicídio.
63. Pior, o facto ........15. deixa expressamente assente que as circunstâncias em que o Recorrente terá decidido tirar a vida à sua filha não foram apuradas – o que revela inequivocamente que nem o tribunal de 1ª instância, nem o TRL, aqui recorrido, por um lado, num plano material, tenham efectivamente apurado os alegados motivos que terão movido a conduta do Arguido e, por outro lado, num plano formal, tenham feito constar dos factos provados tais motivos.
64. Assim sendo, outra conclusão não se retira senão a de que não podia ter-se condenado o Recorrente pela prática de um crime de homicídio em acto susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade tendo em conta o motivo torpe ou fútil com base no qual agiu (al. e) do n.º 2 do art.º 132º do C.P.) se este motivo não tem qualquer respaldo na factualidade provada, sendo, ali, pura e simplesmente, omitido.
65. Mais do que uma simples insuficiência da matéria de facto para a decisão jurídica alcançada, este erro-vício concretamente cometido pelo Tribunal recorrido é mesmo um erro clamoroso que é constatável, salvo o devido respeito, pelo homem que se situa abaixo do padrão do homem-médio… pois que qualquer leitor que leia os factos provados da decisão recorrida jamais conseguirá dizer qual foi o motivo do Arguido para tirar a vida à vítima.
66. Não se retirando da factualidade assente qualquer elemento ou dado que revele o móbil do Arguido para o crime que alegadamente praticou, não pode, evidentemente, qualificar-se tal móbil por aplicação do disposto no art.º 132º n.º 2 al. e) do C.P.
67. Face ao exposto, padece o Acórdão recorrido do vício previsto no artigo 410º n.º 2 al. a) do C.P.P., vício que, segundo cremos, só pode importar o reenvio do processo, nos termos do art. 426º/2 CPP para novo julgamento.
68. Ainda que assim não se entenda, os argumentos sobreditos sempre configuram vício de contradição insanável entre a fundamentação e os factos provados (art.º 410º n.º 2 al. b) CPP, pois que, como vimos, a fundamentação da decisão recorrida abunda na caracterização do alegado móbil do Arguido para o pretenso crime que cometeu, ao passo que os factos provados, como vimos, deixam assente que a decisão sobre o cometimento do crime foi tomada em circunstâncias não concretamente apuradas – vício que expressamente se suscita e que também não poderá deixar de impor o reenvio do processo para novo julgamento.
69. Por fim, o móbil configurado na fundamentação da decisão recorrida (e ainda que, como vimos, sem qualquer respaldo nos factos assentes) é um móbil que não só não tem cabimento na concreta dinâmica familiar que vem descrita nos factos provados, como não faz qualquer sentido à luz das regras da experiência comum.
70. Resulta dos factos provados que o Recorrente tem quase 80 anos de idade, sempre residiu na ..., de onde é cidadão nacional, tem uma situação financeira estável, e vinha regularmente a ... para passar tempo com a filha, a vítima, e os netos, pernoitando na casa desta.
71. Por outro lado, resulta também dos factos provados e da fundamentação da decisão recorrida e de 1ª instância que a vítima tinha igualmente uma situação financeira estável, pese embora tenha manifestado dificuldades em conseguir continuar a manter os filhos num colégio privado e em suportar a parte que lhe cabia das obras a realizar no condomínio onde residiam.
72. Daqui, o móbil que vem alegado na decisão recorrida (reitera-se, apenas em sede de fundamentação jurídica e não da matéria de facto dada como assente) corresponderá a um pedido de dinheiro, da vítima ao Recorrente, que este terá recusado em conceder, pelo que matou aquela.
73. Ora, com o devido respeito, concluir-se que o Recorrente matou a filha porque esta lhe terá solicitado dinheiro para poder pagar a sua parte das obras no condomínio onde residia, tendo aquele recusado, não pode, por ferir o mais elementar senso comum e as regras da normalidade do acontecer, ser admissível para condenar o Arguido.
74. Com todo o respeito que é devido, mais facilmente a vítima teria um qualquer ímpeto para atentar contra a vida do pai para, finalmente, receber a parte que lhe cabia da herança daquele e da sua esposa (mãe daquela), do que o Recorrente, com quase 80 anos de idade, decidir, numa das suas estadias em ... (encontrando-se plenamente realizado por viver, reformado, na ..., dedicado à bricolage), acabar com a vida da filha por esta lhe ter pedido dinheiro.
75. Bastará a leitura da decisão recorrida, e também da decisão de 1ª instância para a qual aqueloutra remete e confirma, para rapidamente se compreender a dinâmica familiar deste pai, desta filha e dos filhos desta, que corresponde à dinâmica normal e da generalidade das pessoas e da qual o homem médio faz parte, e assim concluir ser absolutamente irracional e contrário às elementares regras da experiência comum que se dê por assente (ainda que em mera fundamentação, e não em factos provados) que o Recorrente matou a filha porque esta lhe pediu dinheiro.
76. Ou seja, ainda que esse móbil tivesse efectivo sustento na factualidade provada, sempre teria que se sustentar que, por ser manifestamente contrário às regras da experiência comum, importaria que a decisão recorrida, neste particular, estivesse também ferida do vício de erro notório na apreciação da prova a que alude o art. 410º/2/c) do CPP.
77. Ainda que V. Exas. não considerem verificarem-se os supra suscitados vícios e, por essa razão, entenderem que não se impõe a repetição do julgamento, sempre se dirá que o acórdão recorrido se mostra manifestamente desadequado seja na subsunção jurídico-penal da conduta imputada ao Recorrente, seja na aplicação do Direito para a determinação da medida concreta da pena a impor-lhe.
78. Entendeu o Tribunal recorrido estarem preenchidas as alíneas a) e e) do art. 132º/2 CP, a saber, “ser [o agente] ascendente ou ascendente, adotado ou adotante, da vítima” e “ser [o agente] determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instituto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil”.
79. Não obstante, como considera de forma pacífica a jurisprudência, as circunstâncias qualificativas plasmadas no artigo 132.º, n.º 2, do C.P. não são de aplicação automática, sendo necessário um juízo de que as mesmas são susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade por parte do agente do crime.
80. In casu, considera o Recorrente que a factualidade tida por assente não permite retirar essa especial censurabilidade da sua conduta e no que concerne especificamente à situação prevista na alínea e) (actuação motivada por razão fútil ou torpe), crê o Recorrente que nem sequer se provou qual a concreta motivação que subjazeu ao crime que lhe foi assacado.
81. O Recorrente não se conforma com a posição do T.R.L. ao consignar que a mera relação de parentesco faz presumir a especial censurabilidade que é passível de agravar a culpa no comportamento delitual e, como tal, passível de justificar a aplicação do tipo qualificado de ilícito.
82. Isto porque a situação qualificativa prevista na mencionada alínea a) só poderia relevar se tivesse sido dado como provado que, entre o Recorrente e a vítima, existia uma relação de especial proximidade e/ou afectividade – pois que, em bom rigor, só a existência desse vínculo particularmente intenso (e não da mera relação filial) significaria que, para matar a filha, o Arguido teria ultrapassado obstáculos emocionais e psicológicos acrescidos.
83. Analisada a matéria de facto dada como provada, se é verdade que se teve por assente a relação pai/filha existente (facto 2.1.1) e que o Recorrente, anualmente, visitava a sua filha e netos (facto 2.1.4), não é menos verdade que nenhum facto se provou do qual se possa extrair a existência de uma relação de particular proximidade, que não uma mera relação de consanguinidade.
84. Em bom rigor e pelo contrário, até se deu como provada a existência de uma relação particularmente conflituosa entre o Arguido e a sua filha, pautada por discussões motivadas por diferentes razões (vide factos provados 2.1.6 e 2.1.9).
85. É facto indesmentível é que o acórdão aqui recorrido não cuida (como não havia cuidado o acórdão de 1ª Instância) de densificar o porquê de ter entendido que, ao matar CC, a conduta do Recorrente se revestiu de uma particular censurabilidade ou perversidade – o que era essencial pois que, para o preenchimento de uma das circunstâncias agravantes elencadas no n.º 2 do art.º 132.º, não pode o julgador deixar de avaliar se, em concreto, se verifica uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
86. Assim, por não ter sido dado como provado que a relação entre o Recorrente e CC se pautava por um vínculo efectivamente especial e que não de mera consanguinidade, não podemos deixar de considerar que não se podia enquadrar a conduta assacada àquele no art. 132º/2/a) CP.
87. Dito de outra forma, por aqui não se evidencia que o acto homicida dado como provado desvele um grau de culpa superior ao que já resulta do próprio facto de tirar a vida a outrem que está previsto no art. 131º do mesmo diploma legal; razão pela qual, não podia ter sido feita operar a qualificativa a que alude o art. 132º/2/a) CP.
88. No que concerne à qualificação da conduta do Arguido por se ter considerado que o mesmo actuou “por motivo fútil ou torpe” (alínea e) do art. 132º/2 CP), também consideramos que esta qualificativa NÃO resulta da matéria de facto que foi dada como assente em 1ª Instância e que foi integralmente mantida pelo tribunal recorrido.
89. Com efeito, considera o Recorrente que, a nível factual, nada se provou quanto à motivação do agente.
90. Neste particular, foi dado como provado em ........36 que “o arguido bem conhecia a relação existente com a vítima, de pai e filha, e, não obstante, agiu de forma frívola, conforme acima se descreveu”. (bold e sublinhado nossos)
91. Sendo paralelamente dado como provado em ........15 que: “Em circunstâncias e momento não concretamente apurados, o arguido formulou o propósito de atentar contra a vida da sua filha.” (bold e sublinhado nossos)
92. Sem embargo do que acima já dissemos relativamente a esta factualidade aquilo que neste segmento recursivo trazemos à evidência é que, dos ditos factos dados como assentes, não se extrai qual o motivo pelo qual o Recorrente teria decidido matar a sua filha!
93. Se o que se dá como provado é que não se conseguiram apurar as circunstâncias pelas quais o Recorrente teria formulado o propósito de tirar a vida a CC (porque é efectivamente isso que está escrito no facto provado em ........15), então não se pode afirmar, em sede de enquadramento jurídico da conduta, que actuou por motivo fútil ou torpe…
94. Sendo também inegável que o que se dá como provado em ........36 é que o Arguido “agiu de forma frívola” (“conforme acima se descreveu”)… - e isto reporta-se à forma como o Recorrente teria concretizado o homicídio (esganando a sua filha com as próprias mãos enquanto esta se encontrava sentada na sanita) e NÃO aos motivos que poderiam ter subjazido à sua actuação!
95. A forma como se age é a maneira como se concretiza a conduta e NÃO a razão pela qual se decidiu praticá-la!
96. Não ignora o Recorrente que a decisão recorrida menciona, em sede de fundamentação, que o Recorrente teria matado a sua filha por questões de heranças/partilhas; porém, essa conclusão NÃO encontra respaldo na matéria de facto que foi dada como provada…
97. Até porque se é certo que se deu como provado que essa questão de heranças/partilhas era motivo de discussões entre o Recorrente e a sua filha, não é menos verdade que também se deu como provado que aqueles também discutiam frequentemente porque CC havia decidido deixar a ... e vir estabelecer-se em ...!
98. De todo o modo, o que resulta indisputável é que da matéria de facto dada como assente não se retira por que motivo decidiu o Recorrente matar CC – como vimos, o que na realidade é tido por provado é que formulou tal vontade “em circunstâncias concretamente não apuradas”.
99. Assim, por falta de agasalho factual, também não pode entender-se estar preenchida a alínea e) do n.º 2 do art. 132º CP.
100. Por fim, ainda que se considerasse estar suficientemente respaldado na matéria de facto dada como provada que a razão que teria levado o Recorrente a matar a sua filha seriam questões financeiras/relacionadas com herança (o que consideramos que manifestamente não está), esse não era, PARA O RECORRENTE, um motivo insignificante!
101. Note-se que, por diversas vezes, se diz na decisão recorrida que o Arguido era muito controlador em relação ao dinheiro – entenda-se, que estas questões financeiras se revelavam, para aquele, de uma particular importância…O que serve por dizer que, também por aqui, nunca poderia ter-se considerado que actuou por motivo fútil ou torpe!
102. Face ao exposto, cumpre referir que no acórdão recorrido se denota uma interpretação errónea das normas constantes dos artigos 131.º e 132.º, n.º1 e 2, alíneas a) e e) do C.P., mostrando-se as mesmas violadas.
103. E por isso se suscita a inconstitucionalidade da interpretação feita pelo tribunal recorrido das normas contidas no n.º 1 do artigo 132.º do C.P. e nas alíneas a) e e) do n.º 2, do mesmo normativo, no sentido de poder ter-se por qualificada a conduta homicida sem que se densifique, de facto e de Direito, a existência de uma actuação especialmente censurável, por violação do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa – inconstitucionalidade que aqui expressamente se convoca.
104. Pelo que, face ao exposto, reitera-se que não se encontram verificados os pressupostos legais que justificariam a condenação do Recorrente pelo crime de homicídio qualificado.
105. Termos em que urge alterar a qualificação jurídica dos factos dados como provados, subsumindo-os ao tipo de crime p. e p. pelo art. 131º CP.
106. Errou também o Tribunal recorrido ao desconsiderar certas circunstâncias que deviam ter sido especialmente valorizadas, concretamente, a avançada idade do Arguido e a demonstração de que padece de um quadro demencial, factores que sempre deveriam ter conduzido à aplicação do instituto da atenuação especial da pena, previsto no artigo 72.º do C.P.
107. A atenuação especial, conforme foi estipulada pelo legislador (n.º 1 e n.º 2 do art.º 72º do C.P.), não exige a verificação cumulativa dos requisitos legalmente previstos, antes devendo ser ponderada caso a caso e sendo suficiente que se verifique a diminuição significativa de qualquer um dos elementos referidos naquele artigo (a saber e mais uma vez, ilicitude do facto, culpa do agente ou a necessidade da pena) para que tenha de se observar a dita atenuação especial.
108. No caso do agente com idade avançada (idade que, na jurisprudência se define como “maior de 70 anos”, sendo de assinalar que no caso dos autos o Arguido encontra-se perto de completar 80), em particular do agente que não tenha antecedentes criminais, a necessidade da pena não existe, nem podia existir, no mesmo grau que num agente de idade mais jovem.
109. E, na nossa perspectiva, esse esbatimento da necessidade da pena opera tanto ao nível das necessidades de prevenção geral, como de prevenção especial: no primeiro caso porque o vigor punitivo exigido pela sociedade para o restabelecimento da validade da norma jurídica violada é manifestamente inferior, e no segundo caso porque o agente criminoso de idade avançada não só é menos provável que reincida (até porque, objectivamente, tem menos tempo de vida para o poder fazer que o agente de idade mais jovem), como os próprios imperativos da sua ressocialização impõem que se lhe aplique uma pena particularmente atenuada.
110. De ambos os prismas, a necessidade de punição, no caso do Recorrente – de 78 anos e condenado a uma pesada pena de 17 anos de prisão –, é evidente que se encontra especialmente esbatida – o que tem que resultar na aplicação do instituto previsto no art. 72º CP.
111. Sendo certo que já não restam muitos anos de vida ao aqui Recorrente, é de difícil compreensão como o tribunal recorrido concebeu que, face às necessidades de prevenção especial que devem ser tidas em conta aquando da determinação de uma pena, no presente caso, seja possível ao Recorrente a hipótese de ressocialização.
112. A condenação em 17 anos de prisão não vai, muito provavelmente, permitir-lhe, nunca mais, viver em liberdade, pelo que é inadmissível que o Tribunal recorrido considere que esse quantum salvaguarda e respeita as necessidades de prevenção especial.
113. O nosso ordenamento jurídico, tendo em conta o fim das penas nele estabelecido, tem de possibilitar ao condenado a vida em comunidade no pós-cumprimento da pena, sob pena de se esvaziar por completo o escopo daqueles fins! previsto no nosso ordenamento jurídico, dotar o agente de características para poder viver em comunidade após o cumprimento da sua pena.
114. Além da idade do Recorrente e consequente diminuição da necessidade da pena, o facto de este não possuir quaisquer antecedentes criminais, tendo vivido toda a sua vida dentro da normalidade, na ..., casado por mais de 53 anos com a mãe da vítima e viúvo há 3, dedicando agora o seu tempo e reforma a actividades pacatas no jardim da sua casa, e a que acresce o facto de se encontrar preso preventivamente, ao abrigo dos presentes autos, há, sensivelmente, 2 anos, constituem factores que permitem afirmar, por um lado, que aquele reúne condições para a requerida atenuação especial, e, por outro lado, que o Recorrente já experienciou as consequências do acto que se considera ter sido por ele praticado.
115. Acresce que deveria igualmente ser valorada a débil saúde física e psicológica do Recorrente na medida em que, ainda que em estado inicial, o mesmo padece de demência, conforme resulta do documento clínico de fls… e que foi junto aos autos na sessão de julgamento do dia .../.../2023 (conforme acta respectiva), mas que, para mais fácil análise, aqui se junta como Doc. 1.
116. Tal relatório, conforme se demonstra à saciedade na motivação do presente recurso, atesta a vulnerável condição psicológica do Recorrente, condição essa que não foi devidamente valorada nem pelo Tribunal de 1ª instância, nem tão pouco pelo Tribunal recorrido.
117. Dada a significativa idade do Recorrente, a debilidade da situação mental em que se encontra (fruto não só da sua idade mas, simultaneamente, à sua vivência privada de liberdade há 2 anos, que em muito já o prejudicou, tendo, inclusive, já sido punição suficiente), a já reconhecida baixa necessidade da pena (note-se, reconhecida por ambos os Tribunais) e o direito que assiste a qualquer indivíduo de uma digna reintegração em sociedade, não pode deixar de se referir que outra ponderação tinha (e tem) de ser realizada!
118. Face a tudo o exposto, denota-se com evidência que nos encontramos perante circunstâncias que, mais do que meras atenuantes, importam, em virtude de implicarem uma significativa diminuição da necessidade punitiva, a atenuação especial da pena – o que, tendo o Tribunal recorrido simplesmente omitido, conduz à violação do art.º 72º do C.P.
119. Relativamente à determinação do quantum punitivo, considera o Recorrente que o Tribunal recorrido lhe aplicou uma pena manifestamente excessiva, desde logo, porque ao passo que entende que as exigências de prevenção especial são de intensidade média baixa, a que acresce a ausência de antecedentes criminais, a idade do arguido e a sua integração social, veio a condená-lo numa pesada pena de 17 anos de prisão.
120. Dando por reproduzido tudo quanto acima dissemos a propósito do instituto da atenuação especial, entendemos que, no caso concreto, as necessidades de prevenção especial são baixas por estarmos perante um indivíduo de 78 anos (!), sem qualquer tipo de antecedentes criminais, que vivia uma vida pacata na ... e sem quaisquer tipo de problemas e que, evidentemente, possui o direito de, após o cumprimento da pena que lhe vier a ser aplicada, ser devida e efectivamente reintegrado na sociedade.
121. Ora, se o fim de qualquer pena visa a reabilitação e resinserção dos indivíduos na sociedade, a verdade é que tendo em consideração a idade do Recorrente (78 anos), aplicar-lhe uma pena de prisão de 17 anos significa, com toda a probabilidade, que esta será uma punição perpétua – ou seja, que irá passar o resto da sua vida em situação de reclusão prisional! – em clara violação do artigo 30º n.º 1 da C.R.P.
122. Outro factor que foi mencionado na decisão recorrida, mas puramente ignorado pelo tribunal recorrido para efeitos de ponderação da medida punitiva prende-se com o arrependimento do Arguido (cfr. páginas 92 e 93 do acórdão recorrido) uma vez que se faz consignar na decisão que, imediatamente após a morte da filha (considerando, mas não se concedendo, que foi o Recorrente quem a matou), o Arguido teve aquilo a que não podemos deixar de apelidar como evidentes manifestações de arrependimento.
123. Dito de outra forma, tendo o tribunal recorrido chancelado a decisão de 1ª Instância de que havia sido o Recorrente a provocar a morte de CC, não poderia ter sido alheio aos sentimentos que, conforme escreveu, este manifestara imediatamente após o facto delitual.
124. Ao valorar erradamente alguns dos elementos que observou e ao ignorar outros que não podia deixar de ter valorado, é evidente que o acórdão recorrido violou o art. 71º CP.
125. A baixa necessidade de prevenção especial (note-se, assumida quer pela 1ª Instância, quer pelo tribunal ora recorrido) face à já extensa idade do Recorrente, o facto de o mesmo, inclusive, já se encontrar privado de liberdade há cerca de 2 anos ao abrigo dos presentes autos, a falta de antecedentes criminais e o ter genuinamente manifestado uma postura que não pode não ser vista como de sincero arrependimento, todas estas circunstâncias deveriam e devem ser especialmente atendidas na fixação da medida da pena.
126. Motivo pelo qual, e independentemente de se manter a condenação do Recorrente por homicídio qualificado ou de se o condenar pelo crime de homicídio simples, sempre deverá a pena a aplicar-lhe situar-se muito próximo do limite mínimo legalmente previsto.
127. Sendo de aplicar a atenuação especial, como se defende na impugnação supra, considera-se que a pena a estabelecer nunca pode ser superior a 5 anos de prisão, caso em que se verificam todos os pressupostos para a suspensão da respectiva execução – decisão que melhor se coaduna com o fim de reintegração do agente estabelecido pelo art. 40º CP.
128. Como anteriormente referido, e que aqui se dá por integralmente reproduzido, o Recorrente não tem qualquer antecedente criminal, sendo que, ao longo de toda a sua vida, viveu dentro dos parâmetros na normalidade e sem qualquer comportamento incompatível com a lei, na ..., reformado, dedicado a actividades de bricolage.
129. Ademais, o Recorrente encontra-se privado da sua liberdade, em prisão preventiva, há 2 anos, pelo que se entende que já sentiu e experienciou todas as consequências do crime, tendo inclusivamente uma deterioração agravada do seu estado de saúde física e mental, como se comprova pelo Relatório psiquiátrico atrás referido.
130. Nessa medida, por tudo quanto acima dissemos, parece-nos evidente que, presentemente, é mais que possível fazer um juízo de prognose favorável de que a mera censura do facto acrescentada de pena suspensa na execução é suficiente para satisfazer as necessidades de prevenção – seja de prevenção geral, seja de prevenção especial.
131. Ademais e não podemos deixar de o referir, a suspensão da execução da pena, por permitir que o Recorrente regresse ao meio comunitário, permitindo-lhe gozar, em liberdade e mediante plano de resinserção, os poucos anos de vida que terá pela frente, é a solução que se mostra mais humana e não apenas a mais adequada do ponto de vista legal!
132. A avançada idade do Recorrente, o afastamento do país onde nasceu e reside, e, sobretudo, a grave deterioração da sua saúde física e mental, em meio prisional, com o necessário enfraquecimento das relações sociais e pessoais contribuirá negativamente para o esperado (pois que, como dissemos, o Arguido foi condenado a prisão perpétua) processo de reintegração.
133. Assim, deve ser determinada a suspensão da execução da pena única que vier a ser aplicada ao Recorrente.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser concedido provimento ao presente recurso, com as necessárias consequências legais.
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O recurso foi admitido por despacho de ... de ... de 2024.
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Respondeu ao recurso a Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto do Tribunal da Relação de Lisboa, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:
1. O arguido AA recorre do acórdão proferido a ... de ... de 2024, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que negou provimento ao recurso e confirmou integralmente o acórdão da 1ª instância de ... de ... de 2023;
2. O recorrente na sua motivação retoma e repete argumentação que já expendera sem sucesso no seu recurso do acórdão da 1ª instância, conhecido pelo Tribunal da Relação;
3. O Supremo Tribunal de Justiça não está impedido de conhecer de nulidades não sanadas e dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do C.P.P.;
4. Contudo, não padece o acórdão recorrido dos alegados vícios previstos no art. 410º, nº 2, a) a c), como bem decidiu o acórdão recorrido;
5. A subsunção-jurídico penal ao crime de homicídio qualificado, previsto nos arts. 131º, 132º, nº 1 e nº 2, als. a) e e), do C. Penal não merece censura, nem a interpretação está ferida de inconstitucionalidade, como bem se decidiu no acórdão recorrido;
6. A pena única de 17 anos de prisão aplicada em 1ª instância e mantida no acórdão recorrido, mostra-se justa, adequada e proporcional às necessidades de prevenção geral e especial, não viola o princípio da proporcionalidade e da proibição de excesso, e, por isso, deverá ser mantida pelo colendo Supremo Tribunal de Justiça.
O presente recurso não merece, em nosso entender, provimento, devendo ser confirmado o acórdão recorrido.
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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal emitiu douto parecer, não obstante ter sido requerida a audiência, afirmando dever ser rejeitado o recurso na parte relativa à invocação de vícios da decisão e julgado improcedente na parte restante.
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Cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal, veio o Ilustre Mandatário do arguido lembrar ter requerido a audiência de julgamento, e responder ao parecer, afirmando ter dado cabal cumprimento à forma e substância de sindicar os vícios da decisão, inexistindo, por isso, fundamento para a rejeição do seu conhecimento, afirmando manter o entendimento de que a qualificação do factos não pode ir além do homicídio previsto no art. 131º do C. Penal, mantendo o entendimento de que a pena de 17 anos de prisão é excessiva esvaziando as finalidades da prevenção especial e equivalente a uma pena perpétua, antes devendo ser especialmente atenuada, sendo inconstitucional o entendimento, do Ministério Público, de estar vedado ao Supremo Tribunal de Justiça o conhecimento desta questão, por não ter sido suscitada no recurso interposto para a Relação, e concluiu pelo provimento do recurso.
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Colhidos os vistos, realizou-se a audiência, após o que, o tribunal reuniu e deliberou nos termos que seguem.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A) Factos provados
A matéria de facto provada proveniente da 1ª instância, não alterada pela Relação, é a seguinte:
“(…).
I
2.1.1 O arguido AA é progenitor de CC.
2.1.2 CC vivia em ... há cerca de 30 anos e teve quatro filhos: DD, de 17 anos de idade, EE, de 24 anos de idade, FF, de 19 anos de idade, e GG, de 10 anos de idade, à data dos factos que seguem.
2.1.3 CC tinha 54 anos de idade e vivia com três dos seus quatro filhos: DD, FF e GG na residência sita na ... Direito, em ....
2.1.4 Por seu turno, o arguido vive na ... e viajava a ... com a periodicidade de uma vez por ano para visitar a filha CC e os netos.
2.1.5 Em ... de ... de 2022, o arguido viajou de avião, proveniente da ... para ..., tendo permanecido, desde então, na residência da filha CC.
2.1.6 A relação entre o arguido e a filha CC foi sempre pautada por conflitos e discussões, por motivos relacionados com a decisão daquela ter manifestado vontade em ficar a residir em ..., e pelo facto de CC, após a morte da mãe, mulher do arguido, ocorrida durante o ano de ..., ter manifestado junto deste a sua vontade, em receber, pelo menos, parte do dinheiro da herança que lhe competia, ao que o arguido ia referindo que a herança só seria disponibilizada após a sua morte.
2.1.7 CC queria fazer obras em sua casa.
2.1.8 No dia ... de ... de 2022, cerca das 20:00 horas, o arguido jantou com a sua filha CC, e as netas DD e FF, naquela residência.
2.1.9 Momentos antes, o arguido e CC tiveram uma discussão verbal em frente a DD e FF.
2.1.10 Por volta das 21:30 horas, CC disse às suas filhas que se iria deitar, pois estava com dores de barriga.
2.1.11 Cerca das 22:00 horas, DD e FF ausentaram-se da residência, tendo permanecido apenas no seu interior o arguido e a CC, a qual se ficou a dormir no quarto de DD.
2.1.12 O arguido ficou sozinho naquela residência com CC.
II
2.1.13 Em momento situado entre as 22:30 h e hora não concretamente apurada, o arguido dirigiu-se à casa de banho, onde se encontrava CC, surpreendendo-a enquanto a mesma se encontrava na sanita.
2.1.14 CC era muito pesada, sendo que ........2022, apresentava obesidade classe II, tinha 161 cm de altura e pesava 91 kg.
2.1.15 Em circunstâncias e momento não concretamente apurados, o arguido formulou o propósito de atentar contra a vida da sua filha.
2.1.16 De imediato, o arguido aproximou-se de CC, colocou as duas mãos à volta do pescoço desta, apertando-o com extrema força, durante vários segundos, ininterruptamente, causando-lhe dores e impedindo-a de respirar ou pedir ajuda.
2.1.17 Enquanto o arguido mantinha as mãos apertadas à volta do pescoço de CC, esta tentou defender-se da conduta do arguido arranhando-lhe os antebraços.
2.1.18 Ao mesmo tempo, o arguido impedia que CC se mexesse, fazendo força contra a mesma.
2.1.19 Contudo, CC não logrou que o arguido cessasse a sua conduta, em face da força imprimida por este contra o seu corpo e as dores e lesões sofridas no pescoço, impedindo-a de respirar.
2.1.20 Em consequência da conduta direta e necessária do arguido, CC deixou de respirar e perdeu os sentidos, entrando em paragem cardiorrespiratória.
2.1.21 Em seguida, sabendo que a filha se encontrava sem vida, o arguido pegou no corpo de CC, arrastou-o para o chão da casa de banho, virou-o de barriga para cima, esticou as pernas e os braços ao longo do corpo, encenando um aspeto de normalidade, de forma a encobrir a sua conduta.
III
2.1.22 Alguns minutos depois, pelas 23:50 horas, o arguido saiu da residência, dirigindo-se apeado à via pública, junto à ..., em ..., local onde em língua francesa/italiana, interpelou um grupo de três ou quatro transeuntes que ali se encontrava.
2.1.23 Nessa ocasião, o arguido pediu que lhe indicassem qual o número de emergência médica, pois segundo o mesmo a filha encontrava-se desmaiada no interior da residência, na casa de banho.
2.1.24 De imediato, pelas 23:54 horas, um dos transeuntes que ali se encontrava efetuou chamada de emergência para o 112, tendo sido dada indicação pelo operador para efetuar manobras de reanimação a CC.
2.1.25 Assim, o arguido indicou àqueles transeuntes para que o acompanhassem à residência de CC, onde a mesma se encontrava, o que os mesmos acederam, ali se deslocando.
2.1.26 Quando se aproximaram do local, CC encontrava-se no interior da casa-de-banho, inanimada, virada de barriga para cima, com os braços ao longo do corpo e pernas estendidas junto ao solo.
2.1.27 O arguido e uma das transeuntes, HH, permaneceram no exterior daquela divisão, enquanto os demais ficaram na casa de banho, junto à vítima, a seguir as orientações dadas pelo operador do INEM, via telefone.
2.1.28 Poucos minutos depois, compareceu no local uma equipa do INEM, verificando que a vítima CC já se encontrava cadáver, em paragem cardiorrespiratória ocorrida em momento antes da chegada dos elementos do INEM.
2.1.29 A PSP também compareceu no local, tendo o arguido afirmado aos Agentes da PSP que encontrou CC desmaiada no chão.
IV
2.1.30 Em consequência da conduta empreendida pelo arguido sobre CC, esta sofreu
Na cabeça:
• Área de infiltração sanguínea na região occipital com cerca de 8cmde diâmetro;
Pescoço
• Tecido celular subcutâneo: Infiltrações sanguíneas nos terços médios das faces laterais bilaterais
• Músculos: Infiltrações sanguíneas nos terços médios dos músculos esternocleidomastóideas bilaterais;
• Osso Hioide: Fraturas de ambos cornos menores, com bordos irregulares, infiltrados de sangue e infiltração sanguínea dos tecidos adjacentes;
• Estruturas Cartilagíneas: Fratura/laceração da face anterior da cartilagem tiroidea, com Infiltração sanguínea;
• Glândula Tiroide: Parênquima com infiltrações sanguíneas bilaterais;
2.1.31 As fraturas do osso hioide, fratura/laceração da cartilagem tiroidea e as infiltrações sanguíneas dos tecidos subjacentes determinaram como consequência direta e necessária a morte de CC. As fraturas do osso do hioide, da fratura/laceração da cartilagem tiroidea e as infiltrações sanguíneas dos tecidos subjacentes são caraterísticas de constrição externa devida a ação da mão: esganadura, são compatíveis com ação extrínseca de terceiros sobre o pescoço da vítima e não resultantes nem de uma asfixia posicional, nem autoinfligida.
2.1.32 Em ........2022, o arguido apresentava as seguintes lesões: escoriações e equimoses recentes no antebraço e braço direito, com cerca de 4 a 5 dias de consolidação e equimose no joelho direito, as quais resultaram da ação da vítima na defesa da conduta do arguido.
2.1.33 Na camisola de manga curta de cor branca, sem qualquer etiqueta visível que CC envergava e com a qual deu entrada no ..., foi localizado um perfil único de ADN idêntico ao perfil do arguido.
V
2.1.34 O arguido agiu com o propósito de tirar vida de CC, bem sabendo que ao apertar-lhe o pescoço com força, zona vulnerável e vital, por ser essencial à respiração, lhe causaria a morte como causou, o que quis.
2.1.35 O arguido sabia que tinha um ascendente sobre a vítima, usando-a em seu benefício, e sem permitir que a vítima conseguisse eficazmente se defender.
2.1.36 O arguido bem conhecia a relação familiar existente com a vítima, de pai e filha, e, não obstante, agiu de forma frívola, conforme acima se descreveu.
2.1.37 O arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
[Das condições pessoais do arguido:]
........38 O arguido não possui antecedentes criminais.
........39 O arguido AA é natural de ..., mas cresceu na ... onde seu pai foi colocado como cônsul na embaixada de ..., quando era ainda criança.
2.1.40 O relacionamento entre os pais é qualificado como estável, harmonioso e sem conflituosidade significativa ou separações, e dele nasceram mais cinco irmãos.
2.1.41 O agregado dispunha de uma situação económica estável, e os pais investiram na educação e acompanhamento dos descendentes, de acordo com uma educação tradicional e normativa.
2.1.42 Contudo AA fez um fraco investimento escolar, e contrariando o desejo dos pais para que prosseguisse os estudos, abandonou a escola aos 14 anos, após completar o equivalente ao 8º ano. Atribuiu esta opção a um comportamento rebelde e reivindicativo característico da idade, que não teve outro tipo de implicações no contexto familiar ou social.
2.1.43 A nível laboral fez alguns trabalhos de cariz indiferenciado, durante vários anos. Além disso, exerceu funções durante 25 anos para um organismo governamental que prestava apoio a emigrantes italianos, atividade que manteve até à pré-reforma, vindo posteriormente a reformar-se, sem ter desempenhado outra atividade laboral remunerada.
2.1.44 No âmbito da sua vida pessoal, AA casou há cerca de 53 anos, tendo mantido uma relação estável, próxima e afetivamente gratificante com a esposa ao longo dos anos e sem registo de desentendimentos ou separações. Desta relação nasceram um filho, que reside atualmente na ..., e a filha, vitima no presente processo, e que optou por residir em ... há cerca de 30 anos.
2.1.45 A opção desta filha em se autonomizar da família de origem para residir num país estrangeiro, como ..., não agradou ao arguido, por questões de princípios e pelo valor que atribuía ao sentido de união familiar. A decisão da filha deu causa a alguns constrangimentos, na época, entre ambos, que se traduziram ao longo dos anos em desentendimentos pontuais, expressos a nível verbal e argumentativo.
2.1.46 O arguido AA e o cônjuge deslocavam-se regularmente a ... para visitar esta filha e os netos que residiam com a mesma, à data dos factos com 19, 17 e 10 anos, e que nasceram de duas relações afetivas da filha.
2.1.47 O falecimento da esposa do arguido ocorreu há cerca de 3 anos.
2.1.48 O arguido AA passou por uma fase depressiva após a morte da esposa, em que se isolou socialmente, e passou a ocupar-se sobretudo com tarefas de bricolage ou de manutenção da habitação familiar, na ....
2.1.49 Cuidava igualmente dos assuntos relativos a quatro apartamentos próprios, que arrendava, e da casa em que vivia, e lhe proporcionavam um rendimento mensal que lhe permita viver em boas condições financeiras.
2.1.50 À data dos acontecimentos que motivaram a atual situação jurídico penal, AA residia sozinho na sua habitação na ... e ocupava o seu quotidiano com as atividades acima mencionadas encontrando-se satisfeito com o modo de vida que levava e a sua preferência por viver sozinho.
2.1.51 A família próxima do arguido tem-lhe dado apoio, sendo que os netos o visitam no ... de forma irregular e à medida das suas disponibilidades.
2.1.52 Como projeto futuro, o arguido menciona pretender regressar à ..., retomar as atividades que desenvolvia no país, e dar suporte aos netos.
(…)”.
B) Factos não provados
A matéria de facto não provada proveniente da 1ª instância, não alterada pela Relação, é a seguinte:
“(…).
I
2.2.1 Que a relação entre o arguido e a filha CC tivesse sido sempre distante.
2.2.2 Que CC tivesse manifestado junto do arguido a sua vontade em tomar posse de toda a parte da herança que lhe competia.
II
2.2.3 Que tivesse sido no momento em que verificou que se encontrava sozinho naquela residência com CC que o arguido formulou o propósito de atentar contra a vida desta.
2.2.4 Que o arguido tenha praticado os factos, no máximo, até às 23h.
2.2.5 Que o arguido tivesse colocado sobre o corpo da vítima o seu joelho direito.
V
2.2.6 Que o arguido tivesse uma compleição física superior à da vítima.
2.2.7 Que o arguido tivesse agido de forma fria.
“(…).
C) Fundamentação quanto à qualificação jurídico-penal dos factos provados
“(…).
Pugna o recorrente pela sua total absolvição uma vez que, a proceder a sua impugnação da matéria de facto (ampla e restrita), não é imputável ao arguido a prática do crime por que foi condenado em primeira instância.
Não obstante, e para o caso do tribunal ad quem assim não o entender, o recorrente pugna pela desqualificação do crime de homicídio que lhe é imputado porque, na sua tese, não nos deparamos com um tipo de culpa agravada que preencha os critérios de especial censurabilidade ou perversidade para efeitos de realização do tipo qualificado respectivo.
Por um lado, porque não consta da factualidade dada por provada que a vítima e o arguido tenham discutido na casa de banho por qualquer questão relacionada com dinheiro ou herança. Ao que acresce a circunstâncias das alíneas a) e e) do art.º132 não serem de aplicação automática.
Assim, e porque não se provou que a discussão ao jantar tenha versado sobre dinheiro não poderia o tribunal recorrido ter considerada verificada a qualificativa prevista na referida alínea e) do art. º132 do C. Penal, isto é, o motivo torpe ou fútil.
Apreciando.
O arguido foi condenado em primeira instância como autor de um crime de homicídio p. e p. pelo art.º131 e art. º132 n. º2 a) e e), ambos os preceitos do C. Penal.
Rezam tais preceitos o seguinte:
“Artigo 131º
Homicídio
Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.”
“Artigo 132º
Homicídio qualificado
1 – Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.
2 – É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;
(…);
e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;
(…)”
No que se reporta ao tipo legal base assim como aos tipos privilegiados ou agravados que lhe sucedem, o bem jurídico protegido pela lei penal é a vida humana de pessoa já nascida. Estamos perante um crime de dano (da bem jurídica vida) e de resultado (a morte como resultado da acção). No que toca ao elemento subjectivo do tipo esta abarca qualquer das modalidades do dolo (directo, necessário ou eventual).
Debruçando-nos sobre o tipo qualificado do crime de homicídio consagrado no art.º132 do C. Penal verificamos que o legislador adopta um clausula geral expressa no n. º1 daquele preceito, a qual exige que a acção do agente revele uma culpa agravada que resulta de uma especial censurabilidade ou perversidade dessa mesma conduta.
E no n. º2 desse mesmo preceito legal enunciam-se exemplos padrão.
Tal técnica exige que o julgador, caso a caso, tenha que aferir se determinado comportamento, faça ou não parte dos exemplos padrão constantes da já citada norma, revela um grau agravado da culpa do agente por espelhar uma maior censurabilidade ou perversidade da conduta.
Segundo defende o Prof. Figueiredo Dias, «muitos dos elementos constantes das diversas alíneas do art. 132º nº 2, em si mesmos tomados, não contendem directamente com uma atitude mais desvaliosa do agente, mas sim com um mais acentuado desvalor da acção e da conduta, com a forma de cometimento do crime. Ainda nestes casos, porém, não é esse maior desvalor da conduta o determinante da agravação, antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente, é dizer, o especial tipo de culpa do homicídio agravado. Só assim se podendo compreender e aceitar que haja hipóteses em que aqueles elementos estão presentes e, todavia, a qualificação vem em definitivo a ser negada». E, a fls. 29, «o pensamento da lei é, na verdade, o de pretender imputar à “ especial censurabilidade “ aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “ perversidade “ aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas».
Vejamos então se, in casu, estamos ou não perante um crime de homicídio qualificado.
Fixada a matéria de facto nos termos supra, dúvidas inexistem quanto à relação de parentesco existente entre o arguido e a vítima, sendo aquele ascendente desta em primeiro grau.
A propósito desta alínea a) do n. º2 do art. º132 do C. Penal, Paulo Pinto de Albuquerque em nota 4 ao mesmo preceito, in Comentário do Código Penal (Editora Universidade Católica), considera que “Os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade.”
Isto é, inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, e não se alcançando a presença de um crime privilegiado, o legislador considera que a conduta/acção de matar o seu ascendente ou, in casu, o descendente, exigem do agente uma intencionalidade marcada de uma maior intensidade (pois só assim se compreende que sejam ultrapassados os obstáculos emocionais e psicológicos que a relação consanguínea/afectiva pressupõe), e, consequentemente, registar um agravamento da culpa.
No caso em apreço, é o próprio arguido, em sede de motivações, que manifesta a sua ligação familiar à filha e netos, visitando-os anualmente e alojando-se na residência deste agregado. Assim sendo, e não constando da factualidade provada que a relação de consanguinidade não era acompanhada de uma relação emocional e afectiva, bem andou o tribunal a quo ao considerar preenchida da alínea a) do n. º2 do art.º132 do C. Penal, registando assim, correctamente, um acréscimo no grau de culpa do arguido, resultante do grau de intencionalidade revelado no ato.
No que toca à alínea e) do mesmo n.º2 do art. º132 do C. Penal, face à factualidade assente que deu como verificada a relação tensa entre pai e filha, nomeadamente, mercê de questões financeiras, a qual motivadora da conduta do arguido, vejamos se a razão que deu aso à prática do ilícito se enquadra no conceito de motivo torpe ou fútil.
A este propósito julga-se pertinente a citação de um trecho do Acórdão do STJ de 26/11/2008 que refere: “A propósito desta circunstância agravante qualificativa, refere-se a fls. 39 do Comentário Conimbricense do Código Penal que “O exemplo padrão …, diferentemente do que sucede com os anteriores, estruturado com apelo a elementos estritamente subjectivos, relacionados com a especial motivação do agente. … Ser determinado a matar por qualquer motivo torpe ou fútil significa que o motivo da actuação avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana”.
E, mais adiante: “Dado o carácter estritamente subjectivo das situações referenciadas, dir-se-ia que elas valem imediatamente como censurabilidade ou perversidade do agente e, por conseguinte, a sua natureza de exemplo-padrão se encontra extremamente (quando não completamente) esbatida. Mas não é exacto. Ainda aqui podem existir motivações não expressamente descritas que, pela sua estrutura valorativa correspondente a uma das descritas, permitam a qualificação. Como pode, de outro lado, a situação ser uma tal que a motivação, se bem que expressa, não possa em definitivo valer como especial censurabilidade ou perversidade, maxime por se ligar a um estado de afecto particularmente intenso (v.g. o ciúme ligado à paixão)”.
Motivo fútil é o motivo de importância mínima, o motivo sem valor, insignificante para explicar ou tornar aceitável, dentro do razoável, a actuação do agente do crime.
Motivo fútil será aquele motivo subjectivo que pela sua insignificância ou frivolidade, é desproporcionado com a reacção homicida (neste sentido, cfr. Leal Henriques e Simas Santos in Código Penal Anotado, 1996, II volume, pág 44).
Como diz Nelson Hungria, pág. 164 “o motivo é fútil quando notavelmente desproporcionado ou inadequado, do ponto de vista do homo medius, e em relação ao crime de que se trata. Se o motivo torpe revela um grau particular de perversidade, o motivo fútil traduz o egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai até à insensibilidade moral”.
No mesmo sentido, refere Bettiol in Direito Penal, Parte Geral, III, ed. port., 131 e segs: “Se por motivo entendermos o antecedente psíquico da acção, teremos um motivo fútil sempre que seja possível estabelecer uma desproporção manifesta entre a gravidade do facto e a intensidade ou a natureza do motivo que impeliu à acção. Trata-se, como diz Maggiore, de uma insensibilidade moral que tem a sua manifestação mais alta na brutal malvadez”
Fútil será, portanto, aquele motivo que se apresenta com razão subjectiva desproporcionada com a gravidade da infracção penal ou “o motivo frívolo, leviano, a ninharia que leva o agente à prática do crime, na inteira desproporção entre o motivo e a reacção homicida” (cfr. ac. deste STJ de 15.12.2005, in Proc. 05P2978).
Remetendo-nos novamente para o teor do Acórdão do STJ acima identificado, sublinha-se que “(…) se é certo que, para haver motivo fútil para efeitos da alínea c) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal não basta que a reacção seja desproporcionada ao condicionalismo que a despertou e que só o exame ponderado de todas as circunstâncias é que pode determinar se o agente actuou ou não por motivo insignificante, sem valor (cfr. Ac. deste STJ de 06.03.1991 in AJ nº 17, proc. 41666), a verdade é que, do exame do circunstancialismo concreto – atrás descrito e constante da matéria assente - em que os factos foram praticados, resulta não só que o sentimento que determinou o arguido é claramente desproporcionado com a gravidade do crime que cometeu, mas também que o motivo que despertou a prática do crime não é capaz de explicar ou tronar aceitável, dentro do razoável a actuação do arguido.”.
Perante a matéria de facto provada, a qual oportunamente acima transcrita e para onde nos remetemos, sobretudo o motivo do crime (questões monetárias) quando resultou do julgamento que o arguido, ele próprio, não tinha dificuldades económicas, e a forma como aquele foi praticado (na casa de banho, quando a vítima, obesa, se encontrava na sanita), ressalta a natureza da personalidade do arguido (controladora no que se reporta aos bens materiais) e que este agiu com manifesto desprezo e absoluta falta de respeito pela vida humana, revelando tal conduta uma especial censurabilidade. Estamos, pois, perante um circunstancialismo que revela que “o sentimento que determinou o arguido é claramente desproporcionado com a gravidade do crime que cometeu – e assim, constitui motivo fútil nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 132º-2-d) do C.P. (cfr. Teresa Serra in Homicídio Qualificado, pág. 75).
(…)”.
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Âmbito do recurso
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência.
Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.
Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são, por ordem de precedência lógica:
- A existência de vícios da decisão;
- A incorrecta qualificação jurídica dos factos;
- A atenuação especial da pena;
- A excessiva medida da pena de prisão e a sua substituição.
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Questão prévia
Dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça e da irrecorribilidade parcial do acórdão da Relação de Lisboa
1. Decorre do disposto no nº 3 do art. 414º do C. Processo Penal, que o despacho do Tribunal da Relação de Lisboa que admitiu sem restrições o recurso, não vincula este Supremo Tribunal, cumprindo assim, verificar se, in casu, existem limitações à recorribilidade do acórdão recorrido.
O princípio geral no processo penal é o da recorribilidade das decisões judiciais, estabelecendo o art. 399º do C. Processo Penal que, [é] permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.
Dispõe o art. 432º do C. Processo Penal, com a epígrafe «Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça», na parte em que agora releva:
1 – Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em 1ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º;
b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400º;
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal de júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º;
d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.
(…).
Por seu turno, resulta do disposto no art. 434º do C. Processo Penal que, os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo das situações previstas nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 432º do mesmo código.
O actual regime do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça [redacção da Lei nº 94/2021, de 21 de Dezembro, entrada em vigor em 21 de Março de 2022, dada ao art. 432º do C. Processo Penal] estabelece que os vícios da decisão e as nulidades que não devam considerar-se sanadas, previstos nos nºs 2 e 3 do art. 410º do C. Processo Penal, só podem fundamentar recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdão da relação proferido em 1ª instância (alínea a) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal), ou de acórdão, em recurso per saltum, do tribunal de júri ou do tribunal colectivo que tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos (alínea c) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal).
O mesmo não acontece nos casos subsumíveis à previsão da alínea b) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal. Aqui, estabelece-se a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações,, em recurso, nos termos do art. 400º do C. Processo Penal, não se contemplando como fundamento do recurso, os vícios e as nulidades previstas nos nºs 2 e 3 do art. 410º do mesmo código.
Concordantemente, o já referido art. 434º do C. Processo Penal [igualmente na redacção da Lei nº 94/2021, de 21 de Dezembro], restringe o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça ao reexame da matéria de direito, apenas excepcionando da restrição imposta o disposto nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 432º.
É pois, seguro, sendo este entendimento pacífico deste Supremo Tribunal (entre outros, acórdãos de 24 de Abril de 2024, processo nº 2634/17.5T9LSB.L1.S1, de 29 de Fevereiro de 2024, processo nº 9153/21.3T8LSB.L1.S1, de 29 de Fevereiro de 2024, processo nº 864/20.1JABRG.G1.S1, de 15 de Fevereiro de 2024, processo nº 135/22.9JAFUN.L1.S1, de 7 de Dezembro de 2023, processo nº 356/20.9PHLRS.L1.S1, de 8 de Novembro de 2023, processo nº 651/18.7PAMGR.C3.S1, de 1 de Março de 2023, processo nº 589/15.0JABRG.G2.S1 e de 23 de Março de 2022, processo nº 4/17.4SFPRT.P1.S1, todos in www.dgsi.pt), que os vícios e as nulidades previstas nos nºs 2 e 3 do art. 410º do C. Processo Penal, não podem, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 432º, nº 1, b) e 434º, ambos do mesmo código, fundamentar recurso de acórdãos da relação, tirados em recurso.
O recurso dos autos, interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, tem por objecto o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu o recurso interposto do acórdão proferido pelo tribunal colectivo do Juízo Central Criminal de Lisboa, que condenou o arguido na pena de dezassete anos de prisão, confirmando-o.
Encontrando-nos, portanto, no âmbito da previsão da alínea b) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal, pelas sobreditas razões, os vícios decisórios invocados pelo arguido não podem servir de fundamento ao recurso interposto.
Ressalvado fica, naturalmente, o seu conhecimento oficioso (Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro, DR I-A, de 28 de Dezembro de 1995), se a correcta decisão de direito a proferir pelo Supremo Tribunal de Justiça puder vir a ser afectada pela sua existência.
Pois bem.
2. Lido o texto do acórdão recorrido – e por via deste, o texto do acórdão da 1ª instância – por si si só ou conjugado com as regras da experiência comum, nele não descortinamos qualquer vício da decisão, designadamente, o erro notório na apreciação da prova, que seja impeditivo da prolação da correta decisão de direito.
Não deixaremos, no entanto, e sem prejuízo do que fica dito, de fazer uma breve referência a alguns dos argumentos avançados no recurso como demonstrativos do invocado erro notório na apreciação da prova.
É sabido que os vícios decisórios previstos no nº 2 dos art. 410º do C. Processo Penal traduzem defeitos lógicos da decisão penal, rectius, da sentença, e não, do julgamento, que se evidenciam pelo respectivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.
Existe erro notório na apreciação da prova (alínea c), do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal) quando o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum, contra critérios legalmente fixados ou contra as leges artis, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de o erro não passar despercebido ao homem médio, ao cidadão comum, por ser evidente, grosseiro, ostensivo. Dizendo de outro modo, trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido, mediante a formulação de juízos ilógicos e/ou arbitrários (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 3, 3ª Reimpressão, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 326 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 9ª Edição, 2020, Rei dos Livros, pág. 81).
O arguido afirma a existência do vício nos pontos 15 a 20, 30 e 34 a 37 [simplificando a enumeração que consta da matéria de facto provada fixada pelas instâncias] dos factos provados, todos relativos à execução do homicídio objecto dos autos, argumentando que da dinâmica dos factos provados, vista à luz das regras da experiência comum, resulta manifestamente inverosímil que tenha sido o autor do crime pois, perante a inexistência de prova directa, as instâncias firmaram a convicção em presunções judiciais erradamente extraídas e em clara violação da presunção de inocência.
Depois, centrando a questão na prova pericial, diz não aceitar a conclusão de ter a morte da vítima sido causada por esganadura, quer por razões semânticas [tudo indica que a morte de CC foi devida a asfixia mecânica], quer por deficiências de metodologia na realização do exame tanatológico, quer pelo não afastamento de outras possíveis causas de morte, antes de a fixar na asfixia mecânica por esganadura.
Relativamente à questão semântica, a expressão «tudo indica» não comporta uma certeza em grau absoluto, mas é sabido que as leis científicas comportam uma margem de falibilidade, apenas assegurando coeficientes de mais ou menos próximos de 100%, ou seja, na prova científica, como é prova pericial, não existe certeza absoluta, devendo, por isso, a questionada expressão ser entendida como afirmando a existência de uma muito elevada probabilidade de a morte da vítima ter sido causada por asfixia mecânica.
No mais, mesmo que o relatório da autópsia possa não ser perfeito, ele está, seguramente, longe de ser probatoriamente imprestável. Com efeito, e em primeiro lugar, descrevendo-se em tal relatório a observação de fracturas dos cornos menores do osso hióide e de fractura/laceração da cartilagem tiroidea, e explicando-se, em nota, serem essas fracturas características de constrição externa, compatíveis com a acção de terceiro sobre o pescoço da vítima, e não com asfixia posicional ou autoinfligida, e apontando a observação macroscópica para a existência de edema pulmonar [sinal não obrigatório de morte por asfixia], não se vê em que medida podem ser afectadas as conclusões do relatório pericial, pela não realização de colheita para confirmação microscópica de edema pulmonar. Na mesma linha se situa a referência no relatório da autópsia à observação de duas equimoses, pouco notáveis, nas faces ântero-laterais do terço medio do pescoço, sem qualquer outro elemento caracterizador, posto que tal observação assegura a sua existência na referida zona corporal. O mesmo sucede com a referência à ausência de estudo anatomopatológico completo, para despiste de eventual causa de morte natural e detecção de elementos de suporte para o estrangulamento [na linha do entendimento de que a asfixia mecânica só deve ser considerada causa da morte da vítima, depois de excluídas todas as outras causas de morte concorrentes] pois que, considerando as patologias de que padecia a vítima [obesidade grau I e hipotiroidismo, como consta do relatório da autópsia e da documentação médica junta], não constando do relatório da autópsia que tenham sido observadas, designadamente, nos órgãos sólidos, alterações macroscópicas, e sendo evidente que as lesões observadas no hábito externo e interno da cabeça do cadáver não podem ter sido a causa da morte, não havendo indícios de morte por causa natural [doença súbita], ou de queda com impacto sofrido no pescoço, só resta a possibilidade de a morte da vítima ter sido causada mediante asfixia mecânica por esganadura.
Por outro lado, foi afirmada a violação de regras da experiência comum, v.g., a impossibilidade de o arguido ter produzido a morte da vítima por esganadura, devido ao peso desta e à ausência de prova de que aquele tivesse compleição física mais forte do que a desta, quando tal regra não existe, apenas possibilita, em teoria, cogitar uma hipótese, in casu, não verificada [a vítima era obesa e o excesso de peso não significa saúde e força física, tanto mais, que padecia de antracose, como se lê no relatório da autópsia, doença inflamatória broncopulmonar].
3. Em conclusão, e conforme já dito, não encontramos no acórdão recorrido vício decisório que impeça a correcta decisão de direito.
Nestes termos, deve ser rejeitado o recurso, na parte em que tem por fundamento a questão da existência dos vícios decisórios previstos no nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, restringindo-se a apreciação do recurso às demais questões submetidas pelo recorrente à apreciação deste Supremo Tribunal.
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Da incorrecta qualificação jurídica dos factos
3. O arguido foi condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nº 2, a) e e) do C. Penal.
Entende o arguido – conclusões 79 a 105 – que as circunstâncias qualificativas do crime de homicídio enunciadas no nº 2 do art. 132º do C. Penal não são de aplicação automática, antes sendo necessário que, no caso concreto, sobre elas seja formulado um juízo sobre a efectiva especial censurabilidade ou perversidade da conduta do agente, sendo que, nos que autos diz respeito, a factualidade provada não permite retirar essa qualidade , isto porque, contrariamente à posição assumida pela Relação, a mera relação de parentesco não faz presumir a especial censurabilidade, a qual só poderia revelar-se se tivesse sido considerada provada a existência de uma relação de especial proximidade e/ou afectividade entre o arguido e a vítima, pois só a existência deste vínculo mais intenso significaria, na prática do homicídio, a ultrapassagem de obstáculos emocionais e psicológicos acrescidos, e a verdade é que apenas se provou a existência de uma relação particularmente conflituosa entre ambos, não podendo ter-se por preenchida a alínea a) do referido nº 2. E – continua – no que respeita a ter actuado por motivo fútil ou torpe, da matéria de facto provada nada se retira que possa preencher o conceito, pois, considerando-se provado que não se apuraram as circunstâncias e o momento em que formulou o propósito de atentar contra a vida da filha [ponto 15 dos factos provados], e que, conhecendo a relação existente com a vítima, de pai e filha, agiu de forma frívola [ponto 36 dos factos provados], não se mostra provado o motivo do agente para a prática do crime, não se podendo afirmar, em sede de qualificação, que agiu por motivo fútil ou torpe, o que impede o preenchimento da alínea e) do mesmo nº 2. Ainda que assim não se entendesse – conclui – a interpretação feita pela Relação das normas do art. 132º, nºs 1 e 2, a) e e), do C. Penal, no sentido de poder ter-se por qualificada a conduta homicida sem que se densifique, de facto e de Direito, a existência de uma actuação especialmente censurável, é inconstitucional, por violação do art. 29º da Lei Fundamental.
Vejamos.
O crime de homicídio qualificado, previsto no art. 132º do C. Penal, é uma forma agravada do crime de homicídio, previsto no art. 131º do mesmo código, e que deste diverge por um especial tipo de culpa agravado.
A qualificação do homicídio assenta na combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão, isto é, a qualificação resulta da verificação de um tipo de culpa agravado – assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos relativamente indeterminados, a especial censurabilidade ou perversidade, mencionada no nº 1 do art. 132º – indiciada por circunstâncias relativas ao facto ou ao agente, exemplificativamente indicadas no nº 2 do mesmo artigo (Figueiredo Dias / Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, 2012, Coimbra Editora, pág. 48 e seguintes).
A verificação de um exemplo-padrão não significa, sem mais, a realização do tipo de culpa agravado e a qualificação do crime, do mesmo modo que a não verificação de qualquer exemplo-padrão, face à presença de outros elementos teleologicamente análogos àqueles, não impede a verificação do tipo de culpa agravado (aut., op. e loc., cit.). Assim, os exemplos-padrão precisam o sentido da cláusula generalizante em que se traduz o referido critério generalizador, e esta, por seu turno, corrige o sentido objectivo daqueles, donde resulta que a verificação de um exemplo- padrão, no caso concreto, apenas indicia a presença do tipo de culpa agravado, da especial censurabilidade ou perversidade portanto, indício que terá que ser comprovado pela ponderação global das circunstâncias de onde resulte o maior desvalor da atitude do agente ou seja, a especial censurabilidade ou perversidade que conforma o tipo de culpa agravado (Augusto Silva Dias, Crimes contra a Vida e a Integridade Física, 2ª edição revista e actualizada, 2007, AAFDL, pág. 24).
4. Aqui chegados, estabilizada que está a matéria de facto provada e sendo, em consequência, inquestionável a prática de um homicídio pelo arguido, na pessoa da vítima, vejamos se o crime é qualificado, como decidiram as instâncias.
Estabelece o art. 132º do C. Penal, na parte em que agora releva:
1 – Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.
2 – É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima;
(…);
e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;
(…).
a. Resultou provado (ponto 1 dos factos provados) que o arguido era pai da vítima, CC, mostrando-se, assim, verificado o exemplo-padrão previsto na alínea a) do nº 2 do art. 132º do C. Penal.
O fundamento da agravação prende-se com a violação pelo agente de determinados deveres ético-sociais, derivados de relações especiais entre si e a vítima, ou seja, e revertendo para o caso concreto, na ultrapassagem pelo arguido das contramotivações éticas resultantes do laço de parentesco que une pai e filha. Porém, pelas razões sobreditas, não basta a verificação deste laço de parentesco portanto, a verificação do exemplo padrão, para que se verifique a qualificação do crime, ou seja, para este efeito, a indiciada especial censurabilidade ou perversidade terá de ser também autonomamente comprovada, com o eventual concurso de circunstâncias relativas ao agente e às qualidade desvaliosas que a sua personalidade revela, mediante o cometimento do crime.
A argumentação do arguido no sentido de que o vínculo existente entre si e a vítima era de mera consanguinidade, e não, um vínculo especial e que só este é enquadrável na circunstância qualificativa em análise, não é de sufragar.
Com efeito, sendo certo ter-se provado que a sua relação com a filha foi pautada por conflitos e discussões, ora pela decisão desta de ter decidido vir residir para ..., ora por, após a morte da mãe, em 2020, lhe ter manifestado o desejo de receber, pelo menos, parte da herança daquela, a que tinha direito, o que lhe foi negado (ponto 6 dos factos provados), e que no dia em que ocorreu a morte da vítima, antes do jantar, esta e o arguido tiveram uma discussão em frente das filhas da primeira e netas do segundo (ponto 9 dos factos provados), também é verdade ter-se provado que o arguido vivia na ... e deslocava-se a ... uma vez por ano para visitar a filha e os netos (ponto 4 dos factos provados), que o arguido viajou da ... para ... no dia ... de ... de 2022, tendo ficado alojado na residência da filha (ponto 5 dos factos provados) e que o arguido e o cônjuge se deslocavam com regularidade a ... para visitarem a filha e os netos (ponto 46 dos factos provados).
Sendo de todos conhecido que discussões e desentendimentos acontecem em todas as famílias, sem que daí resulte, maioritariamente, o rompimento dos naturais laços de afectividade existentes entre os seus membros, o que a factualidade provada referida revela, não é uma mera relação de consanguinidade, mas uma família com um relacionamento normal, com os constrangimentos decorrentes do afastamento geográfico entre alguns dos seus membros, e os desentendimentos inerentes à relativa necessidade de meios económicos por parte da vítima e ao comportamento paternalista do progenitor, relativamente á gestão dos activos familiares.
Verificado, pois, o exemplo-padrão, no que respeita à autónoma comprovação da especial censurabilidade ou perversidade da conduta do arguido, cumpre dizer que o modo de execução da conduta homicida, mediante estrangulamento/esganadura da vítima – que não sendo um acto instantâneo, como, por exemplo, o disparo de arma de fogo, requereu a manutenção da pressão sobre o pescoço da vítima durante alguns minutos, vítima que ainda se debateu, sem êxito – é revelador da persistência do seu propósito homicida e da sua absoluta insensibilidade perante o indubitável sofrimento da vítima, sua filha, e perante o valor vida humana, o que, em nosso entender, revela, de forma inquestionável, uma especial censurabilidade ou perversidade na prática do crime (em situação idêntica, alínea b), acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Junho de 2014, processo nº 298/12.1JDLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt).
Em suma, mostra-se verificada a circunstância agravante prevista na alínea a) do nº 2 do art. 132º do C. Penal.
b. Nos termos do disposto na alínea e) do nº 2 do art. 132º do C. Penal, é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente ser determinado por qualquer motivo torpe ou fútil.
Motivo torpe ou fútil é o que, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, de tal modo que o facto surge como resultado de um intenso desprezo pelo valor da vida humana (Figueiredo Dias / Nuno Brandão, op, cit., pág. 62-63), o motivo incompreensível ou inexplicável para o homem médio ou revelador de baixeza de carácter (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª Edição actualizada, ..., Universidade Católica Editora, pág. 512), motivo torpe é o motivo repugnante, desonesto ou nojento e motivo fútil é aquele em que existe uma manifesta desproporção, do ponto de vista social, entre o motivo e o acto de matar (Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas, 2ª Edição revista e actualizada, 2008, Quid Juris, pág. 75).
O arguido argumenta, conforma já dito, supra, que a factualidade provada, designadamente, os seus pontos 6, 7, 9, 15 e 34 a 37, não contêm qualquer facto que, directa ou indirectamente, demonstre que o motivo que o determinou à prática do crime foi a questão da partilha da herança da mãe da vítima – este motivo é apenas referido na motivação –, pois nada se provou quanto à sua motivação, uma vez que o que consta do ponto 15 dos factos provados é que, em circunstâncias e momento não concretamente apurados, o arguido formulou o propósito de atentar contra a vida da sua filha – o que significa que não se apuraram as circunstâncias pelas quais formulou o propósito de tirar a vida à filha –, e o que consta do ponto 36 dos mesmos factos é que, o arguido bem conhecia a relação existente com a vítima, de pai e filha, e não obstante, agiu de forma frívola, conforme acima se descreveu, reportando-se o agir de forma frívola, ao modo de actuação – esganando a filha sentada na sanita – e não, ao motivo que determinou a actuação, o que impossibilita a verificação do exemplo-padrão da alínea e) do nº 2 do art. 132º do C. Penal.
Vejamos.
Temos provado, já o dissemos, que a relação do arguido com a filha foi pautada por conflitos e discussões tendo por objecto a decisão da vítima em passar a residir em Portugal, e, após a morte da mãe desta, em 2020, o desejo de receber, pelo menos, parte da herança deixada por aquela, desejo não satisfeito pelo arguido (ponto 6 dos factos provados) e que no dia em que ocorreu a morte da vítima, antes do jantar, esta e o arguido tiveram uma discussão em frente das filhas da primeira e netas do segundo (ponto 9 dos factos provados). Porém, não consta dos factos provados a razão desta discussão.
Temos também provado que a vítima queria fazer obras na sua residência (ponto 7 dos factos provados), que no dia dos factos, entre as 22h30 e hora não apurada, o arguido foi à casa de banho, aí surpreendendo a filha, que se encontrava na sanita (ponto 13 dos factos provados), que de imediato, o arguido se aproximou da filha, colocou as duas mãos à volta do seu pescoço, e apertou-o com força durante vários segundos e de forma ininterrupta, magoando-a e impedindo-a de respirar (ponto 16 dos factos provados), e fazendo força contra a mesma, impedindo-a de se mexer (ponto 18 dos factos provados), vindo a vítima, em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a deixar de respirar, perdendo os sentidos e entrando em paragem cardiorrespiratória (ponto 20 dos factos provados), que o arguido formulou o propósito de atentar contra a vida da filha em circunstâncias e momento não apurado (ponto 15 dos factos provados), que o arguido agiu com intenção de tirar a vida à filha (ponto 34 dos factos provados), que conhecia a relação de pai e filha que os unia e, não obstante, agiu, conforme o descrito, de forma frívola (ponto 36 dos factos provados), bem como agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei (ponto) 37 dos factos provados.
Não resulta desta factualidade provada que o motivo determinante de ter o arguido atentado contra a vida da filha tenha sido, como entendeu a Relação – e evidencia o segmento, «E a este propósito bem andou o tribunal a quo ao recorrer à chamada prova por deduções partindo de factos conhecidos, nomeadamente, – um relacionamento tenso, com discussões motivadas, entre outros motivos, por questões de dinheiro; a personalidade do arguido no que toca ao controlo do património mesmo após o falecimento da esposa, – para concluir pelo móbil do crime.».
Em sede de motivação da matéria de facto refere o julgador: “Existe, portanto, um móbil para este crime – a necessidade de dinheiro da vítima e a sua vontade, verbalizada junto ao pai, de ter na sua posse, pelo menos, parte do que era seu por direito”.», a págs. 83 do acórdão recorrido – pôr termo às divergências e discussões com a vítima, por causa do dinheiro da herança da mãe desta e que pretendia receber, e da sua [do arguido] recusa em aceder à pretensão da filha [para que melhor se perceba, o mesmo entendimento foi acolhido pela 1ª instância, como se evidencia dos segmentos que, de seguida, se transcrevem, do acórdão aí proferido, o primeiro, constando da motivação de facto, e o segundo, da fundamentação quanto às circunstâncias qualificativas: da motivação de facto «Não há qualquer facto que indicie que o arguido formulou o propósito de atentar contra a vida da filha assim que ficou com ela sozinha em casa, motivo pelo qual se levou aos factos não assentes que o tivesse feito logo nesse momento. Porém, em algum momento antes da fatídica esganadura, tal determinação foi por ele tomada, em circunstâncias não apuradas, atendendo aos factos que se têm por assentes e que a seguir se fundamentarão e que se reportam às causas de morte da vítima. (…).
E porquê?
Os conflitos entre o arguido e a vítima eram uma realidade, as discussões aconteciam, por tudo e por nada, para utilizar a expressão de uma testemunha, a neta FF, e o assunto que as motivava era o dinheiro que a vítima necessitava para fazer face às suas despesas e dos seus filhos. Naquela altura e naquele dia havia uma necessidade premente que era a da concretização das obras de reparação da casa. É importante não esquecer que a testemunha II, vizinha do andar de cima, encontrou a vítima e o pai naquele dia 11, à hora de jantar, e fez saber a urgência da resolução desse problema da obra e mais lhe disse que falariam ambas no dia seguinte sobre isso, assunto que já se arrastava no tempo. É, pois, razoável, absolutamente verosímil e conforme as regras da experiência comum que a vítima tenha exigido, nesse final de dia, início da noite, incitada por esta conversa, ao seu pai, pelo menos, o montante ou parte do montante que necessitava para fazer face a essa despesa acrescida (como já havia verbalizado à testemunha que o mencionou já acima referida), por conta do dinheiro que convictamente acreditava ser seu por direito de herança.
Porém, o arguido era muito agarrado ao dinheiro e não queria dar aos filhos, e designadamente à filha, aqui vítima, o dinheiro a que ela tinha direito por herança da mãe, ou sequer parte dele, sendo que ele era o único na família com acesso a esses valores, como esclareceu o filho JJ. A família “fervia em pouca água”, falava alto, como atestaram algumas testemunhas já acima referidas, discutia amiúde e o calor da discussão é inimigo da calma e da necessária contenção que a prolação de palavras aconselha em situações críticas. Não convenceu, nesta parte, o depoimento do neto do arguido, EE, ao dizer que o avô era calmíssimo. Ora, pelo menos com a sua mãe não o era, como atesta o depoimento de II quando diz, de forma desinteressada e objetiva, que a vítima CC lhe confidenciou que nada podia dizer ao pai, que ele reagia mal. O avô sustenta a família e todos os meses envia dinheiro. Na semana anterior à do Julgamento enviou, por intermédio do tio, cerca de dez mil euros para sustento dos netos, segundo disse EE. Não se diga que isso é incompatível com a relação “umbilical” que tinha com o dinheiro. As circunstâncias da morte e da vida atual de toda a família da filha defunta obrigam-no, agora, a tal atitude.
Existe, portanto, um móbil para este crime – a necessidade de dinheiro da vítima e a sua vontade, verbalizada junto ao pai, de ter na sua posse, pelo menos, parte do que era seu por direito.
O arguido e a esposa tinham cinco casas, quatro arrendadas, segundo disse o arguido. E tinha dinheiro. Vivia bem e tinha posses. Enquanto a mãe viveu, ajudou a filha. Quando morreu, o pai entendeu que não tinha de o fazer. A filha tinha direito à sua quota parte e atravessava um período financeiro difícil, pois tinha de fazer face a obras na casa. Era premente resolver este problema.
O Tribunal ficou convicto, pelo acima exposto, que a sua exigência gerou um momento que lhe foi fatal.»; da fundamentação das circunstâncias qualificativas «No que tange ao motivo torpe ou fútil, teve-se por assente que a causa foi o dinheiro a que a filha, na verdade, tinha direito por herança, o que ficou plasmado no motivo frívolo.
É especialmente censurável este móbil para a prática dos factos.
E é especialmente censurável o facto de assim ter agido contra a sua própria filha, retirando-lhe prematuramente a vida, relativamente à qual tinha um especial dever de respeito e consideração.»]
Na verdade, conforme referido já, ainda que, precedendo o jantar da família no dia em que ocorreu a morte da vítima, tenha existido uma discussão entre esta e o arguido, não se apurou a sua causa e o seu conteúdo, uma vez que nenhuma referência lhe é feita nos factos provados. Estando também provado que na relação entre pai e filha havia dissensões determinadas pela opção desta em passar a residir em ... e, a partir de ..., pela sua pretensão em receber, pelo menos, parte da herança a que tinha direito, pela morte da mãe, pretensão a que o arguido se opunha, se pelo funcionamento da prova indiciária, as instâncias lograram alcançar a certeza processual quanto ao motivo da conduta filicida do arguido – por termo às discussões causadas pela existência da herança – e, em consequência, o facto presumido passou a facto provado, deveria este, como qualquer facto provado, constar da enumeração dos factos provados e não provados, a que alude o nº 2 do art. 374º do C. Processo Penal.
Porque assim não aconteceu, impõe-se concluir que dos factos provados não consta matéria de facto capaz de preencher o conceito de motivo torpe ou fútil.
Esclarece-se, a propósito, que a circunstância de constar do ponto 36 dos factos provados que o arguido agiu de forma frívola [que, com ressalva do respeito devido, não se refere, contrariamente ao pretendido pelo arguido, à forma de execução do crime], nada adianta, pois o adjectivo frívolo é sinónimo de, leviano, fútil, insignificante, e por isso, não modifica os dados da questão, porque não referido a objectivas características de facto, portanto, ao móbil do homicídio, apenas traduzindo uma conclusão de facto.
Em suma, não constando da matéria de facto provada definitivamente fixada e considerada pelas instâncias, factualidade apta a preencher o conceito de motivo torpe ou fútil – questão que, conforme referido, apenas se mostra debatida na motivação de facto e na fundamentação de direito – não se pode ter por verificada, no caso, a circunstância qualificativa prevista na parte final da alínea e) do nº 2 do art. 132º do C. Penal.
c. Em conclusão de tudo o que antecede, praticou o arguido, em autoria material, um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, a) do C. Penal.
4. Entende o arguido – conclusões 102 e 103 – que a errónea interpretação feita pelas instâncias, dos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, a) e e) do C. Penal, é inconstitucional, com o sentido de poder ter-se por qualificada a conduta homicida sem que se densifique, de facto e de Direito, a existência de uma actuação especialmente censurável, por violação do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que expressamente invoca.
Considerando o decidido afastamento da circunstância qualificativa do homicídio prevista na alínea e) do nº 2 do art. 132º do C. Penal, a inconstitucionalidade invocada fica restringida à afirmada interpretação da alínea a), do mesmo número e artigo.
É nosso entendimento que as instâncias, com maior ou menor desenvolvimento e assertividade, procederam à autónoma comprovação da especial censurabilidade ou perversidade do agente, no caso concreto, relativamente ao exemplo-padrão qualificador, não tendo conferido à norma em questão a interpretação apontada.
Por outro lado, a questão foi também analisada no presente recurso, sem adopção da indicada interpretação.
Assim, não se reconhece a existência da invocada inconstitucionalidade.
*
Da atenuação especial da pena
5. Pretende o arguido – conclusões 106 a 118 – beneficiar do instituto da atenuação especial da pena, alegando terem sido desconsideradas circunstâncias especialmente valorizáveis para este fim, como a sua idade avançada – 78 anos –, conjugada com a inexistência de antecedentes criminais e o tempo de prisão preventiva – cerca de 2 anos – já decorrido, e a sua débil saúde física e psicológica, aqui se incluindo o quadro demencial que o afecta, em muito esbatem a necessidade da pena ao nível da prevenção, geral e especial.
No corpo da motivação densifica a alegação, suportando-a, longamente, no acórdão deste Supremo Tribunal de 7 de Outubro de 1999 (processo nº 99P598, in www.dgsi.pt), reflectindo sobre a idade avançada do agente e a menor necessidade da pena, em termos de prevenção geral, porque a resposta exigida pela comunidade para o restabelecimento da validade da norma violada é claramente inferior, e em termos de prevenção especial, porque é menos provável a reincidência e os imperativos de ressocialização impõem uma pena particularmente atenuada, do que resulta, face à esperança média de vida masculina, à sua própria idade e à pena concreta decretada de 17 anos de prisão, que não lhe restam muitos anos para viver sendo pois, particularmente diminuta a necessidade da pena, tanto mais que também se encontra afectado por um quadro psicopatológico de demência e vem experimentando as consequências do acto que se provou ao longo de quase dois anos de prisão preventiva.
Vejamos.
a. Como ponto prévio, cumpre dizer que, contrariamente ao entendimento do Exmo. Procurador-Geral Adjunto, junto deste Supremo Tribunal, expresso no parecer emitido [apesar de requerida a audiência], e sempre com ressalva do respeito devido, que é muito, a questão da atenuação especial da pena não configura questão nova, porque incluída na questão mais ampla da medida da pena e seu excesso.
Nada impede, pois, o seu conhecimento.
A atenuação especial da pena, prevista no art. 72º do C. Penal, constitui uma válvula de segurança do sistema, prevenindo as situações não expressamente previstas na lei, em que a imagem global do facto surge de tal forma atenuada, que escapa ao padrão normal dos casos previstos pelo legislador quando estabeleceu a moldura penal para um determinado tipo de crime, de modo que, a aplicação desta moldura determinaria uma pena concreta superior à medida da culpa do agente e à imposta pelas exigências de prevenção (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas/Editorial Notícias, pág. 302 e Maria da Conceição Ferreira da Cunha, As Reacções Criminais no Direito Português, 2ª Edição, UCP Editora, págs. 143-144).
A atenuação especial só tem lugar quando, na imagem global do facto e de todas as circunstâncias que o envolvem, a culpa do arguido ou a necessidade da pena se apresentam acentuadamente diminuídas portanto, conforme já dito, quando o caso concreto é menos grave que o complexo ‘normal’ de casos pressuposto pelo legislador quando fixou a moldura penal abstracta aplicável ao tipo de ilícito praticado. Como nota Figueiredo Dias, princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências da prevenção (op. cit., pág. 305).
Constituem índices desta acentuada diminuição, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do mesmo artigo, ou seja, a actuação do agente sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência, ter o agente actuado por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da vítima, ou por provocação ou ofensa imerecida, ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente, a reparação, dentro do possível, dos danos causados, ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta. Porém, a verificação de qualquer uma destas circunstâncias não tem, como efeito automático, a atenuação especial da pena, dependendo esta, ainda, da comprovação, no caso concreto, de se ter verificado uma acentuada diminuição da ilicitude, da culpa ou das exigências da prevenção (Figueiredo Dias, op. cit., pág. 306),
Acresce que a enumeração prevista no nº 2 do art. 72º do C. Penal é meramente exemplificativa, como decorre do segmento «entre outras», pelo que, qualquer outra ou outras circunstâncias atenuantes gerais, designadamente, as previstas no nº 2 do art. 71º do mesmo código, podem conduzir a uma atenuação especial, desde que tenham aptidão para comprovar a indispensável diminuição acentuada da culpa ou da necessidade da pena (Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral II, Penas e Medidas de Segurança, 1989, Editorial Verbo, pág. 135-136).
Em todo o caso, a imagem global do facto deve apresentar uma gravidade tão diminuída [e que, por isso, fugiu ao pensamento do legislador quando estabeleceu os limites da moldura penal], que a atenuação especial da pena só terá cabimento em situações verdadeiramente excepcionais.
Dito isto.
b. Antes de entrarmos na análise do caso concreto e, portanto, antes de cuidarmos de saber se o estado demencial invocado pelo arguido, per se, ou conjugadamente com a sua idade e, eventualmente, outros elementos de facto, é fundamento de atenuação especial da pena, cumpre dizer que tal estado não se encontra contemplado na matéria de facto provada, já definitivamente fixada.
Na verdade, a questão foi suscitada pelo arguido no decurso do processo, mediante a junção de um documento clínico [que situa na audiência de julgamento de 2 de Novembro de 2023, na 1ª instância, embora na respectiva acta não lhe seja feita menção, sendo certo que nela foi junto, pois a ele se refere, considerando-o admissível, enquanto mera declaração médica, o despacho de 14 de Novembro de 2023], junção que repetiu com a apresentação da motivação do recurso, tendo a 1ª instância, no mesmo despacho, para apurar se o teor desta declaração médica conjugado com a demais prova recolhida, era susceptível de, fundadamente, levantar a questão da inimputabilidade ou da imputabilidade diminuída do arguido, lançando mão do disposto no art. 601º do C. Processo Civil, solicitado ao Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa a indicação de consultor técnico [médico psiquiatra] para exercer essa função junto do tribunal, o qual juntou, em 22 de Novembro de 2023, respondeu às questões propostas, no sentido de o arguido aparentar ter as suas funções superiores preservadas, não revelando indícios inegáveis de anomalia psíquica neurodegenerativa, não se podendo assumir que o quadro seja clinicamente indicador de demência SOE [sem outra especificação].
Por outro lado, a única referência feita nos factos provados, que possa estar vagamente relacionada com a saúde mental do arguido, encontra-se no ponto 48 daqueles factos, do qual consta ter o arguido passado por uma fase depressiva após o decesso do cônjuge, em que se isolou socialmente. Trata-se, no entanto, de uma situação passada e que, em todo o caso, nada tem a ver com demência.
Deste modo, não estando provado que o arguido padece de um quadro clínico de demência, não pode tal estado ser invocado para efeitos de atenuação especial da pena.
c. Quanto ao mais.
Consta do Relatório do acórdão proferido pela 1ª instância ter o arguido nascido a 30 de Setembro de 1945. Tinha, portanto, na data do crime [11 de Agosto de 2022], 76 anos e tem hoje, 79 anos de idade.
Começando, cumpre dizer que, contrariamente ao que sucede com os jovens delinquentes [Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro], a lei penal não prevê regime especial para delinquentes seniores [na falta de melhor designação], pelo que a questão em análise terá de encontrar solução no regime do instituto da atenuação especial da pena, previsto no C. Penal.
A idade elevada do arguido não é subsumível à previsão de qualquer das alíneas previstas no nº 2 do art. 72º do C. Penal e, relativamente aos elementos atenuantes previstos na cláusula geral do seu nº 1, só pode integrar-se na acentuada diminuição da necessidade da pena, o que convoca o domínio das finalidades da punição e das exigências de prevenção.
Não obstante a excepcionalidade do instituto da atenuação especial da pena, o mesmo deve permitir ao julgador alguma flexibilidade na possibilidade da sua aplicação, nos casos em que se procura encontrar a pena justa para a respectiva especificidade, e que só pela atenuação especial será possível fixar.
Pois bem.
O arguido estava prestes a completar 77 anos de idade quando cometeu o crime e não tem antecedentes criminais (ponto 38 dos factos provados), o que significa que levou toda uma vida em conformidade com o direito e aponta para a desadequação do facto à personalidade do agente.
O facto praticado tem uma elevada ilicitude e elevada é também a culpa do arguido, mas deve reconhecer-se que a sua idade elevada significa alguma incompatibilidade com a prevenção especial de ressocialização precisamente porque esta pressupõe tempo para a verificação da sua eficácia, tempo que, evidentemente, àquele escasseia.
Por outro lado, este ‘apagamento’ das exigências de prevenção especial vai reflectir-se em menores exigências de prevenção geral, visto que que a idade elevada do agente e a decorrente percepção da sua menor perigosidade, provoca uma menor ressonância no sentimento securitário da comunidade, face ao cometimento do crime, tudo isto contribuindo para a diminuição da necessidade da pena.
Em todo o caso, não podendo esquecer-se que foi o arguido quem voluntariamente, se colocou na situação em que se encontra, não obstante o que fica dito quanto à sua idade e o reflexo desta nas exigências de prevenção especial, certo é que, por um lado, as exigências de prevenção geral, não obstante o que se deixou dito, permanecem elevadas, e por outro, que o arco punitivo resultante da moldura penal abstracta aplicável, apresenta uma amplitude que permite acomodar a pena concreta a fixar em quantum adequado e proporcional portanto, que consente fixar uma pena de prisão permitida pela culpa e imposta pelas exigências de prevenção, sem necessidade de recurso à referida válvula de segurança.
Em suma, não estão verificados os pressupostos de atenuação especial da pena, pelo que não pode o arguido beneficiar da sua aplicação.
*
Da excessiva medida da pena de prisão e da sua substituição
6. Alega o arguido – conclusões 119 a 127 e 132 – que a pena fixada pela 1ª instância e confirmada pela Relação é excessiva, desde logo porque a afirmada média baixa intensidade das exigências de prevenção especial e a inexistência de antecedentes criminais são incompatíveis com o quantum decretado, sendo certo que este, considerando a sua idade, não permitirá a reinserção social, ao converter-se em punição perpétua, a tudo acrescendo a referência feita no acórdão recorrido ao que não pode deixar de ser considerado como arrependimento, e o período de detenção já verificado, pelo que, independentemente da qualificação jurídica da conduta provada, a pena a aplicar deve situar-se próximo do mínimo legal, e no caso de ser especialmente atenuada, não deve ser superior a 5 anos de prisão, e deve vir a ser suspensa na sua execução.
Vejamos.
a. Dispõe o art. 40º do C. Penal, com a epígrafe «Finalidades das penas e das medidas de segurança», no seu nº 1 que, a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Estabelece, por sua vez, o seu nº 2 que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, exprimindo esta a responsabilidade individual do agente pelo facto, sendo, assim, o fundamento ético da pena.
Prevenção geral – protecção dos bens jurídicos – e prevenção especial – reintegração do agente na sociedade – constituem, assim, as finalidades da pena, através delas se reflectindo a necessidade comunitária da punição do caso concreto.
O critério legal de determinação da medida concreta da pena encontra-se previsto no art. 71º do C. Penal.
Dispõe o seu nº 1 que a determinação dessa medida é feita, dentro dos limites definidos pela moldura penal abstracta aplicável, em função das exigências de prevenção e da culpa do agente, e estabelece o seu nº 2 que, para este efeito, devem ser atendidas todas as circunstâncias que, não sendo típicas, militem contra e a seu favor, designadamente, as enunciadas nas diversas alíneas deste mesmo número.
Diremos, então, com Figueiredo Dias, que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, Coimbra Editora, pág. 84).
A medida concreta da pena resultará do grau de necessidade de tutela do bem jurídico (prevenção geral), sem que posse ser ultrapassada a medida da culpa, intervindo a prevenção especial de socialização entre o ponto mais elevado da necessidade de tutela do bem e o ponto mais baixo onde ainda é comunitariamente suportável essa tutela (Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, 1ª Edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 43 e seguintes) ou, como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Julho de 2014 (processo nº 1081/11.7PAMGR.C1.S1, in www.dgsi.pt), a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.
Não se trata, como se vê, do exercício de um poder discricionário do juiz e da sua arte de julgar, mas do uso de um critério legal, sendo a pena concreta o resultado de um procedimento juridicamente vinculado.
b. Revertendo para o circunstancialismo dos autos, consideramos ser elevado o grau de ilicitude do facto atentas as concretas circunstâncias em que o homicídio ocorreu, designadamente, o seu modo de execução. É também elevada a intensidade do dolo com que o arguido actuou, revelador de grande e persistente energia criminosa, considerando que a morte ocorreu por esganadura da vítima, ‘processo’ que requer algum tempo para ser alcançado o resultado pretendido.
O arguido não tem antecedentes criminais, estava inserido em termos familiares e sociais, está reformado e tem situação económica desafogada.
Pretende o arguido que o acórdão recorrido, apesar de o ter feito na discussão sobre a impugnação da matéria de facto, considerou que, imediatamente após a morte da filha, assumiu comportamentos que só podem ser considerados como evidentes manifestações de arrependimento, reportando-se – como expressamente refere, e segmentariamente, transcreveu – ao relato feito pelas testemunhas [HH, KK, LL, MM, NN, OO e FF] sobre o seu estado emocional.
O arrependimento, que, quando sincero, é, como vimos, circunstância que pode conduzir à atenuação especial da pena (art. 72º, nº 2, c) do C. Penal), que se traduz na censura que sobre si mesmo o agente faz, relativamente ao facto praticado. Sendo um facto interior da vida do agente e por isso, não sendo susceptível de ser percepcionado pelos sentidos de terceiro, a sua evidenciação passa, para além da sua afirmação pelo próprio agente, sempre condicionada à credibilidade que este merece, por actos objectivos que demonstrem a sua sinceridade.
O arguido reconhece que os comportamentos referidos e que considera como manifestações de arrependimento não constam dos factos provados fixados pelas instâncias. Depois, e como resulta dos segmentos do acórdão recorrido transcritos no corpo da motivação, a referência feita no acórdão recorrido à forma como as testemunhas identificadas definiram o estado emocional que o arguido aparentava, imediatamente após a morte da vítima, prendeu-se com a análise da circunstância qualificativa do homicídio, frieza de ânimo, que foi afastada, mas não, sem considerar que, «(…) estranho seria que não demonstrasse o estado de espírito descrito pelas testemunhas. Porém, não se pode nem deve confundir esse estado de alma como uma manifestação de inocência.».
Em suma, o arrependimento e, muito menos, o arrependimento sincero, portanto, os factos concretos que o pudessem demonstrar, não consta dos factos provados fixados pelas instâncias, as razões apontadas pelo arguido para a sua evidenciação, independentemente do local onde se situam no acórdão recorrido, carecem de aptidão para o demonstrar, não se entendendo, por fim, como pode o arguido estar arrependido do que não assume ter feito.
As exigências de prevenção geral são elevadas pois que, a comunidade não ficou indiferente a tão grave violação da vida humana, havendo, por conseguinte, que assegurar-lhe, pela via da censura penal, o conteúdo relevante das referidas exigências.
As exigências de prevenção especial são bem menores. Com efeito, embora o arguido não tenha revelado, por qualquer forma, a interiorização do desvalor da conduta praticada e a assunção da sua culpa, é um cidadão sem antecedentes criminais, inserido familiar e socialmente, já reformado e com desafogada situação económica e financeira, que se iniciou no crime com quase 77 anos de idade, factor este especialmente relevante, na perspectiva da necessidade da pena.
Assim, considerando a moldura penal abstracta aplicável, sobrepondo-se as circunstâncias agravantes às circunstâncias atenuantes, sendo consideráveis as exigências de prevenção geral, mas sendo bem menores, pelas razões sobreditas, as exigências de prevenção especial, entendemos que a pena fixada pela 1ª instância deve ser reduzida, considerando-se mais adequada e, em todo o caso, necessária, proporcional e seguramente suportada pela medida da culpa do arguido, a pena de 13 (treze) anos e 6 (seis) meses de prisão, que agora se fixa.
c. A pretensão do arguido em ver a pena de prisão aplicada ser substituída pela suspensão da respectiva execução tem como pressuposto que a medida da pena privativa da liberdade não seja superior a 5 anos de prisão.
Pelas razões que se deixaram expostas em b., que antecede, não se mostra verificado aquele pressuposto, razão pela qual, atento o disposto no nº 1 do art. 50º do C. Penal, não pode haver lugar à substituição da pena de prisão agora fixada.
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III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em:
A) Rejeitar, parcialmente, o recurso, na parte em que tem por fundamento a existência, no acórdão recorrido, dos vícios previstos nas alíneas a), b) e c) do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, por inadmissibilidade legal, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 414º, nº 3, 420º, nº 1, b), 432º, nº 1, b) e 434º, todos do mesmo código.
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B) 1. Revogar o acórdão recorrido, na parte em que condenou o arguido AA, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, a) e e) do C. Penal, na pena de 17 (dezassete) anos de prisão.
2. Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos 131º e 132º, nºs 1 e 2, a), todos do C. Penal, na pena de 13 (treze) anos e 6 (seis) meses de prisão.
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C) Confirmar, quanto ao mais, o acórdão recorrido.
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D) Recurso sem tributação, atenta a parcial procedência (art. 513º, nº 1 do C. Processo Penal, a contrario).
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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).
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Lisboa, 19 de Dezembro de 2024
Vasques Osório (Relator)
João Rato (1º Adjunto)
António Latas (2º Adjunto)
Helena Moniz (Presidente da Secção)