I. É entendimento geral da jurisprudência que a notificação de acórdãos e outras decisões proferidas em recurso pelos tribunais superiores não tem de ser efetuada na pessoa do arguido.
II. Assim, carece de fundamento bastante a pretensão do requerente no sentido de o mandado de detenção do requerente ter sido emitido sem que tivesse transitado em julgado o acórdão da Relação, regularmente notificado ao seu advogado, que confirmou a condenação em pena aplicada pela 1.ª instância, que passou a cumprir em execução do cumprimento de tal mandado.
Acordam em audiência na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório
I.1. Em requerimento apresentado pelo seu advogado, vem o arguido AA, melhor identificados nos autos, em ...-...-2024 (Ref.ª Citius ...) apresentar exposição/petição de Habeas Corpus, nos termos seguintes (transcrição):
«O arguido encontra-se preso desde o dia de hoje à ordem dos presentes autos por ordem do Meritíssimo Juiz do Juízo Central Criminal de ... -...... que, por despacho de .../.../2024 (ref.ª citius ... cfr. processo principal), mandou emitir mandados de detenção do ora arguido por entender que o acórdão condenatório proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra em .../.../2024 (ref.ª Citius ... cfr. processo principal) já se encontra transitado em julgado;
Sucede, porém, que, o referido acórdão da Relação que mantem a pena aplicada pela primeira instância ainda não se encontra transitado quanto ao agora arguido, pois nunca lhe foi notificado.
Pois que, nos presentes autos e sumariamente,
O ora arguido foi detido em .../.../2023 para primeiro interrogatório após o qual foi decretada, em .../.../2023, a sua prisão preventiva.
O arguido manteve-se em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional ... até dia .../.../2024, data em que foi libertado por ordem do Venerando Tribunal da Relação de ... (ref.ª Citius ... cfr. processo principal);
Com efeito, após a leitura do Acórdão proferido pela primeira instância em .../.../2024 (ref.ª Citius ...cfr. processo principal) o arguido recorreu da decisão condenatória em .../.../2024 (ref.ª Citius ... cfr. processo principal).
Ainda antes de proferido o Acórdão pelo Tribunal da Relação de ... que apreciou as alegações de recurso do arguido, este foi mandado libertar pela Veneranda Desembargadora de turno nos termos e com os fundamentos expostos no seu despacho de .../.../2024, (ref.ª Citius ... cfr. processo principal).
Após essa data e até ao dia de hoje o ora arguido manteve-se em liberdade.
Sucede porém que, em .../.../2024, foi proferido acórdão condenatório pelo Venerando Tribunal da Relação de ... em (ref.ª Citius ... cfr. processo principal) que manteve a pena aplicada ao arguido em primeira instância.
O referido acórdão foi notificado ao mandatário do arguido em .../.../2024 (ref.ª citius ... cfr. processo principal), mas nunca foi notificado pessoalmente ao arguido que naquela data já se encontrava em liberdade.
Com efeito, o Tribunal de Primeira Instância mandou notificar o arguido
AA do acórdão do Tribunal da Relação de ... pelo Estabelecimento ....
Porém, olvidou-se o Tribunal de Primeira Instância que o arguido se encontrava em liberdade.
Por isso mesmo, o Estabelecimento Prisional ..., informou o Tribunal de Primeira Instância que não pôde notificar o arguido do Acórdão Proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra porque este estava em liberdade desde o dia .../.../2024, veja-se o email daquele estabelecimento prisional que deu entrada no processo em .../.../2024 (cfr. ref.ª Citius ... no traslado que corre por apenso aos presentes autos sob o n.º de processo 13/22.1GACVL-C) que aqui se junta e se dá como integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos (doc 1).
Após esta informação prestada pelo Estabelecimento ... de que não podia notificar o arguido do Acórdão da Relação porque este se encontrava em liberdade, mais nenhuma diligência foi feita pelo Tribunal de Primeira Instância para lograr a notificação pessoal do arguido, que, até à presente data, não foi notificado do acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra.
Ora, nos termos do 425.º, n.º 6 do CPP “O acórdão é notificado aos recorrentes, aos recorridos e ao Ministério Público.”
Por sua vez o artigo 113.º n.º 10 do CPP determina que “10 – As notificações do arguido, do assistente e das partes civis podem ser feitas ao respetivo defensor ou ..., ressalvando-se as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à contestação, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coação e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil, as quais, porém, devem igualmente ser notificadas ao ... ou defensor nomeado, sendo que, neste caso, o prazo para a prática de ato processual subsequente conta-se a partir da data da notificação efetuada em último lugar.”.
Da conjugação das duas normas resulta claro que o acórdão deve ser notificado não só ao seu mandatário, mas também ao ora arguido.
Porém, o acórdão foi proferido em .../.../2024 pelo Tribunal da Relação de ... ainda não foi notificado ao arguido.
Pois que por oficio de fls. (cfr. email de .../.../2024 ref.ª Citius ... no traslado que corre por apenso aos presentes autos sob o n.º de processo 13/22.1GACVL-C) veio o estabelecimento prisional da ... dizer que não podia notificar o arguido do acórdão porque este já havia sido libertado cfr. doc. 1 junto ao presente.
Não obstante veio o tribunal de primeira instância determinar a prisão do arguido por considerar o acórdão já transitado em julgado.
Ora, como resulta do referido artigo 113.º n.º 10 do CPP o prazo para a prática do acto processual conta-se a partir da notificação feita em último lugar.
Não tendo ainda o arguido sido notificado pessoalmente do referido acórdão o prazo para eventual recurso ou reclamação ainda não teve início, pelo que o douto acórdão ainda não transitou em julgado quanto ao arguido AA.
Nestes termos afigura-se que a prisão do Arguido AA efectuada no dia de hoje pelas 08:35 da manhã na sua residência, é ilegal nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.
Face ao exposto, nos termos dos artigos 31.º, n.º 3 da CRP e 222.º e 223.º do n.º 4 alínea b) do CPP, deve a prisão ser declarada ilegal e ordenada a sua imediata restituição à liberdade o que se Requer de V. Exa..»
I.2. O Senhor juiz de Direito titular do processo, no J.C.Criminal de ..., exarou a informação a que alude o artigo 223.º, n.º 1, do CPP, com data de ...-...-2024 (Ref.ª Citius ...), nos termos seguintes (transcrição):
«Nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 222 e 223 do C. Processo Penal, com certidão de
- Acórdão condenatório proferido nestes autos;
- Certidão do acórdão do TRC proferido sobre o recurso interposto pelo arguido;
- Notificações aos arguidos do acórdão do TRC;
- Despacho de .../.../2024;
- Requerimento do arguido de .../.../2024 e deste despacho, remeta ao Ex.mo Sr. Juiz Conselheiro, Presidente do STJ, com a seguinte informação:
*
- Por acórdão datado de .../.../2024 foi o arguido AA condenado na pena de pena de três anos e seis meses de prisão;
- O arguido recorreu e tal acórdão, recurso que veio a ser julgado improcedente pelo Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de .../.../2024.
- O acórdão do TRC foi notificado aos Ilustres defensores dos arguidos em .../.../2024.
- Por despacho de .../.../2024, decidiu-se, com fundamento no trânsito do acórdão condenatório do TRC, a emissão de mandados de detenção e condução ao EP do arguido AA para cumprimento da pena.
Mantemos tal despacho.
Notifique.»
I.3. Os autos foram instruídos, entre outros, com cópias certificadas (formato digital) dos seguintes elementos:
- Acórdão do J.C.Criminal de ..., de ...-...-2024 (Ref.ª Citius ...);
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (doravante, também TRC), de ...-...-2024 (Ref.ª Citius ...);
- Notificações aos Advogados dos arguidos do acórdão do TRC, de ...-...-2024 (Ref.ªs Citius ...e ...);
- Petição do arguido, de ...-...-2024;
- Informação a que alude o art. 223.º, n.º 1, do CPP, de ...-...-2024 (Ref.ª Citius ...).
***
Convocada a Secção Criminal e notificado o ... e o Defensor, teve lugar a audiência – no decurso da qual o ... pugnou pela improcedência da providência enquanto o Senhor Defensor do arguido remeteu para o teor do requerimento e para que se fizesse justiça –, após o que a Secção reuniu para deliberação.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
II.1. Dos elementos documentais juntos e da informação prestada, bem como dos termos eletrónicos do processo principal da plataforma Citius, a que se acedeu, resultam demonstrados os seguintes factos:
1. Por Acórdão do J.C.Criminal de ..., de ...-...-2024 (Ref.ª Citius ...), o peticionário foi condenado como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p.p. pelo art. 25.º, al. a) do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22-01, na pena de três anos e seis meses de prisão;
2. Tendo recorrido para o TRC, pela Senhora Desembargadora de turno junto deste Tribunal veio a ser alterado o seu estatuto processual e ordenada a sua libertação, por despacho de ...-...-2024 (Ref.ª Citius ...), o que ocorreu nesse mesmo dia;
3. Por Acórdão do TRC, de ...-...-2024 (Ref.ª Citius ...), o recurso do peticionário foi julgado improcedente, tendo-se procedido à alteração da qualificação jurídica dos factos a si imputados, para o crime p.p. nos termos do art. 21.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 15/93, mantendo-se, todavia, a pena aplicada, por força do princípio da proibição da reformatio in pejus.
4. Tal acórdão foi notificado eletronicamente ao Senhor Advogado do peticionário em ...-...-2024 (Ref.ª Citius ...);
5. Por considerar que o acórdão condenatório transitou em julgado, o Senhor juiz de Direito titular ordenou, por despacho de ...-...-2024 (Ref.ª Citius ...), a emissão de mandados de detenção e condução ao E.P. para cumprimento da pena, pelo peticionário;
6. Tendo sido emitido tal mandado, o arguido AA foi detido pelas ... do dia ...-...-2024, tendo dado entrada no E.P.
II.2. Mérito da providência
A providência de habeas corpus constitui uma garantia constitucional do direito à liberdade individual, prevista no artigo 31.º da Constituição da República Portuguesa, que estabelece:
1 – Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.
2 – A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.
3 – O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.
O texto do n.º 1 foi alterado e revisto pela Lei Constitucional n.º 1/97, que introduziu a Quarta revisão constitucional (DR I-A Série, n.º 218/97, de 20 de setembro de 1997) e que, pelo artigo 14.º, alterou a redação do n.º 1 do artigo 31.º da Constituição, de modo a que nesse preceito a expressão “a interpor perante o tribunal judicial ou militar consoante os casos” fosse substituída pela expressão “a requerer perante o tribunal competente”, assim afastando a referência a tribunais militares. Mas, como assinala Faria Costa, a revisão constitucional de 1997 não veio, nem de longe nem de perto, restringir o âmbito de aplicação da norma («Habeas Corpus: ou a análise de um longo e ininterrupto “diálogo” entre o poder e a liberdade», BFDUC, volume 75, Coimbra: Coimbra Ed., 1999, p. 549).
Como referem, por outro lado, Gomes Canotilho e Vital Moreira, o n.º 2 do artigo 31.º da CRP reconhece uma espécie de ação popular de habeas corpus (cfr. art. 52.º, n.º 1), pois, além do interessado, qualquer cidadão no gozo de seus direitos políticos tem o direito de recorrer à providência em favor do detido ou preso. Além de materializar o objetivo de dar sentido útil ao habeas corpus, quando o detido não possa pessoalmente desencadeá-lo, essa ação popular sublinha o valor constitucional objetivo do direito à liberdade (Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra: Coimbra Ed., 4.ª edição revista, 2007, p. 509).
A providência em causa é, assim, uma garantia fundamental privilegiada, no sentido em que se trata de um direito subjetivo, «direito-garantia» reconhecido para a tutela do direito à liberdade pessoal (neste sentido, cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Lisboa: Verbo Ed., 2011, p. 296).
O instituto processual penal de habeas corpus traduz, pois, uma das mais emblemáticas concretizações do chamado direito constitucional aplicado.
O instituto de habeas corpus é historicamente uma instituição de origem britânica, remontando ao direito anglo-saxónico, mais propriamente ao Habeas Corpus Amendment Act, promulgado em 1679, passando o instituto do direito inglês para a Declaração de Direitos do Congresso de Filadélfia, de 1774, consagrado pouco depois na Declaração de Direitos proclamada pela Assembleia Legislativa Francesa em 1789, sendo acolhido pela generalidade das Constituições posteriores e introduzido entre nós pela Constituição de 1911 (artigo 3.º- 31), tendo como fonte a Constituição Republicana Brasileira de 1891, muito influenciada pelo direito constitucional norte-americano.
A Constituição de 1933 (artigo 8.º, § 4.º) consagrou igualmente o instituto, que só veio a ser regulamentado pelo Dec.-Lei n.º 35.043, de 20 de outubro de 1945, cujas disposições vieram a ser integradas no Código de Processo Penal de 1929 pelo Decreto-Lei n.º 185/72, de 31 de maio, sendo que no pós 25 de Abril de 1974 teve a regulamentação constante do Decreto-Lei n.º 744/74, de 27 de dezembro de 1974 e do Decreto-Lei n.º 320/76, de 4 de maio de 1976.
A Lei n.º 43/86, de 26-09 – lei de autorização legislativa em matéria de processo penal, ao abrigo da qual foi elaborado o Código de Processo Penal vigente – estabeleceu no artigo 2.º, n.º 2, alínea 39, a «(…) garantia do habeas corpus, a requerer ao Supremo Tribunal de Justiça em petição apresentada perante a autoridade à ordem da qual o interessado se mantenha preso, enviando-se a petição, de imediato, com a informação que no caso couber, ao Supremo Tribunal de Justiça, que deliberará no prazo de oito dias».
Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus traduz a relevância constitucional do direito à liberdade.
Recortando-se o direito à liberdade como um direito fundamental – artigo 27.º, n.º 1, da CRP – e podendo ocorrer a privação da mesma, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar» apenas nos casos elencados no n.º 3 do mesmo preceito, a providência em causa constitui um instrumento de reação e garantia dirigido ao abuso de poder em virtude de prisão ou detenção ilegal, utilizando a expressão de Faria Costa, atenta a sua natureza, trata-se de um «instituto frenador do exercício ilegítimo do poder» (apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-10-2001, in CJSTJ 2001, t. 3, p. 202).
Corresponde, assim, a uma característica essencial do instituto de habeas corpus que tal providência assume natureza de remédio excecional e urgente para proteger a liberdade individual, com a finalidade de pôr termo a situações de injustificada privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei: um primeiro núcleo previsto nas quatro alíneas do n.º 1 do art. 220.º do CPP e um segundo elenco nos casos de abuso de poder ou erro grosseiro, patente e grave, na aplicação do direito, descritos nas três alíneas do n.º 2 do art. 222.º do CPP (cfr. Acs. STJ de de18-10-2007 e de 13-02-2008), entendimento consolidadamente reiterado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça.
Sendo a prisão efetiva e atual o pressuposto de facto da providência e a ilegalidade da prisão o seu fundamento jurídico, esta providência extraordinária com a natureza de ação autónoma com fim cautelar há de fundar-se, como decorre do artigo 222.º, n.º 2, do CPP, em ilegalidade da prisão prevista no elenco exclusivo das suas três alíneas – 1) incompetência, 2) facto que não permite a prisão e 3) excesso de prazos legais ou judiciais (assim, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II volume, Lisboa, Verbo Ed., p. 297) –, encontrando-se a competência para a respetiva apreciação atribuída ao Supremo Tribunal de Justiça (artigos 31.º da CRP, 55.º, al. d) da Lei n.º 62/2013 e 11.º, n.º 3, al. c) do CPP), em virtude de:
a. Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;
b. Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c. Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
Não obstante o seu lugar sistemático no Código de Processo Penal, a providência de habeas corpus não constitui um verdadeiro modo de impugnação, visto que o seu objeto se prende com a situação de objetiva ilegalidade e não com a decisão que lhe deu causa (cfr., neste sentido, ac. STJ de 07-03-2019 - proc. 72/15.3...-K.S1 – 5.ª Sec.; Maia Costa, «Habeas Corpus, passado, presente e futuro», Julgar, N.º 29, 2016, p. 240).
A providência em causa não se destina, porém, a apreciar erros, de facto ou de direito, nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade (cfr., v.g., o ac. STJ de 04-01-2017, no processo n.º 109/16.9GBMDR-B. S1, e jurisprudência nele citada, in www.dgsi.pt).
Como não se substitui, nem pode substituir-se, aos recursos ordinários, o habeas corpus não é o meio adequado a pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos de indiscutível ilegalidade, que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade e com os pressupostos legalmente definidos. O habeas corpus não é pois, meio adequado para sindicar as decisões processuais ou arguir nulidades e irregularidades processuais, que deverão de ser oportuna e tempestivamente impugnadas através dos meios próprios (cfr. ac. STJ de 16-03-2015).
O habeas corpus não colide, apesar disso, com o direito ao recurso, pois que «(…) visa, reagir, de modo imediato e urgente – com uma celeridade incompatível com a prévia exaustação dos recursos ordinários e com a sua própria tramitação contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, decorrente de abuso de poder concretizado em atentado ilegítimo à liberdade individual “grave, grosseiro e rapidamente verificável” integrando uma das hipóteses enunciadas no n.º 2 do art. 222.º do Código de Processo Penal» (cfr., entre outros, ac. STJ de 12-12-2007).
A providência de habeas corpus não se destina, assim, a formular juízos de mérito sobre a decisão judicial de privação de liberdade ou a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades, cometidas na condução do processo. Para esses fins servem os recursos, os requerimentos e os incidentes próprios, na sede e momento apropriados. Nesta sede cabe apenas verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante enquadrável na previsão de alguma das alíneas do n.º 2 do art. 222.º do CPP. Esta é a norma delimitadora do âmbito de admissibilidade do procedimento em virtude de prisão ilegal, do objeto idóneo da providência, nela se contendo os pressupostos nominados e em numerus clausus, que podem fundamentar o exercício da garantia em causa (ac. STJ de 09-11-2011).
Relativamente a outras vicissitudes terá de se recorrer a distintas formas de reação designadamente de índole processual, como a arguição de invalidade, reclamação ou recurso, sendo a providência de habeas corpus um instituto de natureza extraordinária (assim, Tiago Caiado Milheiro, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, AA. VV., t. III, Coimbra, Almedina, 2022, p. 547, § 13, 14 e 16).
A apreciação de habeas corpus pelo STJ coloca-se, assim, em patamar supra processual e a apreciação de indícios, ou sua insuficiência, para aplicar ou manter, por exemplo, uma medida de coação não lhe pode servir de fundamento (ibidem, Comentário …, cit., § 26; também assim, ac. STJ de 09-06-2020: Cons. Helena Moniz), bem assim como não será de apurar se a prova foi ou não válida, se houve nulidades processuais (v.g. do auto de interrogatório ou outras, erro de valoração de prova ou outras - cfr. acs. STJ de 31-01-2018: Cons. M. Matos, e de 03-01-2018: Cons. Raúl Borges).
Assim, enquanto o Dec.-Lei n.º 35.043, de 20-10-1945, concebia o habeas corpus como «(…) um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não houvesse qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade», após as alterações de 2007, com o aditamento do n.º 2 ao art. 219.º do CPP, o instituto não deixou de ser um remédio, mas coexiste com os meios judiciais comuns, nomeadamente com o recurso (cfr. ac. STJ de 19-11-2020: Cons. A. Gama), não existindo relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso previsto no n.º 1 do preceito e a providência de habeas corpus, independentemente dos respetivos fundamentos. Além do mais, os fundamentos do habeas corpus são, apenas, aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de colocarem em causa a regularidade ou a legalidade da prisão (cfr. Ac. STJ de 19-05-2010, CJ - ACSTJ, 2010, t. 2, p.196).
Sendo este, em traços esquemáticos, o enquadramento jurídico-normativo do instituto de habeas corpus, cumpre aplicá-lo ao caso vertente.
A petição da presente providência encerra uma argumentação em que, sucintamente, é questionada a circunstância de o acórdão do TRC de 09-10-2024 (não) ter transitado em julgado.
O Senhor juiz de Direito titular presta informação categórica no sentido da manutenção do seu despacho de 05-12-2024 – que ordena a emissão de mandados de detenção para cumprimento da pena pelo arguido –, conquanto por lapso refira tratar-se do despacho de “02-12-2024”.
Importa, pois apreciar se a situação prisional do arguido se encontra afetada por ilegalidade decorrente da circunstância de a decisão condenatória não ter transitado em julgado.
No incidente de habeas corpus, indaga-se se se verifica algum dos motivos consagrados nas alíneas do n.º 2 do art. 222.º do CPP, ou seja, se há ilegalidade na situação de privação de liberdade do requerentes, por ter sido a) efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) se mantém para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
A única previsão com plausível aplicação ao caso vertente, é a da alínea b), a qual é, de resto, invocada pelo peticionário: ter a situação de prisão do arguido sido motivada por facto que a lei não permite, designadamente por estar em cumprimento de pena aplicada por decisão condenatória não transitada em julgado, de acordo com a sua perspetiva.
Pugna pela ilegalidade da sua situação prisional, invocando para o efeito o regime combinado dos artigos 113.º, n.º 10 e 425.º, n.º 6, do CPP, sustentando a obrigatoriedade de notificação pessoal do arguido, além do seu Advogado.
Por tal razão, não tendo o mesmo sido notificado, apesar de se ter tentado a sua notificação para o E.P. da ..., onde estivera em prisão preventiva, foi verificado que o mesmo já fora colocado em liberdade pelo despacho da Senhora Desembargadora de turno no TRC, de ...-...-2024 (informação de ...-...-2024).
Sobre a obrigatoriedade ou indispensabilidade de notificação do arguido de decisões proferidas por tribunais superiores, quando proferidas em recurso, a jurisprudência constitucional e comum tem-se pronunciado por diversas vezes, num sentido convergente e que não conhece objeções de relevo.
O Tribunal Constitucional tem entendido, de forma repetida e consolidada, sem que se conheçam posicionamentos alternativos, que «da norma do artigo 113.º, n.º 10, do CPP não resulta a obrigação de notificação de acórdão proferido pelos tribunais superiores ao arguido e que este preceito legal, quando interpretado no sentido de a notificação da decisão tomada pelos tribunais superiores em via de recurso poder ser feita ao defensor do arguido, não tendo de ser notificada a este pessoalmente, não padece de inconstitucionalidade» (cfr., ainda, neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos TC n.º 59/99, n.º 512/04, n.º 275/06, n.º 399/2009, n.º 234/2010, n.º 667/2014, n.º 31/2017, n.º 746/2021, n.º 195/2022, e n.º 810/2023).
Por outro lado, o Tribunal Constitucional também tem concluído pela ausência de incompatibilidade com a Constituição do entendimento de que o prazo legalmente previsto para a interposição do recurso de constitucionalidade se inicia com a notificação da decisão recorrida ao respetivo mandatário e não, também, à que eventualmente seja feita ao arguido (cfr., entre muitos outros, neste sentido, os Acórdãos TC n.ºs 399/2009, 234/2010, 680/2016, 31/2017 e 746/2021, 46/2023, bem como as Decisões Sumárias n.ºs 649/2016 e 32/2021).
Essa vem sendo, igualmente, a posição predominante, ou mesmo unânime da jurisprudência deste STJ e das Relações.
O STJ vem afirmando este entendimento de forma consolidada, desde o acórdão de 23-04-2003; proc.02P4634, rel. Cons. Leal Henriques (www.dgsi.pt), aí se escrevendo: «a necessidade prevista no art.º 113º do CPP., de notificação pessoal da sentença penal ao arguido, a par da notificação do seu advogado ou defensor, só ocorre quanto às sentenças ou acórdãos proferidos pelos tribunais da 1ª instância», já que quanto aos tirados em sede de recurso «estes só são notificados aos recorrentes na pessoa dos seus mandatários ou defensores». A mesma solução foi encontrada no acórdão do STJ de 10-05-2007 (CJ, 200, t. II, p.179, proc. 1576/07, rel. Cons. Carmona da Mota), afirmando-se que (transcrição): «A garantia constitucional de recurso (em um grau), podendo exigir – ou exigindo mesmo para efectivação desse direito - a notificação da sentença (do tribunal de 1ª instância) ao arguido e ao defensor, já não exigirá nem um segundo grau de recurso nem – porque já efectivada, com o anterior, a garantia constitucional de recurso – que a notificação da respectiva decisão do tribunal de recurso se faça não só ao defensor como ao próprio arguido». Posteriormente, também no acórdão do STJ de 22-01-2009; proc. 09P0173, Souto Moura (www.dgsi.pt) se considerou: «Entende[r]-se neste S.T.J., uniformemente, que a notificação na pessoa do arguido não é aqui exigida, e que portanto, o nº 9 do artº113º do C.P.P., na parte em que excepciona a necessidade de notificação pessoal do arguido, não tem aplicação nos tribunais superiores. E na verdade, os actos mencionados no preceito, como excepção, são reportados à primeira instância. A menção da sentença surge ali no meio da que é feita à acusação, decisão instrutória, designação de dia para julgamento, às medidas de coacção e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil. É nas fases preliminares e na de julgamento em primeira instância que se tem que acautelar, da maneira mais exigente, a possibilidade de a defesa se organizar o mais eficazmente possível, e que portanto se tem que evitar, tudo quanto possa constituir surpresa para o arguido. Diferentemente se passam as coisas na fase de recurso, do que é paradigmática a dispensa de presença do arguido, em audiência, para a qual nem sequer é notificado (cfr. no mesmo sentido, P. P. Albuquerque, in “Comentário ao Código de Processo Penal”, pag. 296 e 1166).” Ainda no acórdão do STJ de 11-12-2014, proc.1049/12.6JAPRT-C.S1, rel. Cons. Isabel São Marcos (in www.dgsi.pt), se entendeu o seguinte: «como tem sido entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores, maxime deste Supremo Tribunal, o regime das notificações não tem de ser idêntico para as sentenças de 1ªinstância e para os acórdãos proferidos em recurso pelos tribunais superiores, do mesmo passo que é diferente o regime, por exemplo, para efeitos de contagem do prazo de interposição do recurso nume noutro caso ou o tipo de intervenção do arguido que, diferentemente do que sucede com a audiência realizada em 1ªinstância, para a audiência destinada a conhecer do recurso interposto para o tribunal superior não é convocado (número 2 do artigo 421º do Código de Processo Penal)».
Também veicularam o mesmo entendimento os Acórdãos do TRC de 08-03-2017; rel. Des. Luís Teixeira e do TRL de 16-05-2018; rel. Des. João Lee Ferreira.
No sentido de que o acórdão dos tribunais de recurso não exigem a notificação ao defensor, entendem Paulo Pinto de Albuquerque e Inês F. Leite que “A Lei n.º 59/98 previu ainda que o acórdão seja notificado aos recorrentes, aos recorridos e ao MP, devendo entender-se que essa notificação é feita na pessoa do defensor e dos representantes do assistente e das partes civis (…)” (Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Vol. II, 5.ª ed. atualizada, Lisboa, UCP Editora, 2023, p. 707).
Perante um tal entendimento – o qual é, como se viu, preponderante ou unanimemente adotado na jurisprudência constitucional e comum, bem como nalguma doutrina –, não vemos como possa endereçar-se censura ao entendimento do Senhor juiz de Direito titular do processo, expresso no seu despacho de 05-12-2024, e como tal, não vemos que o mesmo pudesse inquinar com qualquer ilegalidade a ordem de emissão do mandado de detenção e, consequentemente, afetar a atual situação prisional do peticionário.
Em conclusão, dos dados emergentes dos autos resulta que o requerente se encontra numa situação de cumprimento de pena, dentro dos limites temporais legais, situação essa determinada, e mantida, por autoridade judiciária competente, e por factos ilícitos, típicos e culposos, que a lei prevê como pressupostos para a sua aplicação.
Não se verifica, pois, qualquer fundamento que diretamente decorra da factualidade alegada, que pudesse justificar o deferimento do presente pedido de habeas corpus, pelo que o mesmo é indeferido.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir, por carecer de fundamento bastante, a providência de habeas corpus requerida pelo arguido AA.
Fixa-se a taxa de justiça em quatro (4) UC, nos termos do art. 8.º, n.º 9 e da Tabela III do RCP.
Lisboa, STJ, data e assinaturas supra certificadas
[Texto elaborado e informaticamente editado, integralmente revisto pelo Relator (art. 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pela Senhora Juíza Conselheira Presidente da Secção]
Os juízes Conselheiros
Jorge dos Reis Bravo (relator)
Celso Manata (1.º adjunto)
Vasques Osório (2.º adjunto)
Helena Moniz (Presidente)