HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
CUMPRIMENTO DE PENA
PENA DE PRISÃO
PRESCRIÇÃO DAS PENAS
JULGAMENTO NA AUSÊNCIA DO ARGUIDO
NOTIFICAÇÃO PESSOAL
INDEFERIMENTO
Sumário


I. O eventual conhecimento pelo arguido do conteúdo da sentença não corresponde a uma notificação válida e processualmente eficaz da mesma, nomeadamente do exercício do seu direito ao recurso ou quaisquer outros efeitos, nomeadamente de prescrição;
II. Havendo lugar a audiência na ausência do arguido, a lei exige que o mesmo seja notificado pessoalmente, isto é, por contacto pessoal, como resulta do artigo 333º, nº 5 do Código de Processo Penal.

Texto Integral

I. Relatório

1. AA, arguido no processo nº 370/02.6PIAMD que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de ... - Juiz ..., preso em cumprimento de pena à ordem desses autos desde 17 de Março de 2023, vem requerer a providência de habeas corpus com fundamento em prisão ilegal, com as seguintes razões: (transcrição)

-1-

Inicia-se a presente alegação de prescrição da pena, tendo como referência a promoção do Ministério Público constante dos autos do Tribunal de Condenação à margem referenciados, datado de 01-06-2023, sob a referência ......24 - que se junta como Anexo 1- mas que e para uma melhor e mais eficaz compreensão, se faz aqui a sua integral transcrição, assim:

“(…)

Compulsados os autos, constata-se que AA foi constituído arguido em 03.02.2003, data em que prestou TIR e foi interrogado quanto aos factos que lhe são imputados; foi novamente interrogado em 20.06.2003.

Em 28.01.204 foi deduzida acusação contra o arguido e um outro indivíduo, imputando-lhe a prática de um crime de roubo qualificado, p.p. pelos arts. 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do CP, tendo sido notificado na morada do TIR que prestou.

O julgamento teve lugar no dia 10.11.2004, na ausência do arguido que se encontrava notificado, ao abrigo do disposto no art. 333.º, n.º 1 do CPP, e por decisão de 29.11.2004 foi condenado pela prática de um crime de roubo qualificado, p.p. pelos arts. 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b), e, articulação com o disposto no art. 204.º. n.º 2, al. f), ambos do CP, na pena de 3 anos e 4 meses de prisão.

Na impossibilidade de notificar o arguido pessoalmente da decisão acima referida, foi declarado contumaz em 24.01.2006, tendo sido emitido mandado de detenção judicial em 21.10.2008 e em 29.10.2012 foi emitida carta rogatória dirigida às autoridades do Reino Unido, solicitando a sua notificação.

Em 05.11.204 foi emitida nova carta rogatória tendo em conta ter-se apurado nova morada do arguido no Reino Unido e uma nova carta rogatória em 26.06.2015 bem como outra carta rogatória em 23.09.205, dirigida às autoridades francesas, na sequência de indicação de nova morada do arguido naquele país.

Por não ter sido possível cumprir os pedidos de cooperação internacional acima identificados, foi emitido novo Mandado de detenção em 07.03.2017 e nova carta rogatória em 06.03.2020.

O arguido foi notificado pessoalmente da decisão que o condenou, em Londres, em 07.09.2021.

De tal condenação não foi interposto recurso, tendo sido emitido Mandado de detenção internacional, entretanto cumprido.

Assim, promove-se que se satisfaça o pedido de informações das autoridades britânicas e que se informe que a data dos factos é 26.10.2002, bem como que seja dado cumprimento aos restantes formalismos descritos a fls. 682 e ss.

(texto elaborado informaticamente e revisto pela signatária)

Lisboa, d.s.

A Procuradora da República “

-2-

Da análise da referida “promoção do M.P.” acima transcrita, há a clarificar situações, as quais devidamente repostas, estruturam cabalmente a alegação da “Prescrição da Pena” dos autos em questão, assim:

-2-1-

Afirma-se na referida “promoção do M.P.” acima transcrita, que: “Na impossibilidade de notificar o arguido pessoalmente da decisão acima referida, foi declarado contumaz em 24.01.2006, tendo sido emitido mandado de detenção judicial em 21.10.2008 e em 29.10.2012 foi emitida carta rogatória dirigida às autoridades do Reino Unido, solicitando a sua notificação.”

-2-1-1-

Ora impõe-se, aqui, esclarecer que no âmbito do processo 370/02.6PIAMD, não foi nunca o arguido AA declarado contumaz a 24-01-2006.

-2-1-2-

Não é pois, correto alegar, como se faz na invocada “Promoção do M.P. de 01-06-2023” que “Na impossibilidade de notificar o arguido pessoalmente da decisão acima referida, foi declarado contumaz em 24.01.2006,(…)”.

-2-1-3-

Nem tão pouco existe nos presentes autos, declaração de contumácia datada de 24-01-2006.

-2-1-4-

O que existe na realidade conforme se constata a fls. 249, 250 e251 dos autos no processo em papel -sendo que esta documentação não existe, não é referenciada no processo informático; e que para os devidos efeitos se junta como Anexos 2, 3 e 4 -, é que foi efetuada uma pesquisa a 24.01.2006, conforme fls. 249 dos autos, aos serviços de registo de contumácia e nessa sequência a informação que foi dada a 24-01-2006, conforme fls. 250 e 251 dos autos, é que a pessoa identificada, ou seja o arguido AA estava declarado contumaz com o n.º ....97, apenas no processo 35/03.1..., ... Vara Criminal de ..., 1S.

-2-1-5-

Assim, claramente se conclui, sem margem para dúvidas, que no âmbito do Processo 370/02.6PIAMD, Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., não foi proferida declaração de contumácia nenhuma.

-2-1-6-

Aliás, a declaração de contumácia conforme consagra o n.º 3 do artigo 335.º do CP Penal é da competência do presidente, e tal declaração não existe nos autos, bem como, os serviços de registo de contumazes, nunca indicaram que o ora arguido, AA era contumaz no âmbito do presente processo;

Poderá ter sido “contumaz” no âmbito de outro ou outros processos como na realidade foi; mas, no que se refere ao processo em causa não existe essa factualidade na esfera jurídica do ora arguido.

-2-1-7-

E é de grande relevância destacar essa factualidade dado que os efeitos de ser contumaz nos presentes autos iria ter consequências negativas no regime jurídico da prescrição das penas, artigos 122.º a 126.º do C Penal, como melhor veremos, mais adiante.

-2-1-8-

Para concluir esta questão da “contumácia”, sempre se dirá que não é verdadeira, que não colhe a afirmação que se faz, que: “Na impossibilidade de notificar o arguido pessoalmente da decisão acima referida, foi declarado contumaz em 24.01.2006,(…)”; pois nunca houve declaração de contumácia no âmbito dos presentes autos, tendo como foco o arguido AA.

-2-2-

Por outro lado, afirma-se na referida “promoção do M.P.” acima transcrita, que: O arguido foi notificado pessoalmente da decisão que o condenou, em Londres, em 07.09.2021.

De tal condenação não foi interposto recurso, tendo sido emitido Mandado de detenção internacional entretanto cumprido.”

-2-2-1-

Ora impõe-se, aqui, esclarecer que no âmbito do presente processo, o arguido AA foi notificado pessoalmente da decisão que o condenou, em Londres, antes da data de 07-09-2021, contrariando, assim, a afirmação constante da referida “Promoção de 01-06-2023”.

-2-2-2-

Mais concretamente, o arguido AA foi notificado pessoalmente da decisão que o condenou, em Londres, em Dezembro de 2012, - mais propriamente, a 05-12-2012, pelas 14horas e 49m-, conforme se prova pela documentação constante de fls. 389,393, 396 e 396/verso dos autos – comprovativos que se juntam como Anexos 5,6,7 e 8-, e que para um cabal esclarecimento se propõe discriminar os respetivos comprovativos, assim:

-2-2-2-1

Especificando os respetivos anexos, diremos:

-2-2-2-1-1

►Anexo 5, corresponde a fls. 389 dos autos e refere-se a ofício de 28-11-2012, dirigido ao arguido AA pelo tribunal sob a referência .....90, com o objetivo de o notificar do acórdão proferido nos autos e para, em conformidade, exercer o direito de recurso, cujo prazo era à data de 20 dias - de referir que muito embora nos autos não conste o comprovativo de que o referido ofício foi entregue, a entrega foi conseguida a 05-12-2012, pelas 14horas e 49m; de qualquer das formas nos autos, também não existe comprovativo de que o ofício não foi entregue -.

-2-2-2-1-2

►Anexo 6, corresponde a fls. 393 dos autos do processo em papel, tendo dado entrada nos autos via e-mail a 7 de Janeiro de 2013, sob o registo .....40, e refere-se a um requerimento do arguido AA, em resposta e na sequência do ofício do tribunal de28-11-2012,sob a referência .....90, requerimento em que o arguido vem solicitar ajuda do tribunal para poder exercer o direito de recurso do acórdão que o condenou em pena de prisão.

De referir que este requerimento apesar de não estar fisicamente no processo informático, está nele referenciado através do registo n.º .....40, e da data, concretamente 7 de Janeiro de 2013.

-2-2-2-1-3

►Anexo 7, corresponde a fls. 396 dos autos do processo em papel, tendo dado entrada nos autos via correio a 10 de Janeiro de 2013, sob o registo .....41, e refere-se a um requerimento do arguido AA, em resposta e na sequência do ofício do tribunal de 28-11-2012,sob a referência .....90, requerimento em que o arguido vem solicitar ajuda do tribunal para poder exercer o direito de recurso do acórdão que o condenou em pena de prisão.

De referir que este requerimento apesar de não estar fisicamente no processo informático, está nele referenciado através do registo n.º .....41, e da data, concretamente de 10 de Janeiro de 2013.

De salientar que o Anexo 6 e o Anexo 7 são requerimentos com o mesmo conteúdo, tendo a distingui-los, o facto do Anexo 6 ter dado entrada no tribunal a 7 de Janeiro de 2013, via e-mail e o Anexo 7 ter dado entrada a 10 de Janeiro de 2013, via correio.

-2-2-2-1-4

►Anexo 8, corresponde a fls. 396/Verso dos autos, do processo em papel, referindo-se ao comprovativo do registo do Requerimento enviado pelo arguido AA, que deu entrada a 10 de Janeiro de 2013, sob a referência .....41, e aonde está perfeitamente identificado que diz respeito e é em resposta ao ofício do tribunal de 28-11-2012, sob a referência .....90, este como objetivo de notificar o arguido do acórdão proferido nos autos e para, em conformidade, exercer o direito de recurso, cujo prazo era à data de 20 dias.

-2-3-

De tudo o que acima vem exposto, o arguido AA foi pessoalmente notificado, em Londres, da decisão que o condenou em Dezembro de 2012.

No entanto, como não existe no processo em papel, nem no processo informático a prova do registo e do aviso de receção da respetiva notificação do tribunal de 28-11-2012, sob a referência .....90; mas sendo que está provado cabalmente que a mesma foi conseguida com sucesso, caso contrário, não teriam existido os 2 requerimentos do Arguido que constam dos Anexos 6 e 7;

Entende-se que face a critérios de legalidade, de justiça e de razoabilidade, a data que deverá ser assente como a que o arguido AA foi pessoalmente notificado, em Londres, da decisão que o condenou, será a de 7 de Janeiro de 2013.

-2-3-1-

Assim, assente que a data em que foi o arguido AA foi notificado pessoalmente da decisão que o condenou, é a de 7 de Janeiro de 2013, e sendo que à data o prazo de recurso era de 20 dias, o trânsito em julgado dá-se a 28 de Janeiro de 2013.

-2-3-2-

Face a esta realidade incontestável, fica frustrada e sem efeito a data de 07 de Outubro de 2021, como data que o Tribunal de Condenação entendeu que o acórdão em questão tinha transitado em julgado.

-2-4-

Chegado a este momento impõe-se assentar que no âmbito do presente processo, o arguido AA não foi declarado contumaz no âmbito deste processo, bem como está cabalmente provado que a “notificação pessoal” do acórdão que o condenou à pena de 3 anos e 4 meses, deu-se a 7 de Janeiro de 2013, e como em consequência de não ter interposto o respetivo recurso, a decisão de condenação transitou em julgado a 28 de Janeiro de 2013.

-3-

É partindo destas factualidades, mais propriamente a de que o arguido AA não foi declarado contumaz no âmbito deste processo e de que a decisão que o condenou a 3 anos e 4 meses transitou em julgado a 28 de Janeiro de 2013, que se constrói a alegação de que estamos face à Prescrição da Pena, prescrição essa que se sustenta:

- quer por aplicação da alínea c-) do n.º 1 do artigo 122.º do C. Penal;

- quer por aplicação do n.º 3 do artigo 126.º do C. Penal;

-3-1-

O que se pretende expressar é que em ambas as situações, ou seja aplicando ambos os preceitos legais, verifica-se, sempre, a Prescrição da Pena, sendo, no entanto, diverso o momento em que se constata a existência da Prescrição da Pena a que o arguido foi condenado.

Alegação que se demonstra, assim:

-A- PRESCRITO O CRIME DO SAUTOS POR VERIFICAÇÃO DO PRAZO MÁXIMO DE PRESCRIÇÃO – CONFORME N.º 3, DO ARTIGO 126.º DO C.PENAL-

-3-2-

O prazo máximo da Prescrição conforme o n.º 3 do artigo 126.º do C. Penal consagra que: “A prescrição da pena e da medida de segurança tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal da prescrição acrescido de metade.”.

● Ora, no caso em concreto dos autos, o prazo normal de prescrição é o constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 122.º do C. Penal, ou seja 10 anos, que acrescido de metade, ou seja 5 anos, dá como prazo máximo de prescrição 15 anos;

● A contagem do prazo de prescrição conta-se do início da prática dos factos, portanto no caso em concreto, desde 26-10-2002;

● Sendo que, no caso em concreto dos autos, não se verifica nenhuma das situações de suspensão da prescrição, estatuídas nas alíneas do n.º 1 do artigo 125.º do C. Penal, pelo que, aqui, não há que ressalvar tempo de suspensão – pois como, já foi acima, cabalmente exposto não existe nos presentes autos qualquer “declaração de contumácia”;

● Por fim, a contagem do prazo máximo de 15 anos, iniciando-se em 26-10-2002, a Pena do arguido AA PRESCREVEU A 26-10-2017.

-B- PRESCRITO O CRIME DOSAUTOS POR VERIFICAÇÃO DO PRAZO NORMAL DE PRESCRIÇÃO – CONFORME ALÍNEAC) DO N.º 1 E N.º 2 DO ARTIGO 122.º DO C.PENAL-

-3-3-

O regime jurídico do prazo normal de “Prescrição” da pena no caso concreto dos autos, vem consagrado na alínea c-) do n.º 1 e no n.º 2 todos do artigo 122.º do C. Penal, assim:

“ 1 -As penas prescrevem nos prazos seguintes:

c) Dez anos, se forem iguais ou superiores a dois anos de prisão; (…)

2 - O prazo de prescrição começa a correr no dia em que transitar em julgado a decisão que tiver aplicado a pena.”

● Sendo a pena aplicada nos autos de 3 anos e 4 meses, o prazo normal de prescrição é o consagrado na alínea c-) do n.º 1 do artigo 122.º do C. Penal, onde se estatuí que as penas de prisão iguais ou superiores a 2 anos, mas inferiores a 5 anos prescrevem no prazo de 10 anos;

● O início do prazo de prescrição começa com o trânsito em julgado da decisão judicial que tiver aplicado a pena (artigo 122.º, n.º 2, do C. Penal);

no caso dos autos, como acima foi devidamente exposto o trânsito em julgado deu-se a 28 de Janeiro de 2013.

● Sendo que, no caso em concreto dos autos, não se verifica nenhuma das situações de suspensão da prescrição, estatuídas nas alíneas do n.º 1 do artigo 125.º do C. Penal, pelo que, aqui, não há que ressalvar tempo de suspensão – pois como, já foi acima, cabalmente exposto não existe nos presentes autos qualquer “declaração de contumácia”;

● Assim sendo decorrido o prazo de 10 anos sobre a data do trânsito em julgado da decisão que condenou o arguido, ou seja sobre a data de 28 de Janeiro de 2013, temos a “Prescrição” verificada a 28 de Janeiro de 2023.

-4-

Do que vem exposto e especificamente no que se refere à alegação de existirem 2 momentos diversos em que se verifica a prescrição da pena e por conseguinte a extinção da pena, concretamente a data de 26-10-2017 e a de 28-01-2023, tem-se como absolutamente incontornável que a data com primazia é a de 26-10-2017, ou seja, reforçando a Prescrição da Pena e consequentemente a Extinção da Pena, dá-se a 26-10-2017.

-5-

Muito embora a providência de Habeas Corpus não tenha como função solicitar ao Supremo Tribunal que exerça sindicância sobre a atividade dos tribunais, sempre se dirá em tom de informação, que o aqui Arguido, AA, já alegou no Tribunal de Condenação, no tribunal à margem identificado, que a pena a que foi condenado já estava prescrita à data em que foi detido a 17-03-2023; mas infelizmente o Tribunal de Condenação, numa atitude de tábua rasa, numa atitude de omissão de pronúncia indeferiu o respetivo pedido.

-6-

Por fim, acresce referir, também em tom de informação que sendo certo que a prescrição é do conhecimento oficioso e que claramente houve da parte dos serviços do Tribunal comportamentos que demonstram uma ausência de controle dos respetivos procedimentos, bem como e sendo certo que estando o arguido AA preso desde 17-03-2023, e que este é o único sustento do agregado familiar que se encontra atualmente em francas dificuldades financeiras, clama-se para que a decisão seja o mais rápida possível.

Em face das alegações e conclusões apresentadas, formula-se o seguinte

PEDIDO

Deverá, por efeito da prescrição, ser extinta a Pena de Prisão de 3 anos e 4 meses a que o arguido AA foi condenado, em face dos dispositivos legais, acima devidamente alegados e em consequência arquivados os autos de condenação.

Reforçando o pedido, sempre se dirá que a Prescrição da Pena e consequentemente a Extinção da Pena, dá-se a 26-10-2017;

Termos em que a prisão deve ser declarada ilegal e ordenada a libertação imediata de AA. (fim de transcrição)

2. Nos termos do artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, foi prestada a seguinte informação:

«Vi a petição de habeas corpus.

Instrua os autos com a liquidação de pena de 22-12-2023, despacho homologatório e decisão de 19-11-2024, que indeferiu o requerimento de declaração de prescrição da pena oferecido pela defesa, que até à data não consta ter sido alvo de recurso.

Remeta-se ao Supremo Tribunal de Justiça.»

3. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, teve lugar a audiência pública, nos termos dos artigos 223.º, n.º 3, e 435.º, do Código de Processo Penal.

Há agora que tornar pública a respetiva deliberação.

II. Fundamentação

4. A Constituição da República Portuguesa no seu artigo 31º, estatui que haverá providência de habeas corpuscontra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente” (nº1), a qual pode ser “requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos” (nº2) devendo o juiz decidir “no prazo de oito dias” “em audiência contraditória” (nº3).

Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira na Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, a providência de habeas corpus exige, como requisitos cumulativos, o exercício de abuso de poder, lesivo do direito à liberdade, enquanto liberdade física e liberdade de movimentos e detenção ou prisão ilegal.

Para os mesmos constitucionalistas, na obra citada, a providência de habeas corpus é o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, “testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade” constituindo uma “garantia privilegiada” daquele direito.

Neste mesmo sentido, Germano Marques da Silva, no Curso de Processo Penal, Vol. II, pág.419, 5ª Edição Verbo, considera, seguindo José Carlos Vieira de Andrade, tratar-se de “um direito subjectivo (direito-garantia) reconhecido para a tutela de um outro direito fundamental, dos mais importantes, o direito à liberdade pessoal. Em razão do seu fim, o habeas corpus há-de ser de utilização simples, isto é, sem grandes formalismos, rápido na actuação, pois a violação do direito de liberdade não se compadece com demoras escusadas, abranger todos os casos de privação ilegal de liberdade e sem excepções em atenção ao agente ou à vítima”. Acrescenta que o “pressuposto de facto do habeas corpus é a prisão efectiva e actual; o seu fundamento jurídico é a ilegalidade da prisão ou internamento ilegal”.

O legislador ordinário, na densificação do conceito de prisão ilegal, no artigo 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, considera ilegal a prisão quando a mesma “a) ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.

5. O requerente alega, em súmula, se bem percebemos a argumentação, a ilegalidade da prisão por prescrição da pena em que foi condenado.

Vejamos.

Como ficou referido anteriormente, o legislador no artigo 222º, nº 2 do Código de Processo Penal, estabeleceu, taxativamente, os fundamentos da providência excepcional de habeas corpus por prisão ilegal.

Por força desse numerus clausus em relação aos fundamentos do habeas corpus, o mesmo “ (…) não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis”, “neste há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira à situação processual do requerente, se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP" e “não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários”.1

De igual modo, no habeas corpus “(…),não cabe julgar e decidir sobre a natureza dos actos processuais e sobre a discussão que possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo)” e “não pode decidir sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso dos actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos ou dos modos processualmente disponíveis e admissíveis de impugnação” (...) “A medida não pode ser utilizada para impugnar irregularidades processuais ou para conhecer da bondade de decisões judiciais, que têm o processo ou o recurso como modo e lugar próprios para a sua reapreciação”.2

Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Maio de 2019, “Constitui jurisprudência reiterada deste Tribunal a de que a providência de habeas corpus não é o meio próprio para arguir ou conhecer de eventuais nulidades, insanáveis ou não, ou irregularidades, cometidas na condução do processo ou em decisões nele proferidas; para esse fim servem os recursos, os requerimentos e os incidentes próprios, deduzidos no tempo e na sede processual apropriados.”3

Feito este esclarecimento sobre os fundamentos e natureza da petição de Habeas Corpus e analisados os fundamentos da petição formulada, é manifesto que o recorrente apenas pretende com a mesma, de forma diríamos mesmo, directa, recorrer do despacho que indeferiu a reclamada prescrição da pena em que foi condenado, do qual segundo informação do Tribunal de 1ª Instância não foi interposto recurso.

Isto mesmo é reconhecido de forma explicita pelo peticionante ao escrever no ponto 5 do seu pedido: “Muito embora a providência de Habeas Corpus não tenha como função solicitar ao Supremo Tribunal que exerça sindicância sobre a atividade dos tribunais, sempre se dirá em tom de informação, que o aqui Arguido, AA, já alegou no Tribunal de Condenação, no tribunal à margem identificado, que a pena a que foi condenado já estava prescrita à data em que foi detido a 17-03-2023; mas infelizmente o Tribunal de Condenação, numa atitude de tábua rasa, numa atitude de omissão de pronúncia indeferiu o respetivo pedido”, concluindo-se que se declare extinta a pena e, por consequência, a libertação imediata do peticionante.

Ora, como ficou referido e é jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça, a petição de Habeas Corpusnão se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários”.

De todo o modo, apesar do que fica dito, não deixaremos de apreciar, perfunctoriamente, a petição do reclamante.

Para essa apreciação, importa, antes de mais, estabilizar a materialidade processual resultante dos autos, na parte relevante, tendo em conta os elementos enviados a este Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente a promoção rectificada da liquidação da pena e o despacho da Meritíssima Juíza a indeferir a reclamada, naqueles autos, prescrição da pena de prisão.

Resulta processualmente dos autos o seguinte:

a. Em 03.02.2003 o arguido AA prestou TIR indicando como morada Rua..., na ... – cfr. fls. 19;

b. Em 10.11.2004 deu-se início à audiência de julgamento e determinou-se que o arguido AA, regularmente notificado – cfr. fls. 132 - fosse julgado na ausência, nos termos do disposto no artº 333º, nº 1 do CPPenal – cfr. fls. 175 e seguintes;

c. Em 29.11.2004 foi proferido Acórdão, não tendo AA comparecido à leitura, tendo o mesmo sido condenado, pela prática de um crime de roubo qualificado, previsto e punido pelos artigos 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b), em articulação com o disposto no artigo 204.º, n.º 2, al. f), ambos do Código Penal, na pena de 3 anos e 4 meses de prisão – fls. 193 e seguintes;

d. Foram efectuadas diligências nos autos com vista a proceder à notificação a AA do Acórdão proferido tendo-se apurado que o mesmo residiria no Reino Unido (em morada não comunicada pelo mesmo e diferente da constante do TIR prestado);

e. Tendo-se apurado morada no Reino Unido onde o aludido arguido alegadamente residiria foi expedida carta registada, com aviso de recepção, enviando-se-lhe cópia do Acórdão proferido - cfr. fls. 387 a 389 – desconhecendo-se, nos autos, se a mesma foi recepcionada por aquele;

f. O arguido AA apresentou, pelo menos em 10.01.2013, requerimento aos autos a solicitar a substituição do Defensor anteriormente nomeado – cfr. fls. 396 e 396-verso;

g. Em 15.02.2013 foi expedida carta registada, com aviso de recepção, para a morada no Reino Unido – cfr. fls. 396 - a qual foi devolvida com a menção ali aposta “addresee gone away” – cfr. fls. 416;

h. Em 05.11.2014 foi emitida carta rogatória para o Reino Unido para notificação ao arguido do Acórdão proferido nos presentes autos – cfr. fls. 450 a 453;

i. Em 07.09.2021 o arguido AA foi pessoalmente notificado do Acórdão proferido nos presentes autos – cfr. fls. 623 a 625;

j. O Acórdão transitou em julgado em 07.10.2021.

Estabilizada a materialidade processual relevante constante dos autos, vejamos o direito.

Os prazos de prescrição das penas estão estabelecidos no artigo 122º do Código Penal, o qual, no que aqui interessa, de acordo com o referido artigo nº1, alínea c) é de “Dez anos, se forem iguais ou superiores a dois anos de prisão”, o qual começa a correr, de acordo com o número 2, “no dia em que transitar em julgado a decisão que tiver aplicado a pena”.

De acordo com o artigo 126º, nº 3 do Código Penal, “A prescrição da pena e da medida de segurança tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal da prescrição acrescido de metade.” Verifica-se, assim, no caso dos autos, que o prazo normal de prescrição da pena é de 10 anos, podendo estender-se, no máximo, a 15 anos.

O peticionante para reclamar a prescrição da pena de prisão em que foi condenado, alega, para além de um eventual lapso de escrita constante de uma promoção do Ministério Público no qual se refere que o arguido foi declarado contumaz nos autos, lapso totalmente irrelevante para o caso, invoca que o mesmo foi notificado do acórdão condenatório em 7 de Janeiro de 2013, data em que tomou conhecimento da referida condenação e solicitou a substituição do seu Ilustre Defensor, tendo o requerimento dado entrada no Tribunal a 10 de Janeiro de 2013.

Não tem razão o peticionante.

Como refere a Meritíssima Juíza no despacho que proferiu nos autos, sobre a peticionada extinção da pena, “ainda que o condenado possa ter tido conhecimento do teor do Acórdão proferido nos autos, por força de ter recepcionado a carta simples que lhe foi enviada para o Reino Unido, tal não derroga a necessidade de se mostrar necessário proceder à sua notificação pessoal do teor daquele nos termos supra expostos. Só tal forma de notificação se configura como idónea a assegurar a cognoscibilidade do acto notificando, designadamente, quando este diz respeito a um acórdão condenatório e tem por putativo efeito a privação de liberdade do notificando”.

Foi por força deste entendimento, ausência de notificação pessoal da decisão condenatória, que o Tribunal continuou, e bem, a envidar esforços para notificar o arguido, apenas vindo a consegui-lo em 07 de Setembro de 2021, como se constata dos factos processualmente assentes.

Na verdade, o artigo 113.º, n.º 1, do Código de Processo Penal estatui que as notificações se efectuam por “Contacto pessoal com o notificando e no lugar em que este for encontrado” (a)); Via postal registada, por meio de carta ou aviso registados” (b)) e "por via postal simples, por meio de carta ou de aviso, nos casos expressamente previstos" (c)).

No que respeita à notificação por via postal simples, um dos casos expressamente previstos é o do artigo 196.º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, segundo o qual, o estatuto de arguido, sujeito a termo de identidade e residência, implica que "as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada (...) excepto se o arguido comunicar uma outra".

Por sua vez o artigo 333.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, em relação às formalidades da notificação da sentença, nos casos em que houve lugar à audiência na ausência do arguido, como foi o caso sub judice, estatui expressamente que “... a sentença é notificada ao arguido logo que seja detido ou se apresente voluntariamente. O prazo para interposição de recurso pelo arguido conta-se a partir da notificação da sentença”. Esta mesma solução legal, verifica-se nos casos de audiência na ausência do arguido em casos especiais, regulados no artigo 334º do Código de Processo Penal, como se alcança do seu número 6.

Ora, perante este enquadramento legal é manifesto que o eventual conhecimento pelo arguido, aqui peticionante, do conteúdo da sentença não corresponde a uma notificação válida e processualmente eficaz da mesma, nomeadamente do exercício do seu direito ao recurso ou quaisquer outros efeitos, nomeadamente de prescrição.4 A lei exige que o mesmo seja notificado pessoalmente, isto é, por contacto pessoal, como resulta do artigo 333º, nº 5 citado, o que apenas se verificou em 07 de Setembro de 2021 e o acórdão transitou em julgado em 07 de Outubro de 2021.

Tendo a sentença transitado em 7 de Outubro de 2021, a questão que se coloca já não é a prescrição do procedimento criminal, diga-se inexistente, porquanto verifica-se, além de várias causas de interrupção, a suspensão da prescrição da alínea d) do artigo 120º do Código Penal (A sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência) a qual apenas cessa quando cessar a sua causa (nº 6), mas, antes, a prescrição da pena, a qual apenas se verifica, como ficou referido, decorridos 10 anos a contar do transito em julgado.

De todo o modo, como ficou dito, o que o requerente pretende, com esta providência de Habeas Corpus, é transformar a mesma num verdadeiro recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, o qual nem a lei, nem os pressupostos da providência, permitem.

Como se refere no sumário do acórdão deste Supremo Tribunal de 26 de Junho de 2003, “O habeas corpus, tal como o configura a lei (art. 222.º do CPP), é uma providência extraordinária e expedita destinada a assegurar de forma especial o direito à liberdade constitucionalmente garantido, que não um recurso, não visando, pois, submeter ao Supremo Tribunal de Justiça a reapreciação da decisão da instância à ordem de quem está o preso o requerente, mas sim colocar a questão da ilegalidade dessa prisão”5, logo não pode o Supremo Tribunal substituir-se às instâncias na apreciação da prescrição da pena em que o peticionante foi condenado.

Tendo a prisão sido ordenada por entidade competente (Tribunal/magistrado judicial), foi motivada por facto que a lei permite a sua aplicação (execução de sentença condenatória transitada em julgado), a qual se mantém dentro dos prazos fixados na condenação, contados de acordo com as normas relativas à execução das penas de prisão, deve a requerida providência ser indeferida.

Perante todos estes dados, não se pode concluir de outra forma que não seja o indeferimento do presente pedido de habeas corpus e pela sua consideração como manifestamente infundado.

III. Decisão

Termos em que acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir a providência de habeas corpus requerida pelo arguido AA, por ser manifestamente infundada.

Custas pelo requerente, com taxa de justiça fixada em três UC – n.º 9 do artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa.

Tendo em conta que a providência é manifestamente infundada, condena-se o requerente no pagamento de 7 UC s, (artigo 223º, nº 6 do Código de Processo Penal)

Supremo Tribunal de Justiça, 08 de Janeiro de 2024.

Antero Luís (Relator)

Horácio Correia Pinto (1º Adjunto)

Carlos Campos Lobo (2º Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente)

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1. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Março de 2015, Proc. 122/13.TELSB-L.S1, disponível em www.dgsi.pt

2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05 de Maio de 2009, Proc. 665/08.5JAPRT-A.S1, citado no acórdão de 04 de Janeiro de 2017, Proc. 109/16.9GBMDR-B.S1, disponível em www.dgsi.pt

3. Proc. 1206/17.9S6LSB-C.S1, disponível em www.dgsi.pt

4. Neste sentido, entre outros, Acórdão do Tribunal Constitucional nº 274/2003 de 28 de Maio de 2003 disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20030274.html

5. Proc. 03P2629, disponível em www.dgsi.pt