RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CORREIO DE DROGA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I – Não há qualquer razão para desvalorizar, na determinação da pena, a quantidade de cocaína transportada, em função de o recorrente ter atuado como “correio de droga”.
II - Os chamados “correios de droga” constituem uma peça fundamental no tráfico de estupefacientes, contribuindo, de modo direto e com grande relevo, para a disseminação deste flagelo, à escala global, pelo que, diversamente do alegado, não merecem, de per si, um especial tratamento penal de favor, no plano da ponderação da ilicitude, independentemente de se admitir que, no domínio da culpa, a sua posição pode ser mais diversificada. Sob pena de se incentivar o tráfico internacional, a resposta do sistema penal tem de ser firme, de modo a evitar o efeito de imitação.
III - Ainda que o “correio de droga” possa não ter um conhecimento exato da quantidade de produto estupefaciente – o que no caso, note-se, não consta dos factos provados –, foge às regras da experiência comum que não tenha uma ideia da quantidade e qualidade do produto estupefaciente que transporta, pelo que a quantidade e a natureza do produto apreendido não podem deixar de ser consideradas no momento da determinação da medida da pena.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO

1. O Ministério Público deduziu acusação, no processo 527/23.6JELSB, contra AA e BB, ambos com os restantes sinais dos autos, imputando, a cada um deles, a prática, em coautoria material, de um crime de tráfico e outras atividades ilícitas, p. e p. no n.º 1 do artigo 21.º, com referência à Tabela I-B, e no artigo 34.º do Regime Jurídico aplicável ao Tráfico e Consumo de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, nas alíneas b), e) e f) do n.º 1, do artigo 134.º, no n.º 3, do artigo 140.º e no n.º 1, do artigo 151.º, do Regime Jurídico de Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional, aprovado pela Lei n.º 23/2007, de 4 de julho.

Procedeu-se à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública, passando os mesmos a subsumir-se na prática, pelos arguidos, em coautoria material, de um crime de tráfico e outras atividades ilícitas, p. e p. no n.º 1 do artigo 21.º, com referência à Tabela I-B, e no n.º 1 do artigo 34.º do Regime Jurídico aplicável ao Tráfico e Consumo de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, e no n.º 1, do artigo 151.º, do Regime Jurídico de Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional, aprovado pela Lei n.º 23/2007, de 4 de julho.

Por acórdão do tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, os arguidos foram condenados, de acordo com o dispositivo, nos seguintes termos que se transcrevem:

« Por tudo o exposto, os juízes que compõem o presente Tribunal Coletivo decidem:

Condenar o arguido AA pela prática, em coautoria material, de um crime de tráfico e outras atividades ilícitas, p. e p. no n.º 1 do artigo 21.º, com referência à Tabela I-B, e no n.º 1 do artigo 34.º do Regime Jurídico aplicável ao Tráfico e Consumo de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, e no n.º 1 do artigo 151.º do Regime Jurídico de Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional, aprovado pela Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, nas penas de:

- 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- Expulsão do território nacional português, pelo período de 7 (sete) anos.

b) Condenar a arguida BB pela prática, em coautoria material, de um crime de tráfico e outras atividades ilícitas, p. e p. no n.º 1 do artigo 21.º, com referência à Tabela I-B, e no n.º 1 do artigo 34.º do Regime Jurídico aplicável ao Tráfico e Consumo de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, e no n.º 1 do artigo 151.º do Regime Jurídico de Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional, aprovado pela Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, nas penas de:

- 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- Expulsão do território nacional português, pelo período de 7 (sete) anos.

(…).»

2. Os arguidos interpuseram recursos do referido acórdão para este Supremo Tribunal, formulando as conclusões que a seguir se transcrevem.

2.1. Recurso de AA:

1 – No presente recurso, não se coloca em causa os factos ilícitos praticados, nem quaisquer questões relacionadas com a matéria de facto dada como provada, mas sim, e apenas no que toca à pena aplicada ao Recorrente que se considera exagerada e desproporcional;

2 –O Arguido foi condenado pela prática em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos artigos 21º, n.º 1, e 34º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22-01, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão e ainda na pena acessória de expulsão de território nacional;

3 – Foram dados como provados todos os factos constantes da acusação; até porque,

4 - O Recorrente, confessou integralmente e sem reservas a autoria do crime e terá necessariamente de ser punido, contudo não pode conformar-se com a medida da pena de prisão que lhe foi aplicada, por ser manifestamente desadequada e desproporcionada;

5 – Até porque não deve ser a mesma ponderada em função da quantidade, pois sendo correio de droga, normalmente aceita fazer o transporte, sem, contudo, saber qual a quantia exata de droga que transporta.

6 – O recorrente agiu em pleno desespero, pois havia contraído inúmeras dívidas, e não estava a ser capaz de as pagar, tendo já credores atrás de si.

7 - O Recorrente está perfeitamente integrado socialmente e familiarmente no Brasil, além de que não possui quaisquer antecedentes criminais;

8 – Mostrou sincero arrependimento

9 – O Recorrente apela que lhe seja dada uma merecida e justa oportunidade de iniciar um correto caminho, sendo ainda bastante jovem e encontrando-se a tempo de enveredar por uma vida viável, longe dos meandros da marginalidade;

10 - Ainda que o Tribunal a quo valorize a quantidade de produto estupefaciente que o mesmo transportava para fundamentar a escolha da pena 6 anos e 6 meses, com referencia à quantidade de produto de estupefaciente, determinando o grau de ilicitude e medida da culpa, o certo é que tal circunstância não é suficiente para, tão-só, optar por uma pena de prisão efectiva tão pesada. Aliás, muitos acórdãos para diferentes quantidades do mesmo produto estupefaciente, aplicam a mesma medida de pena;

11 - A actuação do arguido traduz-se num vulgar “correio de droga”, sem que tivesse o domínio do facto, ou seja no sentido de ser ele, em concreto, o dono da droga que lhe foi apreendida, nem quem destinava tal produto para venda ao público, com manifesta intenção de obter daí um avultado lucro económico;

12 - Aliás, o Arguido nem sabia que quantidade trazia.

13 - Considerando todas as envolventes do comportamento da Arguido, tendo em conta as exigências de reprovação e prevenção da prática de futuros crimes e os demais fatores estabelecidos no art.º 71.º do Código Penal, face ao quadro punitivo aplicável, entende-se adequada a aplicação ao Arguido de uma pena inferior à aplicada, a qual não afronta os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas (art. 18.º, n.º 2 C.R.P.), nem as regras da experiência, antes é adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, e não ultrapassa a medida da culpa do Arguido, mostrando-se proporcional e adequada;

14 - Assim, a pena encontrada pela primeira instância, pela defesa entende-se que se violou o disposto no art. 71º e 40º todos do C.P..

15 - Nestes termos e nos melhores de direito, deverá ser alterada a Douta Decisão recorrida, considerando-se o recurso interposto procedente, e condenar o Arguido, pela prática em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos artigos 21º, n.º 1, e 34º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22-01, numa pena abaixo daquela em que foi condenada, próximo do limite mínimo legal previsto.

16 – Até porque o arguido mostrou arrependimento após vários meses de reclusão onde pode refletir sobre a sua conduta, e sobre o que pretende para o seu futuro.

17 - O arguido entende, portanto que a pena a lhe ser aplicada seja inferior a cinco anos,

18- Pois acima dos 5 anos, as regras da liberdade condicional, e da expulsão do arguido, como se sabe, são diferentes.

19- A situação actual do arguido demandava solução diversa.

Face à matéria ora alegada e verificada a ausência de registo criminal do arguido, assim como não tendo sido observados em rigor os elementos favoráveis ao arguido no que toca à escolha da medida da pena, deverá o Colendo Supremo Tribunal de Justiça, proceder como alegado infra, e assim e sem prescindir do douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso

merecer provimento e, em consequência deve a pena de prisão ser reduzida para outra próxima do mínimo previsto, tendo essencialmente em conta a confissão integral dos factos e colaboração com a justiça por parte da arguido, assim como o sincero arrependimento; só assim certamente se fará a tão acostumada JUSTIÇA!

2.2. Recurso de BB:

1. Foi a recorrente condenada, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-B anexa ao mesmo diploma.

2. Entende a recorrente que a pena que lhe foi aplicada é excessiva, desajustada e desproporcional.

3. Resulta do Acórdão recorrido que foram tidas como atenuantes, a ausência de antecedentes criminais, a confissão, integral e sem reservas, dos factos, o arrependimento demonstrado, a inserção social e familiar da arguida.

4. Ora conforme estatui o art.º 71.º nº 2 alínea c) do C.P. revela para efeitos de determinação concreta da pena “(…) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram.”

5. Resulta assim, do acórdão recorrido, ponto 18 da factualidade provada que a recorrente acedeu fazer o transporte para solver uma divida contraída pela sua mãe (consumidora de produto estupefaciente).

6. E isto releva na medida em que a arguida efetuou o transporte para pagar uma divida que não era sua.

7. Era um ato de solidariedade e necessidade para com a sua mãe.

8. Não era por isso um capricho seu com vista a obter um proveito económico fácil e rápido.

9. Tratou-se, pois, de um episódio isolado na vida da arguida, que se deveu ao desespero e aperto financeiro em que vivia a sua mãe e como forma de poder ajudá-la no problema que enfrentava.

10. A sua conduta não pode ser equiparada à de um grande traficante com vista a beneficiar de avultados lucros.

11. E é esta a distinção que deve ser feita entre quem tem o domínio do tráfico e se propõe auferir o correspondente lucro ilícito e aquele cuja intervenção é meramente instrumental, assumindo os riscos principais da parte logística, inclusive a nível da integridade física, a troco de uma compensação monetária.

12. A arguida não tem antecedentes criminais tendo atuado no âmbito dos presentes autos como um mero correio de droga, que são um dos elos mais fracos da cadeia.

13. Antes de ser detida vivia com a sua mãe, dois irmãos e três filhos de tenra idade.

14. Antes de ser detida desenvolvia a atividade de cabeleira, sendo quem provia ao sustento da família.

15. Ainda que não se ignore que a arguida transportava uma quantidade elevada de produto estupefaciente.

16. Não resultou porem, que essa grande quantidade de droga por si transportada lhe trouxesse maiores lucros.

17. E isto porque resulta apenas do Acórdão recorrido que a arguida acedeu fazer o transporte para pagar uma divida da sua mãe, no valor de 12.000 mil reais.

18. Em termos de ilicitude ainda que a grande quantidade de droga que a arguida transportava, possa ter algum reflexo, já em ternos de personalidade da arguida, a mesma apenas transportou o que lhe mandaram, nem se tendo demonstrado que com isso, teve uma mais avultada compensação.

19. Estes factos, deve assim ter reflexos apenas médios, ao nível da concretização da pena e em termos da ilicitude da conduta, não devendo dele retirarem-se conclusões negativas quanto à personalidade do agente, nem às necessidades de prevenção especial.

20. Nesta medida e tendo em conta a confissão e arrependimento sincero demonstrado pela recorrente, a ausência de antecedentes criminais, a sua inserção social familiar e profissional aliada à motivação que esteve na base da prática do crime, entende a recorrente e que a pena de prisão aplicada à arguida, de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses é excessiva, podendo a mesma ser reduzida.

3. O Ministério Público, junto da 1.ª instância, respondeu aos recursos, pronunciando-se no sentido de que o acórdão recorrido deve ser confirmado e mantido, formulando as seguintes conclusões que se transcrevem:

I. Inconformados com o Douto Acórdão que os condenou pela prática, como autores materiais e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-B anexa, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, vieram os arguidos interpor recurso formulando para tal as correspondentes conclusões.

II. Os recursos interpostos assentam fundamentalmente na discordância relativamente à pena aplicada, considerando-a face às circunstâncias do caso, nomeadamente face à confissão integral e à ausência de antecedentes criminais, excessiva e desproporcional.

III. O Ministério Público não concorda com a posição assumida pelos recorrentes, entendendo que o Tribunal indicou expressamente as circunstâncias que depõem a favor e contra os arguidos para justificar a aplicação da pena em causa, a qual se entende ser adequada e justa, subscrevendo o entendimento do Tribunal que, a nosso ver, não merece reparo.

IV. Ao crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, corresponde a moldura penal abstracta de pena de prisão de 4 a 12 anos.

V. Na fixação da medida concreta da pena, como ensina Figueiredo Dias, devem ser tidos em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no artº 71º – exigências gerais de culpa e prevenção – e o critério especial dado pelo nº 1 do artº 77º: «Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

VI Analisados os factos dados como provados, concatenados com as normas legais aplicáveis, facilmente concluímos que nada falhou na apreciação efectuada pelo Tribunal a quo, revelando-se que a culpa dos arguidos, manifesta já uma gravidade elevada, face ao circunstancialismo do transporte do produto estupefaciente ser de nível internacional, assumindo os arguidos a posição que vulgarmente se designa de ‘correio de droga’ neste caso, transportando-a do Brasil para Portugal na bagagem de porão, quantidade manifestamente elevada (o arguido transportava no interior das duas malas que constituíam a sua bagagem de porão, cada uma delas contendo uma mala mais pequena, o total de 4 (quatro) embalagens a vácuo, envoltas em plástico transparente, que, por sua vez, continham cocaína no seu interior, com o peso líquido de 7.498,00g (sete mil quatrocentos e noventa e oito gramas), e um grau de pureza de 69.1% enquanto que a arguida transportava no interior das duas malas que constituíam a sua bagagem de porão, cada uma delas contendo uma mala mais pequena, o total de 4 (quatro) embalagens a vácuo, envoltas em plástico transparente, que, por sua vez, continham cocaína no seu interior, com o peso líquido de 7.488,00g (sete mil quatrocentos e oitenta e oito gramas) o que manifestamente eleva o grau de ilicitude do facto, e que, naturalmente, permite e impõe a aplicação de uma pena distanciada do limite mínimo da moldura penal.

VII. O que manifestamente eleva o grau de ilicitude do facto, e que, naturalmente, permite e impõe a aplicação de uma pena distanciada do limite mínimo da moldura penal.

VIII. Com efeito, ainda que os arguidos tenham agido como “correios de droga”, é preciso ter presente que os “correios” são peças importantes no mercado internacional de estupefacientes, cuja ação é essencial para a consecução da ação ilícita, pelo que em nada essa sua condição mitiga a ilicitude da conduta ao transportar tal quantidade de cocaína.

IX. Ademais, importa não olvidar que os arguidos atuaram com dolo direto, sendo evidente e significativa a sua vontade criminosa [als. a) e b), do n.º 2, do artigo 71.º, do Código Penal].

X. Face à confissão integral e sem reservas dos factos (que não assume particular relevância pois que se tratou de um flagrante delito), à consciência critica sobre a conduta que tomaram e à ausência de antecedentes criminais, não podemos deixar de concluir que as exigências de prevenção especial, não obstante serem elevadas, mostram-se amenizadas, na medida em que assumiram integralmente e sem reservas os factos, esclarecendo tudo o que lhes foi perguntado no decurso da audiência, mostrando-se ciente e com capacidade de formulação de algum um juízo crítico sobre a sua conduta, o que, associado à ausência de antecedentes criminais conhecidos, inculca no Tribunal a ideia de que o ato em causa poderá ter sido um episódio singular, motivado, essencialmente, pela referida necessidade de obtenção de dinheiro para fazer face a uma difícil situação familiar e económica.

XI. No que às razões de prevenção geral concerne, são muito elevadas, pelo que urge responder às expectativas sociais de reafirmação da validade material das normas violadas pelo recorrente, dada a proliferação deste tipo de crime e a pluralidade de bens jurídicos que a atuação típica faz perigar, a que acresce o elevado grau de danosidade social que decorre do mesmo.

XII. Se em cada decisão criminal se refletem opções de política criminal, tal pressuposto é por demais evidente no caso dos denominados correios de droga pois que a minimização da prevenção geral corresponde à proliferação de tal tipo de atuação criminosa transformando o nosso país em porta de entrada de tal tipo de tráfico. Como é evidente tal consideração é formulada em abstrato e será sempre a concreta conformação dos diversos fatores de medida de pena que, em concreto nos levam á determinação desta.

XIII. A perceção de tal fenomenologia está patente nas decisões do Supremo Tribunal de Justiça que, perante situações com um perfil comum, aplicam penas idênticas e em que o traço distintivo da medida da pena tem a sua génese nas particulares características de cada caso.

XIV. Ora a conjugação de todos estes fatores, do elevado grau de ilicitude e a intensidade do dolo – direto- do crime praticado permite concluir que a pena aplicada é a única adequada às necessidades de prevenção geral e especial do caso em apreço, mostrando-se a pena aplicada – 6 anos e 6 meses – muito próxima do mínimo legal aplicável de 4 anos, ao contrário do alegado pelos recorrentes, se atentarmos no limite máximo de 12 anos.

XV. A pena aplicada situa-se nos limites propostos pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores em que assume relevância, como no caso vertente e nas condições descritas, a quantidade de droga apreendida.

XVI. Assim sendo, encontrando-se corretamente definidos os parâmetros dentro dos quais tem lugar a fixação da medida concreta da pena entendemos não existir qualquer fundamento que coloque em causa a decisão recorrida no que concerne à medida da pena aplicada, pelo que nenhuma censura merece o acórdão recorrido, devendo o mesmo improceder, não tendo sido violada qualquer norma legal.

XVII. Bem andou o Tribunal a quo, pelo que o Acórdão deverá ser confirmado.

4. Neste Supremo Tribunal de Justiça (doravante STJ), o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de CPP), emitiu parecer em que, sufragando integralmente a argumentação do Ministério Público na 1ª instância, se pronunciou no sentido de que os recursos não merecem provimento, devendo, em consequência, ser confirmado o acórdão recorrido.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do CPP, não foram apresentadas respostas ao parecer. Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por deverem ser os recursos aí julgados, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido, constituindo entendimento constante e pacífico que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência dos recorrentes com a decisão impugnada, as questões suscitadas em ambos os recursos são as da determinação das penas de prisão impostas, que os recorrentes entendem excessivas.

2. Do acórdão recorrido

2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):

1) Em .../.../2023, pelas 05:21 horas, os arguidos AA e BB desembarcaram no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, provenientes do voo TP..., com origem em ... (Brasil), tendo por destino final a França ...), para onde pretendiam viajar através do voo TP434.

2) Nesse momento, o arguido transportava no interior das duas malas que constituíam a sua bagagem de porão, cada uma delas contendo uma mala mais pequena, o total de 4 (quatro) embalagens a vácuo, envoltas em plástico transparente, que, por sua vez, continham cocaína no seu interior, com o peso líquido de 7.498,00g (sete mil quatrocentos e noventa e oito gramas), e um grau de pureza de 69.1%.

3) Enquanto a arguida transportava no interior das duas malas que constituíam a sua bagagem de porão, cada uma delas contendo uma mala mais pequena, o total de 4 (quatro) embalagens a vácuo, envoltas em plástico transparente, que, por sua vez, continham cocaína no seu interior, com o peso líquido de 7.488,00g (sete mil quatrocentos e oitenta e oito gramas).

4) No mesmo momento, foram apreendidos ao arguido:

- 1.030,00 (mil e trinta) euros, em notas do Banco Central Europeu;

- Um telemóvel da marca Samsung, modelo SM-G610M, com os IMEI ...............1/4 e ..............91/2, contendo no seu interior o cartão SIM da operadora TIM, com a referência ..........30;

- Um talão comprovativo do câmbio de R$ 6200 para 1.030,00 euros, do ..., datado de .../.../2023.

5) No mesmo momento, foram apreendidos à arguida: um telemóvel da marca ..., ... iPhone 11, com o IMEI .............66, contendo no seu interior o cartão SIM da operadora CmLink com a referência ...........04.

6) Os arguidos aturam de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo a que a sua conduta era proibida e punida por lei, conjugando esforços e vontades em execução de plano previamente elaborado entre si.

7) A quantia em dinheiro apreendida aos arguidos foi obtida na sequência da atividade desenvolvida pelos mesmos em execução do acima referido plano.

8) Os telemóveis apreendidos aos arguidos destinavam-se a contactar com os indivíduos, de identidade desconhecida, que lhes haviam fornecido a cocaína.

9) Os arguidos são naturais do Brasil, têm nacionalidade brasileira e não possuem emprego estável, residência ou qualquer outra ligação profissional ou pessoal a Portugal,

10) Tendo-se deslocado para território nacional com o exclusivo propósito de praticarem os factos acima referidos.

11) Os arguidos confessaram os factos, de forma integral e sem reservas.

12) Os arguidos não têm antecedentes criminais conhecidos.

13) Do teor do relatório social efetuado em relação ao arguido, resulta o seguinte:

«AA, natural do Brasil, à data dos alegados factos, ...-...-2023, residia num bairro carenciado da cidade de..., com os progenitores, respetivamente de 71 e 58 anos de idade, num fogo de tipologia T2 pertencente à família, transmitindo encontrar-se numa situação económica muito precária, desempregado, que o conduziu à ter contraído vários empréstimos a agiotas a fim de garantir os seus gastos e despesas pessoais, segundo veiculado pelo próprio. Deste modo, segundo relatado, à data dos factos, AA encontrava-se desempregado há cerca de 3 a 4 anos, exercendo pontualmente a atividade de ..., considerando-se que o seu percurso profissional, pouco variado e inexpressivo, com reduzidos hábitos de trabalho. Assim, a partir dos 17 anos e durante cerca de 6 anos trabalhou à comissão num estabelecimento de .../..., nunca tendo formalizado qualquer contrato de trabalho, tendo posteriormente durante pouco tempo, 3 e 6 meses, estabelecido contratos de trabalho, que não foram renovados, desempenhando funções de apoio junto de uma associação de ajuda a famílias carenciadas e como vigilante. O arguido refere ter iniciado a sua autonomia financeira aos 17 anos de idade desempenhando a atividade de ..., após completar o ensino médio sem reprovações - o equivalente ao 12.º ano de escolaridade, tendo em simultâneo frequentado, numa associação de apoio a crianças e jovens carenciadas do seu bairro, um curso de ... de 1 ano e 2 meses de duração, o que lhe permitiu dar inicio à sua atividade profissional e uma progressiva e precoce independência financeira. Segundo transmitido, a partir dos 15 anos de idade, alegando que a dinâmica familiar onde o seu processo de desenvolvimento decorreu se alterou, passando a existir uma relação de conflitualidade e de falta de aceitação por parte do seu progenitor e de afastamento dos irmãos sobre si, decorrente da transmissão das suas escolhas e relações que intimidade. O processo de desenvolvimento de AA decorreu junto dos seus progenitores e quatro irmãos germanos, sendo o mais novo da fratria de cinco irmãos, num ambiente e dinâmica familiar pautado por dificuldades económicas, mas de afetividade e entreajuda entre os seus elementos, considerando a sua progenitora como o elemento significativo e de apoio. À data dos factos, AA refere que não tinha nenhuma relação de intimidade assumida, transmitindo não ter relação de amizade com a coarguida, tendo conhecido a mesma uma semana antes da data dos factos. AA reporta não ter quaisquer referências em Portugal, pelo que, logo que a sua situação jurídico-penal lho permita pretende regressar ao seu país de origem, e no sentido de voltar a reorganizar a sua vida socioeconómica, voltando a residir com os progenitores, encontrando-se a progenitora inativa por motivos de saúde, e o seu progenitor, reformado por invalidez decorrente de um acidente de trabalho no decurso da atividade de costureiro que desempenhou ao longo da sua vida. Ao nível de saúde, segundo AA é portador de uma doença infeto contagiosa cronica, encontrando-se a mesma estabilizada decorrente da toma regular de medicação, não tendo sido indicado qualquer comportamento aditivo.».

14) Do teor do relatório social efetuado em relação à arguida, resulta o seguinte:

«À data das circunstâncias que a envolvem no presente processo, BB residia na morada dos autos junto da progenitora, de 43 anos de idade, os dois irmãos mais novos, CC de 15 e DD 18 anos, e os seus 3 filhos, EE de 9 anos, FF de 8 anos e GG de 2 anos de idade. A habitação dispunha de algumas infraestruturas básicas e está localizada situada numa favela. Pagavam de renda cerca de 700/800 reias, dependendo dos gastos com eletricidade e água, incluídos no montante da prestação. Entretanto com a prisão preventiva da arguida, a referida habitação foi entregue ao respetivo senhorio. A dinâmica do relacionamento intrafamiliar era condicionada negativamente pelos comportamentos aditivos da mãe da arguida em relação aos estupefacientes. Esses comportamentos da progenitora impactavam quer ao nível socioeconómico, mas também afetivo e emocional, desorganizando a vida familiar. Na sequência do clima familiar disfuncional acima descrito, seria BB quem arcava, desde há vários anos, com a função educativa dos irmãos. Por outro lado, não contava com o apoio dos progenitores dos seus filhos aos vários níveis, responsabilizando-se nas diversas áreas da parentalidade: “sempre fui muito sozinha nesta vida”. À data da prisão, a arguida trabalharia como ..., atividade que diz desenvolver desde os 15 anos, laborando sobretudo ao domicílio. O rendimento era incerto, mas seria a base do sustento do grupo familiar.»

15) O arguido praticou os factos com o objetivo de pagar uma dívida contraída junto dos indivíduos de identidade desconhecida, acima referidos, no valor de 25.000,00 reais.

16) O telemóvel apreendido ao arguido pertence à sua mãe.

17) O pai do arguido está aposentado, auferindo 1.100,00 reais de pensão de reforma.

18) A arguida praticou os factos com o objetivo de pagar uma dívida de droga contraída pela sua mãe, consumidora de estupefacientes, junto dos indivíduos de identidade desconhecida acima referidos, no valor de 12.000,00 reais.

19) A arguida é ..., auferindo mensalmente, pelo menos, 1.500,00 reais.

20) A família da arguida beneficia do apoio do programa do Estado Brasileiro, denominado Bolsa Família, no valor mensal de 600,00 euros.

21) Os arguidos estão arrependidos de terem praticado os factos acima referidos.

2.2. Na fundamentação de facto do acórdão recorrido, diz-se o seguinte (transcrição):

«O Tribunal Coletivo considerou, de forma conjugada e contrastada entre si, os seguintes meios de prova:

Pontos 1) a 10): o tribunal considerou que os arguidos, de forma credível, por muito segura e espontânea, confessaram os factos, de forma integral e sem reservas, bem como que a prova produzida nos autos – factos materiais constatados no auto de notícia de fls. 2 e ss., termo de entrega de fls. 6 e ss., fotografias da bagagem de fls. 8 e ss., auto de teste rápido e pesagem de fls. 16, elementos identificativos do arguido de fls. 19 e ss., auto de apreensão e fotografias de fls. 22 a 26, auto de teste rápido e pesagem de fls. 26, elementos identificativos da arguida de fls. 29 e ss., auto de apreensão e fotografias de fls. 32 a 35, auto de apreensão de fls. 36 e ss., documentos de viagem e comprovativo de realização da operação de câmbio referida nos autos, de fls. 38 a 50, guias de depósito de objetos de fls. 95 a 98 e 114 e 115, exames à droga juntos aos autos (fls. 195 e referência Citius ......06) – corrobora a confissão dos factos efetuada pelos arguidos.

Ponto 12): tomou-se em consideração os certificados de registo criminal dos arguidos.

Pontos 13) e 14): o tribunal considerou o teor dos relatórios sociais dos arguidos, que foram confirmados pelos próprios, de forma espontânea, por credível e segura.

Pontos 15) a 17): tomou-se em consideração o teor das declarações confirmatórias do arguido que, dando sequência à confissão dos factos, foram credíveis, por segura e espontâneas.

Pontos 18) a 20): tomou-se em consideração o teor das declarações confirmatórias da arguida que, dando sequência à confissão dos factos, foram credíveis, por segura e espontâneas.

Ponto 21): o tribunal considerou as declarações confirmatórias dos arguidos, que foram credíveis, na medida em que os mesmos depuseram de forma espontânea e segura, mostrando-se, ademais, prostrados durante a audiência de julgamento, facto que reforçou a convicção do tribunal relativamente à prova destes factos.»

*

3. Apreciando

3.1. Os recurso diretos para o STJ em apreço têm por objeto o acórdão proferido pelo tribunal coletivo que condenou, cada um dos arguidos, na pena principal de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão e na pena acessória de expulsão do território nacional português pelo período de 7 (sete) anos.

Os recorrentes só questionam as penas principais de prisão impostas.

Por conseguinte, os recursos circunscrevem-se ao reexame de matéria de direito, da competência do STJ [artigos 432.º, n.ºs 1, al. c), e 2, e 434.º do CPP], sem prejuízo do disposto na parte final da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, segundo o qual se pode recorrer com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, que não foram invocados pelos recorrentes e que, a partir da decisão de facto e da análise da respetiva motivação, também não se evidenciam.

3.1.1. Antes da analisarmos cada um dos recursos, vejamos o que consta no acórdão recorrido quanto à determinação das penas de prisão.

Diz-se, a esse propósito:

« Ao crime de tráfico e outras atividades ilícitas corresponde uma moldura penal abstrata de 4 a 12 anos de prisão (n.º 1 do artigo 21.º do acima referido Regime Jurídico).

Na eleição do tipo de pena, e na determinação concreta do seu quantum, deve proceder-se da seguinte forma (artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal) :

- Ponderação das finalidades da punição (prevenção geral e especial, maxime positiva) e preferência pelas penas não privativas da liberdade (desde que estas realizem aquelas finalidades de forma adequada e suficiente);

- Determinação da pena concreta em resultado de uma operação de construção de uma moldura que, limitada pela culpa, se concretiza na determinação das exigências de prevenção geral (que variam entre uma medida ótima de tutela dos bens jurídicos e um limiar mínimo abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação de uma pena sem colocar em causa a sua função de tutela de tais bens);

- Determinação das exigências de prevenção especial, que se circunscrevem na moldura definida pela prevenção geral positiva.

No caso vertente, ao crime em apreço apenas é aplicável pena de prisão, pelo que há que considerar, quanto a ambos os arguidos:

- Culpa: circunscreve-se no dolo direto, sendo de grau elevado, tendo em consideração a (grande) quantidade de droga aqui em causa, bem como a elevada carga intencional colocada pelos arguidos na prática dos factos, a qual está bem espelhada no facto de os mesmos terem decidido empreender uma viagem intercontinental, com escala, no sentido de levar a cabo tais factos.

- Prevenção geral positiva: as exigências são elevadas, considerando:

- O facto de serem elevadas as atuais exigências sociais de repressão deste crime, que é muitíssimo frequente;

- A circunstância de ser muito elevada a ilicitude presente na prática dos factos, tendo em consideração o tipo de droga (droga “dura”) apreendida aos arguidos e a sua elevadíssima quantidade (cf. mapa para o qual remete o artigo 9.º da Portaria 93/96, de 26 de março).

- Prevenção especial positiva: as exigências são baixas, tendo em consideração:

Em favor dos arguidos:

A ausência de antecedentes criminais;

A confissão, integral e sem reservas, dos factos – pese embora o escasso relevo da confissão, na medida em que os arguidos foram detidos em flagrante delito;

O arrependimento demonstrado pelos arguidos;

O facto de os arguidos se mostrarem socialmente integrados, designadamente em termos familiares, pese embora a sua frágil condição económica.

Considerando a culpa e as exigências de prevenção geral e especial, julga-se ser adequado condenar cada um dos arguidos na pena de 6 anos e 6 meses de prisão.»

3.1.2. Enquadramento geral do procedimento de determinação da pena.

A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas se reconduzem à proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).

Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cf., com interesse, Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 194 e seguintes).

Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exato de pena.

Estabelece o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, relevantes para a medida concreta da pena, pela via da culpa e/ou pela da prevenção, dispondo o n.º3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjetiva no artigo 375.º, n.º1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.

Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma submoldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção atuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 227 e ss.).

Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º2, Abril-Junho de 2002, pp. 181 e 182), apresenta três proposições, em jeito de conclusões, da seguinte forma sintética:

«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»

De acordo com o referido artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, há que considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) –, e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes por via da prevenção geral, traduzida na necessidade de proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança da comunidade na norma violada, e bem assim as relevantes no plano da prevenção especial, que permitam fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro e assim avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se aqui o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e)] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente, a que se referem as circunstâncias das alíneas e) e f), adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista das exigências de prevenção especial.

3.2. Recurso de AA

Alega o recorrente, em suma, que confessou integralmente e sem reservas a autoria do crime; para a determinação da pena não deve ser ponderada a quantidade da droga, por se tratar de um mero correio; agiu em desespero por ter contraído inúmeras dívidas; está integrado social e familiarmente no Brasil; não possui antecedentes criminais e mostra sincero arrependimento.

Com base nessa alegação, pretende que lhe seja aplicada pena de prisão inferior a cinco anos.

Relembre-se que o arguido foi condenado pela prática, em coautoria material com a arguida BB, de um crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21.º, n.º1, com referência à Tabela I-B, e no n.º 1 do artigo 34.º, do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, estando dado como provado que atuaram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, conjugando esforços e vontades em execução de plano previamente elaborado entre si. Entre os dois, está em causa o transporte de cocaína, com o peso líquido de 7.498,00g (sete mil quatrocentos e noventa e oito gramas), e um grau de pureza de 69.1%, na bagagem de porão do arguido, a que acresce cocaína com o peso líquido de 7.488,00g (sete mil quatrocentos e oitenta e oito gramas), na bagagem de porão da arguida, totalizando o transporte de cocaína com o peso líquido de 14.986g (quase 15 kg) – crime imputado a ambos como coautores.

O tráfico de estupefacientes é um crime de consequências gravíssimas para a sociedade e, por isso, o legislador o sancionou com penas pesadas.

Não há qualquer razão para desvalorizar, na determinação da pena, a quantidade de cocaína transportada, em função de o recorrente ter atuado como “correio de droga” (designação habitualmente utilizada para este tipo de atuação).

A matéria de facto provada não sustenta a conclusão de que o recorrente desconhecesse a quantidade de cocaína em causa.

O grau de ilicitude do facto é bastante significativo, tendo em vista o modus operandi, traduzido numa operação de tráfico internacional, por via aérea, e bem assim considerando a quantidade e tipo de substância estupefaciente em causa – cocaína, considerada droga dura, com elevado grau de danosidade -, sendo, pois, a quantidade e a qualidade da substância transportada reveladora do referido grau de ilicitude.

Atente-se que a cocaína é um produto com elevado grau de perigosidade para a saúde, com grande poder aditivo, induzindo os consumidores, pela premência em angariar meios para a sua aquisição, à prática de variados tipos de crime, frequentemente de elevada gravidade.

O recorrente agiu com dolo direto e intenso, assinalando o acórdão recorrido que “a elevada carga intencional colocada pelos arguidos na prática dos factos” está bem espelhada no circunstância de “os mesmos terem decidido empreender uma viagem intercontinental, com escala, no sentido de levar a cabo tais factos”.

A motivação que presidiu à sua atuação foi a obtenção de meios para pagar uma dívida contraída junto de indivíduos de identidade desconhecida, no valor de 25.000,00 reais.

Quer isto dizer que, para pagar a sua dívida, o arguido/ora recorrente aceitou participar numa atividade de tráfico, à custa da saúde pública e de todo um outro conjunto de bens jurídicos pessoais, dos potenciais consumidores e da vida em sociedade.

Pretende o arguido/recorrente desvalorizar o seu papel de “correio”.

Porém, os chamados “correios de droga” constituem uma peça fundamental no tráfico de estupefacientes, contribuindo, de modo direto e com grande relevo, para a disseminação deste flagelo, à escala global, pelo que, diversamente do alegado, não merecem, de per si, um especial tratamento penal de favor, no plano da ponderação da ilicitude (cf. com interesse, entre outros, os acórdãos do STJ, de 11.04.2012, proc. n.º 21/11.8JELSB.S1, e de 24.03.2022, proc. n.º 134/21.8JELSB.L1.S1, em www.dgsi.pt, como outros que venham a ser citados sem diversa indicação), independentemente de se admitir que, no domínio da culpa, a sua posição pode ser mais diversificada

Ainda que o “correio de droga” possa não ter um conhecimento exato da quantidade de produto estupefaciente – o que no caso, note-se, não consta dos factos provados –, “foge às regras da experiência comum que não tenha uma ideia da quantidade e qualidade do produto estupefaciente que transporta, pelo que a quantidade e a natureza do produto apreendido não pode deixar de ser considerado no desvalor da ação, no momento da determinação da medida da pena” (cf. acórdão do STJ, de 11.10.2023, proc. 40/23.1JELSB.L1.S1).

A frequência com que são intercetados “correios de droga” nos aeroportos portugueses não pode deixar de conduzir a que, com firmeza, se intente evitar o pernicioso efeito de imitação, sob pena de se incentivar o tráfico internacional.

No que respeita aos fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto, depõe a favor do recorrente, a ausência de antecedentes criminais, verificando-se que a confissão dos factos é de escassa relevância, uma vez que foi detido em flagrante delito.

Não consta dos factos provados que o arguido/recorrente tenha agido “em pleno desespero”.

Diz-se nos factos provados que o arguido está arrependido de ter praticado os factos acima referidos, o que relevou a seu favor, mas não podemos deixar de questionar se estaria igualmente arrependido no caso de os seus intentos terem sido concretizados.

O arguido/recorrente está socialmente integrado, designadamente em termos familiares, pese embora a sua frágil condição económica.

Como decorre do já exposto, as exigências de prevenção geral são muito elevadas neste tipo de infração, tendo em conta o bem jurídico violado – a saúde pública - e impostas pela frequência do fenómeno e do conhecido alarme social e insegurança que estes crimes em geral causam e das conhecidas consequências para a comunidade a nível de saúde pública e efeitos colaterais, justificando resposta punitiva firme.

A moldura abstrata da pena é de 4 a 12 anos de prisão e a pena concretamente imposta situa-se em patamar claramente inferior ao meio dessa moldura.

Neste contexto – não perdendo de vista as medidas concretas das penas que os tribunais superiores, nomeadamente o STJ tem vindo a atribuir, por confirmação ou alteração em recurso, aos crimes de tráfico de droga da responsabilidade de correios, internacionais ou interterritoriais, em casos de tráfico de cocaína (ver, entre outros, os elementos indicados nos acórdãos do STJ: de 29.06.2011, processo 1878/10.5JAPRT.S1; de 28.10.2020, proc. n.º 475/19.4JELSB.S1; de 24.03.2022, proc. n.º 134/21.8JELSB.L1.S1; de 6.07.2023, proc. n.º 2332/22.8JAPRT.S1; de 4-06.2024, proc. n.º 53/23.3JELSB.L1.S1, onde se assinala que, na bitola habitual da jurisprudência do STJ para situações semelhantes, que tem vindo a estabilizar-se, desde já há algum tempo, a aplicação de penas vai variando, consoante as particulares especificidades dos casos, entre os 5 e os 7 anos de prisão) -, afigura-se-nos que, no quadro do binómio formado pela culpa e pela prevenção, a pena de prisão aplicada não merece qualquer censura.

Concluindo: o recurso não merece provimento.

3.3. Recurso de BB

Alega a recorrente, em suma, que confessou os factos; não possui antecedentes criminais; está arrependida; agiu em “ato de solidariedade” para pagamento de uma dívida que não é sua; goza de inserção social, familiar e profissional.

Relembre-se que a arguida foi condenada pela prática, em coautoria material com o arguido AA, de um crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21.º, n.º1, com referência à Tabela I-B, e no n.º 1 do artigo 34.º, do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, estando dado como provado que atuaram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, conjugando esforços e vontades em execução de plano previamente elaborado entre si. Entre os dois, está em causa o transporte de cocaína, com o peso líquido de 7.498,00g (sete mil quatrocentos e noventa e oito gramas), e um grau de pureza de 69.1%, na bagagem de porão do arguido, a que acresce cocaína com o peso líquido de 7.488,00g (sete mil quatrocentos e oitenta e oito gramas), na bagagem de porão da arguida, totalizando o transporte de cocaína com o peso líquido de 14.986g (quase 15 kg) – crime imputado a ambos como coautores.

Como já se disse a propósito do recurso do arguido AA, o tráfico de estupefacientes é um crime de consequências gravíssimas para a sociedade e, por isso, o legislador o sancionou com penas pesadas.

O grau de ilicitude do facto é bastante significativo, tendo em vista o modus operandi, traduzido numa operação de tráfico internacional, por via aérea, e bem assim considerando a quantidade e tipo de substância estupefaciente em causa – cocaína, considerada droga dura, com elevado grau de danosidade e de poder aditivo -, sendo, pois, a quantidade e a qualidade da substância transportada reveladora do referido grau de ilicitude.

A arguida/recorrente agiu com dolo direto e intenso, assinalando o acórdão recorrido que “a elevada carga intencional colocada pelos arguidos na prática dos factos” está bem espelhada no circunstância de “os mesmos terem decidido empreender uma viagem intercontinental, com escala, no sentido de levar a cabo tais factos”.

A motivação que presidiu à sua atuação foi a obtenção de meios para pagar uma dívida contraída pela sua mãe, para o que se dispôs a participar numa atividade de tráfico internacional de estupefacientes – cocaína.

Como já se assinalou, os chamados “correios de droga” constituem uma peça fundamental no tráfico de estupefacientes, contribuindo, de modo direto e com grande relevo, para a disseminação deste flagelo, à escala global. Sob pena de se incentivar o tráfico internacional, a resposta do sistema penal tem de ser firme, de modo a evitar o efeito de imitação.

No que respeita aos fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto, depõe a favor do recorrente, a ausência de antecedentes criminais (nasceu em 18.05.1998), verificando-se que a confissão dos factos é de escassa relevância, uma vez que foi detida em flagrante delito.

Deu-se como provado estar a arguida arrependida de ter praticado os factos. Está integrada social, profissional e familiarmente.

Reitera-se que as exigências de prevenção geral são muito elevadas neste tipo de infração criminal.

A moldura abstrata da pena é de 4 a 12 anos de prisão e a pena concretamente imposta situa-se em patamar claramente inferior ao meio dessa moldura.

Neste contexto – não perdendo de vista as medidas concretas das penas que os tribunais superiores, nomeadamente o STJ tem vindo a atribuir, por confirmação ou alteração em recurso, aos crimes de tráfico de droga da responsabilidade de correios, internacionais ou interterritoriais, em casos de tráfico de cocaína (ver jurisprudência supra indicada) -, afigura-se-nos que, no quadro do binómio formado pela culpa e pela prevenção, a pena de prisão aplicada não merece qualquer censura.

Concluindo: o recurso não merece provimento.

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III - DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento aos recursos interpostos por AA e HH e, em consequência, manter integralmente o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça de cada um em 5 UC (cf. artigos 513.º do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26.02 e Tabela III anexa).

Dê de imediato conhecimento ao tribunal recorrido.

Supremo Tribunal de Justiça, 15 de janeiro de 2025

(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Jorge Gonçalves (Relator)

Celso Manata (1.ª Adjunto)

Vasques Osório (2.º Adjunto)