RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
FALSIFICAÇÃO OU CONTRAFAÇÃO DE DOCUMENTO
INSTITUIÇÃO BANCÁRIA
IDENTIDADE DE FACTOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I – O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem como pressupostos substanciais que: (a) os acórdãos sejam proferidos no âmbito da mesma legislação, isto é, quando, durante o intervalo de tempo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida; (b) as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, isto é, quando entre os dois acórdãos haja “soluções opostas” na interpretação e aplicação das mesmas normas – oposição entre decisões e não entre meros fundamentos ou entre uma decisão e meros fundamentos de outra; (c) a questão (de direito) decidida em termos contraditórios tenha sido objeto de decisões expressas; e (d) haja identidade das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos, pois que só assim é possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito existem soluções opostas.
II – Resultando distintas as situações de facto e as questões de direito que estiveram na base das decisões proferidas nos acórdãos em confronto, um deles no âmbito da jurisdição criminal e o outro no âmbito da jurisdição civil, não se verifica a invocada oposição relevante de julgados que pressupõe que as situações de facto sejam idênticas nos arestos em confronto, e bem assim que neles haja expressa e explícita resolução da mesma e exata questão de direito, pelo que falece, manifestamente, um requisito substancial para a admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO

1. AA e CONVIMOR-UNIPESSOAL, LDA, vieram interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de ........2024, proferido nos autos de Recurso Penal 774/20.2..., alegando que “há oposição de julgados entre o Douto Acórdão de que se recorre, e entre jurisprudência proferida pelo Tribunal da Relação do Porto e pelo Supremo Tribunal de Justiça, que consideram ser motivo suficientes para que o Douto Acórdão seja revogado, e sejam os Arguidos absolvidos (…).”

2. São do seguinte teor as conclusões que os recorrentes extraíram da motivação que apresentaram (transcrição):

I

Os Arguidos foram condenados, quer pelo Tribunal da Comarca de Coimbra – Juízo de Competência Genérica de Soure, quer pelo Tribunal da Relação de Coimbra, na prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea d) do CPP, por, alegadamente, terem cancelado um cheque, que tinha sido emitido à ordem da Assistente, com a indicação de “extravio”.

II

Os Arguidos/Recorrentes, invocaram, em sede de Alegações de Recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, como motivo de exclusão da ilicitude, a responsabilidade do banco sacado, fundamentando-se com o Douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no âmbito do Processo nº 1024/10.5..., a ...-...-2014.

III

Acórdão esse que, aliás, foi confirmado pelo próprio Supremo Tribunal, no âmbito do Processo n.º 1024/10.5..., a ...-...-2014.

IV

Do Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, consta, designadamente, o seguinte:

I - Em caso de comunicação de “cancelamento de cheques por alegado extravio”, a entidade bancária deve agir com a máxima diligência, só aceitando os motivos justificantes do não pagamento no período legal da apresentação, quando dispuser de indícios sérios de que a situação comunicada pelo sacador se verificou ou, pelo menos, dadas as circunstâncias concretas de cada caso, tinha grande probabilidade de se ter verificado.

II – Para o conhecimento de tais indícios, deverá o Banco sacado proceder às diligências necessárias, junto do sacador e/ou junto do detentor do cheque, antes de proceder à recusa do pagamento.

III – Ao não ter provado que efectuou essas diligências, aceitando, sem mais, a falsa declaração de extravio (da parte do seu cliente), o Banco sacado praticou um facto ilícito e culposo, que o responsabilizam pelos danos causados à legítima portadora dos cheques.

V

Por outro lado, do Douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do mesmo processo, resulta o seguinte:

“o banco/sacado tem, desde logo, o dever de confrontar prontamente o portador do cheque com a existência de uma comunicação de extravio, feita pelo seu cliente (e que normalmente será por aquele totalmente desconhecida)

A jurisprudência vem entendendo, de modo reiterado, que incide sobre o banco/sacado um dever de diligência no apuramento da consistência e verosimilhança da justa causa, invocada pelo sacador como justificação do não pagamento do cheque tempestivamente apresentado pelo portador.

VI

Ora, acontece que o Douto Tribunal da Relação de Coimbra, ao proferir o Douto Acórdão datado de ...-...-2024, decidiu em sentido totalmente oposto ao seguido pela jurisprudência dominante, afirmando que: “Sucede, porém, desde logo, que a entidade bancária, CGD, nem sequer é sujeito processual, pois não foi demandada pela lesada/ assistente nem foi pedida [nomeadamente, pelos recorrentes] a sua intervenção nos autos.

Ademais, a culpabilidade da CGD não foi objeto de discussão e prova e, como tal, naturalmente, nada consta da factualidade provada a esse respeito.

Consequentemente, não podia ser apreciada nos autos a eventual responsabilidade da entidade bancária, como, de resto, os recorrentes implicitamente reconhecem, ao referirem que a lesada/assistente “devia ter deduzido o pedido de indemnização civil contra o banco CGD” [cfr. conclusão XXX].”

VII

Existe oposição de julgados.

VIII

A Caixa Geral de Depósitos incumpriu o “dever de máxima diligência” de averiguação da circunstância de existir extravio do cheque, designadamente, diligenciando junto do tomador do cheque, que, no caso, até era cliente do mesmo banco, para saber se tem ou não o cheque na sua posse.

IX

Nem sequer foi o Arguido AA que apôs a indicação de “extravio” no pedido de cancelamento do cheque, mas sim algum funcionário do próprio banco sacado.

X

Do facto de a Caixa Geral de Depósitos não ser sujeito processual, nos presentes Autos, e de não poder, nesta sede, ser condenada, não pode resultar a condenação dos Arguidos, quer quanto à alegada prática de um crime, quer quanto ao pedido de indemnização cível.

XI

O facto ilícito foi praticado pelo banco sacado, e não pelo Arguidos, o que constitui causa de exclusão da ilicitude e impõe a absolvição dos Arguidos, quer da parte criminal, quer da parte cível.

XII

O prejuízo causado à Recorrida/Assistente, reclamado no pedido de indemnização cível, foi causado pela Caixa Geral de Depósitos, ao omitir gravemente o cumprimento do dever de diligência que lhe competia, na apuração da verosimilhança da declaração de “extravio”, e, ainda, ao preencher o pedido de cancelamento de cheque com a declaração de “extravio”.

XIII

A conduta dos Arguidos não integra a previsão do tipo legal de crime de falsificação de documentos, uma vez que não foi o Arguido a declarar que o cheque tinha sido extraviado.

XIV

Em suma, não pode haver lugar à responsabilidade criminal e civil dos Arguidos, uma vez que há uma causa de exclusão da ilicitude, pois os factos ilícitos foram praticados por outrem, que não os Arguidos.

XIV

Os Arguidos deviam ter sido absolvidos do crime de falsificação que lhes estava imputado no Douto Despacho de pronúncia, bem como do pedido de indemnização civil, por não ser devido, uma vez que consideram que não existe prática desse crime.

XV

O Douto Tribunal a quo, na nossa modesta opinião, errou manifestamente ao decidir em sentido contrário ao da jurisprudência proferida, quer pelo Tribunal da Relação do Porto, quer pelo Supremo Tribunal de Justiça.

XVI

Devendo o Douto Acórdão ser revogado e os Recorrentes serem absolvidos do crime em que foram condenados, sendo sempre absolvidos do pedido de indemnização por não terem sido eles a causar qualquer prejuízo à Recorrida, mas sim a Caixa Geral de Depósitos.

XVII

Termos em que, nos Doutamente supridos, deverão Vossas Excelências dar provimento ao presente recurso, face às razões invocadas, e revogar-se o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, proferindo-se Douto Acórdão em conformidade, absolvendo os Arguidos, quer dos crimes que lhes foram imputados, quer do pedido de indemnização contra eles formulado, assim fazendo Vossas Excelências a Costumada Justiça!

3. O Ministério Público junto da Relação de Coimbra apresentou resposta, concluindo não se verificar oposição de julgados, pelo que o recurso deverá ser rejeitado.

4. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), pronunciou-se no sentido de não se verificarem os requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário interposto.

5. Notificados os recorrentes e a assistente da posição assumida pelo Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça, para efeitos de contraditório, os mesmos mantiveram as suas posições já manifestadas nos autos.

6. Realizado o exame preliminar a que alude o artigo 440.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (doravante CPP) e colhidos os vistos, cumpre decidir em conferência - decisão que, nesta fase, se circunscreve a aquilatar da admissibilidade ou rejeição do recurso.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. A questão objeto do recurso, nos termos em que o recorrente a configura nas conclusões da motivação, consiste em saber se existe oposição de julgados, justificativa do presente recurso extraordinário, entre o acórdão recorrido (da Relação de Coimbra, de ........2024) e o acórdão fundamento (da Relação do Porto, proferido no âmbito do Processo n.º 1024/10.5..., a ...-...-2014, confirmado pelo STJ).

2. Estabelece o artigo 437.º do CPP, sob a epígrafe “Fundamento do recurso”:

«1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5 - O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.»

O recurso para fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, devendo o recorrente, no requerimento de interposição do recurso, identificar o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação, bem como justificar a oposição que origina o conflito de jurisprudência (n.ºs 1 e 2 do artigo 438.º do CPP).

Os artigos 437.º e 438.°. n.ºs 1 e 2, do CPP, assim como a jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, fazem depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência dos seguintes pressupostos (vd., por todos, Pereira Madeira, Código de Processo Penal, Comentado, Henriques Gaspar et alii, 2016, 2.ª ed. Revista, p. 1438 e ss.; acórdão de ........2020, proc. 6755/17.6...-A.S1, em www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação):

a) Formais:

1. legitimidade do recorrente (sendo esta restrita ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis) e interesse em agir, no caso de recurso interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (já que tal recurso é obrigatório para o Ministério Público);

2. interposição do recurso no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar;

3. identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão fundamento), com menção do lugar da publicação, se publicação houver;

4. trânsito em julgado do acórdão fundamento.

b) - Substanciais:

1. a existência de oposição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ou entre dois acórdãos das Relações, ou entre um acórdão da Relação e um do Supremo Tribunal de Justiça;

2. a identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões;

3. a oposição deve verificar-se entre duas decisões sobre a mesma ou as mesmas questões de direito e não entre meros fundamentos ou entre uma decisão e meros fundamentos de outra (exige-se que as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções opostas para a mesma questão fundamental de direito);

4. que as decisões em oposição sejam expressas e não meramente tácitas ou implícitas;

5. a identidade de situações de facto - que os dois acórdãos assentem em soluções opostas da mesma questão de direito a partir de idêntica situação de facto.

3. No caso em apreço, não se questiona a verificação dos pressupostos formais de legitimidade, interesse em agir e tempestividade, bem como a identificação do acórdão fundamento (a menção ao acórdão da Relação do Porto e ao acórdão do STJ que o confirmou não se traduz, a nosso ver, na indicação – que não seria aceitável - de dois acórdãos fundamento, pois está em causa uma única decisão: o acórdão da da Relação que o STJ confirmou).

O mesmo não ocorre, porém, com os pressupostos substanciais, como passaremos a demonstrar.

3.1. O acórdão recorrido, da secção criminal da Relação de Coimbra, reporta-se à condenação:

- da arguida CONVIMOR – Unipessoal, Lda. pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, al. d), com referência ao artigo 11.º, n.º 2, al. a) e n.º 4, ambos do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 120,00 € (cento e vinte euros), o que perfaz o total de 12.000,00 € (doze mil euros);

- do arguido AA pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, al. d), do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 15,00 € (quinze euros), o que perfaz o total de 1.500,00 € (mil e quinhentos euros);

- de ambos, como demandados civis, no pagamento solidário à demandante “Alufaísca – Serralharia de Construção Civil, Lda, da quantia de 29.111,00 € (vinte e nove mil cento e onze euros), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data de notificação do pedido de indemnização civil até efetivo e integral pagamento.

O tribunal de 1.ª instância tinha dado como provados os seguintes factos (transcrição parcial):

« 1. A sociedade arguida “Convimor Unipessoal, Lda.” é uma sociedade unipessoal por quotas que tem como seu único sócio e gerente o arguido AA.

2. O arguido AA assume as funções efetivas relativas ao cargo de gerente e pratica os diversos actos inerentes à administração e gestão comercial e financeira da sociedade, sendo o rosto visível daquela sociedade nas relações que manteve e mantém com terceiros.

3. A sociedade assistente “Alufaísca – Serralharia de Construção Civil, Lda.” é uma sociedade comercial que tem por escopo o fabrico de portas, janelas e elementos similares em metal bem como a montagem das mesmas e ainda a construção civil e obras públicas.

4. Em ...-...-2019, a sociedade arguida, na qualidade de empreiteira, através do arguido AA, que atuou por si e na qualidade de seu legal representante, celebrou com a sociedade assistente, na qualidade de subempreiteira, um contrato de subempreitada.

5. No âmbito do referido contrato, a sociedade arguida investiu a sociedade assistente na execução dos trabalhos aí acordados, no preço global de 131.000,00 € (cento e trinta e um mil euros).

6. Trabalhos esses cujos início e fim foram fixados contratualmente em ...-...-2019 e término em ...-...-2020, respetivamente.

7. Foi ainda acordado que o pagamento pela sociedade arguida à sociedade assistente do valor referido em 5. seria efectuado em 9 (nove) prestações mensais, a primeira no valor de 14.556,00 € (catorze mil, quinhentos e cinquenta e seis euros) com vencimento no acto de adjudicação e as restantes oito no valor de 14.555,50 € (catorze mil, quinhentos e cinquenta e cinco euros) cada.

8. Com vista ao pagamento do preço referido em 7., a sociedade arguida, através do arguido AA, que atuou por si e na qualidade de seu legal representante, preencheu, emitiu e entregou ao legal representante da sociedade assistente, entre os mais, os cheques sacados sobre Caixa Geral de Depósitos com os n.ºs ........45 e ........40, respectivamente com vencimento em ...-...-2020 e ...-...-2020, ambos no valor de 14.555,50 €.

9. Através de mensagem de correio electrónico do dia ...-...-2020, a sociedade arguida comunicou à assistente que tinha cancelado os cheques que ainda se encontravam a pagamento, devido a problemas de tesouraria e à alegada suspensão dos trabalhos por parte daquela.

10. A assistente respondeu à mensagem de correio electrónico referida em “9” na mesma data, na qual consta, entre o mais que aqui se dá por reproduzido, o seguinte:

“10. Deste modo, e estando sensíveis à situação e desejando contribuir para ajudar no solicitado, contribuindo para o alívio da vossa tesouraria, sem prejudicar em demasia esta empresa, aceitamos um ajuste à forma de pagamento da seguinte forma:

1. Valor em falta: 36.388,75 € + valor de trabalhos a mais;

a) Pagamentos:

1.º 15 de abril - 9.097,19 €

2.º 15 de maio - 9.097,19 €

3.º 15 de junho - 9.097,19 €

4.º 15 de julho - 9.097,19 €

5.º 15 de agosto – trabalhos a mais

Para a aceitação do ajuste será necessário proceder à troca dos cheques já emitidos pelos valores alterados antes do dia 15 de abril, por forma a podermos tomar as diligências necessárias junto do banco (…).”

11. A sociedade arguida respondeu, pela mesma via, à mensagem de correio electrónico citada em “10” no dia 14-04-2020, às 09h19m, afirmando o seguinte:

“Expusemos o vosso e-mail à gerência e durante esta semana entraremos em contacto convosco a fim de ajustar então os pagamentos.

Pedimos-vos, por favor, para que não coloque o cheque pré-datado para hoje.”

12. A sociedade assistente respondeu à comunicação referida em “11” através de mensagem de correio electrónico enviada às 11h14m do mesmo dia, com o seguinte teor:

“Conforme o disposto no nosso anterior email enviado na passada quinta-feira dia 9, solicitamos a confirmação da alteração dos pagamentos até amanhã dia 15, de modo a poder ajustar junto do banco.

Reiteramos a informação de que os cheques se encontram em conta corrente no banco e, caso não haja informação em contrário até ao dia de amanhã o mesmo será debitado pelo banco.

Aguardamos pela vossa decisão.”

13. A sociedade assistente apresentou o referido cheque a pagamento no dia 15-04-2020.

14. No dia 20-04-2020 o cheque foi devolvido na compensação do ... com a indicação de “cheque cancelado – extravio”.

15. No dia 18-05-2020, a sociedade assistente depositou na agência da Caixa Geral de Depósitos da Tocha o cheque n.º ........40, referido em 8., o qual veio devolvido no mesmo dia com a indicação de “vício formação vontade”.

16. No dia 03-04-2020, o arguido AA, que atuou por si e na qualidade de legal representante da sociedade arguida, assinou e entregou na agência de ... da Caixa Geral de Depósitos uma instrução de revogação dos cheques referidos em 9. e 15., que haviam sido entregues pelo arguido à sociedade assistente em data anterior, ali indicando como motivo da revogação “extravio”.

17. Em consequência da devolução dos cheques, a sociedade assistente não foi paga das quantias neles tituladas.

18. A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente.

19. A arguida previu e quis dar instruções ao banco sacado para a revogação daqueles dois cheques, que haviam sido por si emitidos a favor da sociedade assistente, comunicando que os mesmos se extraviaram e que, ao efectuar tal comunicação ao banco sacado, estava a impedir, como impediu, o pagamento das quantias tituladas pelos mesmos.

20. Bem sabia a sociedade arguida que a razão invocada junto do banco sacado para a revogação daqueles dois cheques não correspondia à verdade, porquanto a sociedade assistente era a legítima detentora desses mesmos cheques em virtude de o arguido AA, legal Recurso Penal representante da sociedade arguida, lhe ter entregado os mesmos para pagamento dos serviços acordados.

21. Com a conduta descrita, previu e quis o arguido AA impedir, como impediu, o pagamento pelo banco sacado das quantias tituladas nos cheques supra referidos, com o propósito de alcançar um benefício indevido para a arguida sua representada.

22. Ao agir como agiu, o arguido AA causou uma diminuição patrimonial à sociedade assistente em valor igual ao do montante total dos dois cheques, de 29.111,00 € (vinte e nove mil cento e onze euros).

23. O arguido AA agiu ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

(…).»

Esta factualidade, mantida na Relação, foi enquadrada na prática do crime de falsificação de documento, dizendo-se no acórdão recorrido:

«Os recorrentes começaram por – indevidamente, como explicámos, no âmbito da arguição de nulidade – invocar que o tribunal a quo não seguiu a jurisprudência obrigatória que se impunha, mais concretamente, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fixação de jurisprudência (AFJ), com o n.º 9/2008, de 27.10, no seguinte sentido: “[v]erificados que sejam todos os restantes elementos constitutivos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito, integra o crime de emissão de cheque sem provisão previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, a conduta do sacador de um cheque que, após a emissão deste, falsamente comunica ao banco sacado que o cheque se extraviou, assim o determinando a recusar o seu pagamento com esse fundamento”.

Esta questão já havia sido suscitada em sede de contestação e, por isso, o tribunal a quo debruçou-se sobre a mesma, explicando, de modo exaustivo e assertivo, a razão pela qual aquela jurisprudência não se aplica in casu, sendo, antes, aplicável a emergente do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 9/2013, de 24.04, que assim reza: “[o] sacador de um cheque que nele apuser uma data posterior à da emissão, e que em ulterior escrito por si assinado, requisitar ao banco sacado o seu não pagamento, invocando falsos extravio, subtração ou desaparecimento, com a intenção de assim obter o resultado pretendido, preenche com esse escrito o tipo de crime de «falsificação de documento», previsto pela alínea b) (redação do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março), hoje alínea d) (redação da Lei 59/2007 de 4 de Setembro), do n.º 1 do art. 256.º do Código Penal.”

Em apertada síntese, o (AFJ) n.º 9/2008 é inaplicável às situações em que, por carecer algum dos restantes elementos típicos, a conduta do arguido não se subsume ao crime de emissão de cheque sem provisão previsto e punível pelo artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 454/91, como sucede, precisamente, no caso dos autos, já que estamos perante cheques pós-datados, ou seja, com vencimento em datas posteriores à da sua entrega ao tomador, o que os subsume à cláusula de exclusão do n.º 3 do citado preceito, remetendo-nos para a situação prevista no AFJ n.º 9/2013.

Alegam, também, os recorrentes que não estão verificados os pressupostos previstos no artigo 256º, n.º 1, al. d), do Código Penal porquanto falta a intenção de causar prejuízo à aqui assistente, por diversas razões que convocam de forma algo confusa.

Assim, se bem compreendemos o que pretendem alegar os recorrentes, invocam que o arguido AA não atuou com intenção de causar prejuízo pelas razões que constituem a sua narrativa dos acontecimentos, mas que não foi acolhida pelo tribunal a quo na factualidade provada e que não foi modificada neste tribunal ad quem, pelo que se mostra a análise de tal argumento prejudicada.

Mais sustentam os recorrentes que o cancelamento dos cheques não fez com que a assistente ficasse impossibilitada de receber os valores a que tinha direito, pois podia ter executado os cheques em sede executiva, pelo que, objetivamente, inexiste a intenção de lhe causar prejuízo, argumento que também não foi acolhido.

Note-se que o tipo legal previsto no artigo 256º do Código Penal exige “a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo” (sublinhado nosso).

Ora, in casu, resultou provado que, com a conduta descrita, previu e quis o arguido AA impedir, como impediu, o pagamento pelo banco sacado das quantias tituladas nos cheques em causa, com o propósito de alcançar um benefício indevido para a arguida sua representada, causando uma diminuição patrimonial à sociedade assistente em valor igual ao do montante total dos dois cheques, de 29.111,00 € [cfr. pontos 21 e 22].

Ou seja, provou-se que o arguido atuou com intenção de obter um benefício indevido para a sua representada, obviamente à custa do correspondente prejuízo da assistente, bastando aquela intenção para o preenchimento do ilícito.

Mas, ainda que o prejuízo não se concretizasse, tal seria completamente irrelevante para integrar a conduta apurada no crime de falsificação, pois, como bem se salientou na decisão recorrida, “não se exige a concretização do prejuízo ou do benefício, ou sequer o cometimento de um outro crime, mas tão-só uma conduta orientada por tal propósito. O desenho característico do tipo legal levou a doutrina a qualificá-lo como um crime de resultado “cortado” na direção da causação do prejuízo, da obtenção do benefício ou da preparação, execução ou encobrimento de outro crime.”

Falece, pois, o argumento da falta do requisito de intenção de causar prejuízo para preenchimento do crime de falsificação.

Os recorrentes alegam, ainda, que “[r]esulta de fls. 253 que o banco não solicitou nem exigiu qualquer justificação para que fossem dados como extraviados os cheques, como tal, a CGD não cumpriu com os seus deveres, dado que não indagou onde é que os cheques estavam, se na posse da recorrida, se efectivamente tinham sido extraviados, e nem sequer exigiu qualquer justificação para a pretensão apresentada pelos recorrentes, resultando assim uma obrigação deste banco de indemnizar, pois esta entidade é que é responsável pelos prejuízos causados à recorrida”, na esteira do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20-05-2014, proferido no processo nº 1024/10.5...

Sucede, porém, desde logo, que a entidade bancária, CGD, nem sequer é sujeito processual, pois não foi demandada pela lesada/ assistente nem foi pedida [nomeadamente, pelos recorrentes] a sua intervenção nos autos.

Ademais, a culpabilidade da CGD não foi objeto de discussão e prova e, como tal, naturalmente, nada consta da factualidade provada a esse respeito.

Consequentemente, não podia ser apreciada nos autos a eventual responsabilidade da entidade bancária, como, de resto, os recorrentes implicitamente reconhecem, ao referirem que a lesada/assistente “devia ter deduzido o pedido de indemnização civil contra o banco CGD” [cfr. conclusão XXX].

Subsidiariamente, os recorrentes alegam, finalmente, que “mesmo que assim não fosse, só seria devido à recorrida o pagamento do cheque com a menção de ´extravio´ e não o outro com a menção de falta de vicio da vontade, pois esse motivo não constitui a prática de qualquer crime”.

Porém, mais uma vez, sem razão, porquanto, como ressuma da fundamentação da sentença, “a conduta dos arguidos, perpetrada no dia 3 de Abril de 2020, preenche os elementos objetivo e subjetivo do crime de falsificação de documento” uma vez que, além do mais que ali se aduz, naquela data, “o arguido AA, atuando por si e na qualidade de legal representante da sociedade arguida, assinou e entregou na agência de ... da Caixa Geral de Depósitos uma instrução de revogação dos cheques que se venceriam nos dias 15 de Abril e de Maio de 2020, indicando como motivo da revogação “extravio”, o que fez ciente de que esse facto não correspondia à verdade, tanto mais que os havia emitido e entregue à assistente em estrito cumprimento de uma obrigação contratual. Consequentemente, tais cheques foram efetivamente devolvidos e a sociedade assistente não foi paga das quantias neles tituladas”, tendo ficado, ainda, demonstrado que “a sociedade arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, prevendo e querendo dar instruções ao banco sacado para a revogação daqueles dois cheques, que haviam sido por si emitidos a favor da sociedade assistente, comunicando que os mesmos se extraviaram e, bem assim que, ao efetuar tal comunicação ao banco sacado, estava a impedir, como impediu, o pagamento das quantias tituladas pelos mesmos”, tendo procedido “através do arguido seu legal representante, ciente de que a razão invocada junto do banco sacado para a revogação daqueles dois cheques não correspondia à verdade”.

O facto ilícito reside, pois, na atuação reportada a 03.04.2020, visando a revogação de ambos os cheques, mediante a falsa indicação à entidade bancária de que os mesmos se haviam extraviado, ainda que, posteriormente, mas na sequência daquela, os recorrentes tenham feito nova comunicação, quanto ao segundo cheque, comunicando, agora, “vício na formação da vontade”, como os próprios reconhecem ao longo da motivação de recurso.

Como decorrência, bem andou o tribunal a quo ao concluir que “por força da instrução de revogação dos cheques, estribada na falsa declaração de que estes se haviam extraviado, a demandante sofreu prejuízos patrimoniais e que os mesmos foram consequência da actuação dos arguidos, na medida em que se demonstrou que, mercê do não pagamento dos dois cheques, ficou (e continua) por pagar parte do preço devido pela sociedade demandada à demandante pelos serviços por esta prestados”, encontrando-se, assim, “preenchidas as condições legalmente impostas para sustentar a aplicação do facto ilícito extracontratual como fonte da obrigação de indemnizar”, sendo certo que “os danos patrimoniais correspondem à exacta soma do montante aposto em ambos os cheques, não pagos por força da conduta dos arguidos”.

Soçobra, pois, totalmente a argumentação dos recorrentes mediante a qual concluem que “deviam ter sido absolvidos do crime de falsificação que lhes estava imputado (…), bem como do pedido de indemnização civil, por não ser devido, uma vez que (…) que não existe prática desse crime” [cfr. conclusão XXXII].»

Como se vê, o acórdão recorrido, proferido no âmbito da jurisdição criminal, depois de confirmar, por inteiro, a matéria de facto fixada na 1.ª instância, limitou-se a aplicar, no essencial, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 9/2013, afastando, por não adequada ao caso concreto, a aplicação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 9/2008.

Por sua vez, o acórdão fundamento foi proferido no âmbito da jurisdição cível, respeitando à responsabilidade civil extracontratual da instituição bancária que não haja solicitado nem exigido qualquer justificação para que fossem dados como extraviados os cheques, não realizando quaisquer diligências necessárias, junto do sacador e/ou junto do detentor do cheque, antes de proceder à recusa do pagamento.

Tal matéria – a do acórdão fundamento - é estranha ao objeto do processo decidido pelo acórdão recorrido, em que a entidade bancária, CGD, não teve qualquer intervenção, pelo que a sua culpabilidade e responsabilidade civil extracontratual não foi objeto de qualquer discussão e prova e, como tal, naturalmente, como se sublinha no acórdão recorrido, nada consta da factualidade provada a esse respeito.

Manifestamente, não se verifica a indispensável identidade das situações de facto e de direito subjacentes aos acórdãos em confronto, pelo que não se pode sustentar que estejamos perante soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, não se vislumbrando, aliás, que o Pleno das Secções Criminais do STJ pudesse ser chamado a resolver, em fixação de jurisprudência, um alegado dissidio entre acórdãos, com âmbitos diferentes, tirados um no âmbito da jurisdição civil e outro no âmbito da jurisdição criminal

Resultando distintas as situações de facto e as questões de direito que estiveram na base das decisões proferidas nos acórdãos em confronto, não se verifica a invocada oposição relevante de julgados que pressupõe que as situações de facto sejam idênticas nos arestos em confronto, e bem assim que neles haja expressa e explícita resolução da mesma e exata questão de direito, pelo que falece, manifestamente, um requisito substancial para a admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência.

Em consequência, o recurso deve ser rejeitado nos termos do artigo 441.º, n° 1, do CPP.

*

III - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) rejeitar o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto por AA e CONVIMOR-UNIPESSOAL, LDA, nos termos do disposto no artigo 441.º, n.º 1, do CPP; e

b) condenar os recorrentes nas custas, fixando-se a taxa de justiça de cada um em 3 (três) UCs (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P. e 8.º, n.º 9 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais), a que acresce, ao abrigo do disposto no artigo 420.º, n.º 3, do CPP, aplicável ex vi do artigo 448.º, do mesmo diploma, a condenação dos mesmos no pagamento da importância de 4 (quatro) UCs, cada um.

Supremo Tribunal de Justiça, 23 de janeiro de 2025

(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Jorge Gonçalves (Relator)

António Latas (1.º Adjunto)

Jorge Reis Bravo (2.º Adjunto)