O Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução em matéria civil e contratual, de 12-12-2012 (Regulamento de Bruxelas I bis), elege, em matéria contratual, por aplicação de uma noção autónoma de lugar do cumprimento, como elemento de conexão para a determinação do tribunal internacionalmente competente, não a obrigação objecto do concreto pedido do demandante, mas a obrigação característica do contrato, pelo que só releva, na venda de bens, o lugar de cumprimento da obrigação de entrega e, na prestação de serviços, o lugar de cumprimento da obrigação do prestador de serviços.
Acordam no Supremo Tribunal da Justiça:
1. Relatório.
UBIWHERE, Lda., sedeada na Travessa Senhor das Barrocas, n.º 38, em Aveiro, propôs, no Juízo Central Cível de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, contra CINNIA TECH, S.L., sociedade comercial espanhola com sede em Calle Serrano, 21, 2.º 1.ª, 28001, Madrid, Espanha, acção declarativa de condenação, com processo comum, pedindo a condenação da última a cumprir com a obrigação de restituição à Autora da quantia pela mesma adiantada no valor de € 71.477,73, acrescida de juros vencidos que até à presente data se liquidam em € 3.961,92, e vincendos contados desde a citação da Ré e até efetivo e integral pagamento, obrigação essa devida por força da resolução contratual promovida pela Autora nos termos e para os efeitos do disposto no 437º, nº. 1 do Código Civil.
Fundamentou esta pretensão no facto de ter firmado com a Ré, em regime de subcontratação, o fornecimento do componente 10 - Sistema de Señalización Turística Inteligente, do projeto TurinGranada, que incluía a produção e instalação da sinalização do projeto pela última, de acordo com as especificações acordadas e com base na documentação aprovada pela RED.es e Dipt. de Granada, para depois a Autora revender o equipamento à entidade adjudicante, de tendo, por base o orçamento apresentado pela Ré, lhe
ter pago, em 11 de Fevereiro de 2022, a fatura proforma n.º ...06, no montante de € 59.047,71 acrescido de IVA, no valor global de € 71.447,73, correspondente a 30% do preço para o fornecimento de todos os trabalhos, de em 10 de Julho de 2023, ter comunicado à Ré que de acuerdo con la reunión mantenida a última hora de esta tarde y según lo explicado y acordado, ante la modificación sustancial del presupuesto que se nos ha presentado y ante la intransigencia de RED.es de llevar a cabo una nueva revisión de precios, nos será completamente imposible proceder a la ejecución de los servicios inicialmente discutidos, por lo que la única solución posible será la de rescindir el acuerdo que inicialmente alcanzamos, e de, em 14 de Setembro de 2023, ter interpelado a Ré para lhe restituir a quantia adiantada, restituição que deveria ser feita para a conta bancária da Autora no Novo Banco em ....
A Ré defendeu-se alegando a excepção peremptória de incompetência internacional dos tribunais portugueses, com base na qual pediu a sua absolvição da instância.
Fundamentou a excepção na circunstância de não existir qualquer elemento de conexão com a ordem jurídica portuguesa que justifique que a acção corra nos nossos tribunais.
O Sr. Juiz de Direito, por despacho de 9 de Maio de 2024, julgou procedente a incompetência absoluta do Juízo Central Cível de ... e indeferiu liminarmente a petição inicial.
A autora interpôs deste despacho recurso ordinário de apelação para o Tribunal da Relação do Porto que, porém, por acórdão de 7 de Novembro de 2024, lhe negou provimento.
É este acórdão que a Autora impugna através do recurso ordinário de revista, normal ou comum – no qual pede a anulação ou revogação da sentença proferida em Primeira Instância, se julgue improcedente a incompetência absoluta do Juízo Central Cível de ..., e se ordene o prosseguimento dos autos – tendo rematado a sua alegação com estas conclusões:
A – O presente recurso tem fundamento na violação de regras de competência internacional, pelo que estamos perante uma situação em que o recurso é sempre admissível, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 629.º, não lhe sendo aplicável a limitação da “dupla-conforme”, conforme expressamente previsto na primeira parte do n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil.
B – Com o mais elevado respeito, entende a Recorrente que, contrariamente ao decidido pelo Tribunal da Relação do Porto, o Réu pode ser demandado, em matérias contratuais não conexas com as duas situações previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação que subjaz ao litígio; e que obrigação de restituição fundada em resolução do contrato não se enquadra em qualquer das hipóteses previstas na alínea b) – por não estar em causa aspectos essenciais da venda dos bens ou a prestação dos serviços propriamente ditas, a tornar irrelevante para o julgamento da causa o lugar onde estes haveriam de ser entregues ou prestados.
C – Decidindo do modo como o fez, o Tribunal da Relação do Porto incorreu em erro de julgamento, tanto na vertente de violação da lei substantiva como na vertente de violação ou errada aplicação da lei de processo;
D – Com efeito, o Tribunal a quo – ao pura e simplesmente aderir, de forma acrítica e integral, à tese desenvolvida pela Primeira Instância, omitindo em absoluto os fundamentos apresentados pela Recorrente – parte de pressupostos errados quando, para assim decidir, conclui que “Quando o fundamento da pretensão do demandante for a resolução do contrato por falta de cumprimento e o litígio tiver por objeto um contrato de compra e venda e de prestação de serviços, como aquele que está em causa nos autos, a competência judiciária é definida por um dos critérios previstos nos § 1.º e 2.º da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Reg. 1215/2012”;
E – É que, o fundamento da pretensão da Autora não é a resolução do contrato; nem esta foi motivada por falta de cumprimento da Ré; muito menos o litígio tem por objecto um contrato de compra e venda e prestação de serviços;
F – Tal como foi configurada pela Autora na sua petição inicial, a presente acção é destinada ao cumprimento de uma obrigação de restituição, decorrente dos efeitos da resolução de um contrato previamente operada por declaração à contraparte, nos termos do disposto no artigo 436.º n.º 1 do Código Civil Português;
G – Tal obrigação trata-se, inquestionavelmente, de uma obrigação pecuniária, que tem por objecto a entrega de uma quantia em dinheiro;
H – O direito de crédito invocado pela Autora como causa de pedir emerge do preceituado nos artigos 289.º, n.º 1 e 290.º do Código Civil Português, por força da remissão expressa do artigo 433.º do mesmo Código; sendo independente e autónomo dos direitos e obrigações que decorreriam da vigência e execução do dissolvido contrato, e nada tendo a ver com as prestações que seriam devidas pelas partes em cumprimento do mesmo;
I – No momento da propositura da acção, já não vigorava qualquer relação contratual entre as partes, por ter sido dissolvida por força sua prévia resolução, a qual se considera válida e eficazmente operada – o que nem sequer é afastado, impugnado ou colocado em causa pela Ré na sua intervenção processual;
J – Refira-se ainda que tal resolução também não foi motivada por falta de cumprimento da Ré, mas, sim, por alteração das circunstâncias, nos termos do disposto no artigo 437.º, n.º 1 do Código Civil Português, aliás, também sem oposição da Ré;
K – E, contrariamente ao que se considerou no douto Acórdão recorrido, aderindo à Decisão da Primeira Instância, este “lugar e forma de cumprimento” não foi “imposta unilateralmente pela Autora após o exercício do direito potestativo de resolução do contrato” – a obrigação pecuniária a que a Ré está adstrita em consequência da resolução contratual terá necessariamente de ser cumprida em Portugal: é aqui que a Autora tem a sua sede, o que releva para efeitos de saber onde é que a prestação Ré tem de ser efectuada, pois as obrigações que tiverem por objecto certa quantia em dinheiro, devem ser efectuadas no lugar do domicílio que o credor tem ao tempo do cumprimento, nos termos do artigo 774.º do Código Civil Português; e, mais não seja, por a mesma obrigação haver de ser cumprida através de transferência bancária para uma conta da Ré, a qual também se situa em Portugal; mas se a Recorrente não tivesse indicado qualquer conta bancária para efeitos de restituição, sempre a mesma teria de ser feita no seu domicílio em Portugal!
L – Assim configurado o objecto da presente acção, jamais poderia o Tribunal a quo ter decidido no sentido em que o fez – pois, como é consabido, a competência do Tribunal, sendo um pressuposto processual, deve ser aferida em relação ao objecto da acção tal como é apresentada pelo autor na petição inicial; princípio que a douta Sentença recorrida violou ao decidir, sem mais, pela incompetência absoluta do Tribunal;
M – Não só o pedido é, objectivamente, de cumprimento de uma obrigação pecuniária, como a causa de pedir assenta na obrigação de restituição que foi incumprida pela Ré e a que se contrapõe o direito de crédito invocado pela Autora;
N – A Autora limitou-se a peticionar a condenação da Ré no cumprimento dessa obrigação pré-constituída, sendo que, contrariamente ao que o Tribunal da Relação do Porto conclui no Acórdão recorrido, não vem peticionada nos presentes autos a declaração da existência ou não existência da resolução, nem a condenação da demandada no reconhecimento da resolução, nem mesmo a eventual constituição do direito à resolução; como se disse, a resolução do contrato tem-se por válida e eficazmente operada, sendo considerada assente;
O – Os artigos 7.º e 8.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de Dezembro de 2012, estabelecem uma competência específica alternativa à regra geral que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado-Membro.
P – Essa competência específica justifica-se pela existência de um elemento de conexão especialmente estreito entre o litígio em causa e o órgão jurisdicional chamado a decidir do mesmo, tendo em vista a boa administração da justiça; não havendo conexão, a regra geral é o critério do domicílio ou sede do demandado;
Q – Mas há situações em que a existência ou prevalência de vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio justifica a salvaguarda de foros alternativos, sendo este o objectivo de proximidade subjacente ao artigo 7.º do Regulamento, e que não pode ser interpretado com um fim contrário ao visado pela própria norma – note-se, por exemplo, que em matéria extracontratual, o Réu deve ser demandado perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso, como decorre do n.º 2) do artigo 7.º do Regulamento;
R – Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro “Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão” (sublinhado nosso);
S – A expressão “obrigação em questão” refere-se à obrigação que serve de causa de pedir à demanda sobre a relação contratual em causa – esta é, aliás, a redacção que resulta da versão francesa do mesmo Regulamento: a “obrigação em questão” mais não é do que “l´obligation qui sert de base à la demande”;
T – O conceito de “obrigação em questão” da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, remete para a obrigação cujo incumprimento é invocado para justificar a acção judicial; e, por outro lado, o lugar onde essa obrigação foi ou deva ser cumprida deve ser determinado em conformidade com a lei que regula essa obrigação de acordo com as regras de conflito do órgão jurisdicional chamado a decidir o litígio – cfr., por analogia, Acórdãos 12/76 (Tessili) e 14/76 de 06/10/1976 (De Bloos), referenciados no corpo das alegações.
U – A alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento não pode ser interpretada no sentido de que abrange toda e qualquer obrigação dos contratos aí previstos, tornando absolutamente irrelevante a obrigação que for objecto da acção,
V – Pois, dispõe a alínea c) que, se não se aplicar a alínea b), isto é, se a “obrigação em questão”, a que se refere a alínea a), não for relacionada com as obrigações principais típicas da “venda de bens” ou da “prestação de serviços”, aplica-se a alínea c).
W – A não se entender desse modo, tal interpretação sempre se traduziria numa negação do sentido e valor e no esvaziamento de conteúdo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, o que gera uma incoerência ou contradição sistemática inultrapassável.
X – No nosso modesto entendimento, o Legislador não terá pretendido simplesmente determinar que, em relação a todos os contratos que sejam contratos de venda de bens ou de prestação de serviços, qualquer que seja a “obrigação em questão”, seriam sempre judiciariamente competentes os lugares onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues, ou os serviços foram ou devam ser prestados;
Y – Caso tivesse pretendido referir-se nesses termos, seguramente não teria deixado de o fazer de modo claro, expresso e inequívoco, ao invés de inserir sistematicamente a alínea c), e de introduzir na formulação do clausulado legal o conceito de “obrigação em questão” – o que fez, precisamente, para salvaguardar outras obrigações que, relativamente a tais contratos, não tenham que ver com a entrega dos bens ou a prestação dos serviços e cujo lugar de cumprimento não coincida com os lugares previstos na alínea b), assegurando deste modo a existência de um elemento de conexão especialmente estreito entre o litígio e o órgão jurisdicional chamado a decidir do mesmo, escopo do artigo 7.º do Regulamento (UE);
Z – Haverá, assim, que atender à obrigação que serve de fundamento ao pedido, de modo a que a alínea b) só será aplicável quando o litígio tiver por objecto as próprias obrigações principais de entrega de bens ou de prestação de serviços – esta é a única interpretação admissível, pois só de acordo com esta é que sistematicamente fará sentido a norma prevista na alínea c); a qual, caso se viesse a optar por uma interpretação lato sensu da alínea b), tornar-se-ia perfeitamente inútil.
AA – Impõe-se assim concluir que, em matérias contratuais não conexas com as obrigações principais das duas situações previstas na alínea b) e, portanto, distintas e externas ao programa contratual daquela tipologia de contratos, o Réu pode ser demandado perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão, como sucede no caso dos autos;
AB – A obrigação pecuniária de restituição fundada em resolução não se enquadra em qualquer das hipóteses previstas na alínea b) – por não estar em causa aspectos essenciais da venda dos bens ou a prestação dos serviços propriamente ditas, a tornar irrelevante o lugar onde estes haveriam de ser entregues ou prestados: como o contrato foi resolvido, o que prevalece é o local do cumprimento da obrigação de restituição do que foi prestado no seu cumprimento,
AC – Local de cumprimento que, no caso concreto, não tem qualquer conexão com o lugar da entrega dos bens ou da prestação dos serviços, pelo que nada justifica que se dê relevância a este em detrimento do critério que melhor assegura um vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio.
AD – Ademais, verifica-se que, no caso em apreço – e ao contrário do que considerou a Sentença recorrida – existem múltiplos elementos de conexão com a ordem jurídica portuguesa: estamos perante o exercício de um direito à acção destinada ao cumprimento de uma obrigação pecuniária, constituída com base em normas jurídicas do Ordenamento Jurídico Português, ao qual se aplica a Lei Portuguesa, obrigação que haverá de ser cumprida em Portugal; obrigação que, sendo independente e autónoma, nunca teve qualquer ligação ao lugar onde os bens e serviços haveriam de ser entregues ou prestados na execução do dissolvido contrato;
AE – Para além disso, não se pode afirmar que na situação em que um Réu, tendo contratado com uma empresa portuguesa, de quem recebeu uma significativa quantia que lhe foi transferida de Portugal, tendo tomado conhecimento da resolução do contrato ao abrigo de normas de Direito Português, com a qual se conformou, não fosse para este razoavelmente previsível vir a ser demandado nos tribunais portugueses;
AF – Estão, assim, cumpridos os princípios da proximidade e da previsibilidade;
AG – Francamente: o que interessa para o julgamento e boa decisão da causa se o equipamento a fornecer pela Ré se destinava sobretudo ao geoparque de Granada? É que, não tendo os bens ou serviços sido entregues ou prestados (porquanto, o contrato foi resolvido sem que tenha chegado a ser executado), nem se percebe que conexão é que o lugar de Granada poderá ter com o cumprimento da concreta obrigação pecuniária que vem peticionada nos presentes autos, tampouco, como é que os Tribunais espanhóis poderão estar em melhores condições para decidir sobre o pedido aplicando uma lei estrangeira (portuguesa).
AH – A interpretação feita pelo Tribunal a quo da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento, para além de ab-rogatória da alínea c), acaba por afastar o litígio da jurisdição com que tem efectivamente um vínculo mais estreito, sendo assim totalmente contrária ao objectivo pretendido pela norma.
AI – Podendo, assim, e à semelhança do que ocorre no nosso ordenamento jurídico, o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deva ser cumprida, tal como dispõe a alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, tratando-se de uma competência alternativa, específica, expressamente prevista na alínea c) do referido n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento – sendo, no caso concreto, a competência judiciária portuguesa é também a que melhor assegura a existência do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio;
AJ – O douto Acórdão ora recorrido violou, entre outros, o disposto nos artigos 289.º n.º 1, 433.º, 434.º n.º 1, 436.º n.º 1, 437.º n.º 1, 439.º e 774.º do Código Civil, nos artigos 62.º, 71.º n.º 1, 590.º n.º 1 do Código de Processo Civil, do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e ainda, nos artigos 4.º a 7.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de Dezembro de 2012.
A recorrida, na resposta, concluiu, naturalmente, pela improcedência do recurso.
2. Delimitação do âmbito objectivo do recurso e individualização da questão concreta controversa a resolver.
Considerando os parâmetros da competência funcional ou decisória deste Tribunal, tal como são definidos pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados nas instâncias e pela impugnação do recorrente é uma só a questão concreta controversa que importa resolver: a de saber se o tribunal português é ou não internacionalmente competente para conhecer do objecto da acção (art.º 635.º do CPC).
A resolução deste problema vincula, desde logo, à determinação, por um lado, da fonte da competência internacional que, no caso, deve ser considerada e, por outro, do critério de aferição dessa mesma competência.
3. Fundamentos.
3.1. Fundamentos de facto.
Os factos, puramente procedimentais, relativos ao objecto da acção e ao conteúdo da decisão impugnada, relevantes para a resolução da questão concreta controversa são os que, sem síntese apertada, o relatório documenta.
3. Fundamentos de direito.
3.1. Determinação da fonte da competência internacional do tribunal e do critério da sua aferição.
Diz-se competência a medida de jurisdição de um tribunal. O tribunal é competente para o julgamento de certa causa quando os critérios determinativos da competência lhe atribuem a medida de jurisdição que é a suficiente e adequada para essa apreciação. A competência assim delimitada pode chamar-se competência jurisdicional. Quanto ao âmbito, a competência pode ser interna ou internacional (art.ºs 61.º e 62.º do CPC). A competência internacional é aquela que se refere a objectos processuais que comportam uma ou várias conexões com uma ou várias ordens jurídicas distintas do ordenamento do foro. A delimitação da competência é realizada através de determinados critérios legais que demarcam, no âmbito global da função jurisdicional, o tribunal competente para apreciar certa causa e é aferida segundo determinados elementos – como o objecto ou as partes – tal como se apresentam no momento da propositura da causa.
A competência jurisdicional é um pressuposto processual, i.e., uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa, através de uma decisão de procedência ou improcedência. Como qualquer outro pressuposto processual é aferida em relação ao objecto apresentado pelo autor, requerente ou exequente. Convém reter este ponto que, aliás, se tem, doutrinaria e jurisprudencialmente, por incontroverso: a competência do tribunal é aferida pelo objecto do processo – causa de pedir e pedido – definido pelo autor ou requerente, com inteira indiferença pelas excepções alegadas pelo réu ou requerido, sendo desinteressante averiguar a correcção dos termos do pedido ou do enquadramento jurídico do objecto da causa, valoração que não deve ser antecipada para o momento da apreciação do pressuposto processual da competência1. Isto é seguramente assim no tocante à competência internacional dos tribunais portugueses de fonte interna – mas já não necessariamente assim se a fonte daquela competência for europeia.
Sempre que a apreciação da competência - como é comum - ocorra num momento em que o mérito da causa se não mostre julgado, a aparência vale, aqui, como realidade para o efeito de se determinar se o tribunal é ou não dotado de competência.
Considerada a sua função, as regras de competência internacional não são, em si mesmas, regras de competência, dado que não se destinam a aferir qual o tribunal competente para conhecer do objecto da causa, antes têm por finalidade a definição da jurisdição na qual se determinará, por recurso a verdadeiras normas de competência, qual o tribunal competente para apreciar o litígio. São, portanto, normas de recepção, i.e., normas – processuais - de conflitos que definem as condições em que os tribunais do foro são competentes para a apreciação de um objecto que apresenta uma conexão com várias ordens jurídicas e visam limitadamente facultar o julgamento de uma certa situação plurilocalizada pelos tribunais de uma jurisdição nacional2.
A definição da competência internacional dos tribunais de uma certa ordem jurídica é, portanto, operada por estas normas de recepção. Este enunciado mostra que as normas de recepção desempenham, no âmbito processual, uma função paralela àquela que as normas de conflitos realizam no plano substantivo: estas definem qual é a lei aplicável a uma relação jurídica plurilocalizada – se a lei do foro ou uma lei estrangeira; aquelas determinam se essa mesma relação pode ser apreciada pelos tribunais de uma certa ordem jurídica. Portanto, as normas – de recepção – de competência internacional limitam-se a determinar as condições em que uma jurisdição nacional faculta os seus tribunais para a resolução de um certo litígio que apresenta uma conexão – objectiva, relativa ao objecto do processo, ou subjectiva, referida às partes na causa - relevante com uma ordem jurídica estrangeira, mas não definem a lei substantiva à luz da qual esse litígio deve ser resolvido: essa lei é definida pelas normas de conflito. A competência internacional é, assim, aferida independentemente da lei aplicável ao mérito da causa, pelo que os tribunais nacionais podem ser internacionalmente competentes, mesmo que a causa deva ser julgada por aplicação de uma lei estrangeira; o inverso é também verdadeiro.
É axiomático, por um lado, que questão da competência do tribunal, seja qual for a sua modalidade, coloca, desde logo, um puro problema de facto relativo aos elementos de conexão relevantes e, por outro, que a competência absoluta constitui um pressuposto processual absoluto, portanto, um pressuposto cuja falta torna inadmissível qualquer decisão de mérito.
Como a nossa lei de processo logo acautela, o regime interno da competência internacional dos tribunais portugueses só é aplicável quando não deva ceder perante instrumentos internacionais e actos de direito europeu, designadamente perante o disposto no Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução em matéria civil e contratual, de 12 de Dezembro de 2012 (Regulamento de Bruxelas I bis). Regulamento que visa facilitar a livre circulação de decisões em matéria civil e comercial, designadamente através de regras relativas à competência judiciária e é uma reformulação do Regulamento n.º 44/2001 (Regulamento de Bruxelas I), que revogou, mas com o qual apresenta uma notória similitude (Considerando 6 e art.º 80.º). Regulamento 1215/112 que, evidentemente, é vinculativo para todos os Estados-Membros da União – com excepção da Dinamarca3 – por força do TFUE e, no caso de Portugal, também por virtude de norma constitucional (art.º 288.º do TFUE e 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa).
As normas do Regulamento n.º 1215/2012 podem ser interpretadas, a título prejudicial, pelo Tribunal de Justiça, sendo, portanto, preferível uma interpretação autónoma dos seus termos4 - dado que não remete expressamente para o direito interno dos Estados-Membros a determinação do seu sentido e da sua compreensão - de harmonia com os seus objectivos, e reconhecida, relativamente a eles, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, interpretação autónoma que aquele Tribunal julgou também já preferível relativamente ao Regulamento n.º 44/2001 e que é igualmente válida para as disposições do Regulamento, quando essas disposições possam ser qualificadas de equivalentes (art.º 267.º, § 1.º, b), do TFUE)5.
No plano temporal, as normas relativas à competência são aplicáveis às acções instauradas desde 10 de Janeiro de 2015 (art.º 66.º, n.º 1).
As regras de competência do Regulamento n.º 1215/2012 regem essencialmente a competência internacional e, por isso, só são aplicáveis a litígios emergentes de relações transnacionais. É necessário que o objecto da controvérsia apresente pelo menos um elemento de estraneidade juridicamente relevante. Caso contrário, não se suscita um problema de competência internacional. A relevância dos diferentes elementos de estraneidade depende muito das regras de competência em causa, mas, de um modo geral, pode dizer-se que o domicílio de uma ou de ambas as partes fora do Estado do foro constitui um elemento de estraneidade particularmente relevante. Como resulta do art.º 7.º do Regulamento n.º 1215/2012, as competências especiais aí previstas só se aplicam quanto o réu tem domicílio noutro Estado-Membro. Assim, no domínio espacial, as regras relativas à competência são aplicáveis, em princípio, no caso de o demandado ter o seu domicílio ou sede no território de um Estado-Membro (art.º 6.º, n.º 1).
A competência do domicílio do réu não pode ser afastada com base numa avaliação das circunstâncias do caso concreto, que leve a concluir que existe outra jurisdição competente mais bem colocada para apreciar o objecto da acção. Esta conclusão é imposta não só pelo texto do art.º 4.º, n.º 1, do Regulamento n.º 1215/2012, mas também pelas finalidades do legislador da União, que se encontram enunciadas no seu Considerando 15: as regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar-se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. O tribunais deverão estar sempre disponíveis nesta base, excepto em algumas situações bem definidas em que a matéria do litígio ou a autonomia das partes justificam um critério de conexão diferente. É claro, deste modo, que cláusula do forum non conveniens não pode ser invocada por um tribunal de um Estado-Membro para declinar a sua competência.
O Regulamento n.º 1215/2012 optou por uma definição autónoma do domicílio das pessoas colectivas, que se estabelece segundo três critérios alternativos – que, aliás, correspondem á solução consagrada no TFUE para efeitos de atribuição do direito de estabelecimento às sociedades da União: sede estatutária, administração central e estabelecimento principal (art.º 63.º n.º 1, e Considerando 15, e 54.º do TFUE).
Materialmente, o Regulamento é aplicável em matéria civil e comercial – conceitos que, pelas razões indicadas, devem e têm sido interpretados autonomamente6 - seja qual o for o tribunal competente na ordem interna (art.º 1.º, n.º 1).
E, no caso, é indubitável, que a situação jurídica objecto do processo se inscreve no âmbito de aplicação temporal, espacial e material do apontado Regulamento, ponto que, aliás, não é objecto de qualquer controversão.
Como este Tribunal Supremo já acentuou, constitui jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia que no momento da aferição da competência internacional, o órgão jurisdicional perante o qual foi proposta a acção não aprecia a sua admissibilidade nem a sua procedência segundo as regras do direito nacional, nem está obrigado, no caso de o demandado contestar as alegações do demandante, a proceder à produção de prova, apenas estando vinculado a identificar os elementos ou os factores de conexão com o Estado do foro que justificam a sua competência ao abrigo, designadamente do disposto no art.º 7.º do Regulamento n.º 1215/2012, devendo, para essa finalidade, considerar assentes as alegações quanto aos requisitos e, em nome da boa administração da justiça, subjacente ao mesmo Regulamento, apreciar as objecções apresentadas pelo demandado7.
De harmonia com o Regulamento n.º 1215/2012, a aferição da competência varia consoante o demandado se encontre domiciliado num Estado Membro ou resida fora de qualquer dos Estados Membros; se o réu tiver o seu domicílio num destes Estados, deve ser demandado, seja qual for a sua nacionalidade, nos tribunais do Estado do seu domicílio, consagrando-se, assim, o princípio actor sequitur forum rei (art.º 4.º, n.º 1). Este critério geral de determinação da competência concorre, porém, com critérios especiais, já que um réu domiciliado num Estado Membro pode ser demandado nos tribunais de outro Estado no caso de se verificar um dos factores de conexão referidos nos art.ºs 7.º e 26.º, caso em que o autor pode escolher qualquer dos tribunais: o determinado pelo critério geral ou o encontrado por aplicação dos critérios especiais (art.º 5.º).
Em matéria contratual – que se refere apenas às obrigações assumidas de forma voluntária – estabelece-se como critério especial de competência o lugar onde a obrigação em questão foi ou deve ser cumprida (art.º 7.º, n.º 1, do Regulamento). Patentemente, entendeu-se que o tribunal do Estado do lugar do cumprimento da obrigação não só está bem colocado para a condução do processo, como é também aquele que, por regra, apresenta uma conexão mais estreita com o objecto do litígio. De outro aspecto, dado que abre ao autor uma alternativa ao foro do domicílio do réu, este critério do competência favorece um maior equilíbrio entre os interesses do primeiro e do segundo.
No entanto, relativamente a duas categorias contratuais da maior importância – a venda de bens e a prestação de serviços – o Regulamento n.º 1215/2012 introduz uma definição autónoma do lugar do cumprimento da obrigação contratual, que dispensa o recurso ao Direito de Conflitos do Estado do foro. Parece ser esta, aliás, a razão pela qual o Regulamento n.º 1215/2012 bem como a Convenção de Lugano de 2007, Relativa à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, se referem à obrigação em questão, ao passo que a Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968, Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial e a Arbitragem, e a Convenção de Lugano de 1988 Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, se referem à obrigação que serve de fundamento ao pedido.
Efectivamente, o Regulamento determina que, salvo convenção contrária, o lugar do cumprimento da obrigação em questão é: no caso da venda de bens, o lugar do Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou deviam ter sido entregues; no caso da prestação de serviços onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou deviam ter sido prestados (art.º 5.º, n.º 1, b). Os conceitos de venda de bens e de prestação de serviços devem, também eles, ser interpretados autonomamente. A venda de bens compreende, designadamente, a venda de coisas móveis corpóreas; o conceito de prestação de serviços deve ser entendido em sentido amplo, compreendendo a realização, em benefício da contraparte, de uma actividade não subordinada de qualquer natureza, incluindo a actividade realizada no interesse de outrem, contra remuneração.
Ainda que se não deva entender que são se trata de uma definição autónoma de lugar do cumprimento, seguro é que se estabelece que só releva, na venda de bens, o lugar de cumprimento da obrigação de entrega e, na prestação de serviços, o lugar de cumprimento da obrigação do prestador de serviços, pelo que pode ver-se aqui uma concretização da ideia de prestação característica, dado que só releva o lugar em que foi ou deve ser realizada a prestação característica do contrato, o que torna irrelevante, por exemplo, o lugar do cumprimento da obrigação do preço dos bens ou dos serviços, mesmo que o pedido se fundamente nessa obrigação. A pretensão característica é aquela que permite individualizar o contrato: nos contratos relativos à troca de bens e serviços por dinheiro, a prestação característica é a que consiste na entrega da coisa, na cessão do uso da coisa ou na prestação do serviço.
A obrigação relevante para a determinação da competência é, assim, a obrigação primariamente gerada pelo contrato – e não a obrigação secundária que nasça do seu incumprimento ou cumprimento defeituoso8 ou da sua resolução, mais precisamente da relação de liquidação consequente a essa resolução. Por isso que, por exemplo, tratando-se de uma pretensão indemnizatória fundada no cumprimento da obrigação que emerge do contrato, é competente, não o tribunal do Estado, no território do qual a obrigação de indemnização deve ser cumprida, mas o do Estado a obrigação violada o deveria ter sido. O critério de aferição da competência internacional resultante do Regulamento não é, deste modo, inteiramente coincidente com o correntemente utilizado para a determinação da competência, da mesma espécie, mas de fonte interna.
Tendo tudo isto presente, este Tribunal Supremo já teve oportunidade de salientar:
- Por um lado, que o Regulamento n.º 1215/2012 adoptou um conceito autónomo9 de lugar do cumprimento para as acções fundadas em contratos de compra e venda e de prestação de serviços, elegendo as respectivas obrigações típicas ou características ou definidoras de um – a entrega do bem – e de outro – a prestação do serviço – como factor de conexão do contrato com um dado território que, de um aspecto, seja suficientemente forte para justificar a competência alternativa atribuída ao Estado do domicilio do demandado e, de outro, e por isso mesmo, suficientemente seguro para permitir determinar com a necessária certeza qual é o Estado cujos tribunais são competentes para julgar qualquer pretensão emergente ou resultante do mesmo contrato10;
- Por outro, e do mesmo passo, que quer o Regulamento n.º 1215/2012, quer o Regulamento n.º 44/2001, se afastaram do regime constante da Convenção de Bruxelas de 1968 Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, ao tomar como factor de conexão relevante em matéria contratual, já não a obrigação controvertida na acção - mas diferentemente, a obrigação característica do contrato, construindo assim uma noção autónoma do lugar do cumprimento, enquanto critério de conexão para determinar o tribunal competente naquela matéria11.
Na espécie da revista, a controvérsia gravita em torno deste factor ou elemento de conexão: o lugar em que deve ser cumprida ou devia ter sido cumprida, na expressão do Regulamento n.º 1215/2012, a obrigação em questão.
As instâncias são acordes em que a apontada regra de competência do lugar do cumprimento, disposta no Regulamento n.º 1215/2012, compreende toda e qualquer pretensão resultante do contrato concluído entre as partes, valendo para toda as acções destinadas ao cumprimento de quaisquer outras obrigações emergentes desse contrato; ergo, como a demandada se encontra sedeada no Reino de Espanha e o lugar do cumprimento das obrigações de entrega dos bens e de prestação do serviço, resultantes desse mesmo contrato, se situa naquele país, o tribunal nacional é internacionalmente incompetente para conhecer do objecto da acção. A recorrente, claro está, discorda e dá para essa discordância a razão seguinte: o fundamento da pretensão – uma obrigação pecuniária de restituição emergente da resolução extrajudicial do contrato concluído com a recorrida, que deve ser cumprida em Portugal – é inteiramente independente das obrigações que emergem da vigência e da execução do contrato resolvido, sendo estranha às prestações de entrega de coisa e de prestação de serviço que tipicamente dele emergem; como a competência é aferida pelo objecto do processo definido pelo autor, designadamente pelo concreto pedido formulado por este, o tribunal internacionalmente competente para apreciar aquela obrigação pecuniária restitutiva objecto do pedido é o português.
Crê-se, porém, que a razão está do lado das instâncias.
3.3. Concretização.
No caso que constitui o universo das nossas preocupações, é incontroverso, por um lado, que a autora tem a sua sede em Portugal e a demandada tem a sua sede em Espanha e, por outro, que concluíram entre si um contrato misto, oneroso, de compra e venda e de prestação de serviço – dado que, congrega prestações de coisa e de actividade – e que estas prestações, nos termos do contrato, deveriam ser cumpridas em Espanha.
É também, incontroverso, no plano jurídico, que ao caso é aplicável o Regulamento n.º 1215/2012 que declara internacionalmente competente o tribunal do lugar onde a obrigação foi ou devia ser cumprida e que para a determinação do lugar do cumprimento da obrigação há que atender à obrigação contratual que constitui o fundamento da acção e, por último, que tratando-se de venda de bens e de prestação de serviços, o lugar do cumprimento é determinado por uma regra material, de harmonia com a qual é relevante, nos termos do contrato, o local no qual os bens foram ou deviam ter sido entregues ou os serviços foram ou deviam ter sido prestados (art.º 7.º, n.º 1, b)). Simplesmente, como pelas razões expostas, a obrigação relevante para a determinação da competência é a obrigação ou obrigações primariamente constituídas pelo contrato, a obrigação ou obrigações características desse acto negocial, e não qualquer outra obrigação mesmo que fundada no mesmo contrato, segue-se, no caso, como corolário que não pode ser recusado, que o tribunal internacionalmente competente não é o tribunal nacional, mas o tribunal espanhol, dado que as obrigações de prestação e coisa e de prestação de serviço emergentes daquele contrato deveriam ser cumpridas em Espanha. Dito doutro modo: a obrigação de restituição, decorrente da resolução do contrato, objecto do pedido da autora, não constitui, face ao Regulamento, um critério atendível de determinação da competência internacional.
Importa, assim, reiterar a jurisprudência deste Tribunal, da qual decorre a correcção da decisão das instâncias que concluíram pela incompetência internacional do tribunal nacional para apreciar o objecto da causa. Decisões das instâncias que são também correctas quando observam, como argumento adjuvante, que o lugar – e a forma de cumprimento – da obrigação de restituição, assente na resolução do contrato promovida pela autora, objecto do seu pedido, não emerge de qualquer convenção das partes, antes foi unilateralmente decidida pela demandante, pelo que, no momento da conclusão do contrato, à demandada não seria previsível, em termos de razoabilidade, o seu accionamento no tribunal português (Considerando 16 do Regulamento).
Do percurso argumentativo percorrido extrai-se, como proposição mais saliente, a seguinte:
- O Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução em matéria civil e contratual, de 12 de Dezembro de 2012 (Regulamento de Bruxelas I bis), elege, em matéria contratual, por aplicação de uma noção autónoma de lugar do cumprimento, como elemento de conexão para a determinação do tribunal internacionalmente competente, não a obrigação objecto do concreto pedido do demandante, mas a obrigação característica do contrato, pelo que só releva, na venda de bens, o lugar de cumprimento da obrigação de entrega e, na prestação de serviços, o lugar de cumprimento da obrigação do prestador de serviços,
A recorrente sucumbe no recurso. Essa sucumbência torna-a objectivamente responsável pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
4. Decisão.
Pelos fundamentos expostos, nega-se a revista.
Custas pela recorrente.
2025.02.11
Henrique Antunes (Relator)
Pedro Lima Gonçalves
António Magalhães
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2. Miguel Teixeira de Sousa, A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, Lisboa, Lex, 1994, págs. 41 a 46.↩︎
3. Porém, nos termos do acordo entre a CE e a Dinamarca, esta notificou a Comissão da sua decisão de aplicar Regulamento: JO L 182, de 10 de Julho de 2015.↩︎
4. Ac. do STJ de 19.12.2018 (2312/16).↩︎
5. Ac. do TJUE de 09.07.2020, C-343/19, EU:C:2020:534,n.º 22 e de 24.09.2020, C-29/2019, EU:C:2020:950, n.º20.↩︎
6. TUE 27/10/1998, no caso Frauil (ECLI:C:2004:77), n.º 22, e 13/3/2014, no caso Marc Brogsitter (ECLI:C:148), n.º 21.↩︎
7. Ac. do STJ de 14.12.2021 (26412/16).↩︎
8. Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Vol. III, Competência Internacional e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras, AAFDL, pág. 119.↩︎
9. Acs. do STJ de 10.12.2020 (1608/19).↩︎
10. Ac. do STJ de 13.11.2018 (6919/16).↩︎
11. Acs. do STJ de 14.12.2017 (143378/15) e de 13.11.2018 (6919/16).↩︎