I. A cláusula de exclusividade acordada entre as partes afigura-se indispensável à proteção de interesses legítimos da empresa ré, bem como proporcional aos fins com ela visados, assentando, pois, nos termos legalmente exigidos, em fundamentos objetivos.
II. Ao contrário do estabelecido relativamente ao pacto de não concorrência, o Código do Trabalho não consagra a obrigatoriedade de uma compensação económica específica, como contrapartida da cláusula ou pacto de exclusividade e, muito menos, que isso seja uma condição da sua validade.
III. Ao desenvolver trabalho remunerado para uma entidade terceira, concorrente do seu empregador, sem previamente obter a necessária autorização deste ou, sequer, lhe comunicar tal facto, o autor infringiu aquela cláusula de exclusividade.
IV. O dever de lealdade inclui um dever de honestidade, que implica uma obrigação de abstenção por parte do trabalhador de qualquer comportamento suscetível de colocar em crise a relação de confiança que deve pautar as suas relações com o empregador, enquanto corolário da boa-fé contratual, concretizando-se ainda no dever de não concorrência e no dever de sigilo.
V. Dada a natureza fortemente fiduciária do contrato de trabalho, em regra assume especial significado a violação do dever laboral de lealdade, em função direta do grau de responsabilidade que o trabalhador detenha na empresa.
VI. Ao desenvolver serviços para uma cadeia de televisão na preparação de uma reportagem com pontos de contacto com uma outra que a R. tencionava levar a cabo, o autor violou ainda o dever de lealdade – enquanto pauta geral de orientação da conduta do trabalhador e dever de não concorrência – e, concomitantemente, os deveres de probidade e de realizar o seu trabalho com zelo e diligência.
MBM/JG/JES
I.
2. Na 1.ª instância, a ação foi julgada improcedente.
3. Interposto recurso de apelação pelo A., o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), concedendo-lhe provimento, decidiu, para além do mais, declarar ilícito o despedimento.
4. A R. interpôs recurso de revista, tendo o A. contra-alegado.
5. Neste Supremo Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da procedência do recurso (considerando haver justa causa de despedimento, embora entendendo, tal como o acórdão recorrido, que a acordada cláusula de exclusividade “só pode considerar-se lícita se encarada como tendo em vista reforçar a proteção legal contra o perigo de concorrência”), em Parecer a que as partes não responderam.
6. Em face das conclusões das alegações da recorrente, e inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), as questões a decidir1 são as seguintes:
– Se o acórdão recorrido enferma de nulidade, por condenação extra vel ultra petitum e excesso de pronúncia;
– Em caso negativo, se a cláusula de exclusividade acordada entre as partes é válida;
– Independentemente da resposta a estas questões, se há justa causa de despedimento.
Decidindo.
1) A R. Agence France Press, doravante AFP, é a representante permanente em Portugal da Agência Internacional de Notícias France-Presse.
2) A France-Presse tem por objeto a recolha, tanto em França como no resto do mundo, de elementos informativos e objetivos e coloca essa informação à disposição dos seus potenciais utilizadores;
3) A representação em Portugal é assegurada por BB e a operação jornalística em Portugal é coordenada por CC.
4) O A. foi admitido ao serviço da R., Escritório de ..., em 3 de janeiro de 2017, mediante a celebração de um contrato de trabalho a termo certo (…).
(…)
6) Nos termos da clausula 9ª deste contrato, o Autor estava obrigado a pedir autorização escrita ao seu superior para “qualquer colaboração ou atividade jornalística externa.”.
7) (…) [N]o dia 1 de outubro de 2017, autor e Ré celebraram o “contrato de trabalho por tempo indeterminado” (…) “em regime de tempo parcial”, para o desempenho, das funções de Jornalista inerentes à categoria profissional de Redator do Grupo II.
8) No desempenho destas funções, competia ao A., produzir notícias que acontecem em Portugal, em todos os campos, incluindo política, economia, meio ambiente, desporto e notícias gerais, entre outras funções afins ou funcionalmente ligadas àquelas.
9) Foi acordado um horário de 21h de trabalho por semana (por referência a um horário completo de 35h semanais), em regime IHT, mediante pagamento de uma retribuição base mensal de €1.120,00, e um subsídio de IHT no valor mensal de €336,00 (…).
10) Nos termos da cláusula 12ª deste contrato de trabalho com a epígrafe “Lealdade”
“(...)
os documentos, informações, contactos ou dados recolhidos pelo Trabalhador no exercício das suas funções para a AFP são, por natureza, confidenciais.
O Trabalhador compromete-se a respeitar a sua confidencialidade e a utilizar tais documentos, informações, contactos ou dados exclusivamente no exercício das suas funções para a AFP.
O Trabalhador está vinculado a um dever de lealdade em relação ao seu empregador e a qualquer pessoa que trabalhe para a AFP, comprometendo-se de se abster de qualquer comportamento ou comentários contrários aos seus interesses materiais e morais.
Tais deveres de lealdade e descrição devem ser observados pelo Trabalhador na sua relação com terceiros, bem como com outros trabalhadores da AFP’”.
11) E na cláusula 13ª do contrato de trabalho, sob a epígrafe “Exclusividade”, que:
“(...)
o Trabalhador compromete-se, durante toda a vigência deste contrato, a dedicar o seu tempo e atividade ao serviço da AFP.
Qualquer trabalho remunerado ou atividade desempenhada fora da AFP deve ser previamente autorizada por escrito pelo superior hierárquico.
Tal autorização pode ser revogada a qualquer momento, sem obrigação da parte da AFP de justificar a sua decisão, se o trabalho externo prejudicar os interesses da AFP”.
12) Para vigorar a partir do dia 1 de setembro de 2018, foi celebrado um aditamento ao contrato de trabalho, nos termos do qual foi aumentado o período normal de trabalho semanal do autor para as 28h, (…) e a retribuição ilíquida de € 1336,00, mensais, a que acresce o subsídio por IHT no valor mensal de ilíquido de €400,89.
13) Desde o início de novembro de 2022 que alguns elementos da redação da R., bem como prestadores de serviço seus, estavam a analisar a possibilidade e a pertinência de prepararem uma reportagem tendo por tema a pobreza energética em Portugal e a dificuldade de aquecimento das casas portuguesas, especialmente durante o inverno.
14) No mês de dezembro de 2022, foi decidido que a preparação da referida reportagem se iniciaria em janeiro de 2023.
15) Durante todo este período iniciado em novembro, este tema, assim como o trabalho de recolha de elementos e pesquisa que estava a ser levado a cabo, foram abordados nas reuniões de equipa, presenciais ou através de meios de comunicação à distância, assim como no grupo de Whatsapp da ....
16) O Autor encontrava-se presente em algumas destas reuniões, estando igualmente incluído no referido grupo de whatsapp, e, por isso, a par deste projeto de reportagem, que estava a ser discutido e abordado com o ... Editorial, CC, e que seria levado a cabo pelo DD, jornalista da R., e pelo EE, videojornalista freelancer, e FF, fotógrafa freelancer, os quais prestavam serviços à Ré.3
16-A) A Reportagem sobre a pobreza energética, iniciada em janeiro de 2023, era para ser publicada durante o primeiro trimestre do ano (no curso do inverno); 4
17) No dia 9 de fevereiro de 2023, a equipa que se encontrava afeta a esta reportagem, procedeu à entrevista de um estudante universitário e de um grupo de idosos reformados, na associação “E...”.
17-A) À data de 9 de fevereiro, a equipa que se encontrava afeta à elaboração da reportagem sobre a pobreza energética, já tinha entrevistado a Sra. GG, que vive na ... e que sofre com o frio em casa no inverno, tendo obtido depoimentos e imagens, que foram utilizadas na versão final da reportagem; 5
18) Apercebendo-se que teriam poucas imagens que acompanhassem e ilustrassem a reportagem, o videojornalista EE e a fotógrafa FF decidiram ajudar o jornalista DD a procurar testemunhas que aceitassem ser entrevistadas e fotografadas nas suas casas.
19) No dia 13 de fevereiro de 2023, pelas 18h14, a FF colocou no grupo de Whatsapp da ... - na qual o A. se encontrava incluído – um artigo publicado no website “A mensagem ...”, de ... de janeiro de 2023, que tinha testemunhos de habitantes da zona de ..., em ..., que viviam numa situação de pobreza energética extrema.
20) Entretanto, no mesmo grupo, DD e EE responderam à FF, informando que iriam organizar-se para se deslocarem a ..., no sentido de conseguirem obter os testemunhos em falta sobre o tema.
21) No dia seguinte, 14 de fevereiro de 2023, pelas 13h13, EE insistiu no grupo Whatsapp, que o trabalho de pesquisa da FF tinha sido excelente, e que deveriam avançar com o tema, propondo uma pequena conferência nessa tarde para o discutir melhor e para se organizarem em conformidade.
22) Como tal, no próprio dia 14 de fevereiro de 2023, pelas 15h00, realizou-se uma videoconferência entre o DD, o EE e o ... editorial CC, sendo explicado e descrito o motivo pelo qual a equipa acreditava que a reportagem sobre este local e edifício concretos e os seus habitantes em ... poderia finalmente permitir concluir o grande artigo sobre a pobreza energética, no qual a equipa vinha trabalhando há tanto tempo.
23) Foi, então, coordenadamente, tomada por todos, a título definitivo, a decisão de explorar o referido local/edifício no dia seguinte, 15 de fevereiro de 2023, com o intuito de encontrar testemunhas e programar a filmagem a realizar na semana seguinte, decisão que foi comunicada também à fotógrafa FF pelo EE.
24) No dia 15 de fevereiro de 2023, a partir das 10h27, os referidos EE, FF e DD começaram a trocar mensagens sobre esta deslocação a ..., a fim de combinarem o encontro no referido local nessa mesma tarde, tendo ficado combinado que se encontrariam pelas 14h,
25) Uma vez mais no grupo de Whatsapp no qual o A. se encontrava incluído e a cujas mensagens tinha e tem acesso.
26) Uma vez que tanto os referidos DD como a FF se encontravam um pouco atrasados face à hora combinada, EE tomou a decisão de começar sozinho a verificar o local e a procurar habitantes dispostos a testemunhar quanto ao estado do edifício.
27) Depois de ter procurado durante cerca de 45 minutos, encontrou finalmente, pelas 14h30, o Lote ... do indicado edifício em ..., que se encontrava num estado decrépito e que, concluiu, ser perfeito para ilustrar a reportagem sobre pobreza energética.
28) Tentou, de seguida, entrar em contacto com um habitante para obter algumas informações e procurar a senhora D. HH, mais conhecida por "Dona II”, que havia sido entrevistada no artigo que a FF tinha partilhado com os colegas no grupo de Whatsapp da ..., e que a equipa gostaria de ter como personagem principal na sua reportagem.
29) Tendo finalmente encontrado a referida habitante do edifício, o EE apresentou-se dizendo: "Olá minha senhora, o meu nome é EE, estou ao serviço da Agence-France Presse, estou a fazer uma reportagem sobre pobreza energética, vi o seu nome e a sua entrevista num artigo e queria saber se..."
30) Ao que ela o interrompeu, dizendo "Sim, sim, eu estive com um colega seu esta manhã, ele já me explicou. E ele já tomou muitas notas, 3 páginas no seu caderno de notas...!"
31) Desconcertado e pensando que a Senhora estava equivocada, o EE respondeu: "Creio que deve estar enganada, esta é a primeira vez que a contactamos, talvez o tenha confundido com outro jornalista...".
32) A D.II respondeu "Não, não, é um erro, foi um dos seus colegas” sendo que quando questionada acerca do nome do jornalista com o qual havia falado, respondeu “Espere, chamava-se... JJ... Sim, JJ”.
33) Apanhado de surpresa com esta resposta, e sem entender porque teria o A. contactado aquela senhora nessa mesma manhã, o EE ficou de tal forma espantado que a D. II se apressou a esclarecer: "Mas ele tinha-me dito que viria mais tarde com uma colega, uma senhora que viria tirar fotografias. Planeámos fazê-lo no dia 8 de março”.
34) Despedindo-se da D. II, pedindo desculpa por a ter incomodado e por não saber que um colega seu havia já aparecido nessa manhã, optou por nem lhe pedir o número de telefone pois assumiu que o A. já o teria feito.
35) Nesse mesmo dia, pelas 15h, depois de deixar a D. II, EE telefonou ao jornalista DD para lhe contar o que havia acabado de suceder, ainda absolutamente estupefacto, tendo DD respondido que era, de facto, estranho, e que provavelmente teria a ver com uma reportagem que o A. estaria a preparar para a F..., não apenas sobre a pobreza energética, mas sobre a pobreza em geral.
36) Tendo o EE respondido: "Espera, o JJ está a trabalhar numa reportagem sobre o mesmo tema que nós? Há muito tempo? Para a F...? E está a trabalhar numa história de que falámos no grupo há dois dias? No mesmo dia que nós? Sem nos dizer nada, apesar de ele saber que iriamos lá?”
37) A partir desse momento, chocado e suspeitando que algo não estava devidamente esclarecido, o EE decidiu telefonar ao ... da redação da R., CC, para lhe contar a situação, tendo o CC sido igualmente apanhado totalmente de surpresa e confirmado que o A. não estava de serviço nesse dia 15 de fevereiro de 2023 e, portanto, não estava a trabalhar para a R. nesse dia, nem estaria no dia 8 de março de 2023.
38) Já devidamente a par desta situação, o CC aproveitou o facto de os três (o A., o DD e o próprio) terem, no dia seguinte, 16 de fevereiro de 2023, uma reunião sobre questões de planeamento, determinação da agenda para os próximos dias e o progresso dos tópicos em curso.
39) Deixando este tema para o fim da discussão, o CC começou por pedir a DD que explicasse o que tinha acontecido no dia anterior e qual tinha sido o resultado dos esforços que tinha empreendido com o EE.
40) Em suma, na referida reunião o jornalista DD explicou que nenhuma tentativa de contactar os residentes e comerciantes locais tinha resultado numa futura reunião ou agendamento de entrevista dos mesmos, confirmando então que a única pessoa que se tinha mostrado disponível para o fazer era a senhora HH, que tinha, no entanto, dito ao EE que já tinha sido abordada pelo A.
41) Quando questionado sobre o motivo pelo qual se tinha ido encontrar com esta senhora algumas horas antes do EE, o A. confirmou que tinha de facto estado lá, assegurando que não se tinha apresentado como jornalista da R., e que não tinha marcado qualquer encontro para 8 de março.
42) Respondeu ainda que se tratava de uma coincidência "fortuita", pois não sabia que DD, EE e FF queriam encontrar-se com a Sra. D. HH e terminar a sua reportagem na sua vizinhança.
43) Quando o CC lhe perguntou se não tinha visto as trocas de mensagens acerca deste tema no grupo do Whatsapp, o A. limitou-se a responder "não".
44) Quando questionado acerca do motivo pelo qual não tinha dito ao resto da equipa que estava no encalço da senhora quando o tema dos problemas de pobreza energética tinha sido discutido coletivamente, e tinha inclusivamente sido mencionado nos e-mails semanais de resumo enviados pelo CC, o A. respondeu que estava a trabalhar num tema mais amplo, relativo à habitação como um todo, e que os dois ângulos não estavam ligados.
45) À pergunta que de seguida lhe foi feita pelo CC acerca do motivo pelo qual se encontrava a efetuar uma pesquisa sobre este tema, o A. informou lhe tinha sido pedido para preparar uma reportagem para a F... no final do ano de 2022.
46) Quando, de seguida, questionado pelo CC acerca da sua atividade fora da R., o A. terá começado por responder que estava "esporadicamente" a arranjar histórias para terceiros, mas acabando por dizer que nunca tinha trabalhado para ninguém fora da R.
47) Verificou-se, portanto, uma contradição clara entre o que o A. disse num primeiro momento (quando referiu que trabalhava esporadicamente para terceiros), e a versão que adotou depois, assegurando que nunca tinha trabalhado para terceiros.
48) Quando questionado ainda pelo CC acerca do motivo pelo qual a F... o tinha chamado, se ele nunca teria feito nenhum trabalho para eles como freelancer antes, o A. respondeu que era através de uma antiga colega de escola que trabalha na F... e que sabia que ele estava a viver em Portugal.
49) CC perguntou, então, ao A. se sabia que tinha de pedir autorização à R. antes de trabalhar para um terceiro, o mesmo respondeu que não sabia.
50) Mas que KK e LL lhe tinham dito na altura da sua contratação (em 2017) que ele podia fazer trabalho por conta própria fora.
51) O que não correspondia à verdade quanto a KK, na medida em que o que esta afirmou ao A., na altura da contratação, foi que poderia ter colaborações exteriores, mas com duas condições: precisava de pedir uma autorização por escrito e não poderia colaborar com os concorrentes da R. 6
52) À medida que a conversa avançava, o A. procurou repetidamente negar que tivesse interferido ou prejudicado os esforços de EE e DD para obter o testemunho da Sra. HH, argumentando que não tinha conhecimento desses esforços, ou que tinha simplesmente "chegado lá primeiro".
53) CC sugeriu então que o A. ligasse de volta à Sra. D. HH e lhe dissesse que DD assumiria a reportagem e tentaria marcar uma reunião para o início da próxima semana, como já havia sido entretanto acordado entre a senhora e o EE.
54) O A. concordou então em dar o contacto da senhora e da associação que o tinha ajudado a encontrá-la.
54-A) As perguntas realizadas pelo CC na reunião de 16 de fevereiro deixaram o autor apreensivo e temeroso. 7
55) CC disse ainda, antes de dar por terminada a reunião, que teriam de voltar a falar sobre este tema na presença de EE e FF, uma vez que também eles mereciam que lhes fosse dada alguma explicação.
56) Tendo já falado com eles, CC percebeu, de forma evidente, que este incidente os perturbou muito, pois sentiram que a sua confiança tinha sido traída.
57) Na sequência desta reunião, CC optou por abordar o tema com DD e EE, que o informaram que estavam conscientes de que o A. trabalhava ocasionalmente para outros meios de comunicação social.
58) O que, contudo, não sucedia até esse momento com CC.
59) Nem com BB.
60) Os colegas de redação sentiram-se atraiçoados e enganados pelo A.
61) Embora a F... não seja uma agência noticiosa, move-se no mesmo circuito, no mesmo "mercado”, sendo cliente da R.
62) O A. já havia sido disciplinarmente sancionado, ao serviço da R., com sanção de suspensão do trabalho com perda de retribuição, por violação culposa por parte do A. dos mais elementares deveres de respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos e os companheiros de trabalho com urbanidade e probidade, realizar o trabalho com zelo e diligência e de guardar lealdade ao empregador.
63) Tal sanção disciplinar foi confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.°25596/20.7T8LSB.L1 (…).
64) A ré tem apenas 4 trabalhadores.
65) A AFP tem como principais clientes vários meios de comunicação social, mas também empresas, instituições e plataformas digitais de todo o mundo, incluindo a F... (F...).
66) O Autor é licenciado em ... com especialização em História pela Universidade ... tendo, igualmente, o grau de Mestre em ... com especialização em Jornalismo, obtido na Universidade de..., bem como uma formação em Jornalismo.
(…)
68) E é delegado sindical desde 21/12/2019.
68-A) A redação de Lisboa, à data dos factos, era constituída por três jornalistas redatores em regime de contrato de trabalho: DD, o Autor e o CC (...editorial), e por três jornalistas freelancers: FF (fotojornalista) e EE (videojornalistas) em regime de colaboração regular, e MM, cuja atividade era solicitada sempre que os dois primeiros não tinham disponibilidade.8
69) O trabalho de “fixing” consiste em recolher contactos de pessoas a entrevistar, tendo em conta a temática que se pretende abordar, sendo um trabalho de mera pesquisa de contatos e/ou locais de interesse para uma determinada reportagem, podendo envolver igualmente trabalho como tradutor quando necessário.
70) Em 2019 o Autor foi alvo de um processo disciplinar, por alegada violação do dever de respeito e de obediência para com o referido superior hierárquico, CC através do qual a Ré lhe aplicou uma sanção de repreensão registada.
71) Ainda em 2019, o Autor foi alvo do segundo processo disciplinar, também no decurso de um episódio com o mesmo ..., no qual a Ré lhe aplicou uma sanção de suspensão de trabalho e perda de retribuição e antiguidade pelo período de 20 dias.
72) Em 2020, o Autor foi alvo do terceiro processo disciplinar através do qual a Ré lhe aplicou uma sanção de suspensão de trabalho e perda de retribuição e antiguidade pelo período de 30 dias.
73) O Autor impugnou judicialmente, as decisões acima mencionadas, no âmbito do processo Proc. 25596/20.7..., que correu termos no Juízo do Trabalho de ... - Juiz ..., peticionando que fossem declaradas nulas por abusivas e ilícitas.
74) O Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa declarou a nulidade da sanção da repreensão escrita, determinando a eliminação da mesma do registo de sanções existentes e confirmou as outras duas sanções disciplinares.
75) O Autor, inconformado com a decisão, recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa o qual declarou, por Acórdão já transitado em julgado, ilícita a sanção de suspensão de trabalho e perda de retribuição e antiguidade pelo período de 30 dias, aplicada pela ré em 2020, e determinou a sua eliminação do registo de sanções existentes.
76) Do registo disciplinar do Autor, ficou assim a constar a sanção disciplinar de 20 dias de suspensão, com perda de retribuição.
77) No início de janeiro de 2023 o Autor foi contactado pela NN, Jornalista da F..., que lhe solicitou que elaborasse uma lista de contactos para entrevista e indicação de locais para filmar que pudessem ter interesse, para ser elaborada uma reportagem que a F... pretendia fazer sobre a Crise da habitação em Portugal - dificuldades para encontrar apartamentos/casas devido à escassez de oferta, rendas altas, preços para compra de habitação altos, despejos, protestos da população, casas de valor elevado com poucas condições, associações a lutar pelo direito à habitação, peritos em habitação e gentrificação, proprietários de alojamentos locais, investidores estrangeiros em ... com poder de compra significativo, políticas para descobrir quais seriam as soluções propostas para esta crise habitacional.
78) No caso concreto, o Autor tinha de agilizar tudo de forma que as filmagens pudessem arrancar em março de 2023, uma vez que a ideia era que a reportagem fosse divulgada em abril.
79) Já não era a primeira vez que Autor, colaborava com F..., designadamente em trabalhos de fixing, tendo em conta que reside em Portugal e domina a língua francesa.
80) O Autor esteve de folga do dia 10 ao dia 15 de fevereiro de 2023, pelo que não se deslocou, nesses dias, às instalações da Ré nem prestou trabalho para a mesma.
81) No dia 14 de fevereiro, no âmbito do trabalho que estava a fazer para a F... o Autor contactou o Sr. OO, pelas 12:27h, número de telefone que obteve via facebook, através da página da Associação de Moradores do Bairro ... e com o qual, durante uma curta conversa telefónica, combinou fazer uma visita ao Lote ..., no dia seguinte, pelas 11h.
82) CC sugeriu que o Autor ligasse à Sra. HH e lhe dissesse que o seu colega DD assumiria a reportagem e tentaria marcar uma reunião para o início da semana seguinte.
83) O Autor concordou, tendo estabelecido contacto com a Sra. HH nesse sentido.
84) Também facultou o contacto do Sr. OO e da Sra. PP, também moradora do Lote ..., cujo testemunho acabou por ser utilizado na versão final da reportagem da Ré.
85) Em consequência, os Jornalistas DD, FF e EE realizaram a reportagem na primeira oportunidade disponível para o efeito, concretamente no dia 20 de fevereiro.
86) A reportagem em questão foi publicada pela Ré no dia 3 de março de 2023 (…)
86-A) Tendo-se apercebido que os moradores do Lote ... residiam em habitação pública (IHRU), o Autor nunca chegou a referir o tema do Lote 70 e os contactos feitos à F.... 9
87) No dia 14 de abril, no canal F... 2 foi transmitida uma reportagem da F... e o Lote ... não foi abordada.
88) O Autor esteve a prestar atividade para a Ré, e portanto destacado para realizar trabalho noticioso, entre a data da instauração do processo disciplinar e o despedimento, tendo realizado todo o tipo de trabalho, seja de escritório na elaboração das notícias diárias, seja na cobertura de eventos desportivos, em reportagem como jogos da Liga dos Campeões, Liga Europa, cobertura da convocatória da Seleção Nacional na Cidade do Futebol, e dos jogos da Seleção Nacional.
89) O Trabalhador voltou a ser contatado para um trabalho de fixing e colocou a situação à consideração do coordenador da Ré CC com Cc Diretor da AFP para Espanha e Portugal, jornalista BB, por email enviado no dia 24 de abril de 2023, nos seguintes termos: 10
(…)
TRADUÇÃO
Olá, CC,
Estou a enviar-lhe este e-mail para saber se não se importa que eu faça um trabalho de fixação para o estúdio da produtora francesa F.... A fixação faz parte de uma reportagem televisiva de dez minutos para o programa "Nous les Européens", transmitido em F... 2 e F... 3. Nesta fase, sei que o tema será o combate aos incêndios em Portugal e que o trabalho de fixação me levará entre três e quatro dias. Para este trabalho, que farei nos meus dias de folga durante o mês de maio, pedem-me que prepare os altifalantes escolhidos, que acompanhe as filmagens se necessário e que traduza de português para francês e vice-versa se necessário.
Agradeço desde já a vossa resposta. Amts, JJ
90) No dia 5 de maio de 2023, BB respondeu ao Autor, nos seguintes termos: 11
Caro JJ,
Refiro-me aos vossos e-mails abaixo, que li no meu regresso de férias. Não podemos aceitar o seu pedido.
O seu contrato de trabalho contém uma cláusula de exclusividade muito ciara e, em nenhum momento, durante a sua atividade na AFP, nos pediu autorização para trabalhar para terceiros.
Por conseguinte, nunca recebeu o nosso acordo para o fazer. Escusado será dizer que a nossa intenção, no âmbito desta cláusula, é não permitir que desenvolva uma atividade paralela com os clientes da Agência, ainda mais quando esta se sobrepõe em grande medida à do escritório.
Além disso, na medida em que está em curso um processo disciplinar contra si precisamente sobre este assunto e com este cliente, o momento deste pedido parece-nos particularmente inoportuno.
8. Sustenta a recorrente que o A. «não pediu a declaração judicial de nulidade da “cláusula de exclusividade” na petição inicial, o que torna processualmente ilegítima e inválida essa parte da condenação da Recorrente, por violação do disposto no artigo 609.º, do Código de Processo Civil, pois que se condena em objeto diverso do peticionado».
Claramente sem razão, desde logo porque o dispositivo do acórdão recorrido não contém tal declaração/condenação.
É certo que este aresto considerou, em sede de fundamentação de direito, que a cláusula de exclusividade acordada entre as partes (apenas) “pode considerar-se lícita se encarada como tendo em vista reforçar a proteção legal contra o perigo de concorrência consignada na alínea f) do artigo 128.º do Código do Trabalho”, premissa com base na qual desenvolveu algumas das linhas argumentativas que o levaram a concluir pela inexistência de justa causa de despedimento.
Mas daí também não advém qualquer excesso de pronúncia, uma vez que o A., na apelação, invocou expressamente que aquela cláusula “é completamente ilícita e desproporcional, limitando a liberdade de trabalho sem qualquer justificação e contrapartida remuneratória”.
Inverificado qualquer dos condicionalismos previstos nas alíneas d) e e) do nº 1 do art. 615º, do CPC, improcede, pois, a arguida nulidade.
b) – Posição das instâncias quanto à matéria de fundo suscitada na revista.
8. A sentença proferida na 1ª instância considerou haver justa causa de despedimento, por violação dos deveres laborais, com base, essencialmente, no seguinte raciocínio:
“(…)
É incongruente e desonesto da parte do A. ter avançado com o estabelecimento de um contacto com a Sra. D. HH, em benefício da F... e em seu próprio benefício financeiro, quando (…) tinha plena consciência da intenção dos seus colegas de efetuarem a reportagem sobre a pobreza energética (…).
O Autor, ao optar por ir ao Lote ... e encontrar-se com a Sra. D. HH para efeitos de pesquisa para uma reportagem da F..., quando estava perfeitamente ciente (…) que os seus colegas estavam a trabalhar numa reportagem sobre pobreza energética (…) revelou total displicência, ausência de companheirismo, de lealdade e de vontade de colaborar e ser eficiente.
Está em causa, com efeito, uma conduta absolutamente desleal para com a R. em geral e, em particular, para com os seus colegas de trabalho, tanto assim é que os mesmos se sentiram profundamente afetados, enganados e atraiçoadas com a conduta do A.”
(…)
Embora a F... não seja uma agência noticiosa, a verdade é que se move no mesmo circuito, no mesmo "mercado”, sendo, de facto, e com especial gravidade para esta situação, cliente da R.
Acresce que, ainda que assim não fosse, o impacto e sucesso das reportagens deste tipo depende em boa parte da sua novidade e antecipação, valores que se desmoronam quando há vários órgãos e/ou agências a dedicar-se e a tratar o mesmo tema.
(…)
É especialmente grave que o A. nunca haja reportado a BB ou a CC a atividade que ia desenvolvendo para a F..., e que haja participado durante largas semanas num grupo “Whatsapp” integrando as pessoas acima referidas, ocultando-lhes - até ser “apanhado’ - a atuação paralela a que se dedicava (…).
A gravidade das violações repercutiu-se também na relação entre o autor e os demais colegas de trabalho e Ré fraturando a relação de confiança e lealdade que tem que existir numa agência noticiosa de pequena dimensão, como são os escritórios em Portugal da AFP.
Os comportamentos do autor (…) são muito graves e tornaram impossível a subsistência da relação laboral.
(…)
Acresce que o autor desrespeitou frontalmente as cláusulas de lealdade e exclusividade acordadas no contrato (…)”.
9. Diferentemente ajuizou o TRL, destacando-se do acórdão recorrido:
“(…)
[O] problema da validade de um pacto de exclusividade, à luz das garantias consignadas nos artigos 47.º, n.º 1 e 58.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, só se coloca quando dele resulte, para o trabalhador, a obrigação de não exercer para outrem ou por conta própria, atividades não concorrentes com a do empregador, só neste caso se podendo falar de compressão das referidas garantias. E a sua licitude há de ser averiguada segundo critérios de adequação e proporcionalidade, em função de um real e efetivo interesse do empregador correlacionado com a natureza das tarefas objeto do contrato.
(…)
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de dezembro de 2009 “uma tal ponderação é suscetível de reconduzir a obrigação de exclusividade à própria essência do contrato, na perspetiva de que, sem exclusividade, os fins por ele prosseguidos não seriam plenamente atingidos”.
(…)
Não cremos que seja o caso dos autos.
Com efeito, e tendo em conta as funções de jornalista desempenhadas pelo autor, não nos parece que tenham ficado minimamente demonstrados quaisquer fatores relacionados com a atividade económica da recorrida enquanto agência noticiosa ou com as funções do trabalhador (v.g. a sua complexidade técnica destas, ou o grande tempo exigido para um eficiente desempenho do trabalhador ou a elevada responsabilidade deste) que, de algum modo, possam justificar que o trabalhador se comprometa “durante toda a vigência deste contrato, a dedicar o seu tempo e atividade” ao empregador e que tal exclusividade o impeça de realizar “qualquer trabalho remunerado ou atividade” sem autorização escrita do empregador, autorização que, repare-se, fica no livre alvedrio deste revogar a qualquer momento, sem ter que apresentar justificação.
(…)
É aqui particularmente relevante a circunstância de o contrato de trabalho em que foi aposta esta cláusula constituir um contrato de trabalho a tempo parcial, inicialmente com 21 horas de trabalho por semana e atualmente com um período normal de trabalho semanal de 28 horas (…).
Este circunstancialismo, do mesmo passo que confere maior intensidade aos direitos constitucionais à livre escolha de profissão e ao trabalho no tempo “livre” de que o trabalhador dispõe em cada semana, intensifica também o juízo de desproporcionalidade que fazemos sobre a exigência de exclusividade traçada na cláusula contratual em análise, que, recorde-se, tem a particularidade de nela se convencionar que o trabalhador se compromete “a dedicar o seu tempo e atividade ao serviço da AFP” durante toda a vigência deste contrato, o que não deixa margem para qualquer outra atividade.
Juízo de desproporcionalidade este que é alicerçado pela circunstância de não ter sido convencionada qualquer contrapartida específica pela exclusividade referida na cláusula 13.ª do contrato de trabalho firmado entre as partes.
Daqui resulta, face ao que se acabou de expor, ser ilícita a cláusula de exclusividade (…).
A citada cláusula só pode considerar-se lícita se encarada como tendo em vista reforçar a proteção legal contra o perigo de concorrência consignada na alínea f) do artigo 128.º do Código do Trabalho (…).
(…)
(…) [A] F... é cliente da R. e, ainda que se mova no mesmo circuito ou “mercado” da R., não é uma agência noticiosa. Não é, pois, uma empresa com atividade concorrente com a da R. sendo, ao invés, sua cliente, nada indiciando que a atividade extralaboral que o A. desenvolveu em benefício da F... fosse potencialmente apta a afetar a posição ocupada pela R., sua empregadora no mercado concorrencial e a traduzir-se, ainda que em termos de perigo, num desvio de clientela.
(…)
Ora, no caso vertente a reportagem que a R. empreendia não versa, efectivamente, sobre o mesmo tema da reportagem que a F... ía empreender com base no trabalho de fixing que o recorrente desenvolveu em seu benefício: uma versava sobre a pobreza energética em Portugal e a dificuldade de aquecimento das casas portuguesas e a outra sobre a crise da habitação em Portugal, deduzindo-se da descrição deste tema que incidia essencialmente sobre a dificuldade em conseguir habitação (versando sobre as diversas causas desse fenómeno, designadamente os preços elevados), sendo de notar que não se encontrando no longo elenco de sub-temas enunciados no facto 77. qualquer referência à eficiência energética, ou falta dela, das casas em Portugal.
(…)
O facto de o A. nunca ter chegado a referir o tema do Lote ... e dos contactos ali feitos à F... e de o Lote... não ter sido abordado na reportagem que veio a ser transmitida no canal francês, é muito relevante como demonstrativo da diversidade de temas entre as reportagens em cotejo.
(…)
E, ainda que se aceite que no mercado noticioso o impacto e sucesso das reportagens deste tipo depende em boa parte da sua novidade e antecipação, bem como que tais valores se “desmoronam quando há vários órgãos e/ou agências a dedicar-se e a tratar o mesmo tema” [sic.], certo é que no caso sub judice a primeira reportagem a ser publicada foi a da R., em 2023.03.03 (facto 86.) e a segunda a da F..., em 2023.04.14 (facto 87.), o que, de todo o modo, é irrelevante pois, como julgamos ter demonstrado, as reportagens que empreendiam a R. e a F... não incidiam sobre o “mesmo tema”, ao invés do dito na sentença.
(…)
Avancemos para a outra vertente da imputação que é feita ao recorrente na decisão de despedimento, a saber, o ter o mesmo avançado com o estabelecimento de um contacto com a Sra. D. HH, em benefício da F... e em seu próprio benefício financeiro no dia 15 de Fevereiro de 2023 em que se deslocou ao lote ...(...), quando estava ciente da intenção dos seus colegas de efetuarem a reportagem sobre a pobreza energética e de quererem que a referida senhora fosse a personagem principal da reportagem, o que afectou os seus colegas de trabalho.
A sentença sob recurso enquadrou estas condutas como violadoras do dever laboral de lealdade, mas também dos deveres de urbanidade e probidade para com o empregador e os superiores hierárquicos, e do dever de promover ou executar todos os atos tendentes à melhoria da produtividade da empresa.
(…)
[A] nosso ver, não resulta da matéria de facto que o recorrente tivesse conhecimento e, muito menos, a plena consciência, de que os seus colegas queriam que a referida senhora fosse a personagem principal da reportagem sobre a pobreza energética que preparavam (…).
O que se sabe, por estar provado, é que o A. estava a par do projeto de reportagem sobre pobreza energética e dificuldades de aquecimento das casas portuguesas que estava a ser discutido pelos seus colegas com o coordenador editorial desde novembro de 2022, por se encontrar presente em algumas das reuniões então realizadas e estar incluído no grupo de whatsapp da redação (factos 14. a 16.).
Mas, lida e relida a decisão de facto, não se descortina que nela se mostre afirmado que, antes de se deslocar a ... na manhã do dia 15 de Fevereiro, o recorrente soubesse que os seus colegas queriam ali deslocar-se e que era sua vontade que a referida senhora fosse a personagem principal da reportagem sobre pobreza energética que estavam a realizar, nem, tão pouco, que o A. tenha lido todas as mensagens publicadas pelos seus colegas no grupo de whatsapp a que tinha acesso, vg. mensagens que expressassem a intenção daqueles de entrevistarem a referida senhora e de quererem que a mesma fosse a personagem principal da reportagem sobre a pobreza energética que se encontravam a realizar e que, na ocasião, já se tinha iniciado e tinha conteúdo (vide os factos 20. a 24. e 17-A.).
(…)
Ora, tal conhecimento prefigurava-se neste caso como indispensável para que o trabalhador pudesse tomar consciência da ilicitude do facto e para que pudesse orientar a sua conduta no sentido da observância daqueles deveres, abstendo-se de avançar com a deslocação a ... e o estabelecimento do contacto com a Sra. D. HH no âmbito do trabalho que realizava para a F..., sendo que nada indicia que a falta desse conhecimento lhe seja censurável.
(…).
c) – Se a cláusula de exclusividade acordada entre as partes é válida.
10. Na atualidade, o Direito dos Contratos encontra-se enformado por uma filosofia dirigida à compatibilização da liberdade e da justiça contratuais.12
Convocam-se princípios fundamentais, como é o caso dos da autonomia da vontade (nas suas vertentes da autorregulação e autorresponsabilidade) e da força vinculativa dos contratos (pacta sunt servanda). Ao mesmo tempo, é conferida especial atenção à complexidade da relação contratual (constituída por uma multiplicidade de elementos que se coligam em função de uma “identidade de fim” e lhe imprimem um “carácter unitário e funcional”) e “à exata satisfação dos interesses globais envolvidos na relação obrigacional", numa abordagem dinâmica, integrada e coerente desses múltiplos vetores, “que encara a (…) relação obrigacional como um sistema, organismo ou processo, encadeado (…) em direção ao adimplemento”.13
Assim o impõe (para além do mais) uma cláusula fundamental e sempre presente em qualquer contrato: a da boa-fé objetiva (considerada enquanto padrão/norma de conduta) que, na feliz síntese de Sibert/Knopp, pode definir-se como “a imposição de tomar em consideração os interesses legítimos da contraparte”.14
Com efeito, como a lei estipula: é à sua luz, desde logo, que deve ser apreendida a vontade das partes relativamente ao exato sentido do programa contratual que as liga (cfr. art. 239.º, C. Civil); e, quanto à execução desse programa, também é de acordo com a boa-fé que elas devem proceder no exercício dos direitos e no cumprimento das obrigações (cfr. arts. 334.º e 762.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Concomitantemente, tendo em conta que todo o contrato consubstancia um equilíbrio global, um conjunto de “pesos e contrapesos” que lhe conferem uma coerência unitária, são de afastar análises compartimentadas das diferentes partes que o integram.
11. Estas considerações assumem total pertinência no plano da problematização das cláusulas e pactos de exclusividade15, área doutrinariamente controversa a vários títulos, uma vez que neste âmbito conflituam princípios, valores e interesses cuja harmonização suscita evidentes dificuldades.
A regulamentação legal desta matéria surge pela primeira vez com a Lei nº 13/2023, de 3 de abril, que, transpondo o art. 9º, nº 2, da Diretiva 2019/1152/EU, de 20.06.2019, introduziu as normas agora constantes do art. 129º, nº 1, k), e nº 2, do Código do Trabalho (CT). Até aí, vigorava neste âmbito, basicamente, o princípio da liberdade contratual, nos termos consagrados no art. 405º, nº 1, do C. Civil, tendo em conta o vazio legislativo que então se verificava e que terá sido refletidamente assumido pelo legislador, uma vez que a regulação desta matéria constava do anteprojeto do Código do Trabalho.
Em nome do princípio constitucional da liberdade de trabalho (art. 58º, nº 1, da CRP), estabelece agora o art. 129º, nº 1, k), que “é proibido ao empregador (…) obstar a que o trabalhador exerça outra atividade profissional, salvo com base em fundamentos objetivos, designadamente segurança e saúde ou sigilo profissional, ou tratá-lo desfavoravelmente por causa desse exercício”, o que, naturalmente, como dispõe o nº 2 do mesmo artigo, “não isenta o trabalhador do dever de lealdade previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo anterior nem do disposto em legislação especial quanto a impedimentos e incompatibilidades”.
Vale dizer que, neste âmbito, no tocante a atividades não concorrentes com a do empregador, a lei consagra agora expressamente um critério de objetividade, razoabilidade e proporcionalidade, consubstanciado na existência de um interesse real e efetivo (ou, noutra formulação, sério e legítimo) daquele, como antes já era exigido pela generalidade da doutrina16 e da jurisprudência17.
12. In casu, as partes não convencionaram uma cláusula de exclusividade absoluta, tendo sido prevista a possibilidade de o A. desenvolver trabalho remunerado fora da AFP, embora previamente autorizado por escrito pelo superior hierárquico (cláusula 13ª do contrato de trabalho), em linha com o que já constava do contrato de trabalho a termo certo que inicialmente vigorou entre A. e R. (nº 6 da matéria de facto).
Mais se estabeleceu naquela cláusula 13ª que “tal autorização pode ser revogada a qualquer momento, sem obrigação da parte da AFP de justificar a sua decisão, se o trabalho externo prejudicar os interesses da AFP”, daqui decorrendo que a imposição daquela autorização prévia radicou na necessidade de salvaguardar/acautelar os interesses subjacentes ao negócio da ré.
Interesses que sem dúvida são reais, sérios e legítimos, uma vez que a AFP tem como principais clientes vários meios de comunicação social, mas também empresas, instituições e plataformas digitais de todo o mundo (nº 65 da matéria de facto), sendo certo, como reconhece o acórdão recorrido, «que no mercado noticioso o impacto e sucesso das reportagens deste tipo depende em boa parte da sua novidade e antecipação, (…) bem como que tais valores se “desmoronam quando há vários órgãos e/ou agências a dedicar-se e a tratar o mesmo tema”», pelo que a ré não podia deixar de prevenir/impedir a possibilidade de o A. desenvolver a sua atividade para terceiros no âmbito da preparação de reportagens relativas a temas idênticos (ou com próxima e relevante conexão) àqueles em que ela própria já se encontrava a trabalhar ou tencionava vir a abordar.
Aliás, os factos em causa claramente ilustram que este risco é real, dada a proximidade temática e temporal das reportagens aludidas nos pontos nº 86 e 87 da matéria de facto (cfr. infra nº 17), levadas a cabo pela R. e pela F..., entidades que se movem «no mesmo circuito, no mesmo "mercado”» (nº 61 da matéria de facto).
Acresce que o próprio CCT celebrado entre a Associação Portuguesa de Imprensa e o Sindicato dos Jornalistas, atualmente em vigor18, reconhece a relevância dos interesses/valores em presença, ao dispor, na sua cláusula 43ª, nº 2, que, (mesmo) “quando não estejam em regime de exclusividade, os jornalistas podem trabalhar para órgão de informação diferente daquele em que prestam serviço mediante acordo com o empregador”.
Vale dizer que a cláusula em causa se afigura indispensável à proteção de interesses legítimos da empresa ré, bem como proporcional aos fins com ela visados, assentando, pois, nos termos legalmente exigidos, em fundamentos objetivos.
Como se refere no Ac. de 24.10.2007, desta Secção Social do STJ (Proc. nº 07S2623), relativo a uma situação com evidentes pontos de contacto com o caso em apreço: “Neste contexto, o que as partes efetivamente acordaram foi um regime de exclusividade parcial, que se aproxima da não concorrência e se afasta da dedicação [exclusiva] ao empregador. É dizer que a Ré, com a dita cláusula, pretendeu acautelar-se de vez contra os riscos de uma eventual concorrência, evitando a necessidade de uma apreciação casuística – e sempre subjetiva – das situações em que tal poderia ocorrer.”
13. Ao contrário do estabelecido relativamente ao pacto de não concorrência [art. 136º, nº 2, c)], o Código do Trabalho não consagra a obrigatoriedade de uma compensação económica específica, como contrapartida da cláusula ou pacto de exclusividade e, muito menos, que isso seja uma condição da sua validade (ao invés do expressamente consagrado no nº 1 daquele art. 136º, em matéria de não concorrência), questões que são distintas.19
Aliás, como já se referiu, só recentemente o Código do Trabalho veio estabelecer requisitos de ordem material quanto à cláusula ou pacto de exclusividade, sendo, pois, especialmente eloquente a circunstância de nada ter sido consagrado quanto a este ponto concreto, tanto mais que o legislador não podia desconhecer que se trata de matéria da maior relevância e doutrinariamente controversa, nem, por exemplo, que o Estatuto de los trabajadores, em Espanha, consagra a possibilidade de pactuar “la plena dedicación mediante compensación económica expresa” (art. 21º, nº 1).
Acresce que – existindo à luz da Constituição da República duas grandes categorias de direitos fundamentais (Parte I), ou seja, os direitos, liberdades e garantias (Título II da Parte I) e, por outro lado, os direitos e deveres económicos, sociais e culturais” (Título III da Parte I) – o art. 58º, nº 1 (“Todos têm direito ao trabalho”) se insere nesta última espécie (no capítulo referente aos direitos e deveres económicos), sendo certo que apenas os primeiros são, como se sabe, de aplicação imediata (cfr. arts. 17º e 18º, nº 1, da CRP). É o caso dos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, que, integrando aquele Título II (no seu Capítulo III), beneficiam deste regime, mas já não o dos seus direitos económicos e sociais.
Como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros20: “Numa palavra, no sistema constitucional português, o trabalho releva, quer enquanto liberdade de escolha e de exercício de uma atividade profissional, nos termos do art. 47º, quer como um direito social, por força do art. 58º. Nesta segunda dimensão, não se está perante um direito com um conteúdo constitucionalmente determinado ou determinável. O direito ao trabalho não consta, por conseguinte, de uma disposição diretamente aplicável, valendo antes como uma imposição aos poderes públicos, sempre dentro de uma reserva do possível, no sentido da criação das condições, normativas e fácticas, que permitam que todos tenham efetivamente direito ao trabalho”.
Não se subscreve, pois, a argumentação de João Zenha Martins21, segundo a qual, estando em causa o sacrifício de um direito fundamental, o trabalhador teria direito à correspondente reparação, desde logo por inverificação da premissa que suporta tal conclusão. Consequentemente, também não se subscreve que “a ausência de inscrição da contrapartida ou dos respetivos critérios de cálculo tornam o pacto nulo por indeterminabilidade do objeto”, como sustenta o mesmo autor. 22
14. Com efeito:
Conforme emerge do art. 9º, do Código Civil, embora a interpretação não deva cingir-se à letra da lei, “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”; e “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
Tudo considerado, tendo presente os elementos interpretativos disponíveis (de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica), na sua interligação com o sentido literal da lei que agora vigora [basicamente, os termos da proibição consagrada no art. 129º, nº 1, k), do CT], o qual, como se sabe, tem a dupla função de ponto de partida e de limite da interpretação23, concluímos, pois, no sentido de não ser obrigatória uma compensação económica específica, como contrapartida da exclusividade acordada pelas partes.
Embora, como se compreende, a exclusividade esteja frequentemente associada a um acréscimo retributivo, nesta matéria vigora o princípio da autonomia privada, como v.g. sustenta Pedro Romano Martinez.24
Assim o entendeu também o supracitado Ac. do STJ de 24.10.2007, que, depois de considerar que, tendo em conta as particularidades do caso concreto, “em bom rigor, nem se poderá falar, sequer, de uma restrição à liberdade profissional do demandante”, adiantou: «mas, quando assim se não entendesse, sempre caberia às partes, no domínio da liberdade contratual, convencionar o pagamento de qualquer aditivo remuneratório pela assinalada “exclusividade parcial”, o que elas não fizeram».
Em suma: a cláusula de exclusividade acordada entre as partes é válida; e foi violada pelo autor, ao desenvolver trabalho remunerado para uma entidade terceira, sem previamente obter a necessária autorizada do seu superior hierárquico ou, sequer, lhe comunicar tal facto.
d) – Se há justa causa de despedimento.
15. Resta apreciar se a apurada conduta do A. constitui justa causa de despedimento, ou seja, se, pela sua gravidade e consequências, torna imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho (art. 351.º, n.º 1, do CT)25, pautando-se este juízo por critérios de razoabilidade e exigibilidade (na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes – n.º 3 do mesmo artigo) e proporcionalidade (art. 330.º, n.º 1).
Neste âmbito, alguns aspetos ainda a realçar: (i) a conduta do trabalhador deve ser apreciada conjuntamente, tendo em vista captar uma imagem global dos factos; (ii) “a gravidade dos factos e a culpa do trabalhador aferem-se de acordo com o entendimento de um empregador normal, em face das circunstâncias do caso concreto e em função de critérios de objetividade, exigibilidade e razoabilidade” (v.g., Ac. desta 4.ª Secção do STJ de 14.01.2015, Proc. n.º 272/10.2TTCVL.C1.S1); (iii) “O requisito da impossibilidade de subsistência do vínculo laboral deve ser reconduzido à ideia de inexigibilidade de manutenção do contrato pela outra parte, e não apreciado como uma impossibilidade objetiva”26; (iv) Esta impossibilidade (prática) “deve relacionar-se com o vínculo laboral em concreto”27; E “o comportamento do trabalhador tem de ser de molde a comprometer, de imediato, o futuro do vínculo laboral”, obstando, efetivamente, “à execução normal do contrato após o conhecimento da situação pelo empregador”, embora este requisito deva ser “aferido com cautela” e “conjugar-se com o prazo geral de caducidade [de 60 dias] do procedimento disciplinar” 28.
16. Entre outras obrigações, o trabalhador deve “guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios” [art. 128º, nº 1, f), do CT]. 29
Dada a natureza fortemente fiduciária do contrato de trabalho, em regra assume especial significado a violação do dever laboral de lealdade, em função direta do grau de responsabilidade (e posição hierárquica) que o trabalhador detenha na empresa.
Como v.g. julgou o Ac. desta Secção Social de 05.06.2013, Proc. nº 192/10.0TTVNF.P1S1, “o dever de lealdade tem uma dimensão ampla, que abrange, para além do cumprimento do contrato, de acordo com a boa fé, um especto pessoal e um especto organizacional”.
Efetivamente, “o dever de lealdade (…) tem um alcance normativo que supera os limites do sigilo e da não concorrência, impondo ao trabalhador que aja, nas relações com o empregador, com franqueza, honestidade e probidade, em consonância, aliás, com a boa fé que deve presidir à execução do contrato, nomeadamente, vedando-lhe comportamentos que determinem situações de perigo para o empregador ou para a organização da empresa, por um lado, e, por outro, impondo-lhe que tome as atitudes necessárias quando constate uma ameaça de prejuízo”.30
Por outras palavras, inclui-se aqui um dever de honestidade que implica uma obrigação de abstenção por parte do trabalhador de qualquer comportamento suscetível de colocar em crise a relação de confiança que deve pautar as suas relações com o empregador, enquanto corolário da boa-fé contratual.31
Na verdade, nos termos do art. 126º, do CT, epigrafado “deveres gerais das partes”, “o empregador e o trabalhador devem proceder de boa fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento das respetivas obrigações”, sendo ainda certo que, “na execução do contrato de trabalho, as partes devem colaborar na obtenção da maior produtividade (…)”.
Precisando a delimitação deste dever na sua tríplice vertente (obrigacional, pessoal e organizacional), refere Maria do Rosário Palma Ramalho:32
“Na dimensão restrita, o dever de lealdade (…) concretiza-se, essencialmente, no dever de não concorrência e no dever de sigilo (…).
(…)
Em sentido amplo, (…) é o dever orientador geral da conduta do trabalhador no cumprimento do contrato. (…) [C]orresponde a uma exigência geral em matéria de cumprimento dos contratos.
(…)
O elemento da pessoalidade explica que (…) seja, até certo ponto, uma lealdade pessoal, cuja quebra grave pode constituir motivo para a cessação do contrato. É este elemento (…) que justifica, por exemplo, o relevo de condutas extralaborais (…), ou o relevo da perda de confiança pessoal (…).
(…)
[P]ara além da lealdade (…) ao empregador, enquanto contraparte (…), releva também a sua lealdade à empresa ou organização do empregador.
Nesta (…) dimensão (…), o grau de intensidade do dever de lealdade e as consequências do seu incumprimento dependem do tipo de funções do trabalhador e da natureza do seu vínculo de trabalho, em concreto.”
17. Em face de tudo o antes exposto, é manifesto que, com irrefutável gravidade, o A. violou, para além da acordada cláusula de exclusividade (cfr. supra nº 14), o dever de lealdade, na sua dimensão de pauta geral de orientação da conduta do trabalhador, e enquanto específico dever de não agir em concorrência com a R., bem como, concomitantemente, os deveres de probidade e de realizar o trabalho com zelo e diligência33 – cfr. art. 128º, n.º 1, alíneas a), c) e f), do CT, e as cláusulas 12.ª e 13.ª do contrato de trabalho.
Como no seu Parecer bem refere o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, a propósito da infração do dever de não concorrência e, em geral, do dever de lealdade:
“[A] ré consiste numa agência noticiosa, sendo que o autor desenvolveu o trabalho objeto do procedimento disciplinar para a F..., uma estação de televisão.
(…)
Encontramos em comum, e designadamente, que ambas estas entidades difundem reportagens produzidas.
No caso, o autor desenvolveu uma atividade de fixing para a F..., para uma reportagem de tema conecto com o de uma reportagem que se encontrava a ser preparada pela recorrente.
E, apesar dos temas não serem absolutamente idênticos, o que é certo é que ambos abordam situações que se interseccionam, podendo ser transmitidos por qualquer uma daquelas empresas, e para o mesmo público alvo, com transmissão programada para data aproximada.
Pelo que se nos afigura que esse trabalho do autor não pode deixar de se qualificar como concorrente com o trabalho que desempenhava para a recorrente, já que o mesmo inseriu-se no âmbito de uma atividade com potencial para retirar interesse a um produto da recorrente em benefício da sua cliente.
Mas mais:
Da matéria de facto constante dos pontos 13) a 33), conduz-nos, inevitavelmente (…) à conclusão que o autor utilizou conscientemente informação advinda das suas funções ao serviço da recorrente para utilização na atividade para a F....
(…)
Acresce que encontrando-se esses elementos a ser trabalhados pelos seus colegas, natural é que viessem a ser utilizados na reportagem da recorrente, não tendo o autor revelado qualquer preocupação no sentido em que a sua atividade paralela não interferisse no trabalho dos seus colegas.
(…)”
Quanto à violação destes deveres, refira-se ainda que consta do nº 77 dos factos provados que a reportagem da F... incidiria sobre a crise da habitação em Portugal, nomeadamente, na vertente das “poucas condições” das casas, problemática que claramente entronca na da pobreza energética em Portugal e na inerente dificuldade de aquecimento das casas portuguesas.
Por outro lado, agora no plano da culpa, assume especial relevo o ponto nº 16 dos factos provados, do qual consta que o A. esteve presente em algumas das reuniões da equipa da R. e que igualmente integrava o respetivo grupo de whatsapp, estando, por isso, a par do projeto de reportagem que estava a ser discutido e que iria ser levado a cabo.
Nota-se que, neste âmbito, o que se revela decisivo é a circunstância de, tendo conhecimento de tais factos, o A. ter desenvolvido serviços para a F... na preparação de uma reportagem com pontos de contacto com a que a R. tencionava levar a cabo, sendo irrelevante que aquela não seja uma agência noticiosa ou que o autor soubesse (ou não) que os seus colegas queriam que a Sra. D. HH fosse a personagem principal da notícia sobre a pobreza energética que preparavam, elemento que, no contexto das circunstâncias conhecidas pelo trabalhador, reveste cariz marcadamente lateral.
18. Por fim, no tocante à inexigibilidade da manutenção da relação de trabalho, mais uma vez acompanhamos as palavras do Exmo. Procurador-Geral Adjunto:
«[T]odo o comportamento do autor revestiu-se de gravidade, (…) quer pela natureza dos deveres violados (…), quer pela falta de confiança que dele deriva, justificando-se (…) a inexigibilidade da manutenção da relação de trabalho.
Considerando as funções a cargo do autor, que são desempenhadas com uma relevante autonomia, a confiança no trabalhador pela parte do empregador constitui um pilar essencial na constituição e manutenção da relação de trabalho, sendo que o dever de lealdade, dever que embora se estenda de uma forma horizontal em relação a qualquer relação laboral, impõe-se aqui com uma maior intensidade.
Acresce que o autor tem uma antiguidade de apenas seis anos, sendo que já tem antecedentes disciplinares, “por violação culposa por parte do A. dos mais elementares deveres de respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos e os companheiros de trabalho com urbanidade e probidade, realizar o trabalho com zelo e diligência e de guardar lealdade ao empregador”, com aplicação de uma pena de suspensão de 20 dias – cf. pontos 62) e 63) dos factos provados.»
E há a ainda considerar que os colegas de redação se sentiram atraiçoados e enganados pelo A. (ponto 60 dos factos provados), redação constituída por um reduzido número de jornalistas [pontos 64 e 68-A) dos factos provados], circunstâncias que evidenciam que a continuidade do autor no seio da equipa seria dificilmente compatível com a preservação de um adequando ambiente de trabalho.
Assim, tudo ponderado, tendo em conta a imagem global dos factos, incluindo todas as suas circunstância e consequências (art. 351.º, n.º 3, do CT), conclui-se – à luz de critérios de razoabilidade, exigibilidade e proporcionalidade – que com a sua conduta o autor tornou prática e imediatamente impossível a subsistência da relação laboral (arts. 330.º, n.º 1, e 351.º, n.º 1 e 2, do mesmo diploma).
Deste modo, configurando-se a justa causa de despedimento invocada pela entidade empregadora, procedendo a revista.
Custas da revista, bem como nas instâncias, a cargo do autor.
Lisboa, 12-02-2025
Mário Belo Morgado (Relator)
Júlio Manuel Vieira Gomes
José Eduardo Sapateiro
_____________________________________________
2. Transcrição expurgada dos factos destituídos de relevância para a decisão do recurso de revista↩︎
3. Redação do TRL, sendo a da sentença da 1ª instância: “O Autor encontrava-se presente nestas reuniões (…)”.↩︎
4. Facto aditado pelo TRL.↩︎
5. Facto aditado pelo TRL.↩︎
6. Redação do TRL, sendo a da sentença da 1ª instância: “O que a R. apurou ser falso”.↩︎
7. Facto aditado pelo TRL.↩︎
8. Facto aditado pelo TRL.↩︎
9. Facto aditado pelo TRL.↩︎
10. Facto aditado pelo TRL.↩︎
11. Facto aditado pelo TRL.↩︎
12. Cfr. Claus-Wilhelm Canaris, A liberdade e a Justiça Contratual na “Sociedade de Direito Privado”, in Contratos: Atualidade e Evolução, Edição da Universidade Católica Portuguesa, 1997, p. 49.↩︎
13. Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª edição, Almedina, p. 74 – 75.↩︎
14. Citado por Mário Júlio de Almeida Costa, ob. cit., p. 122.↩︎
15. V.g. Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 9ª edição, Coimbra, 2023, pp. 159/164 e 302.↩︎
16. V.g. Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 4ª edição, Coimbra, 2012, pp. 112/115 e 210, e Joana Nunes Vicente, in Direito do Trabalho, de João Leal Amado e outros, Almedina, 2020, p. 533/535.↩︎
17. V.g. Ac. do STJ de 10.12.2009, desta Secção Social, Proc. n.º 625/09.↩︎
18. BTE n.º 29 de 8 de agosto de 2023.↩︎
19. Significativa e exemplificativamente, Joana Nunes Vicente, que defende ser obrigatória uma compensação económica, questiona se, na ausência de uma compensação adequada, “a intervenção judicial deve ser apenas denegadora da eficácia dos termos estipulados, ficando desse modo irremediavelmente afetada a validade do pacto ou se haverá margem para uma correção do regulamento negocial, procedendo o juiz ao aumento da compensação” (Direito do Trabalho, de João Leal Amado e outros, 2ª edição, Almedina, 2023, p. 764).↩︎
20. Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 588.↩︎
21. Os pactos de limitação à liberdade de trabalho, Almedina, 2016, p. 519.↩︎
22. P. 520.↩︎
23. Sobre a “tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal” (nas palavras do acórdão do STJ de 04.05.2011, Proc. n.º 4319/07.1TTLSB.L1.S1), v.g. Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª edição, pp. 439-489, e Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª edição, 2000, Coimbra, pp. 175-192.↩︎
24. Direito do Trabalho, 10.ª edição, Almedina, 2022, p. 655.↩︎
25. Quanto à densificação do requisito “impossibilidade de subsistência da relação de trabalho”, cfr. Bernardo da Gama Lobo Xavier, Direito do Trabalho, Verbo, 2011, pp. 738 – 739, e Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 9ª edição, pp. 969 - 971.↩︎
26. Maria do Rosário Palma Ramalho, ibidem, p. 969.↩︎
27. Ibidem, p. 970.↩︎
28. Ibidem, pp. 970 - 971.↩︎
29. Todos os sublinhados e destaques são nossos.↩︎
30. Ac. de 22.04.2009, Proc. 09S0153.↩︎
31. Cfr. Ac. de 14.07.2022, Proc. 150/21.0T8AVR.P1.S1.↩︎
32. Ob. Cit., II, p. 347/351.↩︎
33. E não, exatamente, ao contrário do considerado na 1ª instância, o dever de promover ou executar atos tendentes à melhoria da produtividade da empresa, embora, tendo em conta a gravidade com que foram infringidos os demais deveres, este aspeto não assuma um valor de especial peso.↩︎