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PROCESSO DE INVENTÁRIO PARA PARTILHA DE BENS COMUNS DO EX-CASAL
CRÉDITO ENTRE CÔNJUGES
COMPENSAÇÕES
Sumário
I Verificando-se estar assente um empréstimo contraída no decurso do casamento, beneficiando ambos os cônjuges, a obrigação de reembolso de tal empréstimo responsabiliza também ambos os cônjuges. II Se um deles suporta essa dívida com recurso ao seu salário e/ou empréstimo por si contraído, após o divórcio, tem direito a compensação no momento da partilha por força do divórcio.
Texto Integral
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
I RELATÓRIO.
AA apresentou processo de inventário contra BB, face ao divórcio entre ambos decretado em ../../2013, e ao facto de estarem por partilhar todos os bens e dívidas comuns do dissolvido casal, por ausência de acordo para o efeito.
Foi nomeada cabeça de casal a requerida.
A requerida apresentou requerimento em que diz que a partilha foi feita por acordo e por isso não apresenta relação de bens.
O requerente reclamou e apresentou relação de bens, constando:
“Ativo
Verba n.º 1
Automóvel da marca ... com a matrícula ..-..-UN com o valor patrimonial de € 7.000,00 (Sete mil euros), que se manteve na posse da Cabeça de Casal até à data em que o mesmo foi sinistrado pela mesma. – Cfr. Doc. n.º 1 que se junta e se dá aqui por integralmente por reproduzido. € 7.000,00;
Crédito que o Requerente detém contra a Cabeça de Casal
Verba n.º 2
Crédito suportado pelo Requerente resultante da confissão de dívida subscrita pelo extinto casal em ../../2005, ou seja, na constância do casamento, dada à execução no processo de execução ordinária que correu termos contra o Requerente e a Cabeça de Casal, enquanto executados, Processo: 5523/16...., que correu termos no Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, correspondente a 50 % do montante total pago (€ 95.172,54 – Noventa e cinco mil cento e setenta e dois euros e cinquenta e quatro cêntimos). – Cfr. Doc. n.º 2 a 5 que se juntam e se dão aqui por integralmente por reproduzidos.
€ 47.586,27”
Foi proferido o seguinte despacho:
“Ante os fundamentos apresentados no articulado junto aos autos sob a ref.ª ...01, a cabeça-de-casal opõe-se, de facto, ao presente inventário, sustentando ter havido já partilha dos bens comuns do extinto casal (cfr. artigo 1104.º, n.º1, al. a) do CPC).
Nessa medida, determina-se a notificação do requerente, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 1105.º do CPC.”
O requerente reiterou o seu anterior requerimento e apresentou prova.
Após requerimento da cabeça de casal e resposta ao mesmo, foi proferido o seguinte despacho:
“Ressalvada a possibilidade de alguma imperfeita compreensão da posição assumida pela cabeça-de-casal, a sua posição nos presentes autos é de oposição ao inventário, por considerar inexistir património ainda por partilhar (por já partilhado, por acordo).
Não apresentou, todavia, requerimento probatório (cfr. artigo 1105.º, n.º 2, do CPC).
Em resposta, o requerente sustenta a existência de um bem móvel sujeito a registo e de um crédito, a seu favor, sobre o património comum.
Para demonstração da sua alegada existência, conforme é de seu ónus, juntou documentos e apresentou requerimento probatório, pedindo a notificação da cabeça-de- casal para juntar outros (documentos) em seu poder para prova dos fundamentos da sua resposta.
Nessa medida, e para se poder apreciar, globalmente, a resposta e o requerimento probatório de suporte que, essencialmente, ditam o seguimento a dar aos autos, determinou-se a notificação da titular do cabeçalato a fim de juntar os documentos em questão, alegadamente, em seu poder.
Sucede que a cabeça-de-casal nega estar em poder dos documentos em questão, pelo que, se devolve ao requerente, querendo, o ónus da sua junção.
Completada, eventualmente, a resposta será, então, o momento de dar o contraditório à cabeça-de-casal, que poderá pronunciar-se, globalmente, sobre os fundamentos invocados e sobre os meios de prova juntos.
Notifique.”
O requerente apresentou novo requerimento de prova e foi proferido o seguinte despacho:
“Notifique-se a cabeça-de-casal para, querendo, reclamar da relação de bens apresentada (cfr. artigo 1104.º, n.º 1, al. d), do CPC).”
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Cingindo ao que interessa para o presente recurso, em 12/4/2024 a cabeça de casal veio dizer:
“B - Crédito que o Requerente detém contra a Cabeça de Casal
1 – Desde já se adianta que o crédito que o Interessado alega deter sobre a aqui cabeça de Casal deverá ser excluído da presente Relação de Bens.
2 - Efectivamente, o crédito – abusivamente - elencado pelo Interessado vem a ser ilusório e constitui uma mera aparência.
3 – Passa, então, a concretizar-se algum tipo de escalpelização dos fundamentos que subjazem à afirmação da cabeça de casal.
4 – Assim, o putativo crédito do Interessado teve por génese um contrato de arrendamento (comercial), celebrado a ../../2003, no qual o Interessado interveio como arrendatário e respeitante a uma loja de rés-do-chão, do prédio urbano construído no lote ..., fração ..., no Lugar ..., freguesia ..., relativo ao prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...73..., concelho ... e melhor descrito no documento que segue em anexo como doc. n.º 1 (Relatório de sentença - fl. 1).
5 – Nesse contrato figurou como senhoria a empresa “EMP01... – S.A.”.
6 – Simultaneamente com a outorga desse contrato de arrendamento, o então casal (o Interessado e a cabeça de casal) celebrou com esta empresa um contrato promessa de compra e venda relativo àquele espaço (doc. n.º 1 – ponto 3. dos “factos provados”).
7 – Por sua vez, as quantias mutuadas pelo então cunhado da aqui cabeça de casal e irmão do Interessado, CC, tiveram por exclusiva finalidade custear as obras de reconversão total daquele espaço, ou seja, obras de renovação, incluindo a aquisição de equipamentos destinados à instalação e funcionamento do dito estabelecimento comercial do ramo da restauração (em especial Café).
8 – Tal como consta do doc. n.º 2 (Requerimento Executivo), o mencionado CC, face ao não pagamento da dívida em questão, prosseguiu com a respectiva instância executiva, na sequência da qual, depois de incidências diversas, viu satisfeito o seu crédito.
9 – Ora, na esteira do que se principiou por aqui afirmar, a satisfação do crédito em apreço por parte do Interessado constitui uma mera aparência.
10 – Na verdade, os montantes que vieram a ser creditados na conta do senhor Agente de Execução, DD, provieram de um empréstimo/mútuo contraído pelo Interessado junto do Sr. EE, gerente e proprietário da empresa de sucata com a designação “FF”, sedeada na Rua ..., freguesia ..., concelho ....
11 – No entanto, sublinhe-se, certo é que até à actualidade o Interessado não pagou a este Sr. EE a quantia que este lhe emprestou, encontrando-se, por isso, em dívida relativamente à mesma.
12 – Ou seja, o Interessado não despendeu a quantia que alega agora como constituindo um seu crédito.
13 – Como tal, a apresentação do putativo crédito no seio da presente acção revela-se desonesta e abusiva.
14 – Porque assim é, em contexto do Direito a pretensão do Interessado constitui uma tentativa da sua parte em obter um enriquecimento sem causa – artigo 473º do Código Civil.
15 – Para além disso, tal pretensão do Interessado vem a constituir, claramente, uma situação de Abuso de Direito – artigo 334º do Código Civil – pois não tendo este despendido a quantia aqui em causa, a satisfação do seu putativo crédito atentaria, manifestamente e desde logo contra a boa-fé e os bons costumes.
16 – E ainda que assim não fosse, sempre a pretensão do Interessado constituiria um clamoroso atentado contra essa boa-fé, na medida em que ficou acordado, verbalmente, entre as partes, pela época do respectivo divórcio, que o “Café”, as suas despesas e receitas, e mormente a dívida para com o irmão CC, ficariam por conta exclusiva do Interessado na sequência do divórcio decretado entre ambos
17 – Mais acordaram então que a viatura identificada na verba 1 ficaria a ser propriedade exclusiva da aqui cabeça de casal.
18 - Acresce, ainda, que o aqui Interessado, face às interpelações e diferendos judiciais que sobrevieram, sempre sossegou a sua ex-mulher em relação à dívida aqui em causa, com a alegação de que a mesma seria paga com o património e valores que recebesse da sua herança materna (a mãe faleceu a ../../2015).
19 – E tanto era esse o pensamento do Interessado que o consignou, expressamente, no contexto de e-mail trocado com o seu irmão CC – cfr. p.f. docs. nº 3 que segue em anexo e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
20 - Assim, por tudo o exposto, deverá ser expurgada a verba elencada pelo Interessado. (…)”
*
O requerente veio responder em 2/5/2024, além do mais:
“4. Quanto ao Crédito que o Requerente detém contra a Cabeça de Casal, por esta foi dito que este não passa de uma mera aparência, porque, segundo diz, o putativo crédito do Interessado teve por génese um contrato de arrendamento (comercial), celebrado a ../../2003, no qual o Interessado interveio como arrendatário e respeitante a uma loja de rés-do-chão, do prédio urbano construído no lote ..., fração ..., no Lugar ..., freguesia ..., relativo ao prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...73..., concelho ..., onde figurou como senhoria a empresa “EMP01... – S.A.”
5. Refere que com a outorga desse contrato de arrendamento, o então casal, Interessado e a cabeça de casal, celebrou com esta empresa um contrato promessa de compra e venda relativo àquele espaço e por sua vez, as quantias mutuadas pelo então cunhado da aqui cabeça de casal e irmão do Interessado, CC, tiveram por exclusiva finalidade custear as obras de reconversão total daquele espaço, ou seja, obras de renovação, incluindo a aquisição de equipamentos destinados à instalação e funcionamento do dito estabelecimento comercial do ramo da restauração (em especial Café).
6. Acrescenta que o mencionado CC, face ao não pagamento da dívida em questão, prosseguiu com a respetiva instância executiva, na sequência da qual, depois de incidências diversas, viu satisfeito o seu crédito, o que fez, unicamente através de penhora dos bens do aqui Requerente, que liquidou parte da sua dívida através do seu salário, relembrando-se a cabeça de casal que nunca foi alvo de qualquer excussão do seu património.
7. E conclui, na esteira do que se principiou por aqui afirmar, que a satisfação do crédito em apreço por parte do Interessado constitui uma mera aparência, porque idealiza, os montante entregues ao A.E., DD, provieram de um empréstimo/mútuo contraído pelo Interessado junto do Sr. EE, gerente e proprietário da empresa de sucata com a designação “FF”, sedeada na Rua ..., freguesia ..., concelho ....
8. Ora, como a própria Cabeça de casal confessa, emergiu durante a constância do matrimónio do ex-casal, a constituição de uma dívida, constituída junto do cunhado da aqui cabeça de casal e irmão do Interessado, CC, que teve por base custear as obras de reconversão total daquele espaço, ou seja, obras de renovação, incluindo a aquisição de equipamentos destinados à instalação e funcionamento do dito estabelecimento comercial do ramo da restauração
9. E essa dívida comum, foi paga ao seu irmão CC, a expensas pessoais e próprias do aqui Interessado, porque foi excutida ao património deste, sem nunca a Cabeça de Casal, comparticipar no pagamento dessa dívida,
10. O que manifestamente revela que tendo sido aquela dívida contraída na constância do matrimónio do ex-casal, essa divida pertence a ambos.
11. E tendo sido essa dívida paga a expensas únicas da aqui Interessado, tanto através do seu salário, durante anos, como através do processo executivo instaurado pelo seu irmão, a Cabeça de Casal, essa dívida tem de constar da relação de bens do extinto casal, como de lei.
12. Por outro lado, refere a cabeça de casal, que para pagar essa dívida exequenda, o Interessado havia pedido dinheiro emprestado a um “EE”, e que lhe deve esse dinheiro, e desta forma, elimina então a dívida que detém ao agora Interessado, porém, nenhuma prova junta aos autos, remetendo a reclamação a uma simples narrativa de factos que em nada se coaduna com o objeto dos presentes autos, refutando-se qualquer exegese face aos artigos 473º do Código Civil e artigo 334º do Código Civil invocados pela Cabeça de casal por manifestamente infundados face ao que se vem de dizer.
13. Ainda por outro lado, refere a cabeça de casal que, e ainda que assim não fosse, sempre a pretensão do Interessado constituiria um clamoroso atentado contra essa boa-fé, na medida em que ficou acordado, verbalmente, entre as partes, pela época do respectivo divórcio, que o “Café”, as suas despesas e receitas, e mormente a dívida para com o irmão CC, ficariam por conta exclusiva do Interessado na sequência do divórcio decretado entre ambos e também acordaram então que a viatura identificada na verba 1 ficaria a ser propriedade exclusiva da aqui cabeça de casal, o que não corresponde à verdade, pois isso jamais foi referenciado pelo Interessado à cabeça de casal, não detendo por isso a cabeça de casal qualquer crédito sobre o Interessado referente a metade dos valores por este recebido, a título de rendas/prestações, durante a totalidade dos meses decorridos desde a instauração da ação de divórcio separação do casal (ou seja, 16 de Novembro de 2011) até à atualidade, o que também se impugna, conquanto, desde essa data o Interessado não tem recebido qualquer valor a título de rendas,
14. Pelo que vai impugnada a inclusão do dito crédito, mais que não fosse até pelo instituto da prescrição prevista no art. 310º, alínea b) do Código Civil, conquanto, sempre estariam prescritas as rendas relativas aos períodos anteriores a 2019, isto, caso, o Interessado as tivesse recebido, (…)”
*
A cabeça de casal exerceu o contraditório em 19/6/2024:
“ (…) Verba n.º 2
Relativamente à Resposta do Interessado no respeitante ao tema “Crédito que o Requerente detém contra a Cabeça-de-Casal”, dir-se-á o seguinte:
1 - Efectivamente, é pacífico que a dívida em questão foi paga, exclusivamente, pelo Interessado à pessoa do seu irmão, CC.
2 - Essa matéria relativa a ter sido o Interessado o único a pagar tal dívida apresenta-se como pacífica.
3 - Essa situação decorreu, desde logo, da inequívoca circunstância de o irmão do Interessado haver direcionado as suas pretensões de cobrança, exclusivamente, para este último.
4 – Ora, tal facto, por si só, revela-se deveras esclarecedor quando se procura a resposta para o porquê de a Cabeça-de-casal não ter sido visada no contexto das instâncias do dito CC para cobrar a dívida em apreço.
5 – Na verdade, a Cabeça-de-casal tem vivido sempre do seu salário, com uma entidade patronal perfeitamente identificável, pelo que o seu cunhado, CC, sem incómodos de maior, ademais porque tal retribuição sempre foi substancialmente superior ao salário mínimo nacional, poderia ter agilizado, oportunamente, a respectiva penhora.
6 – Contudo, certo é que o irmão do Interessado (aliás, no caso, os irmãos) CC, está bem ciente da realidade e, como tal, mercê da sua hombridade, sempre se absteve de reivindicar a dívida aqui em causa junto da sua cunhada, antes direcionando as suas justas reivindicações para a pessoa do seu próprio irmão, aqui Interessado, pois era ele o concreto incumpridor.
7 – Ou seja, tudo quanto o Interessado expende a este propósito, que surge a terreiro denotando correcção de ordem formal, não tem o condão de entorpecer, ou minorar, tudo quanto a cabeça-de-casal verteu a propósito da putativa dívida desta para com o seu ex-marido.
8 – Por sua vez, a alegação do Interessado de que (art. 12.) nenhuma prova foi junta aos autos, e que estaremos perante uma simples narrativa de factos, apresenta-se como incontroversa e incontrovertível.
9 - No entanto, a Cabeça-de-casal propõe-se alcançar tal desiderato, e demonstrar que tal narrativa se coaduna com o objecto dos presentes autos e, acima de tudo, com a verdade, o que terá lugar através dos meios que ficaram já enunciados no seu articulado precedente. (…)”
De seguida foi proferido o seguinte despacho (restringida a citação ao que importa ao caso):
“Da oposição/reclamação deduzidas
Citada, a cabeça-de-casal veio opor-se ao presente inventário, sustentando, essencialmente, para o efeito, a inexistência de bens a partilhar, por já terem sido partilhados pelo ex-casal.
Não juntou requerimento probatório.
O interessado/requerente reclamou, sustentando a omissão do relacionamento de bens do casal; concretamente:
- do veículo automóvel de matrícula ..-..-UN, que esteve na posse da cabeça-de casal até que foi sinistrado;
e
- de uma dívida da cabeça-de-casal ao requerente, correspondente a 50% da quantia exequenda liquidada no processo de execução ordinária n.º 5523/16...., que correu termos no Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão, proveniente de uma dívida comum do casal.
Apresentou requerimento probatório.
Na sequência da reclamação apresentada pelo interessado/requerente, a cabeça-de-casal veio, em síntese:
- admitir a existência, pelo menos, até ao ano de 2018, do veículo automóvel de matrícula ..-..-UN, sustentando, no entanto, que ficou na posse do requerente;
- veio aceitar a dívida do casal ao irmão do interessado, defendendo que não lhe deve ser exigida uma vez que está apenas formalmente liquidada, na medida em que foi satisfeita com recurso a um empréstimo particular ainda não pago, constituindo um abuso de direito e tentativa de enriquecimento sem justa causa a sua demanda nesta sede;
- veio dizer que o veículo e a alegada dívida foram, verbalmente, partilhados pelo ex-casal;
e, ainda,
- relacionou, como direito de crédito, o valor do estabelecimento comercial e montante das rendas relativas à cessão da sua exploração ou a expectativa da aquisição do imóvel onde está instalado, no âmbito de contrato de leasing.
Apresentou requerimento probatório.
Respondendo, e em síntese, o requerente veio dizer que o veículo foi dado, pela cabeça-de-casal, para abate, veio dizer ainda que a dívida, comum, foi satisfeita por força do seu salário e do seu património pessoal, nega a celebração de qualquer partilha verbal, e refuta que a cabeça-de-casa tenha direito a quaisquer rendas, que, de todo o modo, não foram satisfeitas e já estariam prescritas, não tendo ocorrido qualquer do prédio na constância do casamento.
Impõe-se, em parte, decidir.
Em primeiro lugar, impõe-se, face à posição assumida pelos interessados, julgar improcedente a oposição ao inventário por inexistência de bens, e determinar o prosseguimento dos autos.
As custas fixar-se-ão a final.
Em segundo lugar, importa dar tratamento às questões relativas aos bens relacionados.
(…)
No que respeita à dívida, requerente e cabeça-de-casal, nos seus articulados, aceitam que se trata de dívida comum (contraída junto do irmão do requerente para equipar um estabelecimento comercial adquirido na constância do casamento) e a requerente aceita que foi satisfeita por força do salário e dos bens próprios do requerente.
Ora, “como é sabido, no decurso da sociedade conjugal (...) os cônjuges tornam-se reciprocamente devedores entre si e tal situação verifica-se sempre que (...), tratando-se de dívida da responsabilidade solidária de ambos, um dos cônjuges satisfez voluntariamente maior quantia que o outro” – cfr. Lopes Cardoso in “Partilhas Judiciais”, vol. III, 4ª Ed, 1991, pág. 392.
Todavia, tal “disciplina não impõe que na partilha se dê pagamento ao cônjuge credor do que o outro cônjuge lhe está devendo” (loc. cit.) dado que tais créditos “não respeitam ao património comum mas ao património individual do cônjuge credor, constituindo, em contrapartida um elemento negativo do cônjuge devedor” (loc. cit.).
Nessa medida e ainda segundo Lopes Cardoso (loc. cit.) tais créditos “não deverão ser objecto de relacionação, isto mau grado deverem ser considerados no momento da partilha para serem satisfeitos na conformidade do disposto no art. 1698º, nº 3 do CCivil” (actualmente, artigo 1697.º), respondendo pelos mesmos, em primeira linha, a meação do cônjuge devedor no património comum e, na insuficiência desta, os bens próprios do devedor.
Assim, sabendo-se que se tratou de uma dívida contraída no decurso do casamento e que o requerente a suportou por força dos seus bens próprios; por serem factos aceites nos autos, não se determina a sua inclusão na relação de bens, sem prejuízo do direito de compensação do requerente no momento da partilha. (…)”
*
Inconformada, a cabeça de casal interpôs recurso apresentando as suas alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES (que se reproduzem)
“A - Lê-se no douto Despacho recorrido - e é incontroverso - que a cabeça-de-casal, aqui recorrente, veio aceitar a dívida do casal ao irmão interessado, defendendo que não lhe deve ser exigida uma vez que está apenas formalmente liquidada, na medida em que foi satisfeita com recurso a um empréstimo particular ainda não pago, constituindo um abuso de direito e tentativa de enriquecimento sem justa causa a sua demanda nesta sede.
B - Contudo, mais adiante, o mesmo douto Despacho conclui que a cabeça-de-casal aceitou que o requerente pagou a dívida do casal ao seu irmão por força do seu salário e dos bens próprios.
C – Ou seja, se ficou - bem - vertido no douto Despacho, a montante, que a cabeça-de-casal alega que o pagamento da dívida foi satisfeita com recurso a um empréstimo particular (ainda não pago), não poderia o mesmo, a jusante, consignar que esta aceitou que esse mesmo pagamento aconteceu através do salário e dos bens próprios do requerente.
D – Assim, as duas afirmações revelam-se antagónicas e incompatíveis e apenas a primeira se revela em conformidade com o que a ora recorrente fez constar do respectivo argumentário.
E – Mais, se fosse verdade que a aqui recorrente aceitou que o dito pagamento se verificou por força do salário e dos bens próprios do requerente, careceria de sentido a subsequente alegação da mesma de que estamos perante uma situação de Abuso de Direito e de Enriquecimento sem Causa.
F – Em segundo lugar, defendendo a recorrente que o requerente não despendeu dos seus salários e dos seus bens para pagar a predita dívida (circunstância que esta se propõe provar), e que a mesma antes foi paga com um empréstimo que este não liquidou, não deveria constar no douto Despacho – pelo menos aparentemente – o firmar de que o “crédito” do requerente será compensado no momento da partilha, pois que se trata de questão controvertida.
G - Aliás, também a questão, esgrimida pela cabeça-de-casal, respeitante à “alegada partilha verbal” efectuada entre o ex-casal, que – bem – figura como questão controvertida no segmento decisório do douto Despacho, possui a virtualidade de obstar a que tenha lugar, sem mais, a dita Compensação daquele – putativo – “crédito”..
H - Assim, a expectativa da recorrente, uma vez que antagonizara a valia do “crédito” do requerente, era a de que no douto Despacho recorrido, se tivesse exarado, na sua parte decisória, uma redacção que de alguma forma corporizasse tal dissenso, como, por exemplo, que ali se tivesse escrito: “sem prejuízo do eventual direito de compensação do requerente no momento da partilha”.
I – Nessa esteira, na hipótese de se haver ali lavrado essa eventualidade, então, no seu parágrafo subsequente deveria também figurar a controvérsia relativa à predita Compensação.
J - Ou seja, haveria que, em sede de julgamento, apurar-se se o requerente despendeu, ou não, à custa do seu salário e/ou bens próprios, o montante que terá permitido a liquidação da dívida ao seu irmão e, dessa forma, na hipótese negativa, sindicar-se, em sede de Direito, a alegada verificação das excepções (Abuso de Direito e Enriquecimento sem causa) deduzidas pela ora recorrente.
K – Aliás, esse potencial direito de Compensação revela-se também colocado em crise pelo facto de a recorrente também alegar que a dívida ao irmão do requerente havia sido entretanto, verbalmente, partilhada pelo ex-casal, facto que, a provar-se - também -, afastaria esse eventual direito.
L - Isto posto, prefigura-se que o douto Despacho recorrido poderá enfermar de alguma das nulidades preconizadas no artigo 615.º do CPC, mais concretamente nas alíneas c) e d) do seu n.º 1, cujo regime, por força do disposto no artigo 613.º, n.º 3, é aplicável aos Despachos.
M – Assim, no que concerne àquela alínea c), dá-se a possibilidade de os fundamentos do douto Despacho, nos segmentos colocados em crise no presente recurso, revelarem-se em oposição com o seu subsequente segmento decisório.
N – Efectivamente, a montante - em sede de “fundamentação” - verteu-se no douto Despacho (bem) que a cabeça-de-casal veio aceitar a dívida do casal ao irmão do interessado, defendendo que não lhe deve ser exigida uma vez que está apenas formalmente liquidada, na medida em que foi satisfeita com o recurso a um empréstimo particular ainda não pago, constituindo um abuso de direito e tentativa de enriquecimento sem justa causa a sua demanda nesta sede.
O – Face a esse postulado, revela-se contraditório e nas antípodas daquela fundamentação, decidir-se, no mesmo douto Despacho, e nomeadamente, que a requerente aceita que [a dívida] foi satisfeita por força do salário e dos bens próprios do requerente.
P - De igual modo, aquele trecho está em contradição com aquele outro constante do douto Despacho que, mais adiante, na sua parte decisória, enuncia o seguinte: Assim, sabendo-se que se tratou de uma dívida contraída no decurso do casamento [certo] e que [mal] o requerente a suportou por força dos seus bens próprios; por serem factos aceites nos autos […].
Q - Ora, torna-se evidente no contexto do douto Despacho, que a cabeça-de-casal manifestou, expressamente, a sua não-aceitação da alegação do requerente de que, em suma, suportara a dívida em apreço por força dos seus bens próprios, pelo que vem a ser contraditório firmar-se ali, mais adiante, a sua aceitação (da cabeça-de-casal).
R – Perante isto, está-se, prima facie, perante uma oposição entre os fundamentos que subjazem ao douto Despacho e o respectivo segmento decisório, circunstância que, conforme aqui se argui, determinará a respectiva nulidade.
S – E se a recorrente impugnou/controverteu a existência do seu dever de pagar a metade da dívida, então não deveria consagrar-se, como o faz o douto Despacho (pelo menos aparentemente), o direito do requerente à Compensação no momento da partilha.
T - Deste modo, poderemos estar, como aqui se invoca, perante uma dupla violação da primeira parte da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
U - Por sua vez, também aventa a recorrente a hipótese de estar colocada perante uma falsa questão, concluindo-se que a presente controvérsia é o mero resultado de um défice de interpretação da recorrente, através da pessoa do aqui signatário.
V - Porém, em termos de “normalidade” (artigo 236.º do Código Civil – teoria da impressão do destinatário) antevê-se como pertinente a leitura que a recorrente emprestou ao excerto da douta decisão em que se lê: […] sem prejuízo do direito de compensação do requerente no momento da partilha.
W – Na verdade, para que se objectivasse uma coerência interna no douto Despacho aqui controvertido, deveria o mesmo, no extrato aqui em causa e tal como acima se esgrimiu, conter o alvitrado aditamento do adjectivo “eventual”, ou reflectir uma ideia que traduzisse essa eventualidade.
X - Ou seja, talvez devesse antes ali constar uma frase que traduzisse o seguinte significado: […] sem prejuízo do eventual direito de compensação do requerente no momento da partilha.
Y – Se tal tivesse sucedido, seria de todo provável que a recorrente se abstivesse de agilizar o presente recurso, pois as demais vicissitudes apontadas ao douto Despacho vêm, em termos práticos a “desaguar” nesta (não) eventualidade.
Z – Posto isto, antevê-se que no âmbito da parte decisória do douto Despacho ocorre alguma ambiguidade ou obscuridade que torne(a) a decisão ininteligível, o que, por recomendada cautela, aqui se invoca – artigo 615.º, n.º 1, parte final da sua alínea c) – determinante da sua nulidade.
AA – No caso vertente também sobrevirá a nulidade a que alude o artigo 615.º, n.º 1, 1ª parte da alínea d), do CPC, ou seja, aquela que se verifica quando: O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar […].
AB – Isto porque apresenta-se pacífico que na perspectiva da ora recorrente verificam-se circunstâncias que determinarão que estejamos perante a presença de excepções (que, no caso, serão peremptórias) à pretensão do requerente.
AC - No caso vertente, foram invocados pela recorrente factos que, a terem-se como provados, suscitariam a aplicação, isolada ou conjunta, dos institutos jurídicos do Abuso de Direito (artigo 334.º do CC) e do Enriquecimento Sem Causa (artigo 473.º do CC).
AD – Todavia, ainda que o douto Despacho tenha consignado, expressamente, essa alegação por parte da cabeça-de-casal/recorrente, o mesmo não operou qualquer análise crítica em relação à eventual pertinência da mesma.
AE – Contudo, na hipótese, expectável, de perspectivar-se a respectiva sindicância como uma questão controvertida, poderia ter sucedido, inclusivamente, que essa análise fosse deferida para momento posterior (audiência de julgamento)
AF - Porém, constata-se que das duas excepções aqui em causa, apenas uma delas, respeitante à “alegada partilha verbal” (que coenvolverá a eventual aplicação de um Abuso de Direito e/ou Enriquecimento Sem Causa), veio a ser remetida para sede de audiência de julgamento, por ser, como é efectivamente, uma questão controvertida.
AG – Mas, já em relação à arguição daquela outra excepção, mais pertinente ao Instituto do Enriquecimento Sem Causa (ou seja, a alegação da aqui recorrente pela qual defende que não lhe deve ser exigida uma vez que [a dívida] está apenas formalmente liquidada), ela não se encontra firmada no douto Despacho como constituindo uma questão controvertida e, consequentemente, não está deferida a sua apreciação para o contexto de audiência de julgamento.
AH – Aliás, tampouco sucedeu, como poderia, em tese, acontecer, que tal apreciação fosse remetida no douto Despacho recorrido, para o contexto dos denominados “meios comuns”.
AI – Porque assim é, conjectura a recorrente, como se disse, que a situação aqui em apreço causa acarreta a nulidade do douto Despacho, por violação do disposto no mencionado artigo 615.º, n.º 1, 1ª parte da alínea d), do CPC.”
Pede que seja dado provimento ao recurso.
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O requerente contra-alegou, terminando com as seguintes
-CONCLUSÕES (que se reproduzem)
“A. Através do Recurso interposto pela Cabeça de Casal, veio insurgir-se contra o Despacho de 18-09-2024.
B. Referiu que a um tempo, no douto Despacho, se refere que a cabeça-de-casal alegou que o pagamento da dívida foi satisfeita com recurso a um empréstimo particular (ainda não pago), e a outro tempo, revela-se no Despacho que esta aceitou que esse mesmo pagamento aconteceu através do salário e dos bens próprios do requerente.
C. Depois, defendeu ainda a recorrente que o requerente não despendeu dos seus salários e dos seus bens para pagar a predita dívida (circunstância que esta se propõe provar), e que a mesma antes foi paga com um empréstimo que este não liquidou, e que por esse motivo, não deveria constar no douto Despacho que o “crédito” do requerente será compensado no momento da partilha, pois que se trata de questão controvertida.
D. Assim, no entendimento da recorrente, não poderia existir no aludido Despacho a redação que “sem prejuízo do eventual direito de compensação do requerente no momento da partilha”, e caso a ela houvesse lugar, então, no seu parágrafo subsequente deveria também figurar a controvérsia relativa à predita Compensação, imputando, por isso ao Despacho recorrido algumas das nulidades previstas no artigo 615.º do CPC, mais concretamente nas alíneas c) e d) do seu n.º 1, cujo regime, por força do disposto no artigo 613.º, n.º 3, é aplicável aos Despachos.
E. Ora, como decorre dos autos, salvo melhor opinião, não assiste razão à recorrente, como infra se detalha: a própria Cabeça de casal (Recorrente) confessou que durante a constância do matrimónio do ex-casal, se constituiu uma dívida, junto do cunhado da Cabeça de casal e irmão do Recorrente, que teve por base custear as obras de renovação, incluindo a aquisição de equipamentos destinados à instalação e funcionamento de um estabelecimento comercial do ramo da restauração,
F. E que essa dívida comum, foi paga ao seu ex-cunhado CC, a expensas pessoais e próprias do aqui Interessado, porque, tal dívida foi excutida ao património deste, sem nunca a Cabeça de Casal, comparticipar no pagamento dessa dívida, talqualmente se extrai do Requerimento da Cabeça da Casal nº ...55, de 12-04-2024, não mencionando que nunca despendeu de 1 cêntimo para o pagamento dessa dívida, pois tal dívida exequenda, fora liquidada integralmente pelo aqui Recorrido no âmbito do Processo Executivo nº 5523/16.... – Juízo de Execuções de Vila Nova de Famalicão – J..., apesar de a execução ter corrido termos contra o extinto casal, mas, o património da Cabeça de Casal nunca fora inexplicavelmente atacado…
G. O que manifestamente revela que tendo sido aquela dívida contraída na constância do matrimónio do ex-casal, essa divida pertence a ambos, e tendo sido essa dívida paga a expensas únicas do Recorrente, tanto através do seu salário, durante anos, como através do processo executivo instaurado pelo seu irmão, a Cabeça de Casal, essa dívida tem de constar da relação de bens do extinto casal, como de lei.
H. Por outro lado, ali referiu a cabeça de casal, que para pagar essa dívida exequenda, o Recorrido havia pedido dinheiro emprestado a um “EE”, e que ainda lhe deve esse dinheiro, e desta forma, eliminou então a dívida que detém ao agora Interessado, porém, nenhuma prova do alegado juntou aos autos, remetendo à reclamação apresentada uma simples narrativa de factos que em nada se coaduna com o objeto dos presentes autos.
I. Ainda por outro lado, referiu a cabeça de casal que, e ainda que assim não fosse, sempre a pretensão do Recorrido constituiria um clamoroso atentado contra essa boa-fé, na medida em que ficou acordado, verbalmente, entre as partes, pela época do respetivo divórcio, que o “Café”, as suas despesas e receitas, e mormente a dívida para com o irmão CC, ficariam por conta exclusiva do Interessado na sequência do divórcio decretado entre ambos e também acordaram então que a viatura identificada na verba 1 ficaria a ser propriedade exclusiva da aqui cabeça de casal, o que não corresponde à verdade, e nem sequer resultou provado esse acordo, pois isso jamais foi referenciado pelo Interessado à cabeça de casal, não detendo por isso a cabeça de casal qualquer crédito sobre o Interessado referente a metade dos valores por este recebido, a título de rendas/prestações, durante a totalidade dos meses decorridos desde a instauração da ação de divórcio separação do casal (ou seja, 16 de Novembro de 2011) até à atualidade, o que também se impugna, com quanto, desde essa data o Interessado não tem recebido qualquer valor a título de rendas.
J. Neste sentido, e porque a alegação da Recorrente não merece qualquer provimento, por falta de fundamento legal, o Despacho em dissídio não merece qualquer reparo, devendo este Venerando Tribunal manter o mesmo no ordenamento jurídico.”
Pede que o recurso seja julgado improcedente, com a manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi admitido como apelação com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal.
Foi determinada a baixa do processo para apreciação das nulidades invocada em sede de alegações recursivas, tendo sido proferido o seguinte despacho:
“No desenrolar dos fundamentos do recurso interposto da decisão proferida nos autos, a recorrente, BB, veio suscitar a sua nulidade, nos termos do disposto pelas als. c) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil (CPC).
Sustenta, para tanto, em primeira linha, que entre a fundamentação e a decisão existem as contradições que se passa a destacar e que geram a sua nulidade, sem prejuízo das ambiguidades e/ou obscuridades que tornam a decisão ininteligível.
Assim;
sede de fundamentação da sentença, verteu-se que “a cabeça-de-casal veio aceitar a dívida do casal ao irmão do interessado, defendendo que não lhe deve ser exigida uma vez que está apenas formalmente liquidada…
Contraditoriamente, decidiu-se (mal) que a requerente aceita que a dívida foi satisfeita por força do salário e dos bens próprios do requerente, por ser matéria expressamente contraditada por aquela.
Acresce que, na decisão escreveu-se “sem prejuízo do direito de compensação do requerente no momento da partilha”, quando deveria dizer-se “sem prejuízo do eventual direito de compensação do requerente no momento da partilha”.
Em segunda linha, sustenta que a requerente alegou factos que constituem excepções processuais, peremptórias (abuso do direito/enriquecimento sem causa), que não foram apreciadas, o que acarreta a nulidade do despacho nos termos da al. d) do n.º 1 do artigo 615.º em referência.
Cumpre apreciar.
(…)
No caso em apreço, sempre ressalvado o devido respeito por entendimento contrário, não foram, de facto, alegadas nulidades que cumpra apreciar à luz do normativo em referência.
Na verdade, conforme resulta da linha de argumentação apresentada, a recorrente insurge-se, verdadeiramente, contra o facto assente da satisfação da dívida comum do ex-casal através de meios próprios do requerente/recorrido. Tal é matéria que contende com a apreciação de fundo da causa e não com a coerência estrutural da sentença. Tanto confessa a recorrente quando diz que a contradição detectada vem do facto de se tratar de matéria impugnada e, como tal, não poderia ser dada como assente.
Sem prejuízo da avaliação que se fará da circunstância da cabeça-de casal não ter impugnado os factos alegados nos artigos 6.º, 9.º e 11.º da resposta do interessado de 2 de Maio de 2024 (a satisfação do crédito foi efectuada através de penhora dos bens do requerente, que liquidou parte da sua dívida através do seu salário e de bens próprios), admitindo até, nos pontos 1 a 6, relativos à verba 2, do articulado de resposta de 19 de Junho de 2024, que a dívida foi paga, exclusivamente, pelo interessado, depois do divórcio, inexiste qualquer contradição entre a demonstração desse facto (por confissão) e a anterior argumentação no sentido de que a dívida apenas apenas “formalmente” liquidada. A confissão é que prejudica, contrariando-a, a anterior argumentação da cabeça-de-casal, prejudicando, ainda, salvo o devido respeito, a apreciação da matéria de abuso de direito e de enriquecimento sem causa (que assentam na alegada satisfação “formal” da dívida).
Em consequência, relegando-se a matéria da compensação para partilha, por assente a natureza comum da dívida e a sua satisfação por meios próprios do requerente, não se detecta a obscuridade, nessa parte, da decisão proferida.
Nestes termos, não se acompanhando o raciocínio da recorrente, julgam-se improcedentes as suscitadas nulidades de contradição/obscuridade/omissão de pronúncia.
Notifique.”
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.
Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.
Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir, pela ordem que se afigurar lógica, se
-a sentença é nula, seja por contradição ou ininteligibilidade, seja por omissão de pronúncia;
-o crédito sobre a cabeça de casal que o requerente relaciona está ou não aceite pela mesma; se tem aplicação ao caso os institutos do enriquecimento sem causa ou do abuso de direito.
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III MATÉRIA A CONSIDERAR.
Importa atender à descrição dos atos e seu conteúdo, conforme descrito no relatório.
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IV- O MÉRITO DO RECURSO.
NULIDADE DE SENTENÇA/APLICAÇÃO DO DIREITO.
Dispõe o art. 615º, nº 1, C.P.C. que é nula a sentença quando (destaques nossos):
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Estas causa de nulidade aplicam-se também aos despachos –art.º 613º, n.º 3, C.P.C..
As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença.
As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cf. Acórdão desta Relação de 4/10/2018 em que foi relatora a Exmª Srª Desembargadora Drª Eugénia Cunha, e do STJ de 17/10/2017, publicados em www.dgsi.pt, como todos os que aqui serão citados sem indicação de outra fonte).
Conforme Acórdão desta Relação relatado pela Exmª Srª Desembargadora Drº Maria João Matos com a mesma data e igualmente publicado “As decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas distintas causas (qualquer uma delas obstando à sua eficácia ou validade): por se ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo então a respectiva consequência a sua revogação; e, como actos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º do C.P.C. (neste sentido, Ac. do STA, de 09.07.2014, Carlos Carvalho, Processo nº 00858/14, in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem).”
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Disse Alberto dos Reis que “a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. (...) É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento do juiz” (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pag. 151). Já Remédio Marques quanto à ambiguidade da sentença diz que esta “exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, seja da sua parte decisória, seja dos respetivos fundamentos”. Quanto à obscuridade, “traduz os casos de ininteligibilidade da sentença” (“Ação Declarativa À Luz Do Código Revisto”, 3ª. edição, pag. 667).
Sintetizando, “obscuro” é o que não é compreensível; “ambíguo” é o que é suscetível de diferentes interpretações, que podem inclusive ter sentidos opostos.
“Em qualquer caso, fica o destinatário da decisão sem saber ao certo o que efetivamente se decidiu, ou quis decidir. Mas não é qualquer obscuridade, ou ambiguidade, que é sancionada com a nulidade do acórdão, mas apenas aquela que torne a decisão ininteligível” –cfr. Ac. desta Relação da Exmª Srª Desembargadora Drª Rosália Cunha, no processo 324/19.3T8BRG.G1.
A oposição ente os fundamentos e a decisão reporta-se a uma contradição lógica. Ou seja, toda a argumentação vai num sentido e a conclusão é oposta ou divergente deste. Mais uma vez há que distinguir esta situação do erro de julgamento.
Já a contradição entre factos deve ser resolvida com recurso ao disposto no art.º 662º, n.º 2, c), do C.P.C..
O reconhecimento de um alegado vício de deficiência, excesso ou de contradição entre factos considerados provados (ou entre provados e não provados), tratando-se de uma “patologia” da decisão, pode ser aferida oficiosamente.
Um dos objetivos do recurso, nomeadamente em sede de impugnação da matéria de facto, é a apreciação de patologias que a decisão da matéria de facto enferma, que se traduzam em segmentos total ou parcialmente deficientes, obscuros ou contraditórios (art. 662º, n.º 2, al. c) do CPC). Diz António Santos Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª ed., págs. 291 e 292) que a decisão da matéria de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento, podendo – e devendo – algumas delas ser solucionadas de imediato pela Relação, ao passo que outras poderão determinar a anulação total ou parcial do julgamento.
O Tribunal da Relação, mesmo não tendo havido impugnação da matéria de facto por parte do recorrente, no âmbito dos seus poderes pode ampliar a matéria de facto omitida, conforme resulta do disposto no art.º 662º, n.º 2, c), C.P.C., sanando a patologia de que padeça a decisão da matéria de facto; e fá-lo introduzindo as modificações oportunas, sem necessidade de anulação do julgamento, desde que tenha acessíveis os meios de prova relevantes para o efeito (António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos…”, págs. 294 e 295 da 4ª edição). Igual raciocínio vale para contradições factuais.
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Aqui chegados, vejamos desde já o primeiro vício apontado à decisão recorrida: a contradição.
Em primeiro lugar, o despacho recorrido não elenca factos; todavia, da sua leitura e no que ao caso importa, resulta do mesmo que se deu por assente que (com destaque a negrito nosso):
-“No que respeita à dívida, requerente e cabeça-de-casal, nos seus articulados, aceitam que se trata de dívida comum (contraída junto do irmão do requerente para equipar um estabelecimento comercial adquirido na constância do casamento) e a requerente aceita que foi satisfeita por força do salário e dos bens próprios do requerente.”
Apenas uma nota para se dizer que, tratando-se de um despacho com alguma simplicidade, basta este elenco que resulta do seu texto para que se dê por cumprido o formalismo exigível ao ato decisório, ao nível da sua fundamentação de facto (cfr. art.º 154º, n.º 1, C.P.C.).
O primeiro segmento não está em causa.
Quanto a este último segmento, relativo ao modo de satisfação da dívida, do introito do despacho resulta que, na sequência da apresentação da dívida pelo requerente, a cabeça de casal veio, em síntese, aceitar a dívida do casal ao irmão do interessado, defendendo que não lhe deve ser exigida uma vez que está apenas formalmente liquidada, na medida em que foi satisfeita com recurso a um empréstimo particular ainda não pago, constituindo um abuso de direito e tentativa de enriquecimento sem justa causa a sua demanda nesta sede; e que a alegada dívida foi (também) verbalmente partilhada pelo ex-casal. Nestes primeiros requerimentos ambas as partes apresentaram prova.
Diz-se ainda no despacho que o requerente veio dizer que a dívida, comum, foi satisfeita por força do seu salário e do seu património pessoal; omite a resposta da cabeça de casal a este último requerimento (o que é focado apenas no despacho em que se apreciou a nulidade de sentença).
E decide em conformidade com aquela premissa assente (não importa aferir aqui se bem), no sentido de não se determinar a sua inclusão na relação de bens, sem prejuízo do direito de compensação do requerente no momento da partilha.
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Ora, em primeiro lugar, cabe declarar que não estamos perante um caso de nulidade do despacho. Não há contradição entre factos assentes/fundamentação e decisão. A decisão também não é obscura ou ambígua, percebe-se que o crédito foi dado como assente e remetida a sua reclamação para o momento da partilha.
Em segundo lugar, também não há contradição entre factos.
O que temos de verificar é se há erro de julgamento, na medida em que se ponderou mal a posição das partes nos articulados e por isso violou-se a regra da confissão produzida nos mesmos –art.º 574º, n.º 2, C.P.C.. Esta regra tem aplicação aos incidentes como o dos autos, previsto no art.º 1105º do C.P.C..
Desde já declaramos improcedente a nulidade da decisão com base na alínea c) do n.º 1 do art.º 615º.
E passamos a apreciar o erro de julgamento.
A versão da cabeça de casal é a que resulta do seu requerimento de 12/4/2024, no sentido de que a dívida comum foi paga no processo executivo ao cunhado, à custa de um outro empréstimo contraído junto de terceiro, o qual se mostra por sua vez por liquidar. Nessa medida, os artigos 1 e 2 do seu requerimento de 19/6/2024 (1 - Efectivamente, é pacífico que a dívida em questão foi paga, exclusivamente, pelo Interessado à pessoa do seu irmão, CC. 2 - Essa matéria relativa a ter sido o Interessado o único a pagar tal dívida apresenta-se como pacífica.) não colidem com essa versão, antes devendo ser lidos em conjugação com a mesma, conforme resulta do artigo 7 (7 – Ou seja, tudo quanto o Interessado expende a este propósito, que surge a terreiro denotando correcção de ordem formal, não tem o condão de entorpecer, ou minorar, tudo quanto a cabeça-de-casal verteu a propósito da putativa dívida desta para com o seu ex-marido.).
Então: a versão da cabeça de casal é que a dívida ao irmão/cunhado CC (contraído o respetivo empréstimo na constância do matrimónio) foi paga através de um empréstimo/mútuo contraído pelo interessado (requerente) junto de terceiro, o Sr. EE. Sucede que isso ocorre após o divórcio, pois foi para pagar a quantia exequenda e a execução foi proposta depois do divórcio.
Não há propriamente uma confissão de facto, é apresentada uma versão diversa.
Sucede que essa versão pouco importa ao caso. Passamos a explicar.
Na versão da cabeça de casal a dívida comum (contraída junto de CC) foi paga através de um empréstimo contraído pelo requerente já depois de divorciado. Assim sendo, por este empréstimo apenas ele é responsável, já que pelo mútuo ficou dono daquele património correspondente ao valor em causa –cfr. artºs. 1142º e 1144º do C.C. E por isso não importa averiguar se foi paga com recurso ao seu salário/bens próprios, ou em parte com recurso ao salário e noutra parte com recurso a esse empréstimo. Note-se que estamos a falar do salário numa fase em que as partes já estão divorciadas, logo de um bem próprio do requerente. A cabeça de casal aceita que não contribuiu para o pagamento da quantia exequenda (dívida comum). Isso é quanto basta para se ter esta nova dívida como unicamente da responsabilidade do requerente. A dívida que onerava o casal foi paga e a cabeça de casal foi desonerada da mesma, uma vez que não responde perante o Sr. EE.
Deve, portanto, metade da mesma ao requerente, que a pagou à sua responsabilidade, independentemente deste ainda ser devedor perante o terceiro (Sr. EE).
Ainda que a cabeça de casal não aceite ser devedora perante o requerente de metade do valor em causa, que, na sua versão mantém-se em dívida a terceiro, isso não se coaduna com a sua própria versão dos factos. Isto significa que não há matéria controvertida a esse propósito que importe dirimir. O tribunal de 1ª instância não cometeu por isso erro de julgamento no elenco do facto que deu por assente, muito embora dizer-se, no caso, que o crédito está assente não seja um verdadeiro facto, mas antes uma conclusão que importa densificar.
Veremos como e a consequência mais à frente.
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Passamos agora novamente para a questão da nulidade de sentença. Desta feita, tendo em conta a imputada omissão de pronúncia. E para se dizer sinteticamente que a mesma não se verifica. O tribunal recorrido não apreciou as questões relativas ao abuso de direito e enriquecimento sem causa na medida em que as anulou (ficaram prejudicadas) ao considerar que a cabeça de casal aceitou a dívida no seu articulado de 19/6/2024. Na perspetiva que adotou não tinha de as apreciar porque já não se colocavam. Não se verifica por isso erro na estrutura da decisão. Coisa diversa é se o fez corretamente.
Improcede por isso também a nulidade do despacho por omissão de pronúncia.
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Já concluímos que não há erro de julgamento: o crédito do requerente sobre a cabeça de casal não está controvertido.
Mas há que concretizar que a dívida, tida como comum, foi satisfeita pelo requerente para assim concluir.
Face à posição da cabeça de casal, não importando se e que parte foi proveniente de salários do requerente e/ou do empréstimo contraído por si junto do Sr. EE, porque de uma forma ou de outra trata-se de bem próprio, temos por assente que:
-O requerente suportou um crédito resultante da confissão de dívida subscrita pelo extinto casal em ../../2005, na constância do casamento, dada à execução no processo de execução ordinária que correu termos contra o Requerente e a Cabeça de Casal, enquanto executados e no estado de divorciados (Processo: 5523/16...., que correu termos no Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga), correspondente a € 95.172,54.
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Os institutos chamados à colação de abuso de direito e de enriquecimento sem causa devem ser afastados.
Ambos partiam do pressuposto que a dívida (comum) só aparentemente está liquidada. Mas não é bem assim. Do ponto de vista da responsabilidade da cabeça de casal está de facto liquidada, ela não pode mais ser responsabilizada uma vez que a origem comum da dívida desapareceu. Agora só responde perante o seu ex-marido.
A cabeça de casal é devedora da sua parte, logo o enriquecimento sem causa do requerente não tem cabimento (art.º 473º do C.C.: “1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. 2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.”). Muito embora a cabeça de casal faça uma inversão do instituto (a figura funciona como causa de pedir e não como exceção), devemos, contudo, dizer que há, como vimos, uma causa para o pedido apresentado.
Quanto ao abuso de direito (art.º 334º do C.C.: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”), o raciocínio é o mesmo (existe o direito e está a ser legitimamente exercido), sem prejuízo da sua eventual consideração pelo facto de (alegadamente, pela cabeça de casal) ter sido acordada a partilha verbal, que incluiria a dívida, matéria que foi considerada controvertida e remetida para decisão após produção de prova. De facto, o requerente pagou a dívida na execução a expensas suas.
A versão apresentada nos autos pela cabeça de casal levaria a que a mesma ficasse desonerada da sua parte da responsabilidade à custa do património do requerente.
Quanto à consequência da consideração do crédito e qual o regime a seguir, isso não é objeto do recurso. Todavia, sempre se tecerão breves considerações que mostram o acerto da decisão.
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O inventário subsequente ao divórcio destina-se a pôr termo à comunhão de bens resultante do casamento, a relacionar os bens que integram o património conjugal e a servir de base à respetiva liquidação, tendo em vista a data em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges (cfr. art.ºs 1404º, n.º 1, e 1326º, n.º 1, do C.P.C. e art.ºs 1688º e 1789º Código Civil - C.C).
Na partilha dividem-se os patrimónios de cada cônjuge e os bens comuns, em regra de acordo com o regime de bens que vigorou durante o casamento, com as exceções previstas nos art.ºs 1719º e 1790º do C.C.), e tem-se como objetivo essencial obter um equilíbrio entre os diversos patrimónios, de modo a que não haja enriquecimento de um deles à custa do outro.
Conforme Ac. da Rel. de Coimbra de 6/5/2008 (processo n.º 202-E/1999.C1) “O processo de inventário em consequência de divórcio não se destina apenas a dividir os bens comuns dos cônjuges, mas também a liquidar definitivamente as responsabilidades entre eles e deles para com terceiros, o que pressupõe sempre a relacionação de todos os bens, próprios ou comuns, e também daqueles créditos. É na partilha que os cônjuges recebem os bens próprios e a sua meação no património comum, é na partilha que cada um deles confere o que deve ao património comum (artº 1689º, nº 1), e é no momento da partilha que o crédito de um deles sobre o outro, ou do património comum sobre um deles, e ainda o dos credores do património comum, se tornam exigíveis (artºs 1697º e 1695º, nº 1)”.
Esta posição foi seguida no Ac. desta Relação de 27/6/2024 (processo n.º 2248/20.2T8BRG.G1, relatado por Sandra Melo), que aqui citamos, por todos (em itálico, para melhor destaque): “Quanto às responsabilidades entre os cônjuges, há que distinguir as compensações stricto sensu dos simples créditos entre cônjuges. As compensações dão-se só nos regimes de comunhão e verificam-se quando há movimentos entre o património comum e os patrimónios próprios dos cônjuges: quando um destes patrimónios (um património próprio ou o património comum) responde por dívidas de outro património (o comum, se o que respondeu foi um património próprio, ou um património próprio se o que respondeu foi o património comum). Exemplo mais comum é o do caso em que um dos cônjuges responde por dívidas que a ambos responsabilizava: este tem direito a ser reembolsado de metade do montante global de tais pagamentos, surgindo um crédito de compensação a seu favor, o qual só é exigível no momento da partilha dos bens do casal; esta compensação tem lugar preferencialmente na meação do cônjuge devedor no património comum (artigos 1697º nº 1 e 2, 1730.º, 524.º e 1697.º e 1689º nº 3 do Código Civil). “A compensação aparecerá, no momento da liquidação e partilha, ou como um crédito da comunhão face ao património próprio de um dos cônjuges ou como uma dívida da comunhão face a tal património, permitindo que, no fim, uma massa de bens não enriqueça injustamente em detrimento e à custa de outra.” cf Cristina M. Araújo Dias, Do regime da responsabilidade (pessoal e patrimonial) por dívidas dos cônjuges (problemas, críticas e sugestões), pag 582.[1] É pacífico que nos termos do artigo 1691.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil se ambos os cônjuges, no decurso do casamento, contraem um empréstimo, a obrigação de reembolso de tal empréstimo responsabiliza ambos os cônjuges. Se um dos cônjuges suporta essa dívida com bens próprios tem direito a ver reposto no seu património o que pagou em excesso em benefício do património comum; é uma típica dívida de compensação. Nestes casos, em que se impõe uma compensação stricto sensu, mesmo que o pagamento ocorra depois da data em que a terminaram as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, desde que a dívida tenha sido contraída no decurso da comunhão e a ambos responsabilize, deve ser atendida no inventário, sem necessidade de recorrer a ação autónoma. (neste sentido cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/03/2017 no processo 5208/14.9T8ALM-B.L1 e Cristina M. Araújo Dias, obra citada, 585). Com efeito, a mesma tem origem em crédito comum anterior a essa dissolução, não pode ser exigida anteriormente à mesma e deve ser paga preferencialmente pela meação do cônjuge devedor no património comum.”
Este mesmo raciocínio vale, como dali decorre, quando, como é o caso dos autos, a satisfação da dívida comum tenha ocorrido após a dissolução das relações patrimoniais, onerando apenas um dos ex-cônjuges.
Correta, pois, a sua consideração no caso concreto para compensação do requerente no momento da partilha.
Sem prejuízo, a cabeça de casal também alega a partilha verbal, que incluiu este crédito, matéria que foi remetida para produção de prova.
Resta por isso concluir pela improcedência do recurso.
A recorrente, sendo vencida, arca com as custas do recurso (art.º 527º, n.ºs 1 e 2, C.P.C.).
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V DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negar provimento à apelação e manter a decisão recorrida na parte que considerou assente que o requerente suportou a dívida em causa por força dos seus bens próprios e remeteu a compensação do requerente para o momento da partilha.
Custas a cargo da cabeça de casal/recorrente (artº. 527º, nºs. 1 e 2, C.P.C.).
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Guimarães, 6 de fevereiro de 2025.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Gonçalo Oliveira Magalhães
2º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)