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DIREITO À PROVA
ESCRITURAÇÃO MERCANTIL
PROVA DOCUMENTAL
DOCUMENTOS EM PODER DA PARTE CONTRÁRIA
Sumário
I Se a Autora fez o seu pedido respeitante à notificação da Ré com vista a juntar aos autos a ata da assembleia geral de 2024, o relatório de gestão e contas e o balanço do exercício de 2023, e ainda o balancete analítico reportado ao mês 15º, na sua petição inicial, e em requerimento posterior que apresentou apenas reiterou/lembrou esse pedido que ainda não tinha sido apreciado, não obstante este último viesse a ser deferido sem que tivesse decorrido prazo para a Ré se pronunciar, não se verifica a violação do princípio do contraditório, uma vez que a Ré teve oportunidade de contraditar/opor-se a esse pedido na contestação que oportunamente apresentou. II Sendo proferido despacho que apenas defere aquele requerimento probatório, o qual não teve oposição da parte contrária, não se justificava outra e maior fundamentação, resultando que o deferimento assenta no facto, invocado no requerimento, de que esses documentos se mostram relevantes para o que se discute na ação; e, por isso, a fundamentação podia ser sucinta e por adesão ao alegado pela Autora, por aplicação do disposto no n.º 2 do art.º 154º do C.P.C.. III O artº. 435º do C.P.C. remete para legislação comercial no que se refere à exibição judicial, por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos. Já não obsta à exibição parcial quando tenha interesse para a causa, requisito, de resto, aplicável a todos os meios de prova propostos. IV Sendo a Ré parte no processo e com responsabilidade na questão, ao abrigo do art.º 43º do Código Comercial é possível a solicitação/exibição parcial de elementos, verificado o interesse para a causa. V É o que sucede no âmbito de uma ação anulatória –art.ºs 59º e 60º do Código das Sociedades Comerciais -, proposta por uma sócia contra a sociedade, em que são pedidos apenas elementos com relevância sobre as deliberações em causa.
Texto Integral
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
I RELATÓRIO (através de consulta eletrónica dos autos principais).
AA propôs ação de impugnação de deliberações sociais, sob a forma de processo comum, contra EMP01..., LDA..
Termina pedindo a procedência da ação e, por via disso, que sejam declaradas nulas e inexistentes, sem quaisquer efeitos, todas as deliberações sociais tomadas na assembleia geral realizada no dia 23 de julho de 2024 por falta de cumprimento dos requisitos exigíveis no aviso convocatório. Sem prescindir, que sejam declaradas anuladas todas as deliberações tomadas na assembleia geral realizada no dia 23 de julho de 2024, com fundamento no disposto no art.º 58º n.º 1 alíneas a), b) e c) e n.º 4 do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
Para tanto alegou, além do mais (apenas reportado ao que interessa ao recurso) e sucintamente, irregularidades na convocação da assembleia, nomeadamente por não constar a disponibilização dos necessários elementos documentais preparatórios da mesma, e que efetivamente não lhe foram disponibilizados. Também diz que não foi lida, nem elaborada, nem disponibilizada, ata da assembleia até à data, pelo que, nos termos e para os efeitos do art.º 59º n.º 4 do CSC, requer que se notifique a Ré para, em prazo certo, apresentar no Tribunal a referida acta, se é que a mesma existe.
Diz ainda que, quanto à aplicação de resultados, as deliberações tomadas não se encontram justificada e violam disposições legais, visando apenas perpetuar o interesse de um dos sócios, o Senhor BB.
Votou contra as deliberações tomadas.
Na parte final da petição inicial, além do mais, diz:
“IV – PROVA DOCUMENTAL
1 - Documentos em poder da Ré
a) Acta da Assembleia Geral de 2024[i];
b) Relatório de Gestão e contas do exercício de 2023;
c) Balanço do exercício de 2023;
d) Balancete analítico reportado ao mês 15.º;
*
A Ré contestou, impugnando a factualidade alegada, e, quanto a este requerimento de prova, nada disse.
*
Foi proferido despacho a dispensar a realização de audiência prévia.
Foi proferido despacho saneador tabelar.
Foi fixado o valor da ação em € 30.000,01.
Foi proferido despacho a definir o objeto do litígio e a elencar os temas de prova, nestes termos:
“OBJETO DO LITÍGIO
Apreciar a validade das deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral realizada no dia 23.07.2024.
TEMAS DA PROVA
i. Apurar se, com relação às deliberações sociais em sujeito, se verificou o cumprimento dos requisitos exigíveis no respectivo aviso convocatório;---
ii. Indagar se as preditas deliberações sociais foram precedidas do fornecimento à sócia Autora dos elementos mínimos de informação;---
iii. Averiguar se as deliberações em causa, quanto à aplicação de resultados, têm em vista apenas perpetuar o interesse do sócio BB.”
Do despacho consta ainda:
“DILIGÊNCIAS INSTRUTÓRIAS
Dos requerimentos probatórios
Prova por documentos/exibição de registos
Ao abrigo da previsão do art.º 423.º, n.º 1 do CPC, atender-se-ão aos documentos juntos com os respectivos articulados.---
Prova por confissão/depoimento de parte
Admite-se o depoimento de parte a prestar do gerente da Ré, CC, à matéria indicada pela Autora – cfr. art.ºs 452.º, 453.º, n.ºs 1 e 2 e 454.º, n.º 1, todos do CPC.---
Admite-se o depoimento de parte a prestar pela Autora à matéria indicada pela Ré – cfr. art.ºs 452.º, 453.º, n.ºs 1 e 2 e 454.º, n.º 1, todos do CPC.---
Prova por declarações de parte
Admite-se a prestação de declarações de parte pela Autora à matéria pela mesma indicada – cfr. art.ºs 466.º, 452.º, 453.º, n.ºs 1 e 2 e 454.º, n.º 1, todos do CPC.---
Admite-se a prestação de declarações de parte pelo do gerente da Ré, CC, à matéria por aquela indicada – cfr. art.ºs 466.º, 452.º, 453.º, n.ºs 1 e 2 e 454.º, n.º 1, todos do CPC.---
Prova testemunhal
Admitem-se os róis de testemunhas apresentados – cfr. art.ºs 495.º, n.º 1, 496.º, 498.º, n.º 1, 500.º, 502.º e 511.º, n.ºs 1 a 3 todos do CPC.---
*
AUDIÊNCIA FINAL
Oportunamente, se designará data para a realização da audiência final.---
*
Notifique, ainda, concedendo-se às partes o prazo de 10 [dez] dias para, querendo:--
i) apresentarem as suas reclamações e pronunciarem-se nos termos do disposto na
al. c) do n.º 1 do art.º 591.º do CPC – cfr. art.º 593.º, n.º 3 do CPC;---
ii) alterarem os requerimentos probatórios – cfr. art.º 598.º n.º 1 do CPC.”
*
No dia 11/11/2024, a Autora requereu:
“III. A Autora no seu requerimento de prova sob o ponto IV) veio requerer a junção aos autos de documentos em poder da Ré, designadamente a Acta da Assembleia Geral de 2024[ii], o Relatório de Gestão e contas e o Balanço do exercício de 2023 e ainda o balancete analítico reportado ao mês 15.º.
Estes documentos mostram-se relevantes para o que se discute nesta acção.
Requer, pois, respeitosamente a V. Exa. se digne proferir despacho sobre esse pedido de documentos em poder da Ré.”
*
No dia 12/11/2024 foi proferido o seguinte despacho:
“ (…)
Requerimento de 11.11.2024 [...10]:
Admite-se a alteração ao rol de testemunhas apresentado pela Autora.---
Notifique-se a Ré com vista a juntar aos autos a Acta da Assembleia Geral de 2023, o Relatório de Gestão e contas e o Balanço do exercício de 2023 e ainda o balancete analítico reportado ao mês 15.º..---
D.n..”
*
Inconformada, a Ré apresentou recurso com alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)
“1.O presente recurso vem interposto do douto despacho de fls. (refª...54) na parte em que “Requerimento de 11.11.2024…notifique-se a Ré com vista a juntar aos autos a Acta da Assembleia Geral de 2023, o Relatório de Gestão e Contas e o Balanço do exercício de 2023 e ainda o balancete analítico reportado ao mês 15º”, o qual padece de nulidade, erro de julgamento e de interpretação e aplicação do direito. [iii]3.O despacho recorrido, foi proferido, sem que, previamente, tivesse proferido despacho a admitir essa prova requerida pela Recorrida e quando ainda não havia decorrido o prazo para a Recorrente se pronunciar quanto ao requerimento da Recorrida.
4. Sem que, previamente, tivesse proferido despacho a admitir essa prova requerida pela Recorrida, e sem que, tivesse decorrido o prazo de 10 dias, para a Recorrente poder exercer o contraditório que, consubstancia violação do direito ao contraditório e nulidade, nos termos do artigo 195º do CPC, a qual expressamente se argui com as legais consequências.
5.Tanto mais que a sua omissão prejudica os direitos de defesa da Recorrente, que, desta forma é apanhada de surpresa com uma decisão, que lhe é contrária e com a qual não contraditar, nem se pode opôr.
6.O despacho recorrido está, por isso, ferido de nulidade nos termos dos artigos 195º e segs do CPC, além de que, incorre em violação dos artigos 3º, 429º, nºs 1 e 2, 435º do CPC e 42º e 43º do Código Comercial.
7.Além de que, o despacho recorrida enferma ainda de falta de fundamentação legal, com as legais consequências.
8.A prova a produzir e a admitir é apenas aquela que é necessária para fazer prova da matéria de facto controvertida e que seja necessária à decisão da causa, atento, o objecto do litígio e os temas da prova.
9.Os documentos que o Tribunal “quo” pretende que a Recorrente junte não são referentes a nenhuma matéria da deliberação impugnada, nem são referentes aos actos preparatórios daquela AG, nem são referentes às matérias que foram objecto de deliberações naquela AG.
10.As actas das AG’s de 2023 são matéria que não é objecto da presente acção (que não foi objecto da deliberação impugnada), e não têm qualquer relação com os temas da prova (cfr. fls), nem com a matéria da deliberação de 2024 que foi pela Recorrida impugnada.
11. A Recorrida participou na AG de 2023 pelo que, então, teve acesso a tais documentos e a cópia dos mesmos, pelo que, nunca a aqui Recorrente teria que juntar documentos que não só não têm a haver com os temas da prova, nem com o objecto do litígio, como ainda por cima, a Recorrida, tem os mesmos.
12. Relativamente ao Balanço do exercício de 2023 e ao balancete analítico reportado ao mês 15º, a Recorrente forneceu à Recorrida cópia dos documentos preparatórios da AG que são legalmente devidos estando a Recorrida na posse de toda aquela documentação.
13.Logo, a Recorrente não tem legalmente que entregar mais documentação do que aquela que já entregou ou do que é legalmente exigido no âmbito da obrigação de informação mínima e preparatória da AG.
14. Tendo presente o tipo de acção, o seu objeto e os temas da prova, também a Recorrente não tem de entregar, à luz do artigo 429º, nº 1 do CPC à Recorrida o balanço de 2023, nem o balancete analítico.
15. A Recorrida não pode travestir a presente acção, para, por via da presente acção obter documentos que se pretender tem que pedir e seguir outras vias e procedimentos próprios.
16. Os documentos balanço de 2023 e balancete analítico do mês 15º, não são documentos preparatórios da AG,
17. e, são documentos que contêm informação sensível do negócio da empresa, com o nome de fornecedores, clientes, preços praticados, margens e outros elementos que integram o segredo do negócio, e que essa informação não pode de forma alguma circular para fora da empresa, pois que põe em risco o negócio da Recorrente, e que de forma alguma se pode correr o risco de chegar às mãos da concorrência.
18.E, estando, a Recorrida numa clara atitude de “revanche”, dar, neste âmbito, acesso a essa informação é perigoso e violador dos interesses do negócio e da empresa e do direito à proteção do segredo comercial
19.Esses documentos têm informação que não se prende em nada com as questões suscitadas pela Recorrida nos presente autos, não sendo essa documentação necessária ou sequer imprescindível para a Recorrida fazer prova de qualquer dos pontos dos temas da prova.
20. Não só os documentos acima referidos e objecto do despacho recorrido, não têm qualquer utilidade para a questão objecto dos presentes autos, nem para os temas da prova, nem são imprescindíveis para a decisão da causa, e, como tal, a decisão recorrida errou, pois que, viola o artigo 429º do CPC.
21. A documentação que o despacho recorrido pretende que a Recorrente junto aos autos, faz parte da escrituração comercial da Recorrente, logo, está sujeita ao regime previsto nos artigos 42º e 43º do Código Comercial e excluída da aplicação do regime 429º nº 1 do CPC.
22. Assim, o douto despacho recorrido que determinou a entrega de documentos também violou o artigo 435º do CPC conjugado com os artigos 42º e 43º do Código Comercial.
23.Assim, além da nulidade invocada o despacho recorrido, incorreu, ainda, em violação de lei e violou o disposto nos artigos 3º, 417º, nº 1, 429º, nºs 1 e 2, 435º do CPC e o disposto nos artigos 42º e 43º do Código Comercial.
24.Sendo que, a interpretação de tais normativos em sentido inverso ao por nós preconizado, viola o direito a um processo justo e equitativo e padece de violação dos artigos 3º, 20º, nº 1 e 4 e 204º da CRP.”
Pede por isso que se julgue procedente o presente recurso com as legais consequências.
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A Autora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.
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*
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal.
Do despacho de admissão do recurso consta ainda:
“Venerandos Desembargadores:---
Vem arguida a nulidade da sentença, nos termos do art.º 615.º, n.º 1 do CPC.---
Cumpre, pois, proferir despacho nos termos do art.º 617.º do citado diploma.---
Ora, salvo o devido respeito, afigura-se-nos que a decisão proferida não padece da invocada nulidade, pois que da mesma consta de forma clara e inequívoca os seus fundamentos quer de facto quer de direito, não se encontrando os mesmos em oposição nem padecendo de qualquer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.---
Vssªs Exªs, porém, decidindo farão melhor Justiça.”
Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.
Decorre da conjugação do disposto nos art.ºs 608º, n.º 2, 609º, n.º 1 (ex vi 663º, n.º 2), 635º, n.º 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos. Todavia, não pode o Tribunal conhecer questões que não tenham prévia e/ou oportunamente sido suscitadas, uma vez que o nosso sistema recursivo visa apenas (re)apreciar decisões proferidas, com respeito pelo trânsito em julgado que sobre as demais tenha recaído –art.ºs 627º e 628º do C.P.C..
Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:
-se a decisão é nula por violação do princípio do contraditório ou por falta de fundamentação;
-se o requerimentos probatório apresentados pela Autora relativo à junção pela Ré da Acta da Assembleia Geral de 2024[iv], do Relatório de Gestão e contas e do Balanço do exercício de 2023 e ainda do balancete analítico reportado ao mês 15.º não deve ser admitido, por não importar à decisão da causa e/ou por a sua junção violar o regime previsto nos art.ºs 42º e 43º do Código Comercial.
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III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Assim delimitado o objeto da apelação, os factos a atender são os que constam do relatório e que se reportam à tramitação processual (e teor dos requerimentos e despachos indicados).
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IV MÉRITO DO RECURSO.
NULIDADE DA DECISÃO.
A recorrente imputa dois vícios à decisão geradores de nulidade.
Em primeiro lugar, por violação do princípio do contraditório. Antes de maior concretização da questão recursiva, vejamos o regime em causa.
No Ac. desta Relação de 19/4/2018 relatado pelo aqui 2º adjunto (75/08.4TBFAF.G1, publicado em www.dgsi.pt, como todos os que se irão mencionar sem indicação de outra fonte) esta matéria foi amplamente tratada[v], pelo que, numa abordagem sumária, destacamos que o princípio do contraditório previsto no art.º 3º, do C.P.C., a par de outros que constituem pilares do nosso ordenamento processual, tem duas vertentes:
-“inter partes”, e decorrência do princípio da igualdade previsto no art.º 4º do C.P.C., garantindo a possibilidade de cada parte se pronunciar sempre sobre os elementos trazidos ao Tribunal pela outra parte, ou condutas processuais, em cada momento e que podem fundamentar a decisão; esta é a vertente tradicional do direito ao contraditório, traduzida nos nºs. 1, 2 e 4, do art.º 3º, sendo o juiz fiscal do seu cumprimento (n.º 3);
-entre as partes e o Tribunal, sendo de observar pelo juiz ao longo de todo o processo, conforme dispõe o art.º 3º no n.º 3, e correspondendo a uma conceção ampla do princípio, e que no fundo emana do direito constitucional de direito de acesso à justiça num sistema equitativo e participado –art.º 20º, n.º 4, Constituição da República Portuguesa; deve ser cumprido como ato prévio de qualquer decisão a tomar no processo, seja de direito (mesmo de conhecimento oficioso), seja de facto, salvo casos de manifesta desnecessidade; é o seu cumprimento que evita a “decisão surpresa” na medida em que, além do mais, permite à parte que antevê que vai ser proferida uma decisão que lhe é desfavorável, argumentar, tentando convencer o Tribunal da bondade da sua posição.
“As decisões surpresa”, proibidas como decorre do exposto, têm o seu maior campo de expressão nas questões de conhecimento oficioso, designadamente quando não foram suscitadas pela parte contrária.
Cabe ao intérprete e ao aplicador da lei definir caso a caso se pode dispensar a observância desse princípio, face à cláusula de “manifesta desnecessidade (…)”.
A violação desse princípio (ou a sua inobservância) configura uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo consequentemente nula a decisão quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respetivo enquadramento jurídico –cfr. art.ºs. 195º, 197º, n.º 1, e 199º, n.º 1, todos do C.P.C..
Esta nulidade, muito embora processual, quando a decisão-surpresa está coberta por decisão judicial, pode ser invocada e conhecida em sede de recurso.
E como se disse no Ac. desta Relação de 6/2/2020 (relator Ramos Lopes), com destaque a negrito nosso, e com eliminação das notas de rodapé: “A jurisprudência constitucional tem por assente que do ‘conteúdo do direito de defesa e do princípio do contraditório resulta prima facie que cada uma das partes deve poder exercer uma influência efetiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade, não só de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes de o tribunal decidir questões que lhes digam respeito, mas também de deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de umas e outras’, adoptando, pois, um ‘entendimento amplo do contraditório, entendido «como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão» (Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais. Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 96.)’. Exigência postulada pelo princípio do processo justo e equitativo (art. 20º da CRP), o princípio do contraditório possui conteúdo multifacetado: traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado desses provas, tem ínsito o reconhecimento do direito da parte à sua audição antes de ser tomada qualquer decisão, além do direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a tomar posição sobre elas.
Efetivamente e no que ao caso interessa, concretiza o art.º 415º, n.º 1, do C.P.C. que “Salvo disposição em contrário, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas” e o seu nº 2, no que ao caso importa “(…) relativamente às provas pré-constituídas, deve facultar-se à parte a impugnação, tanto da respetiva admissão como da sua força probatória”.
Aplicando.
Primeiro para se dizer que a arguição desta nulidade em sede de recurso mostra-se correta e é tempestiva, uma vez que a invocada nulidade (a verificar-se) evidenciou-se no despacho que admitiu os meios de prova apresentados pela Autora.
Depois para se dizer que a mesma não se verifica. De facto, a Autora fez o seu pedido respeitante à notificação da Ré com vista a juntar aos autos a ata da assembleia geral de 2024, o relatório de gestão e contas e o balanço do exercício de 2023 e ainda o balancete analítico reportado ao mês 15º, na sua petição inicial; e em 11/11/2024, no requerimento que então apresentou, apenas reiterou/lembrou que esse pedido ainda não tinha sido apreciado. Significa isso que a Ré teve oportunidade de contraditar/opor-se a esse pedido na contestação que oportunamente apresentou. Repare-se que, à partida, as provas devem ser juntas com os respetivos articulados (art.º 552º, n.º 6, C.P.C., e artº. 572º, d), C.P.C.), pelo que, e sem prejuízo da oportunidade que depois foi dada às partes e que aqui não está em causa, a Autora apresentou os seus meios de prova no momento oportuno, pelo que cabia à Ré, desde logo, dando isso por adquirido, pronunciar-se (como aliás fez relativamente a prova documental junta com a petição inicial).
Não o fez, porém. Portanto, o tribunal não tinha de aguardar prazo para a Ré se pronunciar sobre o requerimento de 11/11/2024, nesse segmento destacado e que é o que está em causa neste recurso. Podia desde logo apreciá-lo, porque o contraditório já tinha sido possibilitado; e, por isso, o respetivo princípio mostrava-se respeitado.
Improcede, consequentemente, a nulidade invocada.
*
Imputa ainda a recorrente ao segmento decisório em causa falta de fundamentação.
Dispõe o art.º 615º, nº. 1, do C.P.C., que é nula a sentença quando: (…)
“b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
(…).
As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença.
As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cfr. Acórdão desta Relação de 4/10/2018 em que foi relatora Eugénia Cunha, e do STJ de 17/10/2017).
Conforme Acórdão desta Relação relatado pela aqui 1ª adjunta, Maria João Matos, com a mesma data daquele: “As decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas distintas causas (qualquer uma delas obstando à sua eficácia ou validade): por se ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo então a respectiva consequência a sua revogação; e, como actos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º do C.P.C. (neste sentido, Ac. do STA, de 09.07.2014, Carlos Carvalho, Processo nº 00858/14, in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem).”
O dever de fundamentação assenta no princípio constitucional da obrigatoriedade de fundamentação de todas as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente (art.º 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
A fundamentação tem de ser factual e jurídica. E, de acordo com o n.º 2 do art.º 154º, não pode ser através da mera adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou oposição em apreço, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade. O dever de fundamentação abrange todos os pedidos controvertidos e todas as dúvidas suscitadas no processo, mas também abrange o dever de explicitação dos motivos que levaram o julgador a dirimir a controvérsia em determinado sentido.
Portanto, no caso de estarmos perante a prolação de um mero despacho, vigorando igualmente o dever de fundamentação fatual e jurídica, e sendo aplicável o disposto no art.º 615º, n.º 1, ex vi n.º 3 do art.º 613º, também do C.P.C., a exigência a fazer será necessariamente diversa da que se fará no caso de prolação de uma sentença (cfr. o art.º 607º do C.P.C.), e aferida consoante a complexidade da questão a decidir.
Pode divergir-se se a falta absoluta constitui a causa de nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 615º – “a ausência total de fundamentos de direito e de facto” conforme refere José Alberto dos Reis “Código Processo Civil Anotado”, V, pág. 140, e Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª. ed., 1985, págs. 670 a 672; ou se a integra uma fundamentação apenas incompleta ou insuficiente.
Tem sido posição maioritária da jurisprudência que apenas a falta absoluta conduz à nulidade; admite-se que uma insuficiência grosseira (situação diversa da falta de mérito justificativo suficiente para justificar a parte dispositiva, que sempre se traduzirá antes em erro de julgamento) possa equivaler à falta.
Aplicando.
Efetivamente estamos perante um mero despacho de admissão de um meio de prova, sustentado com base nos art.º 429º do C.P.C. (“1 - Quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento, a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar. 2 - Se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa, é ordenada a notificação.”)
O despacho apenas defere o requerido.
Muito embora essa sua fórmula, parece-nos que no caso não se justificava outra e maior fundamentação, resultando que o deferimento assenta no facto invocado no requerimento de que esses documentos se mostram relevantes para o que se discute na ação. E dizemos isto porque, não tendo havido oposição da parte contrária, a fundamentação podia ser sucinta e por adesão ao alegado pela Autora, por aplicação do disposto no n.º 2 do art.º 154º citado.
A Ré podia compreender o que se pretendeu com o despacho de deferimento; e assim reagir ao mesmo, como fez através do presente recurso.
Não se verifica, por isso, nulidade por falta de fundamentação do despacho recorrido.
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No que concerne ao direito à prova, começa por dispor o art.º 341º do C.C. que as provas têm como função a demonstração da realidade dos factos.
O direito à prova decorre da garantia constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva que emana do art.º 20º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa. Concretamente no seu n.º 4 diz-se que “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.”
O direito à prova implica que as partes têm o direito a utilizar a prova em seu benefício e como fundamento das suas pretensões ou defesas. Têm ainda o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal, bem como o direito à contraprova –veja-se o Ac. desta Relação de 25/11/2021 (relatora Margarida Almeida Fernandes, www.dgsi.pt).
O direito à prova constitui, por isso, também uma vertente do princípio do contraditório, e exige que à parte seja, em igualdade, facultada a proposição de todos os meios probatórios potencialmente relevantes para o apuramento da realidade dos factos (principais ou instrumentais) da causa. E por força do contraditório as partes têm também direito à admissão de todas as provas relevantes para o objeto da causa, pelo que o juiz não pode, em despacho de admissão das provas ou na fase da instrução, rejeitar um meio de prova por irrelevância, baseado na convicção que já tenha formado quanto à não verificação do facto que se pretende provar através desse meio; apenas é admissível que o faça quando, ao invés, esteja já convencido da verificação do facto que a parte pretende provar, sem que haja meios de prova ainda a produzir que possam vir abalar essa convicção –José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, pág. 213 da 3ª edição. Os mesmos autores destacam as dúvidas face a juízos de constitucionalidade da concessão ao juiz do poder de recusar meios de prova desnecessários (cfr. art.ºs 443º, n.º 1, e 411º a contrario, do C.P.C.).
O procedimento probatório respeita ao esquema dos atos processuais relativos à utilização dum meio de prova, e desenvolve-se ao longo das fases de fixação do objeto da atividade probatória, fixação dos meios de prova, produção de prova e apreciação da prova –Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, pág. 206; Castro Mendes, “Do Conceito de Prova em Processo Civil”, pág. 193.
A instrução é orientada pelos factos necessitados de prova e pela incumbência do juiz de realizar ou ordenar mesmo oficiosamente todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é lícito conhecer (-pode tratar-se de factos principais -essenciais e complementares-, e factos instrumentais), devendo tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las (art.ºs 410º, 411º e 413º, C.P.C.). Acresce que dispõe ainda o art.º 6º, n.º 1, do C.P.C. que cabe ao juiz recusar o que for impertinente ou meramente dilatório.
Desta conjugação resulta que à requerente, rectius às partes, tal como ao tribunal, importa a realização da verdade material.
A requerente pode ter interesse na obtenção de documentos/informações. Uma parte pode ter interesse na junção de documentos em poder da parte contrária ou de terceiro (art.ºs 429º e 432º do C.P.C.), buscando-se a justificação da pertinência do pedido ao interesse para a decisão da causa. Igual consideração resulta do disposto no art.º 436º do C.P.C., que atribuiu ao tribunal a incumbência de (por sua iniciativa ou a requerimento) requisitar informações (…) ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade.
Também no que respeita à prova pericial, conforme decorre do art.º 388º do C.P.C., recorre-se à mesma quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial. O art.º 476º do C.P.C. volta a recorrer à impertinência e carácter dilatório como fundamento de rejeição da mesma, podendo o juiz alargar o seu objeto ao que for pertinente para os autos, tal como pode ordenar oficiosamente a realização da perícia (art.º 477º do C.P.C.).
Assim, para apreciar do interesse para a decisão da causa de meios de prova requeridos somos remetidos para a aferição da sua pertinência e necessidade.
Veja-se ainda o disposto no art.º 438º, n.º 2, do C.P.C., que sanciona a parte que requereu que se requisitassem documentos que se vem a apurar não assumirem aquele relevo –pertinência e necessidade-, sendo o seu comportamento censurável.
A impertinência resulta do facto de se destinar a provar ou infirmar facto irrelevante para a decisão da causa; será desnecessária se se destinar a provar (ou infirmar) facto já provado.
Já Alberto dos Reis (“Código de Processo Civil Anotado”, vol. IV, pág. 58) dizia a propósito de provas documentais, que “documentos impertinentes são os que dizem respeito a factos estranhos à matéria da causa; documentos desnecessários são os relativos a factos da causa, mas que não importa apurar para o julgamento da acção”.
E em igual tema, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (“Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, pág. 512), dizem que “são desnecessários os documentos que, atento o estado da causa, sejam insusceptíveis de acrescentar um elemento probatório que se repercuta no desfecho da lide, ou por dizerem respeito a factos que já se mostram devidamente comprovados, ou por dizerem respeito a factos que não constam do elenco a apurar na causa, ou ainda por já constar no processo documento de igual ou superior relevo”.
Para além do princípio do inquisitório que aqui não cumpre desenvolver (cfr. art.º 411º do C.P.C.), vigora no processo civil o princípio da cooperação – art.º 7º- este impondo-se a todos os intervenientes processuais - “Cada parte, sem prejuízo das naturais divergências que se mantenham quanto à matéria de facto ou quanto à solução jurídica do caso, deve encarar o processo como um simples instrumento necessário à busca da solução justa” – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, obra citada, pág. 33.
Uma das suas manifestações encontra-se precisamente no dever de o juiz providenciar pela remoção dos obstáculos que qualquer das partes encontre quando se trata de obter algum documento ou informação ou exercer algum direito, ónus ou dever processual –cfr. o n.º 4 do art.º 7º.
São os temas da prova que delimitam o âmbito da instrução; mas a instrução terá como objeto os factos naturalísticos em que se traduzem ou desdobram e sobre os quais incidirá o juízo probatório, nos termos do art. 607º, n.ºs 3 e 4 do C.P.C.; conforme Ac. desta Relação de 5/5/2022 (relator Pedro Maurício, www.dgsi.pt) “…já os factos a provar são os factos essenciais ou principais da causa, que constituem a causa de pedir e em que se baseiam as excepções invocadas, que deverão ser alegados pelas partes (cfr. art. 5º/1 do C.P.Civil de 2013), os factos instrumentais e os factos «complementares e concretizadores», desde que resultem da instrução da causa e relativamente aos quais inexiste qualquer vinculação temática [cfr. art. 5º/2a) e b) do C.P.Civil de 2013], tudo sem prejuízo dos casos excepcionais em que o juiz pode oficiosamente introduzir factos principais na causa [cfr. art. 5º/2c) do C.P.Civil de 2013].”.
Os temas da prova na sua função delimitadora, visam evitar “excessos” de modo a que seja permitido às partes a discussão das matérias, mas são os factos alegados que limitam o conhecimento do Tribunal (cfr, a propósito o Ac. da Rel. de Porto de 23/11/2021 (relator Rui Moreira, wwwdgsi.pt).
É sempre sobre os factos que a produção de prova e respetivos meios incidirão, como se infere dos art.ºs 452º, n.ºs 1 e 2, 454º, 460º, 466º, n.º 1, 475º, 490º ou 495º, n.º 1, do C.P.C., e 341º do C.C., e não sobre os respetivos temas de prova enunciados; e são os factos que o art.º 607º do C.P.C. impõe que sejam discriminados e declarados provados e/ou não provados pelo julgador, na sentença. Os factos são os constantes dos articulados apresentados pelas partes, cabendo-lhes a alegação dos factos essenciais ou principais - causa de pedir e excepções – cabendo, quer ao juiz, quer às partes, fazer com que sejam adquiridos para o processo os factos instrumentais (cfr. maior desenvolvimento no Ac. da Rel. de Lisboa de 23/4/2015, relatora Ondina Carmo Alves, www.dgsi.pt).
Importa ainda ter presente que as normas de direito probatório material, designadamente a regra do ónus da prova decorrente do art.º 342º, bem como a do art.º 346º relativa à contraprova, ambos do C.C., relevam sobretudo na fase decisória, no momento da aplicação do direito substantivo aos factos; nesta operação é que importará determinar se a parte que pretendia fazer valer um determinado direito provou a factualidade que lhe competia para preenchimento da respetiva norma de direito substantivo que o tutelava.
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Colocada a questão do ponto de vista teórico, cabe aplicar ao caso particular da ação prevista nos art.ºs 59º e 60º do CSC e ao caso concreto.
No dia 23 de julho de 2024 teve lugar assembleia geral com a seguinte ordem de trabalhos:
“Ponto Um: Deliberar sobre as contas do exercício de 2023;
Ponto Dois: Deliberar sobre a proposta do Conselho de aplicação de resultados.”
Diz a Autora que não lhe foi disponibilizado qualquer documento ou informação, nem lhe foi permitido a consulta de quaisquer elementos preparatórios da Assembleia. Diz ainda que não foi lida, elaborada nem assinada, a ata da assembleia que se realizou no dia 23 de julho de 2024. E mais alega que votou contra todas as propostas por entender que:
a) não estavam reunidas as condições para a constituição da Assembleia Geral;
b) não terem sido cumpridos no aviso convocatório e posteriormente os requisitos previstos e impostos do art.º 263º n.º 1 do CSC;
c) não ter sido prestada a informação mínima e necessária para que os sócios pudessem deliberar e votar as propostas.
Invoca, assim, a nulidade do aviso convocatório, e das deliberações tomadas em assembleia sem cumprimento dos deveres mínimos de informação previstos nos art.ºs 21º e 263º do CSC, que se consubstanciam numa sonegação de direito à informação aos sócios.
Sem prejuízo, diz, as deliberações tomadas sempre seriam passíveis de anulação.
Entende “a Autora que as deliberações tomadas na Assembleia Geral de 23 de Julho de 2024 quanto à aplicação de resultados não se encontra justificada e viola disposições legais, visando apenas perpetuar o interesse de um dos sócios, o Senhor BB.”
E no artigo 101º do seu requerimento inicial pede: “Nos termos e para os efeitos do Artigo 59.º n.º 4 do CSC requer a V. Exa. se notifique a Ré para em prazo certo apresentar no Tribunal a referida acta, se é que a mesma existe.”
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Começando por este último ponto, diremos que se trata de uma faculdade legal, que foi deferida no despacho recorrido, muito embora não o tenha sido nos termos previstos na lei. Face à posição da recorrente e aos termos do recurso, resta dizer que não se verifica qualquer razão para a revogação do despacho proferido, quando determina a notificação da Ré para a junção da respetiva ata.
Refere a recorrente que “No caso, a Recorrida moveu uma acção apenas para anular a deliberação social de 2024.
Os fundamentos em que a Recorrida para tanto se estriba, circunscrevem-se às questões dessa deliberação social de 2024.
Os documentos que o Tribunal “quo” pretende que a Recorrente junte, não são referentes a nenhuma matéria daquela deliberação impugnada, nem são referentes aos actos preparatórios daquela AG, nem são referentes às matérias que foram objecto de deliberações naquela AG.”
A recorrente não atendeu ao facto de ter sido corrigido o requerimento, conforme frisamos; e efetivamente o que está pedido é a ata da assembleia de 2024, aqui em causa, e não de 2023.
De seguida, a recorrente passa a negar que não tenha sido facultado o relatório de gestão e contas e todos os demais documentos legalmente devidos e preparatórios da assembleia geral de 2024.
Diz também que não tem legalmente que entregar o balanço do exercício de 2023 e o balancete analítico reportado ao mês 15º.
Quanto ao primeiro argumento, está controvertido se (e o que) já entregou, pelo que tal não colide ou obsta ao cumprimento do despacho recorrido. E, por outro lado, quanto ao que diz já ter entregue, tal retira qualquer fundamento à chamada á discussão do segredo comercial (matéria que melhor veremos infra).
Resta saber se os documentos em causa (já excluída e decidida a questão da junção da ata da assembleia) respeitam à matéria da causa, o que equivale a aferir da sua pertinência e necessidade.
Relembramos um dos temas de prova: “Averiguar se as deliberações em causa, quanto à aplicação de resultados, têm em vista apenas perpetuar o interesse do sócio BB.”
Independentemente da suficiência da materialidade alegada com vista a tal desiderato, para aquele efeito importa controlar o conteúdo das deliberações tomadas face aos seus objetivos legais e reais.
Estando em causa a decisão sobre as contas de 2023 e proposta do Conselho de Administração de aplicação de resultados (conforme pontos de ordem dos trabalhos da assembleia), cremos que o relatório de gestão e contas do exercício de 2023 (que revela a atividade e o desempenho do organismo e as suas contas), o balanço do exercício de 2023 (documento contabilístico que revela a situação financeira e patrimonial da empresa em determinado momento) e o balancete analítico reportado ao mês 15º (que revela informações detalhadas sobre operações financeiras), podem ser relevantes para o efeito.
Sendo matéria controvertida, trata-se de prova documental pertinente e necessária.
É pacífico que este Tribunal de recurso não pode conhecer questões novas, que são pela primeira vez aqui colocadas à apreciação do julgador, salvo se forem de conhecimento oficioso.
António Santos Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª edição, pág. 109) ensina: “A natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não analisar questões novas, salvo quando (...) estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Seguindo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos seguido um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.”
Assim sendo, e para além do já referido supra, o alegado no recurso quanto ao facto de os documentos pedidos fazerem parte da escrituração comercial da recorrente, logo, sujeitos ao regime previsto nos art.ºs 42º e 43º do Código Comercial e excluídos da aplicação do regime do art.º 429º n.º 1 do C.P.C., sendo questão suscitada pela primeira vez neste recurso, não cumpriria à partida apreciar.
Poderá, no entanto, equacionar-se essa matéria de forma oficiosa, na medida em que poderia inquinar a prova assim obtida de ilegalidade, precisamente porque obtida de forma violadora de norma de direito material (limitando o direito à prova).
Afastamos essa possibilidade com recurso às palavras do acórdão desta Relação de 13/10/2022 (relatado por Maria dos Anjos Nogueira, e publicado em www.dgs.pt), em que nos revemos (em itálico, para melhor destaque, e desde já esclarecendo que o art.º 519º, n.º 1 corresponde ao atual 417º, n.º 1, C.P.C.): “Relativamente à matéria referente à escrituração mercantil, no que refere às situações e condições em que a mesma pode ser exibida judicialmente e em que pode ser objecto de prova pericial, encontra-se a mesma regulada nos arts. 41.º a 44.º do Código Comercial, sem que se considere que tais disposições tenham sido revogadas pelo art. 519.º do C.P.C., face ao decidido no Acórdão do STJ de 22/04/1997, proc. N.º 087158, disponível no site da dgsi, que, uniformizando jurisprudência nesse sentido, enunciou que “o[O] artigo 43.º do Código Comercial não foi revogado pelo artigo 519.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 1961, na versão de 1967, de modo que só poderá proceder-se a exame dos livros e documentos dos comerciantes quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida”. Vejamos, então, o que se preceitua nos referidos preceitos. No art. 41.º do Código Comercial estabelece–se o princípio do segredo da escrituração mercantil ao estatuir que “nenhuma autoridade, juízo ou tribunal pode fazer ou ordenar varejo ou diligência alguma para examinar se o comerciante arruma ou não devidamente os seus livros de escrituração mercantil”. Com este segredo procura-se proteger “a privacidade do comerciante, de afastar os seus bens da cobiça alheia e de evitar que a sua actividade seja afectada por informações sobre a sua situação e as perspectivas de negócio” – cfr. L.Brito, in ‘Direito Comercial’, I, pg. 309. Já no que toca à utilização dessa escrituração como meio probatório – quer por via da sua exibição, quer por via do seu exame – esse princípio não tem aplicação absoluta, embora se manifeste nas restrições que são colocadas pelos arts. 42.º e 43.º, já que, como decorre destas normas, a exibição ou exame dessa escrituração apenas é admissível nos casos que aí se encontram previstos, ao permitir, o primeiro, a exibição judicial por inteiro dos livros de escrituração comercial e, o segundo, o exame judicial desses livros. Concretamente, no art. 42.º, preceitua-se que “a[A] exibição judicial dos livros de escrituração comercial por inteiro, e dos documentos a ela relativos, só pode ser ordenada a favor dos interessados, em questões de sucessão universal, comunhão ou sociedade e no caso de quebra. Por sua vez, dispõe-se no art. 43.º, que “f[F]ora dos casos previstos no artigo precedente, só poderá proceder-se a exame nos livros e documentos dos comerciantes, a instâncias da parte, ou de ofício, quando a pessoa quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida”. O Juiz Conselheiro Fernando Pereira Rodrigues, in ‘Os meios de prova em processo civil’, 2016, Almedina, pgs. 118 a 120, a respeito da conciliação de tais normas jurídicas, refere que “fora do caso da exibição por inteiro da escrituração, que apenas é facultada nas situações previstas no preceito citado, nada impede a exibição, para exame e/ou junção de cópia, de elementos da escrituração comercial. A lei do processo não admite a recusa de tais elementos, sendo certo que o artigo 43.º do Código Comercial até prevê, com limites, o exame daqueles elementos, ao estabelecer que «fora dos casos previstos no artigo precedente, só poderá proceder-se a exame nos livros e documentos dos comerciantes, a instâncias da parte, ou de oficio, quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida». A diferença de regimes tem inteira justificação, pois que enquanto "a exibição por inteiro” envolve o exame completo dos livros, permitindo uma devassa total da atividade profissional do comerciante, e só pode, por isso, ter lugar nos casos, taxativamente, enumerados no artigo 42.º, já a "apresentação" constitui, segundo o artigo 43.º um exame restrito aos elementos da escrituração que interessam à prova de determinado facto concreto, não assumindo, consequentemente, a mesma incomodidade. Da conjugação dos normativos citados decorre, pois, que o segredo da escrituração mercantil, previsto nos artigos 41.º, 42.º e 43.º do Código Comercial, não faculta às partes recusar a apresentação dos documentos quando se trate de apurar factos em que tenha interesse ou responsabilidade a pessoa a quem eles pertençam, na medida em que aquele segredo não pode subsistir em tal situação, sendo que, em todo o caso, face a um eventual conflito de interesses, por um lado, o do segredo comercial e, por outro, o do dever geral de colaboração com a administração da justiça, sempre o direito ao segredo deve ceder perante um interesse público superior, que é o da boa administração da justiça. Aliás, como bem se entendeu no douto Acórdão do STJ de 25.11.97, acessível na página da dgsi, a escrituração comercial não é mais secreta que quaisquer outros assentos ou escritos particulares, pelo contrário, e precisamente porque é imposta por lei para permitir conhecer em cada momento o estado do negócio e fortuna do comerciante, isto é, porque se destina a constituir essencialmente um meio de prova, a escrita pode ser objecto de exame, até contra a vontade e os interesses daquele a quem pertence. Tanto na imposição aos comerciantes da obrigação da escrita, como na determinação do modo por que deve ser organizada, também se atendeu ao interesse geral e mal se explicaria que, representando uma prova pré-constituída, quando essa prova se tornasse necessária e oportuna, se impedisse a sua prestação - Cfr., no mesmo sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 21/11/2011, Processo n.º 462/10.8TBVFR-W.P1, de 28/11/2011, Processo n.º 462/10.8TBVFR-V.P1, e de 17/11/2008, Processo n.º 0855318, todos publicados em www.dgsi.pt.”
O artº. 435º do C.P.C. remete para legislação comercial no que se refere à exibição judicial, por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos. Já não obsta à exibição parcial, quando com interesse para a causa, requisito aplicável a todos os meios de prova propostos.
Sendo a Ré/recorrente parte no processo e com responsabilidade na questão, ao abrigo do art.º 43º do Código Comercial, é possível a solicitação parcial de elementos, verificado o interesse para a causa.
Ora, estamos no âmbito de uma ação anulatória, proposta por uma sócia contra a sociedade, em que são pedidos apenas elementos com relevância sobre as deliberações em causa. Por isso, não tem cabimento (não se aplica) a restrição probatória, e nem o interesse subjacente às normas sobre a matéria - segredo da escrituração mercantil - é violado.
Por isso inexiste qualquer óbice à prolação do despacho recorrido (cfr. art.º 429º do C.P.C.), e não se mostra violada qualquer uma das disposições invocadas no recurso.
Impõe-se, portanto, a confirmação do despacho.
Deve, por isso, improceder a apelação.
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As custas do recurso são a cargo da recorrente porque vencida - cfr. art.º 527, n.ºs 1 e 2, C.P.C..
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V DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso da Ré improcedente, mantendo o despacho recorrido.
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Custas do recurso a cargo da Ré/recorrente (art.º 527º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 6 de fevereiro de 2025.
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Os Juízes Desembargadores
Relatora: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1ª Adjunta: Maria João Marques Pinto de Matos
2º Adjunto: José Alberto Moreira Dias
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)
[i] Retificação admitida por despacho de 19/12/2024. [ii] Retificação admitida por despacho de 19/12/2024. [iii] Consigna-se que não existe o ponto 2. [iv] Retificação admitida por despacho de 19/12/2024. [v] Cfr. ainda, com a mesma data, o acórdão proferido nesta Relação no processo n.º 533/04.0TMBRG-K.G1