INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
PREENCHIMENTO DA PRESUNÇÃO
Sumário


Nas alíneas a) a i), do nº 2, do art. 186º, do CIRE, tipifica-se taxativamente um conjunto de situações que, quando se verifiquem, integram uma presunção iuris et de iure de que a insolvência é culposa.
Uma vez demonstrado o facto nelas enunciado, fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento. Destarte, a simples ocorrência de alguma das situações elencadas nas diversas alíneas do nº 2 do sobredito art. 186º, desde que ocorrida nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, conduz inexoravelmente à qualificação de insolvência como culposa.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

Em 26.4.2023, a MASSA INSOLVENTE DE EMP01..., S.A., veio requerer a declaração de insolvência de AA tendo a insolvência sido decretada por sentença proferida em 3.10.2023.

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Na assembleia de credores, que teve lugar em 15.12.2023, o Sr. administrador da insolvência (AI) requereu a abertura do incidente de qualificação da insolvência, abertura que veio a ser determinada por despacho proferido nessa assembleia.
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Em 15.1.2024, o AI apresentou parecer (requerimento ref. Citius 15593168, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido) no sentido de a insolvência ser considerada culposa, com base no disposto no art. 186º, nº 2, al. a) do CIRE, porquanto o insolvente, em fevereiro de 2021, doou aos filhos um imóvel de que era proprietário, reservando para si o usufruto do mesmo, e vendeu um veículo automóvel. Por outro lado, presume-se a existência de culpa grave, nos termos do art. 186º, nº 3, al. a), do CIRE, na medida em que incumpriu o dever de se apresentar à insolvência.
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O Ministério Público, com base nas circunstâncias de facto e de direito invocadas pelo AI, emitiu parecer no sentido de a insolvência ser considerada culposa (parecer de 30.1.2024, ref. Citius 188714695, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
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O insolvente deduziu oposição, considerando que o pedido formulado deve ser julgado totalmente improcedente, declarando-se a sua insolvência como fortuita por não se encontrarem verificadas as previsões normativas do art 186º, nº 2, al. a) e nº 3, al. a), do CIRE.
Em síntese, defende que, no que se refere à doação da raiz do prédio aos filhos do casal, reservando o usufruto para si e para a sua esposa, não existiu qualquer intenção de favorecimento ou prejuízo de credores, uma vez que a doação não agravou a sua insolvência. Com efeito, existindo hipoteca registada sobre o prédio, não ocorreu uma disposição de bens em proveito pessoal, sendo que o fim a que se destinou tal doação se mostra devidamente justificado face à eventual dissolução do casamento do insolvente por divórcio.
Relativamente à venda do veículo automóvel, a sua venda encontra-se perfeitamente justificada face ao financiamento que existia sobre o mesmo e que o devedor deixou de poder cumprir pelo que, após a alienação, libertou-se integralmente do empréstimo bancário.
Não existiu qualquer intenção de favorecimento ou prejuízo de credores, uma vez que a venda do automóvel, e consequente libertação do crédito associado, não provocou, nem agravou a sua insolvência.
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O AI apresentou resposta nos termos do requerimento de 27.3.2024 (ref. Citius 15955439, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido), mantendo que a insolvência deve ser qualificada culposa uma vez que o usufruto do imóvel tem um valor inferior ao da propriedade plena e a venda do veículo foi fictícia.
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Foi proferido despacho saneador tabelar, foi fixado à causa o valor de € 30 000,01, identificou-se o objeto do processo e procedeu-se à enunciação dos temas de prova.
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Realizou-se a audiência final e, após, foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:

“Pelo exposto, o Tribunal decide qualificar a insolvência de AA como culposa e, em consequência:

1. Declara-se afetada pela qualificação da insolvência o próprio devedor, AA.
2. Declara-se a inibição de AA para administrar patrimónios de terceiros por um período de 2 (dois) anos.
3. Declara-se a inibição de AA para o exercício do comércio, ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por um período de 2 (dois) anos.
4. Determina-se a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA.”
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O insolvente não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1 – Ficou decidido em 1ª Instância a qualificação da insolvência como culposa, tendo-se considerado preenchido o disposto na al. d), do nº2, do art. 186º do CIRE, por se entender, em suma, que: “(…) ao dispor da titularidade plena do imóvel em benefício de terceiros (os seus filhos) e reter apenas o usufruto vitalício, o insolvente realizou um ato que reduz substancialmente o seu ativo patrimonial, agravando a sua situação de insolvência e colocando em causa a possibilidade de liquidar as dívidas para com os seus credores. (…)”.
2 - A doação do imóvel pelo devedor e sua esposa aos filhos do casal, em 18/12/2020, não se trata de uma disposição de bens em “proveito” dos mesmos nem de terceiros.
3 - Com efeito, não se pode considerar que os insolventes doaram tal imóvel em proveito pessoal ou de terceiros, pois que manifestamente a doação do imóvel, em nada afectou o cumprimento das obrigações que tinham para com os seus credores, atenta a existência de hipotecas sobre o mesmo e respectivo valor (valor total assegurado € 330 083,70 – vide ponto 6 dos Factos Provados), não tendo, pois, a doação, provocado, nem agravado a insolvência do devedor.
4 – Sendo, in casu, igualmente manifesto que a doação do imóvel pelo insolvente, não acarretou qualquer proveito pessoal ou para terceiro, em desfavor dos seus credores, potenciais ou efetivos, nos termos definidos e queridos pela lei, não tendo o insolvente, nem os beneficiários da doação, tirado qualquer proveito líquido e não justificado daquele ato de doação, pelo que não ocorreu qualquer disposição de bens em proveito pessoal ou de terceiros.
5 – Com efeito, decorre do artigo 47.º, n.º 1, do CIRE, que os créditos sobre a insolvência, podem ser garantidos, privilegiados, subordinados ou comuns, consistindo os garantidos ou privilegiados, cf. al. a), do n.º 4, deste preceito, aqueles que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes.
6 - É ponto assente que o imóvel objecto de doação se encontrava onerado por várias hipotecas (ponto 6 dos Factos Provados), sendo que termos do artigo 686.º, n.º 1, do Código Civil “A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”.
7 - Destarte, sempre o credor hipotecário seria pago, pelo produto da venda do imóvel doado, previamente a todos os demais credores da insolvência, não se podendo aqui falar em qualquer prejuízo efetivamente existente, uma vez que o imóvel se encontra à venda em processo executivo, e nada resultou provado que o produto da sua venda nessa sede seja sequer suficiente para efectuar o pagamento do credor hipotecário, quanto mais que desse produto pudesse resultar qualquer quantia para pagar outros credores do devedor.
8 – Ora, da análise da alínea d), do nº2, do art.186º do CIRE), sempre se dirá que o que aí se prevê são atos de disposição (in casu, doação) de bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.
9 - Por outro lado, resulta do n.º 1 do artigo 186.º do CIRE que o núcleo genético dessa qualificação se centra na relação entre a situação de insolvência e a actuação que se pretende evitar, reclamando que esta actuação seja não apenas dolosa ou com culpa grave como também que seja causa da criação da situação de insolvência ou do seu agravamento.
10 – Deste modo, clarificando a situação em apreço não resultou claro qualquer prejuízo para os credores da insolvência, atenta a existência do crédito garantido e do valor desse crédito, pelo que não basta para efeitos de qualificação a tipificação da conduta, só operando em caso de verificação da presunção de culpa e de nexo entre a atuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
11 - Assim, quando a lei refere “disposto dos bens do devedor”, no contexto do nº. 1, tal tem de significar a retirada dos bens ou do seu equivalente da esfera do devedor (sem contrapartida, ou sem a contrapartida “justa”) e por isso tem inerente o conceito de prejuízo, não prescindindo a norma da verificação de prejuízo (ainda que indireto) para o património do devedor, sendo, portanto, o pressuposto da prova do prejuízo algo prévio à presunção do nexo.
12 – No presente caso, não se encontra provado (nem sequer alegado) qual prejuízo efectivamente existente do acto de “doação” efectuado pelo devedor, uma vez que atento o valor do crédito hipotecário, o valor obtido com a sua venda sempre seria para pagamento daquele credor, graduado pelo produto da venda do referido imóvel em primeiro lugar face a todos os demais credores da insolvência.
13 - Por tudo o exposto, consideramos que não se mostra preenchida a alínea d) do nº. 2, do artº. 186º do CIRE.
14 – Pelo que, ao decidir como decidiu, fez a Mmª Juiz “a quo” errada interpretação e aplicação do disposto no art. 186º, nºs 1 e 2, a. d) do CIRE.”

Terminou pedindo que a sentença seja revogada e substituída por outra que qualifique a insolvência como fortuita.
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O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, a questão relevante a decidir consiste em saber se a insolvência não deve ser qualificada como culposa, por não se encontrar preenchida a hipótese normativa do art. 186º, nº 2, al. d), do CIRE, devendo ser considerada fortuita.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:

1. Por sentença proferida no dia 03/10/2023, no âmbito dos autos principais, foi o devedor AA declarado insolvente.
2. O referido processo de insolvência foi requerido pelo credor Massa Insolvente de EMP01..., S.A. contra o aqui insolvente, a quem foi reconhecido um crédito no valor global de 35.550,00€.
3. Foram reconhecidos um total de 13 credores, com um montante global de créditos de 911.574,04€.
4. Foi nomeado o Sr. BB para exercer as funções de administrador da Insolvência.
5. Encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial ..., a favor de AA, casado com CC, através do Ap. ... de 2004/01/23, a aquisição, por doação, do prédio urbano situado em ..., com a área total de 3550 m2, composto por cave e résdo- chão; Norte, DD; Sul, caminho; Nascente, EE; Poente, ribeiro, descrito naquela conservatória sob o n.º ...09 e inscrito na matriz sob o artigo ...77.
6. Relativamente ao prédio urbano referido em 5., encontra-se ainda registado na Conservatória do Registo Predial ...:
− Pela Ap. ... de 2007/06/02, hipoteca a favor do Banco 1..., S.A., no valor de 135.000,00€, sendo o montante máximo de 181.669,50€;
− Pela Ap. ... de 2005/04/23, hipoteca a favor do Banco 1..., no valor de 20.000,00€, sendo o montante máximo de 25.935,60€;
− Pela Ap. ... de 2006/07/11, hipoteca a favor do Banco 1..., no valor de 20.000,00€, sendo o montante máximo de 26.373,60€;
− Pela Ap. ...2 de 2008/02/11, hipoteca a favor do Banco 1..., no valor de 25.000,00€, sendo o montante máximo de 33.185,00€;
− Pela Ap. ...66 de 2010/11/17, hipoteca a favor do Banco 1..., no valor de 44.000,00€, sendo o montante máximo de 62.920,00€.
7. Por documento escrito datado de 18/12/2020 denominado «doação», AA e CC declararam doar a FF e GG, seus filhos, o prédio urbano referido em 5[1], reservando para si o usufruto vitalício.
8. Em 29/04/2016, foi celebrado entre o Insolvente e o Banco 2..., S.A., um contrato de financiamento com reserva de propriedade sobre o veículo automóvel, de marca ..., com matrícula ..-IQ-...
9. Por documento particular designado «contrato de compra e venda» datado de 03/05/2021, o Insolvente declarou vender a HH o veículo mencionado em 8. pela quantia de 27.500,00€.
10. A venda deste veículo por parte do Insolvente, foi realizado, uma vez que tal veículo tinha problemas de mecânica, não se encontrando a uso, pelo que o insolvente optou pela venda do veículo, deixando de assumir o pagamento mensal do financiamento ao Banco 2..., S.A.
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Na 1ª instância foram considerados não provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:

A. A «doação» mencionada em 7 foi efetuada em consequência da decisão do insolvente e de sua esposa de se divorciarem, decisão essa que acabou por não se concretizar devido à reconciliação do casal.
B. O veículo referido em 8 valia, à data da venda mencionada em 9., pelo menos 60.000,00€.
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FUNDAMENTOS DE DIREITO

Como supra referido, a questão relevante a decidir consiste em saber se a insolvência deve ser considerada como fortuita, e não como culposa, por não se verificarem os requisitos constantes do art. 186º, nº 2, al. d), do CIRE, posição que é defendida pelo recorrente.

Como decorre do art. 185º do CIRE (diploma ao qual pertencem as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente proveniência), a insolvência pode ser qualificada como culposa ou fortuita.
O incidente de qualificação constitui uma fase do processo de insolvência que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência e, consequentemente, se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor (Acórdão da Relação do Porto, de 23.4.2018, in www.dgsi.pt).

O art. 186º apenas define os casos de insolvência culposa pelo que a noção de insolvência fortuita se encontra por exclusão de partes, sendo fortuita a insolvência que não se possa qualificar como culposa à luz dos critérios definidos no art. 186º.

Dispõe o art. 186º o seguinte:

1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º
3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
4 - O disposto nos n.os 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
5 - Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente.

No nº 1 do art. 186º consta a definição de insolvência culposa a qual tem como requisitos:
1) o facto inerente à atuação, por ação ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
2) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave);
3) e o nexo causal entre aquela atuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.

Esta definição geral aplica-se a qualquer insolvente, seja ele pessoa coletiva ou singular.
Nas alíneas a) a i) do nº 2 do art. 186º, tipifica-se taxativamente um conjunto de situações que, quando se verifiquem, integram uma presunção iuris et de iure de que a insolvência é culposa.
Bem se compreende que assim seja pois aí se elenca uma série de comportamentos que afetam negativamente, e de forma muito significativa, o património do devedor, e eles próprios apontam, de modo inequívoco, para a intenção de obstaculizar ou dificultar gravemente o ressarcimento dos credores, justificando-se, por isso, que se estabeleça uma presunção inilidível de que a insolvência é culposa quando tais comportamentos se verifiquem.
No caso das várias alíneas do nº 2 do art. 186º, uma vez demonstrado o facto nelas enunciado, fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento. Destarte, a simples ocorrência de alguma das situações elencadas nas diversas alíneas do nº 2 do sobredito art. 186º conduz inexoravelmente à atribuição de carácter culposo à insolvência, ou seja, à qualificação de insolvência como culposa (Acórdãos da Relação de Guimarães, de 29.6.2010 e 1.6.2017 in www.dgsi.pt).
Em suma, e como se escreve no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 1.6.2017, (in www.dgsi.pt)Esta previsão legislativa emerge da circunstância de a indagação do carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor, ou dos seus administradores, e da relação de causalidade entre essa conduta e o facto da insolvência ou do seu agravamento, de que depende a qualificação da insolvência como culposa, se revelar muitas vezes extraordinariamente difícil.
Assim, e em ordem a possibilitar essa qualificação, o legislador consagrou um conjunto tipificado (e taxativo) de factos graves e de situações que exigem uma ponderação casuística, temporalmente balizadas pelo período correspondente aos três anos anteriores à entrada em juízo do processo de insolvência.
Neste âmbito temporal, e perante a prova dos aludidos factos índice, previstos no nº 2 do citado art. 186º, a lei não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência da causalidade entre a actuação e a criação ou o agravamento do estado de insolvência, para os fins previstos no nº 1 do art. 186º do CIRE” (sublinhado nosso).
Neste mesmo sentido entendeu o Acórdão do STJ de 15.2.2018 (in www.dgsi.pt) que “o nº 2 do art. 186º do CIRE estabelece presunções iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade do comportamento do insolvente, para a criação ou agravamento da situação de insolvência” (com bold apócrifo).

Porém, para que as presunções constantes do art. 186º, nº 2, operem torna-se necessário que os factos aí elencados tenham sido praticados no período referido no nº 1, ou seja, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Neste mesmo sentido referem Carvalho Fernandes e João Labareda (in CIRE Anotado, 3ª edição, pág.681) que “apesar de o nº 2 não estabelecer, em nenhuma das suas alíneas, um limite temporal para a relevância dos factos nele previstos, a sua articulação com o nº 1 leva-nos a sustentar que é de atender, para o efeito, ao prazo neste estatuído”, posição que é igualmente sustentada por Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões (in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2013, pág. 513) onde, em anotação ao art. 186º, afirmam que “[t]odas as presunções contidas neste artigo se referem a comportamentos havidos nos três anos anteriores ao processo de insolvência”.
Idêntica posição é assumida por Maria do Rosário Epifânio (in Manual de Direito da Insolvência, 7ª ed., pág. 156) a qual defende, a propósito do art. 186º, que “à semelhança do nº 2, é necessário o preenchimento do limite temporal dos 3 anos, ou seja, apenas os atos praticados nos 3 anos anteriores ao início do processo serão relevantes para efeitos do preenchimento do nº 3”.
No mesmo alinhamento de ideias, refere Manuel A. Carneiro da Frada (in A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência, https://portal.oa.pt) que “[e]xiste em todo o caso um limite temporal a considerar: só é relevante a causação ou o agravamento da insolvência por condutas ocorridas dentro dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Não está em jogo um prazo de prescrição ou de caducidade de determinado direito. Há é uma modelação temporal da situação de responsabilidade relevante. Ela não carece de ser invocada, sendo, como todo o direito objectivo, de conhecimento oficioso.”

Portanto, desde que um dos factos previsto no nº 2 do art. 186º tenha sido praticado nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, a insolvência é sempre considerada culposa, por via da presunção inilidível aí estabelecida.
A única forma de afastar tal qualificação passa pela prova de que o facto não foi cometido ou, tendo-o sido, que foi praticado para além do período de três anos anterior ao início do processo de insolvência.

Diversamente, no nº 3 do art. 186º estabelecem-se meras situações de presunção iuris tantum de culpa grave do administrador ou gerente que incumpriu algum dos deveres mencionados nas alíneas a) e b), ou seja, o dever de requerer a declaração de insolvência e a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
Tratando-se de presunções iuris tantum, as mesmas são ilidíveis por prova em contrário, nos termos do art. 350.º, n.º 2, do CC.
Significa isto que, uma vez constatada a omissão de algum dos deveres enunciados nas ditas alíneas, a lei faz presumir a culpa grave do administrador ou gerente.
Mas porque a culpa grave, assim presumida, por si só não é suficiente para qualificar a insolvência como culposa, por faltar um dos requisitos previstos no nº 1 do citado art. 186º, necessário se torna demonstrar o nexo de causalidade entre aquela omissão culposa e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
E bem se compreende, nestas situações, a necessidade de verificação deste requisito, ou seja, que foram essas omissões que provocaram a insolvência ou a agravaram.
É que o administrador ou gerente pode ter atuado com culpa grave mas em nada ter contribuído para a criação ou o agravamento da situação de insolvência” (Acórdão da Relação de Guimarães, de 29.6.2010, in www.dgsi.pt).
Para além de se tratar de uma presunção de culpa grave ilidível mediante prova em contrário, o n.º 3 do art. 186º não presume a existência do nexo causal, pelo que à qualificação da insolvência do devedor como culposa, nas situações que se subsumam a uma das alíneas a) e b) do enunciado n.º 3, é necessário que se prove a verificação dos restantes requisitos legais acima enunciados de cuja verificação está dependente a qualificação da insolvência culposa, isto é, a verificação do nexo causal entre a atuação com culpa grave (presumida) e a criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor(Acórdão da Relação de Guimarães, de 9.7.2020, in www.dgsi.pt, com sublinhado nosso).

Feito o enquadramento jurídico relativo à qualificação da insolvência como culposa, revertamos agora ao caso concreto.

Relembramos que a sentença recorrida considerou preenchido o facto índice do art. 186º, nº 2, al. d), o qual se verifica quando tenha ocorrido disposição dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

O processo de insolvência iniciou-se em 26.4.2023, pelo que o período que releva para a prática de atos enquadráveis na al. d) do nº 2 do art. 186º inicia-se em 26.4.2020.
Provou-se que o insolvente era proprietário do imóvel descrito em 5 desde ../../2004.
Em 18.12.2020, ou seja, dentro do período de três anos anteriores ao início do processo de insolvência, o insolvente e a esposa doaram esse imóvel aos seus filhos, reservando para si o usufruto vitalício (facto nº 7).
Esta doação integra um ato de disposição de bens do devedor feito em proveito de terceiros, no caso os filhos do insolvente, pois a nua propriedade deixou de integrar o património do insolvente e passou a integrar o dos filhos sem que tenha havido, por parte destes, qualquer contrapartida porquanto a doação é um negócio gratuito (art. 940º, nº 1, do CC). Após a doação, o património do insolvente passou apenas a conter o direito de usufruto, ao passo que anteriormente era integrado pela propriedade plena, a qual tem sempre um valor superior ao do direito de usufruto. Tanto é quanto basta para se considerar preenchida a hipótese normativa do art. 186º, nº 2, al. d), a qual, como já supra explanámos, desde que se verifique o facto objetivo aí descrito, praticado no período temporal de três anos anteriores ao início do processo de insolvência, integra uma presunção inilidível de insolvência culposa, não sendo necessária a demonstração de quaisquer requisitos adicionais, designadamente do juízo normativo de culpa e da demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento.

Assim, é juridicamente irrelevante saber se a doação afetou o cumprimento das obrigações que o insolvente tinha para os seus credores atenta a existência de hipotecas sobre o imóvel, porquanto esta matéria não constitui requisito do facto-índice da al. d) do nº 2 do art. 186º, cujo preenchimento se basta com a existência de um ato de disposição em proveito pessoal do devedor ou de terceiros, ato este que ocorreu, como já analisámos.
E mal se compreende a afirmação do recorrente de que os beneficiários da doação não tiraram qualquer proveito líquido do ato de doação: evidentemente que tiraram porquanto ingressou no seu património o direito de propriedade de um imóvel de forma gratuita, ou seja, sem que tenham prestado qualquer contrapartida por essa aquisição.
O preenchimento da al. d) do nº 2 do art. 186º não exige a existência de qualquer prejuízo para os credores pelo que é despicienda a afirmação de que, dada a existência de penhoras sobre o imóvel, o credor hipotecário sempre será pago em primeiro lugar. Embora tal seja verdade, em nada influencia o preenchimento do facto-índice em análise porquanto não constitui um requisito legal da sua verificação.
Por outro lado, a possibilidade de o AI usar de mecanismos legais com vista à invalidação da doação, nomeadamente a resolução em benefício da massa, também não influencia o preenchimento do facto-índice pois, ainda que o a doação possa ser resolvida isso não apaga a sua realização e a existência de um objetivo ato de disposição que a lei elege como facto-índice de qualificação da insolvência como culposa.
Ao contrário do defendido pelo recorrente, não se pode considerar que, na dúvida sobre o preenchimento normativo de algum dos elementos do nºs 2 do art. 186º, o intérprete possa recorrer aos contributos dos requisitos do nº 1 para tomar a sua decisão. Já explicámos que não é assim e repetimos: desde que um dos factos previsto no nº 2 do art. 186º tenha sido praticado nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, a insolvência é sempre considerada culposa, por via da presunção inilidível aí estabelecida.
A única forma de afastar tal qualificação passa pela prova de que o facto não foi cometido ou, tendo-o sido, que foi praticado para além do período de três anos anterior ao início do processo de insolvência.
Por conseguinte, não há que introduzir um requisito adicional de existência de prejuízo, como pretende o recorrente, porquanto a lei não o exige para que opere a presunção iuris et de iure do nº 2 do art. 186º.

Por tudo o que se expôs, a sentença recorrida não fez errada interpretação e aplicação do disposto no art. 186º, nº 2, al. d), antes efetuou uma subsunção jurídica absolutamente pertinente, correta e assertiva, e, por isso, merecedora da nossa inteira concordância e adesão, pelo que tem que ser confirmada.
Consequentemente, improcede o recurso.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado improcedente, é o recorrente responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação pelo recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 6 de fevereiro de 2025

(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) Alexandra Maria Viana Parente Lopes
(2º/ª Adjunto/a) Fernando Manuel Barroso Cabanelas


[1] Por manifesto lapso de escrita, que já se corrigiu no texto, constava 15.