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LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário
I - O instituto da litigância de má-fé visa sancionar e combater a «má conduta processual» das partes aquando do exercício do direito de acção e/ou de defesa, designadamente, toda e qualquer conduta processual que represente uma violação do dever geral de boa fé e/ou do dever de cooperação, sendo que, em simultâneo, se assegura a boa administração da justiça, o respeito pelo Tribunal, e a credibilidade da atividade jurisdicional. II – No art. 542º do C.P.Civil de 2013 tipificam-se os elementos objectivos e os elementos subjectivos que integram a litigância de má-fé: os objectivos são constituídos pelas condutas elencadas das diversas alíneas do nº2, as quais representam um conjunto de actuações processuais que são contrárias, reprováveis e censuráveis em face dos deveres processuais de boa fé e de cooperação que impendem sobre todos os sujeitos processuais (no fundo, representam o fundamento geral da condenação por litigância de má-fé que emerge da violação de deveres processuais); e os subjectivos são o dolo ou a negligência grave. III - Para a responsabilização de uma parte como litigante da má-fé não basta a verificação de um comportamento processual que preencha a tipicidade prevista numa das alíneas do nº2 do art. 542º (elementos objectivos), mais se exigindo que esteja comprovado que a parte agiu com dolo ou com negligência grave (elementos subjectivos), sendo certo que a respectiva condenação tem que estar baseada em factos que demonstrem quer o tipo objectivo quer o tipo subjectivo. IV - No que se refere especificamente à conduta prevista na alínea d) do nº2 do art. 542º, o legislador pretendeu penalizar a instrumentalização do direito processual em diversas vertentes: quer configure uma forma de alcançar um objectivo que é ilegítimo em face do direito substantivo ou do próprio direito processual; quer constitua um meio de impossibilitar a descoberta da verdade; quer represente uma forma de emperrar a máquina judiciária, através da criação de obstáculos ou da promoção de expedientes meramente dilatórios; quer se apresente como um meio de pretender retardar o trânsito em julgado da decisão, prejudicando, deste modo, a contraparte na tutela ou na realização do direito substantivo que através da decisão lhe é reconhecido. Assinale-se que, para haver lugar à condenação de litigância de má-fé, esta conduta de instrumentalização tem que se apresentar como manifestamente reprovável, ou seja, como clara, evidente e notoriamente censurável e ofensiva da boa fé e da cooperação.
ACORDAMOS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES,
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1. RELATÓRIO
1.1. Da Decisão Impugnada
AA e mulher BB intentaram contra CC e mulher DD, e contra EE e marido FF, acção declarativa de condenação, com processo comum, pedindo que: «A) Serem os RR. condenados a reconhecer o direito de propriedade dos prédios dos AA. nos termos dos art°s 1 ° a 7° desta PI que se reiteram e se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos por mera economia processual, abstendo-se de por qualquer forma os prejudicar no seu uso e seu acesso de pé e de carro ou tractor; B) Serem os RR. condenados a reconhecer o direito de comproprietários dos AA. sobre todo o caminho agrícola ou de consortes, comum e existente há mais de 20/30 anos na forma descrita até às entradas dos AA. onde termina nos art°s 8°, 9°, 10°, 11° e 14° a 23° da P.I., devendo os RR. abster-se de, por qualquer forma o limitar ou impedir o seu uso, deixando sempre livre e desimpedido de veículos ou quaisquer outras formas, para a sua passagem por pessoas e bens a pé e de carro por parte dos M. e seus familiares; C) Devem ainda os RR. ser condenados no pagamento de uma indemnização por danos morais e patrimoniais de €15.500,00 nos termos demonstrados e descritos nos anos 31°, 32°, 33° e 36° até 41° do petitório supra, e os descritos nos art°s 34° e 35° a fixar em liquidação de sentença - aos AA., como causadores culposas necessária e directamente dos mesmos, que se liquidarão em execução de sentença».
Alegaram, essencialmente, que: «são donos e legítimos proprietários de dois prédios rústicos sitos no lugar de ..., na freguesia ..., concelho ..., descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...81 e ...17 e inscritos na matriz predial rústica sob o artº ...81º e art° 3640° daquela freguesia; são confinantes e constituem um só prédio de facto; encontram-se registados, configurando os respectivos registos uma presunção legal de propriedade; os AA. há mais de 30 anos, por si e antepossuidores estão na posse destes prédios rústicos, pacificamente, de boa-fé, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém; adquiriram os prédios por usucapião; o acesso aos prédios dos AA., há mais de 30 anos ininterruptamente de boa-fé, pública e pacificamente, faz-se através da estrada municipal que liga à Autoestrada A...4, no nó da lixeira de ..., em direcção a ... saindo ao Km. Nº 1 na direcção sul, para um caminho agrícola/florestal em terra batida também designado pelos proprietários mais a sul (como os AA e RR) de caminho de consortes; os AA como os seus vizinhos não têm outra forma de entrar nas suas propriedades, pois não existe e nunca existiu outro caminho há mais de 20/30 anos; os AA. adquiriram, por usucapião, o direito de passagem, de utilizar, passar neste caminho como consortes, com proprietários, fazendo-o a pé e de carro, tractor ou outro meio móvel ininterruptamente há mais de trinta anos; os RR. dedicam-se a destruir o caminho de consortes, esburacando-o, não só na parte a jusante, em toda a extensão que vai da parte por todos utilizada, onde termina o prédio dos RR., até às entradas do prédio dos AA., e a destruir a parte do leito do prédio dos AA. que estes reconstruiram mais a norte, no patamar em parte cimentado; os prejuízos que os RR. causaram com a pura destruição daquela lage/patamar propriedade dos AA. é de pelo menos € 5.000,00 de trabalho e material e de pelo menos mais € 3.000,00 de prejuízos com perda dos seus rendimentos e lucros cessantes por não permitirem desde então, a passagem dos AA. para o seu prédio para o cultivarem e dele retirarem todas as suas utilidades; destruíram oliveiras e demais árvores de fruto cujo valor supera os € 2.000,00; os AA. tiverem prejuízos com o pagamento das despesas com os processos judiciais com aquela queixa-crime inventada pelos RR., com os correspondentes dias de trabalho perdidos, e das suas testemunhas, para se deslocarem a este douto Tribunal, de pelo menos € 1.500,00 e ainda os gastos efectuados pelos AA. na presente acção com despesas, custas, deslocações e honorários à sua mandatária judicial em pelo menos € 3.000,00; os AA. tiveram danos morais pelo desassossego, tristeza de não poderem usufruir a sua propriedade e pela quebra da sua paz e tranquilidade de se verem ameaçados pelos RR., nunca inferiores a € 1.000,00».
Os Réus contestaram, pedindo que «I - se proceda à correcção do valor atribuído pelos AA. à presente acção e fixar-se como seu valor o montante de 5.500€; II – se considere procedente a excepção (ilegitimidade passiva) invocada e absolver-se os primeiros RR. da instância», que «a final, seja a presente acção julgada totalmente improcedente, por não provada, absolvendo-se os RR. de todos pedidos aí formulados» e que «atenta a postura dos AA., devem ainda ser condenados os mesmos a pagar aos RR. uma indemnização, cujo montante se deixa ao critério de V.Exª, tudo de acordo com os artºs 542 ss. do C.P.C., mormente o artº 543 nº 1 do mesmo diploma legal, bem como pelos danos causados».
Alegaram, essencialmente, que: «tendo em conta a área do prédio rústico, mesmo atribuindo o valor de um euro por metro quadrado, teremos sempre como valor dos prédios a quantia de 5500€, valor este que deve ser atribuído à presente acção; os primeiros RR. (CC e mulher DD) não têm qualquer “interesse directo em contradizer“ porque não
têm nenhum prédio que confronte ou confina com os prédios que os AA. identificam no seu articulado, pelo que a presente acção enferma de ilegitimidade passiva quanto aos primeiros RR.; os RR. desconhecem se os prédios de que os AA. se arrogam donos, são confinantes entre si; desconhecem os RR. se os AA. por si, e antepossuidores, estão na posse do prédio rústico com o artigo matricial nº ...40, há mais de trinta anos, desconhecendo também os RR. a composição de tais prédios, a respectiva produção e se os AA. utilizam os eventuais produtos produzidos naquele na sua alimentação e muito menos se os vendem e a quem, e desde quando o fazem e em que moldes; os segundos RR. (FF e EE) são possuidores de um prédio rústico sito no lugar ..., servido por um caminho que se encontra aberto há uns trinta anos, mas apenas até ao local onde se encontra um palheiro, sendo que as dimensões actuais em termos de largura e extensão são muito recentes; inexiste qualquer caminho de consortes com utilização e/ou direito de passagem por parte dos AA. que incida sobre trato de terreno pertencente ao prédio dos segundos RR. e/ou qualquer caminho do qual os AA. sejam comproprietários, qualidade que nunca tiveram nem têm e muito menos se lhes reconhece; os RR. nada destruíram aos AA. ou que fosse dos AA.; os pedidos de indemnização formulados pelos AA. não têm qualquer fundamento quer de facto quer de direito, e quanto aos valores em causa, além de não estarem devidamente fundamentados, revelam-se completamente inauditos, desajustados e exagerados».
Os Autores apresentaram articulado de resposta, terminando pedindo que sejam indeferidas «as impetrações de má-fé processual, de ilegitimidade passiva dos primeiros réus por não provadas, e indeferida também quanto ao valor da causa proposto pelos RR. devendo antes de ser corrigido e alterado para € 30.500,00».
Na data de 09/02/2022 foi realizada audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador, no qual, para além do mais, se fixou à causa o valor de € 30.500,00, se considerou que todos os Réus são parte legítima, se identificou o objecto do litígio [consiste em determinar se poderá ser reconhecido o direito de compropriedade dos autores sobre o caminho de consortes e se os réus poderão ser condenados a pagar as quantias invocadas a título de danos patrimoniais e não-patrimoniais. São as seguintes as questões que ao Tribunal cumpre apreciar e decidir: a) Sobre o direito de propriedade dos prédios referidos nos pontos 1) e 2) da p.i; b) Sobre o direito de compropriedade do caminho de consortes; c) Sobre a responsabilidade por danos patrimoniais e não-patrimoniais; d) Sobre a litigância de má-fé dos autores»], e se enunciaram os temas da prova [«Sem prejuízo dos factos instrumentais e complementares que se vierem a apurar, desde já se fixam os seguintes temas de prova: 1. Prédios indicados nos pontos 1) e 2) da p.i; a. Confinância;
b. Unidade de cultura; c. Actos de posse por parte dos autores; 2. Acesso ao prédio; caminho de consortes; a. Configuração; b. Inexistência de outros caminhos; c. Actos de posse; d. Danificação do caminho pelos réus; 3. Obras na propriedade dos autores; a. Danificação pelos réus; b. Prejuízos; 4. Litigância de má-fé dos autores»].
Através de requerimento datado de 23/03/2023 (com a referência citius «3236409»), os Réus vieram “para os fins tidos por convenientes e informação processual” dizer que “os segundos RR deixaram de ter a titularidade / propriedade do prédio que lhes pertencia, desde o dia ../../2023, por o terem doado a GG, tudo como melhor consta da cópia de escritura notarial que se junta, cujo teor se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais”. Juntaram um documento («escritura pública de doação»).
Foi proferido despacho em 17/04/2023 com o seguinte teor: “Em face da informação da transmissão da coisa em litígio, por via de doação, notifique as partes para dizerem o que tiverem por conveniente sobre o exposto nomeadamente em face do exposto no art 263º do Cód de Proc Civil, concedendo-se 10 dias para o efeito”.
Através de requerimento datado de 02/05/2023 (com a referência citius «3272183»), os Autores vieram expor e requerer: “Os atuais proprietários do prédio rústico agora transacionado e, após a escritura de doação, de imediato retiraram dali as correntes e cadeado e assumiram pública e formalmente a posse publica e pacífica de tal caminho pelos AA. e demais proprietários que há mais de trinta anos ali passam pública, reiterada e pacificamente. Assim, os AA., além de manterem todo o seu peticionado e integralmente os seus pedidos, vêm nos termos dos nº 1 e 2 do artº 263º do CPC requerer a este douto Tribunal o prosseguimento dos autos, mantendo-se os RR. como partes legítimas passivas no processo, até porque o objeto do litígio é agora, essencialmente a condenação dos RR. pela prática de atos pessoais, dolosos, praticados com intenção de prejudicar os AA. como de facto comprovadamente prejudicaram, mau grado os donatários já deixarem passar ali os seus verdadeiros donos: os AA. e demais consortes para poderem aceder aos seus prédios para os poder cultivar, como sustento dos AA. e alguns dos demais consortes. Devem pois os autos prosseguir com as partes em litígio até à douta Sentença que condene os RR. pela prática do ato de impedir a sua passagem durante todos estes anos, e ainda pela destruição de propriedade dos AA., pagando os consequentes prejuízos”. Tudo conforme os pedidos da P.I. que aqui se reiteram com a mesma atualidade, necessidade e urgência, e na mesma medida. O adquirente/donatário do prédio dos RR. já procedeu ao registo da aquisição e já assumiu publicamente não pretender efectuar habilitação nestes autos, com os quais nada tem a ver, nem deve ser parte”.
Através de requerimento datado de 02/05/2023 (com a referência citius «3272786»), os Réus vieram dizer: “A ser verdade o que os AA. dizem acerca da postura do donatário melhor fora que este viesse aos autos dizer de viva-voz aquilo que os AA. descrevem em seu requerimento / resposta ou que fosse por aqueles junto a estes autos um acordo celebrado entre donatário e AA. do qual conste essa mesma postura, pois o alegado reconduz-se, praticamente, a uma inutilidade superveniente da lide. Desconhecem os RR. o que os AA. alegam acerca do que o donatário terá assumido e da sua postura pós doação, sendo certo que os comportamentos por si assumidos no tocante ao prédio rústico e ao caminho só a ele donatário vinculam não se revendo os RR. naqueles, muito menos na interpretação e ilações que os AA. parece quererem retirar de tais comportamentos do donatário. O mais alegado pelos AA., mormente quando se arrogam donos do caminho, e tudo quanto ali se diz no tocante aos RR. é falso, pelo que vai o mesmo impugnado para todos os efeitos legais”.
Na data de 10/05/2023, foram proferidos os seguintes despachos: “Sobre a transmissão da coisa em litígio: refº ...09 (23/03/2023), ...83 (02/05/2023), ...86 (02/05/2023) Os réus vieram informar os presentes autos da doação do prédio em litígio em 16/03/2023 a GG, i.e: na pendência da causa. Tendo as partes sido notificadas nos termos e para os efeitos do art 263º do Cód de Proc Civil, os autores vieram expressamente declarar que pretendem continuar com a acção com as partes primitivas; os réus vieram peticionar que o Tribunal declarasse a inutilidade superveniente da lide, por já não serem proprietários do prédio. Isto posto: Nos termos do art 263º, n.º 1 a n.º 3 do Cód de Proc Civil, em caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo; a substituição é admitida quando a parte contrária esteja de acordo e, na falta de acordo, só deve recusar-se a substituição quando se entenda que a transmissão foi efetuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária; a sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que este não intervenha no processo, exceto no caso de a ação estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da ação. In casu, na medida em que nem os autores, nem os réus, pretendem proceder com a habilitação do adquirente, resulta com cristalina clareza do preceito em epígrafe que os primitivos réus continuam com legitimidade para a causa e que a sentença irá produzir efeitos em relação ao adquirente, independentemente da sua intervenção nos autos. Termo em que a acção deve continuar com os réus primitivos e se indefere o pedido de extinção dos mesmos por inutilidade superveniente da lide, por falta de fundamento legal (arts 263º e 277º, al.e) do Cód de Proc Civil). Custas do incidente: 2UC (art 7º, n.º 4 do Reg das Custas Proc).
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Sobre a litigância de má-fé dos réus: art 542º, n.º 2, al.d) do Cód de Proc Civil; Compulsados os autos, apurou-se que os réus alegaram no ponto 10º da sua contestação estarem na disposição de alienar o seu prédio, inscrito na matriz predial da freguesia ..., conselho de ... sob o artigo ...60 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...73 pelo valor de €15.000,00, para pôr termo ao litígio. Contudo, analisando a escritura pública de doação junta aos autos, com a qual os réus pretendem que seja declarada a inutilidade superveniente da lide, por já não serem proprietários do mesmo, apurou-se que o donatário é filho dos réus e que estes atribuem à doação o valor de €150,00 (i.e: 100 vezes menos do que o valor por que pretendiam vender aos autores). A n/ ver, a conduta dos réus indicia que estão a tentar artificialmente terminar com o litígio usando o filho como »testa de ferro«, mediante uma doação por um valor muito inferior ao real, sugerindo assim a existência de uma simulação relativa, prejudicando o erário público e fazendo um uso do processo manifestamente reprovável, com o fim de atingir um objectivo ilegal, o que não pode deixar de ser relevado em sede de litigância de má-fé. Termos em que entendemos que devemos condenar os réus numa multa de 6UC, por litigância de má-fé (arts 542º, n.º 2, al.d) do Cód de Proc Civil e 10º do Reg das Custas Proc). Deve ainda ser comunicado às Finanças a suspeita de simulação relativa, para que procedam à avaliação do prédio. Notifique as partes para dizerem o que tiverem por conveniente sobre o exposto, concedendo-se 10 dias para o efeito.”
Através de requerimento datado de 24/05/2023 (com a referência citius «3295482»), os Autores vieram expor e requerer:
“Os AA. mantêm na íntegra todo o seu peticionado no requerimento com a refª ...83, de 2 de maio de 2023 que Va. Exa. melhor e superiormente ratificou, validou no último parágrafo da primeira página do douto Despacho «Termo em que, a acção deve continuar com os réus primitivos e se indefere o pedido de extinção dos mesmos por inutilidade superveniente da lide, por falta de fundamento legal (artºs 263º e 277º al. e) do do CPC)». Quanto ao restante do douto Despacho de Va. Exa., apenas nos apraz referir que o mesmo está, da mesma forma e com a mesma acuidade, de acordo com os normativos legais em vigor, aplicados em consonância e decorrentes [’et pour cause’’] necessariamente do comportamento dos RR. que os AA. apontaram amiúde nestes autos e v.g. no primeiro parágrafo do seu requerimento supra identificado.”
Através de requerimento datado de 24/05/2023 (com a referência citius «3296408»), os Réus vieram dizer: “1º O primeiro parágrafo do d. despacho a que se responde tem, de acordo com o que ali é dito, origem no artº 10 da contestação. 2º Ora, se tal alegação é verdadeira, também não deixa de ser verdade que esse mesmo artigo está inserido, em sede de contestação, na parte do articulado dos RR. em que estes contestam o exagerado valor que os AA. deram à presente acção. 3º Pelo que, com o respeito devido, só sendo retirada aquela afirmação dos RR., sem mais, do seu contexto é que tal poderia levar à sua condenação em multa. 4º Acresce que, posteriormente à contestação, entre AA. e RR. existiram conversações para a compra e venda do prédio, e, os AA. foram confrontados com uma (nova) proposta, de valor inferior ao inicialmente apresentado pelos RR., mas também essa os AA. não aceitaram. 5º Mais ainda. Pese embora ter existido mais do que uma proposta do valor da venda, face à vontade demonstrada pelos AA. de não adquirir o prédio, ainda que por valor inferior – o que aqui se reitera, a verdade é que quer a proposta quer as negociações havidas não vedam nem limitam a liberdade contratual dos RR. – artº 405 do CCivil, podendo estes, porque livres, celebrar o negócio jurídico que muito bem entenderem e com quem quiserem, incluindo uma doação, sob pena de, assim se não entendendo, estarmos perante a violação de um direito constitucional – artº 62 da CRP, o que aqui se invoca para todos os efeitos legais. 6º Quanto ao valor atribuído à doação é de referir aqui que é obrigatória a indicação de um valor em sede de escritura notarial. 7º Acontece que, para justificar a condenação em litigância de má-fé dos RR., diz-se ainda no d. despacho o seguinte: “ … apurou-se que o donatário é filho dos réus … “. 8º E ainda: “ usando o filho … “ – destaques nossos. 9º Não podemos concordar com tal asserção, sendo certo que por consulta, efectuada aos autos via CITIUS, não vislumbramos, quiçá por defeito nosso, como e por que meio este d. Tribunal efectuou / concretizou esse apuramento. 10º Que prova foi usada para essa conclusão, a qual os RR. não vislumbram nos autos? 11º É sabido que, o parentesco é um facto jurídico que, nos termos do artº 1, nº 1, al.s a) e b), artº 4 e artº 211 todos do Código de Registo Civil, se prova por um dos meios indicados no último artigo, ou seja, “pelo acesso à base de dados do registo civil ou por meio de certidão“. 12º É certo que se tem entendido, a nível jurisprudencial que, pelo menos em processo civil, o estado civil ou o parentesco podem alcançar-se mediante acordo das partes ou confissão, sempre que estes factos jurídicos não constituam o thema decidendum – cf., entre outros, Acórdãos do STJ de 29/10/98, Proc. 98B532, de 06/02/2003, Proc. 02B4731; Acórdão do TR de Guimarães de 09/06/2004, Proc. 762/04-2; Acórdão do TR de Lisboa de 15/3/2007, Proc. 10342/06-2, todos disponíveis em www.dgsi.pt. 13º Contudo face à condenação ( em 6UC !! ) com que se termina o d. despacho forçoso é concluir que, legalmente, se impõe que haja certeza nos fundamentos que levam à condenação, demonstrando-se nos autos, de forma clara, a existência desses mesmos fundamentos. 14º Ora, in casu, feita a consulta acima referida aos autos nada encontramos, 15º o que nos leva a dizer que não se alcança como e por que meio legal este d. Tribunal concluiu que o “terceiro” / donatário é filho dos RR., 16º sendo certo que in casu estamos perante dois pares / casais de RR. e de nenhum deles o donatário é filho, o que pode ser verificado oficiosamente, determinando as buscas necessárias e a junção aos autos da certidão de nascimento do donatário, o que desde já se requer, 17º sendo certo, e reitera-se, que a mesma levará à confirmação do predito, isto é, o donatário não é filho de nenhum dos RR.. 18º E assim sendo, como de facto é, impõe-se dar sem efeito o despacho, mormente a condenação dos RR. em litigância de má-fé, como é de JUSTIÇA !
Face ao exposto, REQUER-SE a V.Exª que se digne dar sem efeito o despacho a que, por indicação de V.Exª, se responde, anulando o mesmo, com inerentes consequências legais.”
Na data de 26/05/2023, foi proferido o seguinte despacho: “Sobre a litigância de má-fé dos réus: art 542º, n.º 2, al.d) do Cód de Proc Civil; refª ...89 (10/05/2023), ...82 (24/05/2023), ...08 (24/05/2023) Os réus vieram informar os presentes autos da doação do prédio em litígio em 16/03/2023 a GG, i.e: na pendência da causa. Em primeiro lugar, tendo as partes sido notificadas nos termos e para os efeitos do art 263º do Cód de Proc Civil, os autores vieram expressamente declarar que pretendem continuar com a acção com as partes primitivas; os réus vieram peticionar que o Tribunal declarasse a inutilidade superveniente da lide, por já não serem proprietários do prédio; a pretensão dos réus foi negada pelo Tribunal, por impossibilidade legal, tendo este determinado que os autos prosseguissem com as partes primitivas. Em segundo lugar, compulsados os autos, apurou-se que os réus alegaram no ponto 10º da sua contestação estarem na disposição de alienar o seu prédio, inscrito na matriz predial da freguesia ..., conselho de ... sob o artigo ...60 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...73 pelo valor de €15.000,00, para pôr termo ao litígio. Contudo, analisando a escritura pública de doação junta aos autos, com a qual os réus pretendem que seja declarada a inutilidade superveniente da lide, por já não serem proprietários do mesmo, apurou-se que as partes atribuem à doação o valor de €150,00 (i.e: 100 vezes menos do que o valor por que pretendiam vender aos autores). In casu, o Tribunal (erroneamente) pressupôs que o donatário era filho dos réus, pela homonímia com o apelido »AA«, o que veio a ser impugnado por estes. Em terceiro lugar, independentemente do grau de parentesco (a existir), a n/ ver, mantém-se o entendimento de que a conduta dos réus indicia que estão a tentar artificialmente terminar com o processo usando o donatário como »testa de ferro«, mediante uma doação por um valor muito inferior ao real (conforme o valor de alienação sugerido pelos próprios réus na contestação), sugerindo assim a existência de uma simulação relativa, prejudicando o erário público e fazendo um uso do processo manifestamente reprovável, com o fim de atingir um objectivo ilegal (o de atingir o términus dos autos mediante a declaração de inutilidade superveniente da lide, através da doação da coisa em litígio). Termos em que entendemos que devemos condenar os réus numa multa de 4UC, por litigância de má-fé (arts 542º, n.º 2, al.d) do Cód de Proc Civil e 10º do Reg das Custas Proc). Deve ainda ser comunicado às Finanças a suspeita de simulação relativa, para que procedam à avaliação do prédio”.
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1.2. Do Recurso dos Réus
Inconformados com a decisão que antecede, os Réus interpuseram recurso de apelação, pedindo que «o despacho recorrido seja revogado e substituído por decisão que não considere os Recorrentes como litigantes de má-fé, "absolvendo-os" da condenação, o que urge declarar, com inerentes consequências legais», e formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações:
“1ª O presente recurso tem como objecto o d. Despacho proferido nos autos supra id., através do qual o Tribunal a quo decidiu "condenar os réus numa multa de 4UC, por litigância de má-fé (arts 542°, nO 2, al.d) do Cód de Proc Civil e 10° do Reg das Custas Proc)", uma vez que o mesmo não é tido pelos Recorrentes como uma "decisão justa", daí o seu inconformismo com o ali exarado. 2ª Com o devido respeito, o d. Despacho padece de notória violação de lei e de princípios processuais plasmados no nosso direito in casu aplicáveis, violação que não pode ficar impune, sob pena de subversão dos próprios princípios jurídicos, e, a final, do próprio Direito. 3ª Na verdade, da leitura do d. Despacho recorrido resulta, claramente, que o Tribunal a quo fez uma incorrecta ponderação e aplicação do direito e dos princípios jurídicos aplicáveis, o que a ter ocorrido levaria à decisão de anulação de tal despacho, tal qual, oportunamente, através de requerimento, se requereu. 4ª Incompreensivelmente, o Tribunal a quo manteve o d. Despacho quase na íntegra, tomando por referência o primeiro despacho, pois este é já o segundo, reduzindo apenas o valor da multa de 6UC para 4UC, não voltando atrás, sendo que tal era possível e legal, o que faz com que os recorrentes venham solicitar Justiça a este d. Tribunal ad quem, ocupando assim o precioso tempo de V.EXAS, o que fazem cientes de que a questão não é de somenos importância. 5ª É que, o d. Despacho recorrido está sustentado em argumentos que não colhem, pelo que, não se conformam os Recorrentes com o aí decidido, tanto mais que, previamente, foram aos autos pronunciar-se sobre a matéria em causa, pronúncia que não foi sequer levada em linha de conta pelo Mº Juiz a quo, como podia e devia ter sido. 6ª Por questão de economia processual, dá-se aqui por reproduzido para todos os efeitos legais, o teor de todos os documentos que instruem este recurso, constantes de certidão que a este será junta, sem descurar que o teor daqueles foi acima parcialmente transcrito, de forma cronológica. 7ª Ao contrário do que se diz no d. despacho recorrido, os RR. nunca peticionaram que o Tribunal a quo declarasse a inutilidade superveniente da lide, por já não serem proprietários do prédio ou com qualquer outro fundamento. 8ª Esta nossa afirmação / conclusão estriba-se e resulta dos autos, mais propriamente quando, no dia 23 de Março de 2023, os aqui Recorrentes informaram, sem mais, que procederam à doação do prédio a um terceiro, juntando cópia da escritura notarial, tudo como melhor consta do documento que vai instruir este recurso, documento para o qual se remete, e, cujo teor, por questão de economia processual, se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais. 9ª Instados pelo Tribunal a quo para se pronunciarem, no dia 5 de Maio de 2023, os ora Recorrentes, no contexto que o seu requerimento melhor expressa, vieram aos autos dizer o seguinte: "A ser verdade o que os AA. dizem acerca da postura do donatário melhor fora que este viesse aos autos dizer de viva voz aquilo que os AA. descrevem em seu requerimento / resposta ou que fosse por aqueles junto a estes autos um acordo celebrado entre donatário e AA. do qual conste essa mesma postura, pois o alegado reconduz-se, praticamente, a uma inutilidade superveniente da lide" - sic, tudo como melhor consta do documento que vai instruir este recurso, documento para o qual se remete, e, cujo teor, por questão de economia processual, se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais. 10ª Do que vem se dizer, forçoso é concluir que os Recorrentes nunca peticionaram ao Tribunal a quo que declarasse a inutilidade da lide e extinguisse o processo, pelo que in casu, processualmente, não existe desde logo nenhum incidente, o que inquina a condenação dos RR. em custas pelo mesmo, o que aqui se alega. 11ª Quanto à condenação dos Recorrentes como litigantes de má-fé a mesma partiu de um pressuposto errado, quando, sem olhar ao seu contexto, o Tribunal a quo retira da contestação dos RR. uma alegação que estes fizeram para atacar o valor dado à acção pelos AA. comparando o valor ali referido (de 15.000€) ao valor que foi atribuído à doação que, efectivamente, os RR. concretizaram. 12ª Ora, mesmo a considerar-se que estamos perante a apresentação de uma proposta de venda dos RR. aos AA. com indicação de preço, a mesma não veda nem limita a liberdade contratual dos RR. – art. 405 do CCivil, podendo estes, porque livres, celebrar o negócio jurídico que muito bem entenderem e com quem quiserem, incluindo uma doação, sob pena de, assim se não entendendo, estarmos perante a violação de um direito constitucional - art. 62 da CRP, o que aqui se invoca para todos os efeitos legais. 13ª Tenha-se em conta que, quanto ao valor atribuído à doação, em sede de escritura notarial, a indicação de um valor é obrigatória, e, sendo esta definida no nº 1 do art° 940 do CCivil como “o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente", não se alcança o que levou o Tribunal a quo a concluir que o valor indicado na escritura pública tinha que ser superior, fundamentando o Tribunal a quo também com esse ilegal e insustentável argumento (ainda que repetindo o erro de que os RR. pretendem que seja declarada a inutilidade superveniente da lide, o que, como supra se deixou dito, não é verdade) a condenação dos Recorrentes como litigantes de má-fé. 14ª Acresce que, sem razão nem porquê, e em manifesta violação do direito em vigor, o Tribunal a quo, num primeiro momento, concluiu, para esse pretendido efeito condenatório, que os Recorrentes (qual dos dois casais? porque os RR. são isso mesmo, dois casais distintos) eram pais do donatário, fazendo-o ao arrepio da Lei e sem qualquer fundamentação de facto e ou de direito, pura e simplesmente por doadores e donatário terem um apelido igual, chamando-o ainda, sem qualquer fundamento, de "testa de ferro", sendo este comummente tido como a "pessoa que figura ostensivamente num negócio em vez do verdadeiro interessado", pelo que o Tribunal a quo se limitou a efectuar uma mera alegação sem produzir ou juntar nenhuma prova desse facto e dessa sua afirmação. 15ª Ora, in casu, face à especificidade do contrato em apreço (a doação) não se alcança como é que o donatário pode figurar ostensivamente no contrato em vez do verdadeiro interessado, face à inexistência deste. 16ª In casu, o Tribunal a quo encontrou a fundamentação legal para o efeito condenatório no art° 542, nº 2, al. d.) do CPC, contudo, não lhe assiste razão, como de seguida veremos. 17ª É que, os Recorrentes no seguimento da celebração de uma escritura pública de doação que teve por objecto o prédio rústico do qual eram donos e legítimos proprietários, prédio esse envolvido no processo, limitaram-se a levar ao conhecimento dos autos esse seu acto público, fazendo-o com a convicção de que as partes processuais, o Tribunal, deveriam saber que a titularidade fora transferida para um terceiro, e, quem assim age / actua não o faz com má-fé. 18ª É sabido que, com a reforma de 1995/96 do Código de Processo Civil, o legislador consagrou de forma expressa no art° 266, do anterior CPC, o princípio da cooperação, o que, em sede de litigância de má-fé, implicou um alargamento da aplicabilidade do instituto aos casos em que a parte actue com negligência grave, que para o efeito foi equiparada ao dolo - cf. o proémio do art° 542, nº 2, do CPC. 19ª Os comportamentos que este artigo do CPC, tipifica como constituindo má-fé são: - a dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento, de facto ou de direito, a parte não devia ignorar; - a alteração da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa;- a omissão grave do dever de cooperação; - e, o uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais, com um de três fins: a) conseguir um objectivo ilegal; b) impedir a descoberta da verdade; c) protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão, castigando a lei processual a litigância de má-fé independentemente do resultado verificado. Com efeito, apenas releva o próprio comportamento, mesmo que pelo prisma do prevaricador essa actuação não tenha produzido qualquer resultado. 20ª Ora, in casu, verifica-se que os Recorrentes não podem ser responsabilizados a título de litigância de má-fé, uma vez que o seu comportamento processual, com o respeito devido, não é subsumível em qualquer das previsões normativas contidas no nº 2 do arte 542 do C.P.C. Daí que a condenação dos Recorrentes por litigância de má-fé não tenha qualquer fundamento, quer de facto quer de direito, porquanto tal como consta das peças processuais que instruem este recurso, cujo teor, por questão de economia processual, se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais, os ora Recorrentes apenas se limitaram a vir dar conhecimento aos autos, sem mais, da transferência da titularidade do (até aí) seu prédio, inexistindo por isso qualquer incidente, e muito menos postura / comportamento processual reprovável que sustente a sua condenação por litigância de má-fé. 21ª Reitera-se que, o instituto da litigância de má-fé, previsto no arte 542 e ss. do CPC, constitui sanção civil para o inadimplemento gravemente culposo ou doloso dos deveres de cooperação e de boa-fé (ou probidade) processual – artºs 7 e 8 do CPC. 22a Salvo melhor entendimento, não se afigura aos Recorrentes que ao dar conhecimento ao Tribunal a quo que por força de uma escritura pública de doação deixaram de ser os proprietários do prédio rústico tenham " feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão". 23ª A atitude / postura dos Recorrentes ao levar esse facto aos autos não se traduz, de modo algum, num desrespeito pela justiça que possa levar à afirmação de estarmos perante um comportamento processual da parte que se traduz em litigância de má-fé, pois, apenas a lide dolosa ou gravemente negligente pode fundamentar a condenação da parte como litigante de má-fé, o que, diga-se, in casu não ocorre. 24ª Assim sendo, o que se nos apresenta como evidente é que a conduta dos Recorrentes revela respeito pelo processo e pela justiça, não se enquadrando a mesma em nenhuma das alíneas do nº 2 do art. 542 do CPC, e, designadamente, na prevista na alínea d) do mesmo nº 2. 25ª Face ao exposto, impõe-se concluir que o d. despacho recorrido fez uma errada aplicação do art° 542 do CPC, violando por isso a lei processual indicada, bem como o art° 405 do CCivil e (indirectamente) o art° 62 da CRP, nos termos que acima se deixaram ditos”.
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Os Autores não contra-alegaram.
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O recurso foi admitido pelo Tribunal de 1ª Instância como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo, não tendo sido objecto de alteração neste Tribunal da Relação.
Foram colhidos os vistos legais.
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2. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR
Por força do disposto nos arts. 635º/2 e 4 e 639º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (as conclusões limitam a esfera de actuação do Tribunal), a não ser que se tratem de matérias que sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou que sejam relativas à qualificação jurídica dos factos (cfr. art. 608º/2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº2, in fine, e 5º/3, todos do C.P.Civil de 2013).
Mas o objecto de recurso é também delimitado pela circunstância do Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenha sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis”[2] (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida[3]).
Neste “quadro legal” e atentas as conclusões do recurso de apelação interposto pelos Réus, é apenas uma a questão a apreciar por este Tribunal ad quem: se os Réus actuaram ou não como litigantes de má-fé.
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3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Com interesse para a apreciação das questões a apreciar, revelam os factos discriminados no «I-Relatório» que antecede e, nos termos dos arts. 607º/3 e 4, 2ªparte, 663º/2 do C.P.Civil de 2013, ainda o seguinte facto.
1) No art. 10º da contestação, os Réus alegaram: “Aliás, com vista a colocar imediatamente um ponto final no presente processo, mesmo não reconhecendo nenhum direito, quer directa quer indirectamente, invocado pelos AA., os segundos RR. enquanto únicos donos de um prédio sito no Lugar ..., composto de vinha, oliveiras e pastagem, com a área de 4200m² e o valor patrimonial de 87,61€ – cf. doc. 1 que ora se junta, manifestam já total disponibilidade para vender o mesmo rústico aos AA. por metade do valor que estes atribuíram à presente acção, isto é, pelo preço de quinze mil euros” [provado pelo respectivo teor do articulado de contestação apresentado nos autos].
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4. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O instituto da litigância de má-fé visa acautelar um interesse público de respeito pelo processo, pelo Tribunal e pela Justiça, destinando-se a assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos Tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da Justiça[4].
Assinala-se no Ac. desta RG de 04/04/2024[5] que “Qualquer pessoa que se considere titular de um direito pode solicitar a intervenção judicial para o ver reconhecido ou para alcançar a sua realização coerciva - arts. 20° da Constituição da República Portuguesa e 2° do Cód. Proc. Civil -, assim como qualquer pessoa demandada pode usar os meios processuais existentes para se defender. A ordem jurídica põe a tutela jurisdicional à disposição de todos os titulares de direitos, sendo indiferente que, no caso o concreto, o litigante tenha ou não razão: num e noutro caso gozam dos mesmos poderes processuais. Mas uma realidade é o direito abstracto de acção ou de defesa; outra é o exercício concreto desse direito. O primeiro não tem limites, é um direito inerente à personalidade humana. O segundo sofre limitações impostas pela ordem jurídica” (os sublinhados são nossos).
Salienta Paula Costa e Silva[6] que “o direito de acção, como qualquer outro direito subjectivo, não traduz uma liberdade absoluta: ainda que o direito a agir configure uma permissão normativa genérica, não pode significar uma possibilidade de actuação sem fronteiras de licitude. O direito de acção, como qualquer situação jurídica, está, desde logo, limitada pelos fins da sua atribuição”.
O exercício concreto do direito de acção ou de defesa está limitado pelo dever de litigar (actuar processualmente) de boa-fé expressamente consagrado no art. 8º do C.P.Civil de 2013: “As partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior”. Portanto, para além de dever ser observada nas relações contratuais, a boa fé constitui igualmente uma norma de conduta que incide sobre a relação jurídico-processual entre as partes, constituindo um limite imanente de actuação processual e impondo uma conduta verdadeira, proba e leal.
Este dever de boa-fé processual representa também um corolário do princípio do dever de cooperação consagrado no art. 7º/1 do C.P.Civil de 2013: “Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”.
Portanto, as partes devem litigar com a devida correcção e no respeito dos princípios da boa fé e da verdade material e ainda com observância do dever cooperação, tudo por forma a ser obtida, com eficácia e brevidade, a realização do direito e da justiça no caso concreto.
O instituto da litigância de má-fé visa precisamente sancionar e combater a «má conduta processual» das partes aquando do exercício do direito de acção e/ou de defesa, designadamente, toda e qualquer conduta processual que represente uma violação do dever geral de boa-fé e/ou do dever de cooperação, sendo que, em simultâneo, se assegura a boa administração da justiça, o respeito pelo Tribunal, e a credibilidade da atividade jurisdicional.
Por isso, o Legislador consagrou a penalização das condutas de instrumentalização do direito processual pelas partes em diversas vertentes: quando se apresente como forma de conseguir um objectivo considerado ilegítimo pelo direito substantivo, e/ou como meio de impedir a descoberta da verdade, e/ou como forma de entorpecer a máquina judiciária (com a colocação de obstáculos ou com a promoção de expedientes meramente dilatórios), e/ou como meio de obstaculizar, sem fundamento sério, ao trânsito em julgado da decisão[7].
Na versão do C.P.Civil anterior à reforma de 1995/1997, entendia-se que a condenação por litigância de má-fé pressupunha a existência do dolo, quer directo, quer indirecto ou instrumental: somente a lide dolosa pressupunha a má-fé e não também a lide errada, ainda que ousada, se promovida por quem estava honestamente convencido da razão e da verdade pelo que, quando os autos apenas revelavam que a parte defendia convictamente a sua posição, sem que, em tal actuação, alterasse conscientemente a verdade dos factos ou fizesse do processo um uso manifestamente reprovável, não haveria litigância de má-fé. Como referia Alberto dos Reis[8], “Não basta, pois, o erro grosseiro ou a culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição conscientemente infundada, de tal modo que a simples proposição da acção ou da contestação, embora sem fundamento, não constitui dolo, porque a incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem levar as consciências mais honestas a afirmarem um direito que não possuem ou a impugnar uma obrigação que devessem cumprir; é preciso que o autor faça um pedido a que conscientemente sabe não ter direito; e que o réu contradiga uma obrigação que conscientemente sabe que deve cumprir”. Resumindo, entendia-se que não bastava a negligência mesmo grosseira, exigindo-se uma conduta essencialmente dolosa.
Porém, com a reforma de 95/97 do C.P.Civil, passaram a ser punidas, como litigância de má-fé, não só as condutas dolosas, mas também as gravemente negligentes (isto é, a lide temerária baseada em situações de erro grosseiro ou culpa grave).
O Dec.-Lei nº329-A/95, de 12/12, introduziu a actual redação do preceito (correspondia ao art. 456º do anterior C.P.Civil) e, conforme resulta do seu texto e se explicita no preâmbulo daquele diploma, “como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, consagrou-se “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má-fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos” (o sublinhado é nosso).
Refere António Geraldes[9] que “é neste contexto, concerteza fruto da degradação dos padrões de actuação processual e de uso dos respectivos instrumentos, que, a par do realce dado ao princípio da cooperação e aos deveres de boa fé e lealdade processual, surge a necessidade de ampliar o âmbito de aplicação do instituto, assumindo-se claramente que a negligência grave também é causa de condenação como litigante de má-fé”.
Deste modo, ao alargamento do conceito de litigância de má-fé por forma a abranger expressamente a negligência grave, presidiu uma ideia (intenção) de moralização e de normalização da lide processual[10].
Em termos gerais podemos afirmar que consubstancia uma conduta reprovável e sancionada no âmbito do instituto da litigância de má-fé todo o comportamento processual de uma parte que seja contrário à lei e que tenha sido adoptado com dolo ou negligência grave na prossecução de uma finalidade inadmissível e susceptível de afectar seriamente, de forma injustificada, os interesses da parte contrária[11].
Estabelece o art. 542º do C.P.Civil de 2013 (correspondente ao antigo art. 456º): “1. Tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir. 2. Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (…)”.
Neste normativo tipificam-se os elementos objectivos e os elementos subjectivos que integram a litigância de má-fé. Os elementos objectivos são constituídos pelas condutas elencadas nas diversas alíneas do nº2, as quais representam um conjunto actuações processuais que são contrárias, reprováveis e censuráveis em face dos deveres processuais de boa fé e de cooperação que impendem sobre todos os sujeitos processuais (no fundo, representam o fundamento geral da condenação por litigância de má-fé que emerge da violação de deveres processuais). E os elementos subjectivos são o dolo ou a negligência grave[12].
Logo, para a responsabilização de uma parte como litigante da má-fé não basta a verificação de um comportamento processual que preencha a tipicidade prevista numa das alíneas do nº2 do art. 542º (elementos objectivos), mais se exigindo que esteja comprovado que a parte agiu com dolo ou com negligência grave (elementos subjectivos), sendo certo a respectiva condenação tem que estar baseada em factos que demonstrem quer o tipo objectivo quer o tipo subjectivo.
No que que respeita às condutas processuais que merecem reprovação e censura, este normativo trata a má-fé sobre dois prismas: a má-fé material, que abrange os casos de dedução de pedido ou de oposição cuja falta de fundamento a parte anão ignorava ou não devia desconhecer, a alteração da verdade dos factos ou a omissão de factos essenciais e relevantes para a decisão da causa; e a má-fé instrumental, que se refere quer à violação grave do dever de cooperação, quer ao uso reprovável do processo ou dos meios processuais, para conseguir um fim ilegal, para impedir a descoberta da verdade, para entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
No que se refere especificamente à conduta prevista na alínea d), o legislador pretendeu penalizar a instrumentalização do direito processual em diversas vertentes: quer configure uma forma de alcançar um objectivo que é ilegítimo em face do direito substantivo ou do próprio direito processual; quer constitua um meio de impossibilitar a descoberta da verdade; quer represente uma forma de emperrar a máquina judiciária, através da criação de obstáculos ou da promoção de expedientes meramente dilatórios; quer se apresente como um meio de pretender retardar o trânsito em julgado da decisão, prejudicando, deste modo, a contraparte na tutela ou na realização do direito substantivo que através da decisão lhe é reconhecido[13].
Assinale-se que, para haver lugar à condenação de litigância de má-fé, esta conduta de instrumentalização tem que se apresentar como manifestamente reprovável, ou seja, como clara, evidente e notoriamente censurável e ofensiva da boa fé e da cooperação.
Procurando concretizar cada uma das referidas vertentes, e acompanhando Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[14], podemos considerar que:
- visa-se conseguir um objectivo ilegal quando, com a acção, o autor quer atingir uma finalidade não tutelada por lei, em vez da correspondente função que lhe é própria, ou quando o autor ou o réu utilizam meios processuais, como a reclamação, o recurso ou simples requerimentos, nos quais invoca fundamentos inexistentes;
- visa-se impedir a descoberta da verdade quando a parte procura impossibilitar que sejam produzidos certos meios de prova, ou quando produz ou impulsiona a produção de meios de prova que são falsos;
- visa-se entorpecer a acção da justiça quando o réu procura, por todo o modo, atrasar a tramitação do processo (por exemplo, requer a expedição de cartas rogatórias ou precatórias para inquirição de testemunhas mas depois, sem qualquer justificação, desiste delas ou deduz incidentes a que, posteriormente, não dá seguimento) ou quando a parte praticar actos processuais por forma a desviar a actuação do tribunal das questões essenciais para pontos sem qualquer interesse para o processo;
- e visa-se protelar o trânsito em julgado quando a parte interpõe recurso ou deduz reclamação de forma sistemática e sem um mínimo de fundamento sério, pretendendo apenas conseguir atrasar o trânsito e, por via disso, a exequibilidade da decisão.
Quanto aos elementos subjectivos, o dolo abrange, obviamente, todos os seus tipos/graus/formas: directo (o agente prefigura determinado efeito do seu comportamento e quer esse efeito como fim da sua actuação), necessário (não querendo directamente o facto ilícito, o agente prevê-o como uma consequência necessária e segura da sua conduta), e eventual (o agente prevê a produção do facto ilícito como uma consequência possível da sua conduta, e conforma-se com o resultado dessa previsão)[15].
Relativamente à negligência grosseira, há primeiro que ter em consideração que a negligência consiste na omissão da diligência a que o agente estava obrigado, isto é, na inobservância do dever objectivo de cuidado que lhe era exigível. E, segundo na terminologia clássica, a negligência pode revestir várias formas: culpa levíssima (ocorre quando o agente tiver omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excepcionalmente diligente teria observado), culpa leve (acontece quando o agente tiver deixado de observar os deveres de cuidado que uma pessoa normalmente diligente teria observado) e culpa grave (existirá quando o agente deixar de usar a diligência que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta não teria observado). Ora, a negligência grosseira corresponde precisamente a esta culpa grave, sendo que a jurisprudência tem vindo precisamente a associar o comportamento temerário em alto e relevante grau a um comportamento inútil, indesculpável, reprovado pelo mais elementar sentido de prudência: a negligência grosseira corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo[16].
Assim, em termos gerais, e sem prejuízo da necessária ponderação do caso concreto, entendemos que a negligência grave consiste numa imprudência indesculpável e intolerável, completamente destituída daquele mínimo de diligência e cuidado que teria permitido ao agente facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, o que se revela manifesta aos olhos de qualquer um[17].
Abrantes Geraldes[18] considera que são “passíveis de integrar o conceito de negligência grave, para efeitos de litigância de má-fé, as seguintes situações, sem prejuízo de uma apreciação casuística que, em concreto, permita dar relevância positiva ou negativa ao circunstancialismo verificável: a lide temerária ou ousada; a teimosia manifestamente infundada em defender uma posição até ao STJ, depois de ter sido rejeitada pelas instâncias; o que demanda por mero capricho, com espírito de emulação ou com erro grosseiro (…); a falta grave do dever de diligência; a pertinaz e contundente oposição, clara e decisivamente infundada, por incorrecta interpretação e aplicação da lei e por desajustamento aos factos provados; a pretensão ou defesa manifestamente inviáveis, constitutivas do abuso do direito de acção; a deficiência técnica grave (…) A lei não o diz expressamente, mas é evidente que se é passível de sancionamento a atitude da parte que, com leviandade, de forma gravemente grosseira ou de forma precipitada, deduz uma determinada pretensão infundada, não deixará de ser sancionada a mesma actuação que, de forma mais reprovável, tenha subjacente o conhecimento inequívoco da referida falta de apoio fáctico ou jurídico. Mais do que anteriormente, a lei impõe agora ao autor que, antes de intentar uma acção, pondere a sua razoabilidade, evitando-a se não houver fundamento sério para a dedução da pretensão, sendo ilegítima uma atitude irreflectida ou sem qualquer base mínima de apoio”.
No âmbito deste tipo de responsabilidade processual, o grau de diligência que será exigível à parte também deverá partir da diligência do bom pai de família, ou seja, da diligência que um homem medianamente prudente e cuidadoso teria empregado previamente à propositura de uma ação judicial[19], mas impondo-se sempre a ponderação das particularidades do caso concreto, designadamente às qualidades e qualificações do agente e às circunstâncias em que se encontrava, desde logo porque a diligência exigida a um profissional qualificado na sua atividade, não poderá ser a mesma que se exige a um cidadão não qualificado na matéria[20]. Definido este «padrão» de aferição do grau de diligência exigível, então o grau de culpabilidade (de negligência) será tanto maior quanto mais intenso for o dever de ter agido de outro modo: teremos negligência simples sempre que o sujeito processual omita a diligência do bonus pater família; mas já teremos negligência grave quando não haja obediência às mais elementares regras de prudência, omitindo o mínimo de diligência que lhe teria permitido aperceber-se da falta de fundamento da sua pretensão ou da reprovabilidade do uso que faz do processo e dos meios processuais[21].
Explanadas estas considerações jurídicas, analisemos o caso em apreço.
Atento o «I - Relatório» que antecede, verifica-se que, em momento anterior ao da prolação da decisão ora impugnada, o Tribunal a quo proferiu despacho (2ª decisão proferida na data de 10/05/2023) no qual consignou, para além do mais, que “A n/ ver, a conduta dos réus indicia que estão a tentar artificialmente terminar com o litígio usando o filho como »testa de ferro«, mediante uma doação por um valor muito inferior ao real, sugerindo assim a existência de uma simulação relativa, prejudicando o erário público e fazendo um uso do processo manifestamente reprovável, com o fim de atingir um objectivo ilegal, o que não pode deixar de ser relevado em sede de litigância de má-fé”, e que “entendemos que devemos condenar os réus numa multa de 6UC, por litigância de má-fé”, terminando o mesmo ordenando que “Notifique as partes para dizerem o que tiverem por conveniente sobre o exposto, concedendo-se 10 dias para o efeito” (os sublinhados são nossos).
É consabido que a decisão judicial constitui um acto jurídico, aplicando-se-lhe as regras disciplinadoras dos negócios jurídicos, nos termos da analogia determinada pelo art. 295º do C.Civil e, por isso, os preceitos que disciplinam a interpretação da declaração negocial, nos arts. 236º a 238º do mesmo C.Civil, são aplicáveis à interpretação de uma qualquer decisão judicial, importando, desde logo, a imputação do sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto, mas conformando-se esse princípio geral à regra segundo a qual a sentença ou acórdão não pode ter um sentido que não tenha no documento ou escrito que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso[22].
Analisando o (parcialmente) transcrito despacho (2ª decisão proferida na data de 10/05/2023) e apesar do segmento «entendemos que devemos condenar», há que ponderar que o Tribunal consignou que «a conduta dos réus indicia» (e não «constitui», «consubstancia», «integra») e termina decisão com um expresso «convite» para as partes (designadamente, os Réus) se pronunciarem sobre «o exposto» (entendimento de que está «indiciada» a prática de litigância de má-fé por parte dos Réus).
Neste contexto, um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, não podia nem pode deixar de interpretar este despacho no sentido de não constituir uma efectiva e concreta condenação dos Réus em litigância de má-fé, configurando antes, apenas e tão só, o cumprimento do disposto do art. 3º/3 do C.P.Civil de 2013, dando lugar à obrigatória discussão contraditória que deve preceder a condenação como litigante de má-fé (efectivamente, antes de a proferir, deve o Tribunal proporcionar o contraditório, ouvindo nomeadamente a parte contra a qual tem a intenção de proferir tal condenação; relembre-se que, conforme decidiu o TC no Ac. nº498/2011, de 26/10/2011, a parte só poder ser condenada como litigante de má-fé, depois de previamente ser ouvida, a fim de se defender da imputação de má-fé).
Esta interpretação é totalmente corroborada pela tramitação processual subsequente: correspondendo ao «convite» expresso naquele despacho de 10/05/2023 (2ª decisão), os Réus apresentaram o requerimento datado de 24/05/2023, através do qual exerceram efectivamente o seu direito de contraditório sobre o entendimento exposto pelo Tribunal a quo no referido despacho no sentido da sua conduta «indiciar» a prática de litigância de má-fé; e foi nesta sequência que o Tribunal a quo prolatou o despacho ora recorrido, através do qual condenou os Réus como litigantes de má-fé numa multa de 4 UCs (e não em 6 UCs como constava daquele anterior despacho de 10/05/2023).
Frise-se que, caso não se interpretasse no referido sentido o despacho de 10/05/2023 (2ª decisão), então o despacho objecto do presente recurso sempre constituíra uma violação do caso julgado (representaria uma segunda condenação dos Réus como litigantes de má-fé com base nos mesmos fundamentos - «na mesma conduta»), o que implicaria que o despacho ora impugnado padecesse de ineficácia jurídica, sendo que estaríamos perante matéria do conhecimento oficioso deste Tribunal ad quem (e conduziria à procedência do recurso, ainda que com base em fundamentação diversa, com a revogação do despacho recorrido).
Mas, como se explicou, o despacho de 10/05/2023 (2ª decisão) não pode ser interpretado como uma efectiva e concreta condenação dos Réus em litigância de má-fé, pelo que tal condenação apenas ocorreu por força do despacho ora impugnado e prolatado em 23/05/2023.
Examinando esta decisão recorrida, constata-se que se fundou no seguinte: “os Réus estão a tentar artificialmente terminar com o processo usando o donatário como »testa de ferro«, mediante uma doação por um valor muito inferior ao real (conforme o valor de alienação sugerido pelos próprios réus na contestação), sugerindo assim a existência de uma simulação relativa, prejudicando o erário público e fazendo um uso do processo manifestamente reprovável, com o fim de atingir um objectivo ilegal (o de atingir o términus dos autos mediante a declaração de inutilidade superveniente da lide, através da doação da coisa em litígio)”.
No recurso, os Réus invocam, essencialmente, que: «os RR. nunca peticionaram que o Tribunal a quo declarasse a inutilidade superveniente da lide, por já não serem proprietários do prédio ou com qualquer outro fundamento»; «no dia 23 de Março de 2023, os aqui Recorrentes informaram, sem mais, que procederam à doação do prédio a um terceiro, juntando cópia da escritura notarial»; «Instados pelo Tribunal a quo para se pronunciarem, no dia 5 de Maio de 2023, os ora Recorrentes nunca peticionaram ao Tribunal a quo que declarasse a inutilidade da lide e extinguisse o processo»; «quanto à condenação dos Recorrentes como litigantes de má-fé a mesma partiu de um pressuposto errado, quando, sem olhar ao seu contexto, o Tribunal a quo retira da contestação dos RR. uma alegação que estes fizeram para atacar o valor dado à acção pelos AA. comparando o valor ali referido (de 15.000€) ao valor que foi atribuído à doação que, efectivamente, os RR. concretizaram»; «quanto ao valor atribuído à doação, em sede de escritura notarial, a indicação de um valor é obrigatória»; «não se alcança o que levou o Tribunal a quo a concluir que o valor indicado na escritura pública tinha que ser superior»; e «os Recorrentes não podem ser responsabilizados a título de litigância de má-fé, uma vez que o seu comportamento processual, com o respeito devido, não é subsumível em qualquer das previsões normativas contidas no nº 2 do arte 542 do C.P.C.» [cfr. conclusões 7ª a 13ª, 17ª, 20ª, 22ª e 23ª].
Afigura-se-nos que assiste inteira razão aos Réus/Recorrentes. Explicando.
Embora na 1ª decisão que integra o despacho proferido em 10/05/2023 o Tribunal a quo afirme que «os réus vieram peticionar que o Tribunal declarasse a inutilidade superveniente da lide, por já não serem proprietários do prédio» e determine que «a acção deve continuar com os réus primitivos e se indefere o pedido de extinção dos mesmos por inutilidade superveniente da lide, por falta de fundamento legal», certo é que analisando cuidadosamente o teor dos requerimentos datados de 23/03/2023 (com a referência citius «3236409») e de 02/05/2023 (com a referência citius «3272786»), conclui-se inequivocamente que os Réus não deduziram (de forma explícita nem implícita) qualquer pretensão no sentido de ser declarada a inutilidade superveniente da lide e/ou a extinção da instância em razão da doação que realizaram.
Frise-se que, independentemente dos efeitos daquela 1ª decisão que integra o despacho proferido em 10/05/2023, para apuramento da existência ou não de litigância da má-fé, importa considerar qual foi a concreta conduta da parte e, neste sentido, é de uma clareza absoluta que, no primeiro daqueles requerimentos, os Réus se limitaram a informar a existência da doação e a juntar respectivo documento comprovativo, e que, no segundo, se limitaram a pronunciar-se sobre o requerimento dos Autores datado de 02/05/2023 (assinalando-se que a referência a «o alegado reconduz-se, praticamente, a uma inutilidade superveniente da lide» respeita exclusivamente à conduta do donatário que os Autores descrevem no seu requerimento), nada sequer alegando ou requerendo sobre o fim determinado pelo Tribunal no despacho de 17/04/2023 (notificação das partes «para dizerem o que tiverem por conveniente sobre o exposto nomeadamente em face do exposto no art 263º do Cód de Proc Civil»).
Mais se saliente ainda que, nestes requerimentos, os Réus também nada alegaram nem nada requereram no sentido da sua falta de legitimidade para, como partes, continuarem na presente acção.
Nestas circunstâncias, não se pode subscrever a decisão recorrida quando afirma que os Réus quiseram «atingir um objectivo ilegal» que consistia em «atingir o términus dos autos mediante a declaração de inutilidade superveniente da lide, através da doação da coisa em litígio»: como se deixou expresso, apesar de terem prestado informação sobre a existência da doação, certo é que não foi formulada uma concreta pretensão de inutilidade superveniente da lide, nem foi suscitada qualquer questão sobre a falta de legitimidade para prosseguirem na acção, pelo que jamais se pode concluir que os Réus quiseram obter um fim ilegítimo em face da lei (e isto mesmo sem se entrar na discussão sobre se, a sua concreta formulação, representaria um conduta que visa conseguir um «objectivo ilegal»).
Inexistindo sequer a dedução da pretensão que o Tribunal a quo qualificou como o «objectivo ilegal» que os Réus pretendiam atingir, então revela-se como totalmente infundada a afirmação plasmada na decisão recorrida no sentido de que estes «estão a tentar artificialmente terminar o processo usando o donatário»: não foi formulada pretensão para ser extinto o processo em razão da existência da doação, e não se vislumbra o que significa «tentar artificialmente terminar o processo (a realização da doação por parte dos Réus poderia, no máximo, conduzir à substituição do transmitente pelo adquirente nos termos do citado art. 263º, mas tal substituição não implica qualquer termo do processo). Deste modo, também não se pode subscrever este segmento da decisão recorrida.
Acresce que as afirmações plasmadas na decisão de recorrida de que «os Réus usam o donatário como “testa de ferro”» e «uma doação por um valor muito inferior ao real (conforme o valor de alienação sugerido pelos próprios réus na contestação), sugerindo assim a existência de uma simulação relativa, prejudicando o erário público» igualmente se mostram infundadas porque não foram apurados nos autos factos que as comprovem.
Não se vislumbra quais são os elementos de facto que permitem ao Tribunal a quo considerar que o donatário que figura na escritura pública de doação junta aos autos não é o verdadeiro interessado nesse negócio (assinale-se que, embora na 2ª decisão do despacho de 10/05/2023 se afirme que «o donatário é filho dos Réus», na decisão recorrida, o Tribunal a quo assume que «erroneamente pressupôs que o donatário era filho dos réus»).
Também não se vislumbra que a alegação dos Réus inserta no art. 10º da contestação («com vista a colocar imediatamente um ponto final no presente processo, os segundos RR. enquanto únicos donos de um prédio sito no Lugar ..., composto de vinha, oliveiras e pastagem, com a área de 4200m² e o valor patrimonial de 87,61€, manifestam já total disponibilidade para vender o mesmo rústico aos AA. por metade do valor que estes atribuíram à presente acção, isto é, pelo preço de quinze mil euros») constitua um meio de prova suficiente de que tal prédio tem valor real de € 15.000,00 (esta alegação foi proferida no âmbito do incidente do valor da causa da acção e enquadrou-se manifestamente numa «proposta de negociação», pelo que nem sequer pode ser qualificada com uma confissão). Mas mais relevante é que, como resulta do art. 13º/ do Código do Imposto de Selo, no caso de doação de bens imóveis, “o valor dos imóveis é o valor patrimonial tributário constante da matriz nos termos do CIMI à data da transmissão”, o significa que o valor que deve ser indicado na escritura de doação será o valor patrimonial tributário e não qualquer outro. Logo, a circunstância dos Réus terem consignado na escritura pública de doação que juntaram aos autos o valor de € 150,00 (valor este que é cerca do dobro do valor patrimonial que indicaram naquele art. 10º da contestação), jamais permite concluir que este valor é 100 vezes menor que o valor real e muito menos permite concluir que se trata de um valor simulado e/ou que existiu prejuízo para o erário público.
Assim sendo, também não se podem subscrever estes segmentos da decisão recorrida.
Por fim, constata-se que, na decisão recorrida, o Tribunal a quo não concretizou:
- de que forma os requerimentos apresentados pelos Réus em 23/03/2023 (limitando-se a informar da existência da doação) e em 02/05/2023 (limitando-se a pronunciar-se sobre um requerimento dos Autores) configuram «um uso do processo manifestamente reprovável», ou seja, em que termos tais actos processuais são notoriamente ofensivos da boa fé e da cooperação processual (e diga-se que este Tribunal ad quem também não o vislumbra);
- e de que forma a conduta dos Réus (nesses requerimentos) reveste uma actuação dolosa ou negligentemente grosseira (o que também não se vislumbra).
Por conseguinte, temos necessariamente que concluir dos elementos constantes dos autos, designadamente, dos decorrentes dos requerimentos datados de 23/03/2023 (com a referência citius «3236409») e de 02/05/2023 (com a referência citius «3272786») não permitem fornecer factos concretos que consubstanciem um comportamento processual previsto na alínea d) do nº2 do art. 542º (elemento objectivo), e uma actuação com dolo ou com negligência grave (elemento subjectivo), pelo que não podia o Tribunal a quo ter sancionado os Réus como litigantes de má-fé.
Consequentemente, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que não está demonstrada a prática de litigância de má-fé pelos Réus/Recorrentes e, por via disso, deve proceder o fundamento de recurso e deverá julgar-se procedente o recurso de apelação interposto pelos mesmos, devendo revogar-se a decisão recorrida.
Procedendo o recurso, e considerando que não foram apresentadas contra-alegações, que os Autores não deram causa ao recurso, e que os Réus/Recorrentes são quem tira proveito do mesmo, então as custas da presente impugnação judicial deverão ficar a cargo dos Réus/Recorrentes - art. 527º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013.
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5. DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelos Réus/Recorrentes e, em consequência, revogam a decisão recorrida (prolatada em 26/05/2023).
Custas do recurso de apelação pelos Réus/Recorrentes.
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Guimarães, 06 de Fevereiro de 2025.
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
Relator - Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício; 1ºAdjunto - Fernando Manuel Barroso Cabanelas; 2ªAdjunta - Maria João Marques de Pinto Matos.
[1]A presente decisão é redigida segundo a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, mas respeita-se, no caso das transcrições, a grafia utilizada nos textos originais. [2]António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, Almedina, p. 139. [3]Ac. STJ de 07/07/2016, Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [4]Cfr. Pedro de Albuquerque, in Responsabilidade Processual Por Litigância de Má-fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados No Processo, Almedina, p. 55 e 56. [5]Juiz Desembargador José Carlos Pereira Duarte, proc. nº3650/16.0T8VCT-G.G2, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [6]In Responsabilidade por Conduta Processual, Litigância de Má-fé e Tipos Especiais, 2022, p. 45. [7]Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, in obra referida, p. 642. [8]In C.P.Civil Anotado, II, p.263. [9]In Temas Judiciários, Vol. I, p. 313. [10]Cfr. Ac. STJ 10/05/2005, Juiz Conselheiro Pinto Monteiro, proc. nº05A879, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj [11]Cfr. Ac. STJ 17/11/2021, Juiz Conselheiro Luís Espirito Santo, proc. nº4964/20.0T8GMR.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [12]Cfr. neste sentido, o citado Ac. RG 04/04/2024, Juiz Desembargador José Carlos Pereira Duarte, proc. nº3650/16.0T8VCT-G.G2. [13]Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, in obra referida, p. 642. [14]Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Artigos 362.º a 626.º, 4ªedição, Almedina, 457. [15]Cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 6ª edição, vol. I, p. 532 a 542. [16]Cfr. Ac. STJ 29/11/2005, Juiz Conselheiro Pinto Hespanhol, proc. nº05S1924, disponível em http://www.dgsi.pt./jstj. [17]Cfr. Menezes Cordeiro, in Litigância de Má-fé, Abuso do Direito de Acão E Culpa In Agendo, 2016, p. 26. [18]In Temas Judiciários, vol. I, 2010, p. 316 e ss. [19]Cfr. o citado Ac. RL 16/12/2021 , Juiz Desembargador Nelson Borges Carneiro, proc. nº12367/19.2T8LSB.L2-2. [20]Cfr. Marta Alexandra Frias Borges, in Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé, 2014,p. 79/80. [21]Cfr. Marta Alexandra Frias Borges, in obra referida, p. 79/80 [22]Cfr. Ac. STJ 24/11/2020, Juiz Conselheiro Ricardo Costa, proc. nº22741/12.0YYLSB-A.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.